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Clínica & Cultura

On-line version ISSN 2317-2509

Clín. & Cult. vol.8 no.2 São Cristovão Jul./Dec. 2019

 

DOSSIÊ REDE INTERAMERICANA DE PESQUISA EM PSICANÁLISE E POLÍTICA

 

A escuta psicanalítica em contextos de crueldade

 

Psychoanalytic listening in cruelty contexts

 

La escucha psicoanalítica en contextos de crueldad

 

 

Sandra Djambolakdjian Torossian

Profa. do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul- UFRGS

 

 


RESUMO

O presente artigo tem o objetivo de apresentar reflexões sobre a escuta psicanalítica de pessoas que vivem em contextos de crueldade. Para escrever a clínica recorre-se ao método do estudo clínico, contando histórias escutadas em diversos contextos. Argumenta-se que as políticas de crueldade poderão produzir resistência na escuta do analista e apontam-se alguns caminhos para o trabalho clínico. Fundamentalmente, a problematização dos conceitos psicanalíticos à luz a descentralização em relação à produção europeia, e a intervenção do psicanalista em ações que levem à heterogeneização dos discursos do Outro, quando estes se apresentam homogêneos.

Palavras-chave: Psicanálise, Dispositivos clínicos, Crueldade, Resistência, Decolonialismo


ABSTRACT

This paper aims to present reflections on the psychoanalytic listening of people who live in cruelty contexts. Clinical study -by telling stories heard in various contexts -is used as the method for clinical writing. It is argued that cruelty policies may produce resistance in the analyst listening and some paths for clinical work are appointed. Fundamentally, the problematization of psychoanalytic concepts by decentralization process of European production. Moreover, other way for clinical work is appointed and it includes the analyst interventions that will take into account actions for heterogenization of discourses of the Other, in case they are homogeneous.

Keyword: Psychoanalysis, Clinical devices, Cruelty, Resistance, Decolonialism.


RESUMEN

Este artículo pretende presentar reflexiones sobre la escucha psicoanalítica de personas que viven en contextos de crueldad. Para escribir la clínica, recurrimos al método del estudio clínico, contando historias escuchadas en diferentes contextos. Se argumenta que la política de la crueldad puede producir resistencia en la escucha del analista y se señalan algunas vías para el trabajo clínico. Fundamentalmente, la problematización de los conceptos psicoanalíticos a la luz de la descentralización en relación con la producción europea, y la intervención del psicoanalista en acciones que conducen a la heterogeneidad de los discursos del Otro, cuando éstos se presentan como homogéneos.

Palabras clave: Psicoanálisis, Dispositivos clínicos, Crueldad, Resistencia, Decolonialismo


 

 

Se a psicanálise não leva em conta essa mutação, se não se engaja nisso, se não toma esse ritmo, ela será - e já o é, em larga medida - deportada, ultrapassada... ou então, inversamente, ela continuará nas condições de uma época que foi aquela do seu nascimento (DERRIDA, 2001).

Há tempos construímos casos a partir das histórias que escutamos, são casos que não estão nos livros clássicos da psicanálise e com os quais precisamos perguntar, questionar, teorizar. São histórias tristes no dizer de Vera Malaguti (2003), as quais se apresentam como lapsos, metáforas e metonímias que compõem a representação da juventude pobre do Brasil com imagens de imoralidade, vadiagem e periculosidade. Histórias tristes que gostaríamos de compartilhar aqui, uma vez que estão geralmente silenciadas, inclusive nos contextos psicanalíticos. Mas antes de apresentá-las, uma breve discussão sobre crueldade se faz necessária. É nessa direção que construímos o objetivo deste artigo, interrogar a escuta psicanalítica a partir das histórias tristes de crianças e jovens do Brasil que habitam em contextos de crueldade e impõem que a política seja pensada junto à clínica. Para interrogar, nos utilizamos de alguns movimentos de alteridade textual, recorrendo a autores que desde o campo hoje denominado decolonial questionam a centralidade europeia das teorias e conceitos no campo das ciências à qual a Psicanálise não foge.

 

Sobre a crueldade

As histórias que escutamos se produzem em contextos de crueldade. Escolhemos esta expressão para designar territórios e espaços da cidade nos quais as pessoas estão expostas à violação dos seus direitos, à violência que surge dos lugares e cenários onde deveria se encontrar proteção social mas em vez disso encontra-se desamparo social. Nesses cenários o Outro aparece encarnado por figuras de violência e violação, sem ambivalência , sem oscilações, sem dúvidas, sem intervalos. Assim, a crueldade não está colocada somente no território geográfico, mas amplia-se para o território das relações interpessoais e, mais ainda, torna-se importante vetor de constituição do psiquismo. Trata-se da crueldade que constitui o território usado segundo concepção de Milton Santos (2007). Para esse autor:

o território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais de sistemas de coisas superpostas; o território tem que ser entendido como território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida (SANTOS, 2007, p.14)

No sentido coloquial da língua portuguesa o termo crueldade associa-se a fazer o mal, como refere o dicionário Aurélio (2008). Além desse significado, o mesmo dicionário aponta as seguintes possibilidades de significação: perversidade, agir com maldade, tirania ou, ainda, comportamento ou ação impiedosa, bárbara e falta de clemência.

Desde um olhar psicanalítico Sophie De Mijolla-Mellor (2005) aponta que "exercer a crueldade implica uma desidentificação com a vítima em nome de uma identificação com um princípio superior" (Mijolla-Mellor, 2005, p.174). A autora refere, ainda, que uma desidentificação face ao outro fundamenta todas as barbáries e afirma que perante a barbárie resta sempre uma pergunta em relação ao que aconteceu, ao que se fez ou se deixou de fazer e levou o sujeito à posição de não ter outra saída senão a identificação megalômana com uma posição desumanizada.

Cesar Barreira (2015) contribui com o tema da crueldade a partir de uma perspectiva sociológica, pontuando que a ausência de motivos aparentes para o exercício da violência é um dos seus marcadores. Reconhecendo a explicação freudiana relativa à crueldade constitutiva do ser humano, associada ao jogo entre pulsão de vida e pulsão de morte na qual as formas de dominação tem papel relevante, o autor ressalta a violência difusa nas sociedades contemporâneas. De acordo com Barreira, o difuso associa-se ao imponderável, ao incontrolável, aquilo que faz com que todos possam ser vítimas de práticas classificadas como violentas em diversas situações sociais.

Jacques Derrida (2001) retoma o termo crueldade apontando sua significação de história de sangue derramado e sua relação com o sentir prazer fazendo o mal. Destaca ainda a dificuldade de delimitação da crueldade e, como Barreira, remete-a à pulsão de morte freudiana. No entanto, pergunta se além da pulsão cruel de destruição ou de aniquilamento haveria uma pulsão de poder ou de posse.

Sustentado na Psicanálise, Derrida ainda distingue diferentes posições na crueldade, as quais descreve como: crueldade por sofrer; por fazer sofrer; por fazer-se ou deixar-se sofrer; deixar sofrer pelo e crueldade pelo prazer no sofrimento.

Com o auxílio dos autores acima mencionados, podemos sustentar que por contextos de crueldade designamos territórios geográficos, existenciais e relacionais nos quais presentifica-se uma violência difusa ancorada em relações nas quais prevalece o fazer o mal e a falta de clemência que dão lugar a movimentos de desidentificação que derivam na desumanização Territórios que produzem sujeitos em cuja constituição psíquica há rastros da barbárie sofrida, e por isso mesmo, a crueldade poderá se repetir contra si e contra outros. Pessoas cujas histórias são carregadas de tristeza nas quais se encontra somente desamparo, sem oscilação.

 

Histórias tristes

Neste texto, escolhemos contar algumas dessas histórias, escutadas em diferentes contextos clínicos. Com o objetivo de transformar a narração numa escrita da clínica, nos apoiaremos no estudo clínico proposto por Ricardo Rodulfo (2004b). Trata-se de um gênero de contar e pensar o trabalho psicanalítico no qual são ressaltados os fluxos e refluxos não lineares que estão mais associados a uma atitude do que a um método. Caracteriza-se pela sinuosidade que evita pensar no modelo de um ir-e-vir de perguntas e respostas. Evita, sobretudo, a existência de um molde teórico aplicado ao material clínico. A conceitualização dá-se a partir de um processamento dos materiais, semelhante ao processo de amassar e não ao de aplicar um molde sobre uma massa.

No processo de amassar o material, de contar a caminhada, diversas cenas poderão ser colocadas a dialogar. Cenas que se problematizam entre si e que dialogam com as teorias de que dispomos.

A história de Pedrinho

Era uma vez uma mãe que com carinho e expectativa aguardava seu filho, do mesmo modo o pai, falava com ele, lhe apresentava o mundo ainda quando ele não havia nascido. Era um filho que vinha para mudar a vida de ambos jovens os quais ali depositavam muitos dos seus sonhos de finalmente constituir uma família.

O bebê nasceu saudável e risonho. Foi sendo cuidado em casa até que chegou o dia do seu primeiro passeio. A tão esperada saída para conhecer parte do mundo que já fora narrado e apresentado pelo seu pai quando ele ainda envolto pela placenta materna podia escutar somente sua voz e mergulhar também num universo simbólico.

O menininho, no colo de sua mãe, pegou dois ônibus, um de linha e outro intermunicipal com o qual chegou ao presídio. Foi revistado, olhado como o filho de mais um bandido traficante, crime hediondo. Abriram-se as grades, fecharam-se atrás dele. Pedrinho sentiu a respiração ofegante de sua mãe, quando ainda com seu corpo não totalmente diferenciado do dela, a sentia nervosa e enraivecida por ter de passar por revista vexatória, pouco tempo depois de ter dado a luz.

Ouviu o barulho dos agentes, xingando e ofendendo a todos os que passavam, antes mesmo de ouvir a voz conhecida do seu pai. Aquele que lhe apresentou algo do mundo e que nele depositou grandes expectativas da sua nova vida. Tinha largado o tráfico já que estava formando família.

Mas se o tráfico excepcionalmente o perdoou e lhe deu essa rara liberdade de escolha, o Estado não. Crime hediondo precisa ser cumprido com privação de liberdade. Não foram suficientes as vozes da família, dos seus empregadores dizendo do seu comprometimento com o trabalho, da sua responsabilidade e inteligência nesse tempo de regime semiaberto. Não foram suficientes as vozes das técnicas do judiciário testemunhando a mudança de vida e posição subjetiva deste pai. O Estado não perdoou. Fixado que está na lei que proíbe o uso, comércio e venda de drogas. Crime hediondo a ser pago com privação de liberdade, foi o veredicto final.

A história de Acerola

Acerola, com 12 anos, é escutado em psicoterapia. Cumpriu, no tempo do seu atendimento, medida socioeducativa de internação, várias vezes, indo e vindo também em relação ao seu espaço de escuta. Narra sua pergunta através de uma frase da letra dos Pacificadores (2014): "eu queria mudar"

No seu processo de fala interroga essa afirmação através de um dilema narrado pelo funk "Sofrimento eterno" do Mc Bigô (2013). Trata-se da história de um homem que, ao descobrir que será pai, decide mudar de vida, sair do "mundo do crime". Promete que cometerá seu último assalto naquela noite. Contudo, é baleado, preso e condenado por latrocínio, recebendo pena de 20 anos. Após conquistar liberdade, deseja finalmente conhecer o filho. Quer recompensá-lo pelo tempo perdido e, mais uma vez, arquiteta um último crime. Durante o assalto, mata, com dois tiros, o gerente da empresa. Ao chegar à casa, depara-se com o seu sofrimento eterno: descobre que acabara de matar o próprio filho.

É com essa metáfora que Acerola conta sua história, a história de seu pai, que não matou o próprio filho, mas foi morto na frente do filho quando já não quis mais realizar mais um crime.

 

Histórias que se enlaçam

Chimamanda Adiche (2009) escritora nigeriana, relata que quando começara a escrever, suas histórias se passavam em paisagens nevadas com personagens brancos, loiros e de olhos claros, distantes do seu mundo na Nigéria, mas habitantes do mundo de histórias infantis americanas e britânicas que lia. Os personagens comiam maçãs, falavam da mudança climática e bebiam cerveja de gengibre. Apesar de gostar das histórias, diz ela, não sabia que meninas negras, de cabelos crespos que comiam manga e não tinham a necessidade de falar do clima, poderiam ser personagens das histórias. Ao lembrar de Fide - um menino acolhido pela sua família, do qual só ouvia dizer que a família era pobre e não tinha o que comer - relata sua surpresa ao ver, numa visita, que essa família produzia bonitos cestos. Surpresa produzida pela impossibilidade, construída até então, de vê-los para além da pobreza. Essa era a história única sobre a vida deles.

Adichie pode escrever outros livros ao tomar contato com escritores e escritoras africanas que foram espelho para abrir novas identificações. Já em solo estado-unidense, tendo vários espelhos lhe foi possível interrogar as certezas. Não identificar-se com um único espelho. Espelhos de direção única produzidos por políticas imagéticas e discursivas que produzem lugares únicos para as diferentes pessoas. Solo imaginário e simbólico que propõe modos únicos de recobrir o real.

Como ofertar outros espelhos aos tantos Pedrinhos que por aí se produzem sujeitos? Como narrar essas histórias sem histórias únicas em que os Pedrinhos, Acerolas e suas famílias possam ser personagens? O que fazer para possibilitar outras saídas que não somente as que acabamos de narrar?

Pedrinho sente-escuta no corpo ainda em parte indiferenciado dele e de sua mãe o nervosismo, a raiva, a respiração ofegante, e ambos entrando em relação com quem os agride, não encontram ali sossego para a angústia do desamparo. Memória marcada no corpo real que talvez possa ser elaborada a partir dos registros especulares e simbólicos se, por um acaso, eles encontrarem pontos de amparo para a recoberta da angústia.

Quais as imagens especulares que as marcas da miséria apresentam para um bebê? Como se amarram os registros em nó, nos redutos da cidade, destinados a isolar e ocultar parte da população marcada pela miserabilidade, pela negritude de sua pele e pelo seu sustento associado a atividades consideradas ilegais? Quais carícias são possíveis no corpo de um bebê que mora onde não há sossego? Morada na qual as noites não são para descansar, para dormir e sonhar. Onde a produção onírica, tão bem analisada a partir de Freud (1900 [1991]) não atende somente à elaboração do vivido, restos diurnos e trabalho do recalcado, mas no sono há necessidade de estar sempre alerta. Porque a noite é sinônimo de sobressaltos. Onde os corpos ainda em processo de simbolização dos bebês e crianças pequenas, são invadidos pela polícia em busca de drogas. Onde o trânsito na rua está sujeito tanto ao toque de recolher quanto às metralhadoras que seja em mãos dos habitantes do bairro ou da polícia costumam passar na altura da cabeça das crianças.

Quais e como o processo de estruturação na infância será retomado no après-coup da adolescência para realizar passagem, para se reorganizar e produzir sintoma próprio? Quais as referências com as quais se identificar? O drama de Acerola é claro nessa busca de resposta. É possível mudar as imagens e outras referências? É essa uma tarefa para os psicanalistas?

Apesar de escutá-lo singularmente numa escuta em direção à produção de sujeito, interrogar sua posição subjetiva perante o Outro e intervir intersetorialmente em todos os espaços habitados por Acerola (família, escola, programas da assistência social, judiciário, instituição de cumprimento da medida socioeducativa em meio aberto e fechado, dentre outros) isso não tem sido suficiente para desviar e deslocar os processos que o transformam em criminoso. Quanto mais entra e sai das instituições, mais vai se carimbando uma versão única da sua história.

Qual é a posição possível dos psicanalistas na escuta dessa impossibilidade de saídas? Como fugir das armadilhas da resistência, a qual como sabemos desde Lacan (1958 [1998]), é sempre do analista, para possibilitar outras saídas que não a repetição perversa à qual essas crianças e jovens são submetidos?

Acerola não é o único responsável pela sua condição. Há um Estado que se nega a mudar as leis ou que as faz serem cumpridas dependendo de quem seja a pessoa que as viola. Um Estado que é responsável pela sua proteção, mas não o protege. Os jovens tem que pagar com privação de liberdade sem importar se no seu processo de constituição e desenvolvimento buscam outras referências, se querem constituir família e sair da vida do tráfico e do crime. Não importa, crime hediondo paga-se com privação de liberdade. Não há saídas diz Mc Bigô e Acerola repete, não sem antes interrogar.

Para localizar os possíveis pontos de resistência do analista, não se deixando capturar pela sua alienação aos discursos produtores de olhares únicos, estereótipos e preconceitos, muitas vezes produtores de maior violência e repetição sintomática, precisamos da política.

 

Psicanálise e políticas de escuta

Dufour (2007), dedicando-se ao desdobramento da afirmação de Lacan "o inconsciente é a política" aponta o lugar estrutural do Outro como terceiro, mas destaca, no entanto, que esse lugar se atualiza na história. Dufour acrescenta que "se o inconsciente é a política, a política é a estética." (Dufour, 2007, p.245). Uma estética que aponta para os textos, relatos, representações, dogmas, gramáticas e saberes (e podemos acrescentar poderes) que permitem sustentar as figuras do Outro a partir das quais o sujeito poderá ser produzido como tal. Produzido para governar seus modos de trabalhar, falar, crer, pensar, habitar, comer, cantar, contar, amar e morrer. Modos que diferem nos diferentes lugares e épocas.

No entanto, a relação da escuta com a política não é um tema consensual na psicanálise, há nele ruídos e resistências. Alguns dos argumentos contrários à relação da clínica com a política sustentam-se na afirmação de que a escuta da estrutura prescinde da escuta da história; outros deixam-se atravessar pela individualização da escuta do inconsciente. Outros ainda, aderem aos dogmas psicanalíticos institucionais sem se deixar interrogar pela clínica a qual muitas vezes se realiza no campo das políticas públicas.

Introduzir o tema do espaço público, ajuda-nos a superar essa aparente dicotomia. Geralmente os profissionais que trabalham em serviços públicos escutam histórias semelhantes às de Pedrinho e Acerola. Serviços atrelados a diversas políticas de Estado e de Governo.

Ao referir-se a relação entre a psicanálise e o espaço público, Derrida (2001) afirma: "nada no entanto, de outra parte, foi mais estranho à psicanálise, até agora, mais inquietante para ela que o espaço público" (Derrida, 2001, p. 37). E ainda acrescenta: "as relações da psicanálise com o espaço público da sociedade civil e do Estado sempre foram criticadas. A transformação profunda do espaço público cria um novo dado. Ela pede análises inéditas, novos axiomas e invenções estratégicas" (DERRIDA, 2001, p. 48).

Manifestamente amigo da psicanálise, apesar de ser também um de seus críticos, o autor aponta para a necessidade de a psicanálise se modificar em função das transformações dos Estados e das questões jurídicas e políticas. Reconhece, no entanto, movimentos de resistência em relação a si mesma uma vez que ela disporia dos dispositivos e ferramentas para analisar a problemática da soberania e da crueldade, mas nem sempre está disposta a realizar essa análise. É por isso, afirma Derrida, que a psicanálise apresenta-se muitas vezes autoimune.

No intuito de abrir espaço para a alteridade em relação à possível autoimunidade do discurso psicanalítico, a qual, por sua vez, poderá ser produtora de resistência na escuta, recorremos a autores e autoras do que tem se denominado decolonialismo. Trata-se de um campo do conhecimento filosófico que questiona e critica a centralidade europeia na produção textual de diversas teorias no campo das ciências humanas,

Homi K. Bhabha (2013), afirma que para compreender a produtividade do poder colonial é crucial construir o seu regime de verdade e não submeter suas representações a um julgamento normatizante. Bhabha tem nas figuras da ambivalência e da profundidade algumas de suas ferramentas desconstrutivas.

Não é objetivo deste texto realizar um rastreamento da produção do regime de verdade da cisão entre clínica e política no âmbito da Psicanálise, no entanto, destacamos que os textos psicanalíticos comportam uma leitura de tal cisão. Trata-se, muitas vezes, de leituras realizada fora do contexto no qual as obras foram produzidas, sem considerar as perguntas da época as quais os textos buscam responder ou ainda tomam uma parte da teoria de um autor como linha quase reta e única de leitura. É o caso, por exemplo da divisão da obra freudiana entre textos pré-psicanalíticos, textos psicanalíticos e textos culturais.

A escrita de Freud comportou todos esses textos, cada um respondendo às questões que se apresentaram em diferentes época de sua vida, da sua pesquisa clínica e do contexto sociopolítico em que viveu. Mas, algumas leituras realizadas atribuem maior hierarquia valorativa a uns textos do que aos outros, geralmente marcando mais as cisões do que as continuidades do pensamento do autor.

Existem diferenças entre as temáticas, entre os conceitos elaborados em cada época e na direção do trabalho, mas a hierarquização na leitura dessas diferenças produziu, no campo psicanalítico, oposições e cisões. Exemplo disso é a oposição entre o interno e o externo, entre as questões de natureza e as questões de cultura, entre o público e o privado que costumam habitar os textos marcados pela psicanálise (Rodulfo, 2004a). São políticas de leitura que não submetem as afirmações à problemática da ambivalência.

Além disso, há talvez nessa leitura uma influência do modo como Freud, Lacan e outros autores se relacionaram pessoalmente com a ação política. Yanis Stavrakakis (1999) destaca que na relação pessoal de Freud com a política manifesta-se uma descrença relativa a adaptação a ordem. Do mesmo modo, a relação pessoal de Lacan é controversa, havendo por parte dele uma crítica à ação revolucionária e adotando posições diversas em relação à ação política direta. No entanto, Lacan demostra-se simpático às contestações em relação à ordem vigente.

Isso mais do que indicar uma posição distante da política parece apresentar a posição política de ambos: sem extrema submissão às ordens vigentes e criticando qualquer posição totalizante. Além disso, são inegáveis as contribuições de ambos psicanalistas ao campo da política e as intervenções realizadas nesse campo. Contribuições reconhecidas por diversos autores no campo da filosofia e da ciência política, especialmente no que se refere à concepção de sujeito (Stavrakakis, 1999; Alemán, 2016)

Sobre a concepção de sujeito, Gayatri Chakravorty Spivak (2010) elabora algumas críticas ao movimento estruturalista e pós-estruturalista quando considera que ao se falar em "o sujeito" negam-se as diferenças de condições nas quais esses sujeitos são produzidos no cenário internacional, nega-se assim a divisão internacional do trabalho pelos países europeus, nos quais muitos dos nossos conceitos são produzidos e negam-se os agenciamentos de classe que produzem "as condições econômicas da existência que separam seus modos de vida".

Podemos dizer que o mesmo acontece ao se falar de "o brasileiro". Qual? Aquele que precisa pagar o crime de tráfico com privação de liberdade? Ou aquele que pode se livrar dessa sentença? Aquele que tem uma casa, cama e banho quente para repousar e sonhar? Ou aquele que vive aos sobressaltos, temendo as noites, os dias de chuva? O que tem banheiro em suite ou o que se utiliza de um balde para realizar suas necessidades, na ausência de banheiro? O bebê que vai ao parque, à casa da vó na sua primeira saída? Ou aquele que vai ao presídio conhecer o seu pai?

Essas perguntas são formuladas menos para produzir oposição entre os diferentes modos de se apresentar como "o sujeito brasileiro" e mais para destacar que a escuta psicanalítica necessita levar em consideração a divisão, nem sempre binária, dos diferentes modos de se estruturar nos dispositivos da casa e da cidade. Divisão produzida pelas condições econômicas do capitalismo financeiro, cuja herança no Brasil se associa a uma política de dominação escravocrata (Souza, 2017), a qual é um dos vetores da crueldade brasileira contemporânea.

 

Intervenção psicanalítica em contextos de crueldade

Pedrinho e Acerola são protagonistas de histórias tristes, mas também de histórias de enfrentamento. Eles e seus familiares interrogam com suas palavras e seus atos a produção da crueldade contemporânea. Histórias de sofrimento atreladas às figuras que encarnam o Outro oferecendo-lhes quase que exclusivamente a certeza do desamparo social. Um Outro que não duvida, que não oscila entre o amparo e o desamparo, que oferece espelhos únicos e folhas sem espaços em branco para que escrevam sua história. Há uma antecipação do fim atrelada ao fracasso, à bandidagem, à imoralidade e à periculosidade.

O que pode a psicanálise perante essa realidade? Não recuar é uma das possíveis direções, não se submeter à pulsão de morte que poderá aniquilar à possibilidade de escuta. Não ser engolida pelas políticas de crueldade, produzindo repetição onde deveria produzir diferença. Sair da autoimunidade. E para isso há necessidade de colocar suas ferramentas para a análise dessas histórias e dos contextos nas quais elas se produzem.

Analisar a transferência e a resistência do analista para não cair na cilada de impedir a escuta em função da pregnância imaginária da miséria que leve a interpretar como falta de recursos do sujeito (Rosa, 2002) o que é uma produção sociopolítica da crueldade. Essa análise precisaria, ainda, olhar para as produções discursivas nas quais certos conceitos são produzidos, descentrando-se de uma psicanálise essencialmente europeia (Derrida, 2001) bem como considerar a "estética do Outro", na escuta psicanalítica.

Isso possibilitará a produção de movimentos de análise, em relação aos pontos cegos da escuta, onde a posição do analista não esteja ancorada somente na relação de desigualdade social reproduzindo os discursos de dominação. Dominação na qual negam-se as diferenças, sendo coniventes com o que Bhabha (2013) descreve como "processo pelo qual as formas de alteridade racial, cultural e históricas foram marginalizadas dos textos que se ocupam da articulação da diferença" (BHABHA, 2013, p.107)

Seria oportuno indicar algumas das análises sobre o processo de escravização no Brasil, seu restos e continuidades no racismo e política governamental atual, realizada por Jessé Souza (2017), bem como outras produções que problematizam a articulação da escuta psicanalítica, o racismo e o sexismo. Além disso, seguir os rastos da construção de regimes de verdade nas políticas de impunidade brasileiras, que nunca tendo acatado o julgamento dos responsáveis pelas torturas e violências, acontecidas ao longo da história no país, continuam reproduzindo violência e impunidade, sem que haja qualquer ação reparatória. Ou quando as há, é em resposta a uma determinação internacional, como a Lei Maria da Penha, ou as ações de reparação em relação as vítimas da ditadura civil-militar. Talvez uma exceção possa ser colocada aqui na política de ações afirmativas, que não dependeram de intervenção internacional, mas que tanta polêmica ainda produzem, quando não há o entendimento de tratar-se de política reparatória.

Desse modo, juntamente com a escuta da singularidade em direção à produção de sujeito e à interrogação da posição subjetiva de cada um perante o Outro, é função do analista produzir rupturas no processo de encarnação do Outro que não duvida, que não oscila, que oferece finais únicos para as histórias dos sujeitos que vivem em contextos de crueldade. Se o Outro não é homogeneizado, segundo afirmação de Bhabha (2013), precisamos garantir a heterogeneidade, introduzindo a ambivalência, o paradoxo, e sustentando a contradição.

Intervir nos lugares onde se produz política, no âmbito do legislativo, em diferentes fóruns da cidade é tarefa do psicanalista que se implica com a posição política da sua escuta. Esse é um modo de intervir na estética do Outro para que seja possível aos diferentes Pedrinhos e Acerolas que nos encontros com o outro possam jogar, com certa liberdade de escolha, alternando posições, e inventar espelhos e saídas outras que não as do sofrimento eterno. Habitar territórios nos quais possam se produzir lugares que lhes permitam dormir sossegados e ter o direito ao sonho, como processo de construção de um futuro e de elaboração psíquica do seu cotidiano.

 

Referências

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