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Clínica & Cultura

On-line version ISSN 2317-2509

Clín. & Cult. vol.8 no.2 São Cristovão Jul./Dec. 2019

 

DOSSIÊ REDE INTERAMERICANA DE PESQUISA EM PSICANÁLISE E POLÍTICA

 

Loucura e Arte: vias desviantes de construção política

 

Madness and Art: deviant ways of political construction

 

La locura y el arte: caminos desviados de la construcción política

 

 

Tania Cristina Rivera

Psicanalista e ensaísta. É Professora Titular do Departamento de Arte e da Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense (UFF). Desde 2019 atua também junto ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

 

 


RESUMO

O ensaio examina as relações entre loucura e arte pela chave do delírio como construção de novas realidades, singulares porém compartilháveis no campo cultural. Assumindo a dimensão propositiva de toda reflexão, ele explora algumas obras presentes na Exposição Lugares do Delírio, buscando ressaltar o alcance político desta operação.

Palavras-chave: Arte, loucura, realidade, política.


ABSTRACT

The essay examines the relationship between madness and art through the key of delirium as a construction of new realities, singular but shareable in the cultural field. Assuming the propositive dimension of all reflection, it explores some artworks present in the Exhibition Places of Delirium, aiming to highlight the political scope of this operation.

Key-words: Art, madness, reality, politics.


RESUMEN

El ensayo examina las relaciones entre la locura y el arte a través de la clave del delirio como construcción de nuevas realidades, singulares pero compartibles en el ámbito cultural. Asumiendo la dimensión propositiva de toda reflexión, explora algunas obras presentes en la exposición Lugares de Delirio, buscando destacar el alcance político de esta operación.

Palabras clave: Arte, locura, realidad, política.


 

 

Arte e loucura se entrecruzaram durante larga parte do século XX. A produção plástica de pacientes de hospitais psiquiátricos ganhou o interesse de críticos e artistas nos anos 1920 e desempenhou importante papel, até fins da década de 1940, no debate entre a arte moderna e a tradição de representação mimética naturalista, contribuindo para a defesa das forças expressivas contra a primazia da "realidade" e da "racionalidade". No contexto da luta antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica, a partir da década de 1960, manifestações artísticas serviram como uma espécie de comprovação de que aqueles que vivenciavam situações de sofrimento psíquico intenso eram capazes de viver em sociedade, impulsionando o surgimento de propostas artísticas relacionais - especialmente nas artes cênicas e na música - tomadas como ação "terapêutica" e política ao mesmo tempo. Nas últimas décadas, os campos da produção artística e da atenção à saúde mental transformaram-se de forma complexa, gerando interlocuções ainda pouco estudadas.

A produção de pacientes de instituições psiquiátricas interessava às vanguardas da primeira metade do século XX, ao lado da arte de povos ditos "primitivos", de crianças e de artistas naïfs, por apontar possibilidades de representação distintas do protocolo acadêmico então vigente. A figura do "louco" destacava-se neste campo por carregar uma vinculação com a questão da criação que atravessara muitos séculos, seja articulando melancolia e arte, desde o Renascimento, seja contribuindo para a idealização do gênio louco no Romantismo, até chegar na confirmação da figura do criador outsider e atormentado, com Van Gogh, por exemplo. Apontando essa tendência geral, Marcel Réja, pseudônimo do psiquiatra Paul Meunier, em seu livro A Arte nos Loucos. O Desenho, a Prosa, a Poesia, de 1907, constatava que "o homem genial, assim como o louco, dá a impressão de um personagem anormal à consciência pública" (RÉJA, 2017, p. 187).

No contexto da nascente Arte Moderna, tal conexão entre arte e loucura eventualmente levou os artistas a serem alvo de preconceito e agressão - como mostra, de forma extremada, a Exposição de Arte Degenerada organizada pelos nazistas em 1937 para condenar obras expressionistas por sua semelhança com as obras de internos de hospícios. Foram os ditos "loucos", contudo, os mais atingidos por essa associação, mesmo quando suas obras eram reconhecidas por suas qualidades formais e não apenas tomadas como documento clínico. Sob a caracterização de arte de insanos, "arte bruta" ou "outsider art", durante todo o século - e até hoje, em alguma medida - artistas que passaram por experiências psicóticas ficaram confinados em nichos que os diferenciaram dos artistas tout court e naturalizaram sua exclusão, ao erigi-la em condição para que surgisse uma espécie de "expressão pura", pretensamente liberta dos parâmetros culturais. Ainda que valorizadas, suas obras (assim como as da dita "arte popular") não podiam alcançar os preços daquelas da "arte erudita". O epíteto "artista" tem, sem dúvida, alto valor para estes sujeitos, retirando-os em parte da brutalidade do significante "doente" ou "interno", "louco" ou "esquizofrênico". Mas ele deixa intocada uma violência mais fundamental, aquela do gesto que reafirma, com a arte e apesar dela, a "loucura" como condição desses "gênios", ocultando o fato de que ficar internado e ser identificado como louco depende, em larga medida, das condições sócioeconômicas enfrentadas por alguém.

As relações entre arte e loucura devem hoje, portanto, ser tratadas em sua incidência política, para serem alinhadas à denúncia da arbitrariedade e da complexidade socioeconômica e ideológica do dispositivo psiquiátrico como dispositivo disciplinar, realizada por autores como Michel Foucault e Franco Basaglia desde os anos 1960. Em termos mais práticos, não se pode ignorar que o diagnóstico e a institucionalização de alguém como paciente psiquiátrico mostra-se, hoje e sempre, muito claramente vinculada a questões socioeconômicas e raciais, especialmente em países periféricos e de políticas públicas precárias, como o Brasil, e que neste contexto a identificação de um artista como "bruto" depende, em larga medida, da naturalização de sua exclusão da cultura erudita e portanto do circuito de arte.

Apesar de anacrônica, a ideologia da livre expressão persiste até hoje e resiste às reconfigurações pelas quais passou o próprio campo da arte, como atesta a existência de galerias de "arte bruta" mundo afora. Ela recobre e invisibiliza algo muito mais interessante e fundamental, no papel específico que a arte produzida nos asilos no início do século XX vem ocupar na cultura: o fato de esta destacar-se do campo mais amplo de produção não-acadêmica por explicitar a profunda cisão do sujeito que ia de par com as transformações de linguagem propostas pelos artistas modernistas. A esquizofrenia define-se pela fragmentação do eu, ou seja, ela dá nome à profunda crítica do sujeito moderno - uno e unívoco senhor da razão - correlata à dispersão de planos de representação operada pelo cubismo e pela nascente linguagem cinematográfica. Se pacientes de asilos psiquiátricos mostraram aos artistas modernistas, entre as décadas de 1920 e 1950, caminhos subversivos de construção pictórica, foi na medida em que eles encarnavam na cultura a crise que simultaneamente atingia o sujeito e a representação. Em vez de se acentuar a "doença" como déficit que lhes permitiria paradoxalmente estar mais próximos de qualquer "essência" humana, deve-se, nesta chave, tomar sua condição como potência crítica de construção cultural.

De modo geral, o que o amplo campo das chamadas psicoses apresenta como força de construção sistemática - de "criativo", pode-se dizer - pode ser nomeado como "delírio". Com este termo visamos tomar a "loucura" de modo propositivo - e ético - como potência de criação de linguagem - e de mundo - que põe em crise o sistema representativo tradicional e tem, portanto, incidência política.

 

Lugares do Delírio

De fato, quando se trata da arte "dos loucos" a própria reflexão teórica e historiográfica esbarra todo tempo na armadilha que a levaria a confirmar fronteiras e idealizações excludentes, sob a justificativa da descrição objetiva de fatos e da exploração de territórios já demarcados. A abordagem deste campo obriga-nos, portanto, a reconhecer as implicações ideológicas e políticas do próprio pensamento, e a tentar direcioná-lo eticamente - e, talvez possamos mesmo dizer, clinicamente. O gesto fundamental para isso parece-me consistir em assumir a enunciação - ou seja, em reconhecer-me como sujeito da enunciação, recusando a ideia de um sujeito neutro da reflexão para assumir em cada proposição uma dimensão de desejo e de singularidade.

Por sorte, no que diz respeito à revisão atual da relação entre arte e loucura, me foi dado ir mesmo além deste posicionamento epistemológico, para assumir o papel de propositora de experiências na Cultura, através do convite a ser curadora da exposição Lugares do Delírio, realizado pelo então diretor do MAR - Museu de Arte do Rio, Paulo Herkenhoff, em 2014. Iniciei nesse momento a pesquisa curatorial, que culminou com a inauguração da mostra em fevereiro de 2017. Em 2018, a convite do Sesc - São Paulo, uma versão revista e ampliada realizou-se de abril a junho no Sesc Pompeia.

A concepção inicial de Herkenhoff girava em torno dos "lugares da loucura", e meu primeiro gesto foi o de recusar o termo "loucura" para evitar a reificação e medicalização que ele costuma carrear. Propus em seu lugar a palavra "delírio", menos estigmatizada e mais aberta semanticamente ao gozo e à invenção. Ela me parecia um instrumento interessante para instabilizar a ideia de "loucura" e ativá-la fato social complexo, do qual devemos nos aproximar em um movimento macro e micro, alternadamente, em uma espécie de sanfona crítico-clínica: buscando o singular (uma história específica, pessoas únicas, um dado microcontexto), sem perder de vista o comum (a todos nós: o amplo e complexo campo social e político no qual este fato se produz).

Ao longo da pesquisa, ou melhor, das vivências e ações reflexivas que Lugares do Delírio me suscitou, com artistas, instituições, trabalhadores da arte e público, foi crescendo em mim a ideia de que a arte talvez seja justamente o engenho, a pequena peça que realiza um enganchamento entre o singular e o comum, a clínica e sua dimensão crítica na Cultura.

 

Realidades, sempre políticas

A etimologia da palavra delírio refere-se àquilo que sai dos sulcos do pensamento convencionalmente aceito, o que desvia ou se apresenta como caminho paralelo àquele já estabelecido. Ao situar-se fora dos sulcos do pensamento hegemônico, o delírio não deixa, contudo, de ser pensamento, construção sistematizada. O próprio termo põe em questão a dicotomia simplória entre "razão" e "loucura", entre, de um lado, sistematização, construção elaborada e processual e, de outro, a "expressão" sem peias a requentar a antiga noção de "inspiração" livre.

O discurso psiquiátrico tradicional salienta sua distância em relação ao dito "normal", mas Sigmund Freud veio demonstrar, pelo contrário, seu poder construtivo e curativo. Ele afirmava, já em 1910, que o delírio é um notável trabalho de reconstrução do tecido da realidade que teria sido esgarçado por uma vivência profundamente desorganizadora, no desencadeamento da psicose (FREUD, 1911/1986). Não se trata de erro, de desvio a ser eventualmente corrigido, mas sim de tentativas de (re)construção de realidade de modo processual e único, diante do esgarçamento da ligação afetiva com o mundo. O delírio é uma tentativa de "cura", trabalho de linguagem a transformar e reconstituir a realidade, alterando o mundo de modo a forjar nele, apesar de tudo, um lugar para o sujeito - o lugar de uma singularidade radical. Com o termo delírio, recusamos assim a delimitação da "loucura" como patologia caracterizada por deficiências em relação a um suposto estado de "normalidade", para renomeá-la positivamente, pelo que pode produzir como potência política de construção de sujeito e de mundo, inaugurando modalidades diversas de "realidade".

O ponto chave de tal concepção está na consideração de que a realidade não é uma evidência empírica, mas sim um complexo entrelaçamento narrativo entre elementos perceptivos e afetivos. A noção de "fantasia" nomeia em Freud tal entrelaçamento, mostrando que ele envolve núcleos narrativos singulares e em permanente reconstrução - ainda que se cristalizem em alguns enredos que se repetem ao longo de uma vida singular. Não teríamos, portanto, de um lado a realidade empírica e social, inquestionável e evidente, e de outro a "realidade psíquica", marcada pela singularidade do indivíduo, a duplicá-la ou complementá-la de modo adaptativo ou conflituoso, mas sim construções representativas complexas nas quais o singular e o comum - as convenções compartilhadas, as crenças, mas também os afetos e as fantasias - se articulam em múltiplas linhas de força a conformar o que costumamos chamar "realidade."

As vivências psicóticas, ou seja, o domínio comumente nomeado como loucura, mostram com vigor a possibilidade de que nos destaquemos de tal realidade, denunciando seu caráter convencional e até certo ponto arbitrário. Salientar neste movimento o retraimento autístico e o retorno a um narcisismo primário mostra o quanto a realidade convencional sustenta-se afetivamente, ou seja, graças aos investimentos libidinais que dedicamos aos outros e aos objetos do mundo. Trata-se de pôr em primeiro plano aquilo que o jovem Jacques Lacan, em sua tese de doutorado, de 1932, menciona como "o papel capital das fixações libidinais na elaboração do mundo dos objetos no sentido mais geral", para defender rapidamente que "a função do 'contato com o real'" deveria ser considerada como fazendo parte da "energética geral da libido", como mostraria a clínica da esquizofrenia (LACAN, 1980, p. 257).

De fato, a noção de "perda de realidade" é fundamental na obra de Freud e, como tentei mostrar em minha tese de doutorado, está longe de erigir em condição patológica a desadaptação à realidade convencional por parte dos indivíduos que passam por experiências psicóticas (Rivera, 1996). Para o psicanalista, a "realidade" está sempre em questão; ela aparece como o terreno no qual devemos pôr à prova nossas fantasias, na noção de "prova de realidade", ou como um "princípio" que se opõe ao movimento do desejo, mas seria em alguma medida sempre perdida, mesmo para aqueles que não chegam a alucinar ou delirar, os "neuróticos" ou "normais". Estaria sempre em jogo uma negociação entre desejo e realidade convencional, e o "normal", o saudável, seria aquele que consegue modificar a realidade para em alguma medida curvá-la a seus desejos. Ele não estaria tão longe dos psicóticos, que recusariam radicalmente um pedaço da realidade e tentariam substitui-lo, em uma vigorosa revolta.

Não se deve, porém, romantizar tal rebelião, que envolve sofrimento extremo e em cujo desencadeamento Freud localizara, no caso Schreber, a "fantasia de fim de mundo" como um colapso total da montagem entre fantasia e realidade, calamidade na qual o eu se fragmenta violenta e dolorosamente. Mas deve-se, sim, considerar que o delírio pode vir reconstruir uma "nova realidade", como diz Freud, remanejando "traços mnêmicos, representações e julgamentos" (Freud, 1924/1986, p. 366)1. Tecendo novos fios narrativos ou manipulando ativamente aqueles já existentes, o delírio remenda os rasgos do tecido da realidade de modo a nele reconstruir algum lugar para o sujeito, podendo portanto levá-lo, se não à "cura", a uma eventual estabilização de seu quadro.

É surpreendente que as elaborações freudianas, que em princípio parecem dizer respeito apenas à psicopatologia, façam apelo à figura do artista como aquele que se afastaria da realidade, mas conseguiria a façanha de fazer valer suas fantasias no terreno da arte, levando outros a compartilhá-las e valorizá-las. Ele o conseguiria, em primeiro lugar, por saber "como elaborar seus sonhos diurnos de maneira a que percam o que têm de pessoal em demasia, pronto a repelir os estranhos, e se tornem suscetíveis de serem apreciados pelos outros" (FREUD, 1917/1963, p.391).

Tentando fugir à personalização idealizadora que marca tal concepção do artista, eu diria que a produção artística indica um terreno de operações dignas de nota por se realizarem a contrapelo do vetor que, partindo da "realidade" convencional, a esta constrange e adapta a singularidade da fantasia e de suas linhas de força, o desejo. Na arte, estariam em princípio em jogo estratégias que enxertam na realidade desejos singulares, ao mesmo tempo em que os despoja de sua "pessoalidade" para torná-los comuns, ou seja, compartilháveis. O campo da arte seria, nesta perspectiva, aquele no qual pode haver uma espécie de transmissão do desejo, entendendo este como uma espécie de centelha que pode se potencializar e efetivar afetivamente em cada experiência artística, de modo imprevisível e nunca garantido. Neste sentido, a arte seria um campo de potencialidades - de devires, diria provavelmente Deleuze - nos quais o desejo toma o primeiro plano no laço social, assinalando um terreno de delimitações imprecisas no qual a política pode se dar, como em nenhum outro domínio da cultura, como política do desejo.

Devemos considerar, ademais, que tal campo não se delineia apenas como "reserva" cultural para o desejo, coleção de fantasias compartilhadas a nos propiciar uma "suave narcose" ou um consolo para nossa condição de "mal-estar na Cultura", como quer Freud no texto que recebe este título (Freud, 1929/1986, p. 71). A arte delira: ela traça linhas fora do caminho hegemônico, ensaia outras possibilidades de surgimento do sujeito e de representação do mundo, desenha outras estratégias de construção social. Nos convida a inventar outros mundos. Devemos alargar para a arte em geral aquilo que Deleuze diz da escrita literária: ela "arrasta a língua para fora de seus sulcos cotumeiros, leva-a a delirar"(Deleuze, 2011, p. 9). E considerar que ao manipular a língua, é o mundo - e o sujeito - que ela refaz e transforma.

Não concordo com o filósofo, entretanto, quando observa que "quando o delírio recai no estado clínico, as palavras em nada mais desembocam, já não se vê coisa alguma através delas, exceto uma noite que perdeu sua história, suas cores e seus cantos" (Deleuze, 2011, p. 9). A doença não é o momento de parada do processo que em si seria saúde - "a literatura é uma saúde", como ele chega a afirmar - e é impossível sair de suas neuroses ou psicoses para escrever, como ele parece crer ao sentenciar que "não se escreve com as próprias neuroses" (Deleuze, 2011, p. 9). Afinal, como e quando se "sairia" inteiramente de "suas neuroses", ou como se poderia purificar o delírio de seu contexto patológico? Isso corresponderia, paradoxalmente, a normatizar o que ele tem de desvio, de "doente" porque inadaptado, em princípio, de disruptivo e por isso mesmo transformador. E a reafirmar a dissimetria dos papéis do "doente" e do médico, ainda que seja para duplicar o primeiro como agente de sua própria "cura" - em uma autonomia ou solipcismo questionável, diga-se de passagem: "o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si próprio e do mundo" (DELEUZE, 2011, p. 14).

O gesto de Freud ao fazer do delírio uma tentativa de cura parece-me mais radical, na medida em que concebe o próprio quadro clínico como um verdadeiro trabalho, uma elaboração de si e do mundo que recusa e suspende a delimitação, sempre essencialmente arbitrária, entre saúde e doença. Sem que o psicanalista chame a atenção para isso, devemos notar que no caso Schreber, ademais, o delírio se sistematiza como livro, publicação destinada a servir de apoio para o processo judicial movido pelo próprio paciente para tentar reaver seus direitos, mas que é, sobretudo, literatura, ou seja, escrito destinado a outros (e que neles logra gerar algo: uma certa "verdade" que faz o júri aprovar seu pleito) (SCHREBER, 1984).

Creio que, de fato, não basta ao psicótico uma solitária elaboração delirante, a reconstrução de um "mundo todo seu", para atingir alguma estabilização. Talvez parte importante do trabalho do delírio envolva o outro - seja ele o médico ou psicanalista ou toda uma série de pessoas convencidas da mensagem do messias, nos casos mais talentosos, digamos. Não que seja necessário compartilhar seu delírio, mas sim mostrá-lo, torná-lo parte do mundo - como literatura, como arte, eventualmente. Tomá-lo como opaco e intransmissível é um gesto anticlínico, se considerarmos a clínica como justamente a posição ética de aposta na potência de sujeito.

Se a loucura é "a ausência de obra", com diz Foucault, isso não significa portanto que se possa fazer a partilha entre arte e patologia, mas sim, como reconhece o próprio filósofo, que a obra passou a se definir na cultura, paradoxalmente, por sua ausência, como uma espécie de dobra, de rebatimento sobre si mesma. "A obra", perdendo sua presença infalível e sua aura indefectível, talvez tenha mesmo se tornado não mais que "o escarpamento sobre o abismo da ausência de obra" (Foucault, 2007, p.583), na expressão de Foucault. Mas eu acrescentaria que os traçados que ela realiza não se reduzem a uma circularidade estéril em torno de um vazio central; eles partem como vetores a delinear caminhos sem centro, vias infinitas e imprevisíveis, a convidar-nos a lugares inauditos.

Na chave do delírio, podemos dizer que arte e loucura parecem se entrelaçar, hoje, como campos na cultura em que se constroem realidades (pois "a Realidade" é sempre pouca, como já vimos com Breton e seu "pouco de realidade"; ela está sempre a se refazer) e se conformam lugares plurais, nos quais singularidades põem-se em contato - e contrato, compartilhando crenças, paixões, experiências e pensamento e assim inscrevendo formas desviantes de construção política. Tentaremos aqui desdobrar brevemente algumas dessas vias, com duas obras postas em relação na exposição Lugares do Delírio.

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A arte às vezes pensa explicitamente a loucura. Em Razão/Loucura (1976/2017), o consagrado artista brasileiro Cildo Meireles põe em questão a distinção entre estes termos, construindo dois objetos com varas de bambu curvadas para baixo ao máximo, quase ao ponto de se quebrarem, e assim mantidas por uma corrente de metal que une suas duas extremidades, formando entre elas uma reta horizontal no meio da qual encontra-se um cadeado. No primeiro objeto, pende do ponto mais alto da curva do bambu uma outra corrente de cuja extremidade pende uma pequena chave, formando uma linha vertical que termina antes de cruzar a cadeia horizontal. A chave não chega, portanto, até a altura do cadeado. Em uma pequena placa de metal no corpo da corrente vertical está inscrito o termo "razão".

O segundo objeto tem a mesma estrutura, mas nele a corrente vertical se prolonga e cruza com sua chave a horizontal, abrindo virtualmente seu cadeado e fazendo-nos supor, sob a fixidez pacífica de seu desenho na parede, a liberação súbita da forte tensão a que o bambu está submetido e o consequente desmantelamento do sistema de retas com seu ordenamento racional do mundo. Em sua plaquinha está escrito: "loucura".

Gostaria que esse gesto de liberação, de quebra da estrutura, que o trabalho nos convida a realizarmos imaginariamente, contaminasse toda a sala de exposição de Lugares do Delírio, pondo em movimento todas as obras nela presentes (e meu desejo secreto era, sem dúvida, de que a partir dela, sua potência se alastrasse pelo mundo).

Ao lado desta obra de Cildo, posicionei um dos objetos recobertos por fio azul de Arthur Bispo do Rosário, o Arco e Flecha (s./d.). Enquanto as estruturas do primeiro têm suas pontas voltadas para baixo, as extremidades do arco de Bispo, tal como o posicionamos, apontam para cima. Fina vara de madeira o cruza, à maneira de um arco pronto a ser lançado, com sua ponta resolutamente apontando o chão.

Posicionar Bispo, artista também renomado internacionalmente e sempre identificado como paciente psiquiátrico que esteve internado durante décadas em um manicômio, lado a lado com Cildo Meireles visava acentuar naquele, em ressonância, a existência de uma proposta conceitual implícita, mas talvez tão digna de nota quanto àquela da arte conceitual tradicional, digamos. De fato, neste e nos demais objetos dessa série interminável construída com sucata e uniformes desfiados dos internos da Colônia Juliano Moreira, como em toda sua obra, podemos reconhecer uma proposição conceitual central: a explicitação do gesto fundamental do artista como alguém a refazer e renomear incessantemente as coisas, com mãos e pensamento, porque a realidade não basta2.

A proximidade com o objeto de Bispo revela e sublinha, em retorno, uma referência menos explícita, porém importante em Razão/Loucura: essas varas de bambu também são arcos e flechas indígenas, nos quais o metal vem substituir, com violência, os materiais tradicionais da floresta. Podemos dizer que a diferença entre razão e a loucura, eixo fundamental do pensamento ocidental, é neste trabalho pensada através de uma estrutura indígena. A questão dos nativos do território brasileiro é muito importante na obra de Cildo Meireles, cujos pai e tio, Cildo Meirelles e Francisco Meirelles, foram importantes indigenistas. Seu pai trabalhava no Serviço de Proteção ao Índio quando abriu o primeiro processo judicial em defesa de indígenas no Brasil, denunciando o extermínio do povo Kraô através da distribuição de roupas contaminadas pelo vírus da gripe por fazendeiros na região conhecida como Bico de Papagaio, entre Tocantins, Pará e Maranhão, o que lhe valeu retaliações. Seu sobrinho José Apoena, primo do artista, que também era indigenista e chegou a ser presidente da FUNAI, foi assassinado em 2004.

Outra obra de Meireles presente em Lugares do Delírio, e que consiste no único ensaio fotográfico jamais realizado pelo artista, também assinala e denuncia a segregação dos ditos "anormais". Trata-se de Cottolengo (1974), que traz imagens de pacientes do hospital Vila São Cottolengo, em Trindade, Goiás, que mantinha internados portadores de deficiência física ou mental e eventualmente problemas neurológicos e psiquiátricos. Em Zero Real (2013), versão mais recente de Zero Cruzeiro (1974/1978) e também mostrada na exposição, as figuras históricas e heroicas da cédula são substituídas pelas fotografias de um índio kraô, de um lado, e de um "louco" virado para uma parede (muito semelhante a uma das imagens de Cottolengo), de outro, confirmando a articulação entre as duas figuras da exclusão na poética do artista.

Meireles visitou a instituição na mesma época em que frequentava um acampamento de indígenas e mestiços para seu trabalho sonoro Sal com Carne (1975), que partia da pergunta do quê distinguiria o "índio" do "branco", à qual algumas das pessoas com quem conversou respondiam que índio seria aquele que come carne sem sal. Além de revirar tal lógica no título do trabalho, nele Cildo mistura sons captados de canais de rádio a cantos indígenas.

O mesmo gesto de reviramento da cultura - que podemos considerar uma via delirante, entre outras possíveis - se dá no trabalho sonoro Liverbeatlespool (2004), que sobrepõe as canções do album One dos Beatles alinhando-as por seu ponto mediano. Na audição, reconhecemos inicialmente Hey Jude, a mais longa delas, mas depois vamos perdendo, na massa sonora da juxtaposição das faixas, toda referência a essas canções que consituem uma memória cultural de ampla incidência no mundo dito ocidental. Ao atingir o ponto mediano, revira-se o material sonoro como se fôra uma fita de Möbius, e passamos então a um ruído complexo do qual se destacarão aos poucos alguns elementos.

Voltando a Razão/Loucura, podemos dizer que ela reflete propositivamente sobre a distinção entre racionalidade e insanidade, recolocando simultaneamente a questão da exclusão social e da própria construção da Cultura em suas linhas de força e suas possibilidades de manipulação subversiva. A proximidade com Arco e Flecha faz ressoar em Arthur Bispo do Rosário tais questões e tais gestos de reversão. Sabe-se que a obra que este deixou construiu-se em boa medida, se não integralmente, ao longo de décadas, entre as paredes de uma instituição psiquiátrica, e é certo que ela não pode ser desvinculada de sua biografia e do contexto social no qual se realizou. Porém, mais do que encarnar a "loucura" como doença ou condição, ela dá testemunho, em primeiro lugar, da segregação de um homem pobre e negro e portanto particularmente sujeito às arbitrariedades do dispositivo psquiátrico de exclusão social.

Mais do que materializar a "esquizofrenia" como afecção que acomete parte da humanidade, ela pode ser vista como uma sofisticada estratégia de subversão de tal dispositivo. Mais que representar o louco, o negro e outras figuras da exclusão e da violência social, sua obra apresenta Bispo em sua singularidade - não como pessoa (ou gênio, ou louco) que seria a origem da obra, mas sim como construção política de sujeito. Em vez de representar o mundo ou inventariar a realidade, sua obra infinita revira o que existe, forjando nele um lugar radical - e convidando-nos a posicionarmo-nos face a ele.

Ao se referir a Razão/Loucura e à questão da loucura em geral, Cildo costuma citar um outro importante artista brasileiro, Raymundo Colares (1944/1946), que contava ser um grande tabu alguém se referir à loucura em sua cidade natal, Grão Mogol, no interior de Minas Gerais. Ninguém dizia "fulano ficou louco" ou "pirou". Quando alguém tinha um surto, as pessoas diziam: "fulano se declarou".

É pertinente e provocativo distinguir o "louco" do normal pelo fato de que aquele se "declararia" louco, enquanto este não o faria (ou ainda não o teria feito). Mas acho que esta anedota talvez deva ser levada mais longe: talvez o "louco" seja aquele que se declara sujeito, simplesmente. Como faz Bispo em sua obra. E ao se declarar, ou seja, inscrever sua singularidade no mundo, ele lança um vetor - uma flecha - que gira no espaço e pode operar na Cultura - em nós - algum reviramento.

 

 

 

 

 

 

 

 

Referências Bibliográficas

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1 - Modificado de acordo com o original alemão Freud, S. Gesammelte Werke. Londres: Imago, 1963, vol. XIII, p. 366.
2 - Para uma reflexão mais detida sobre Bispo do Rosário, ver: RIVERA, T. C. Da loucura ao delírio como força política: Arthur Bispo do Rosário. Arte&Ensaios, v. 37, p. 89-99, 2019

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