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Clínica & Cultura

versión On-line ISSN 2317-2509

Clín. & Cult. vol.8 no.2 São Cristovão jul./dic. 2019

 

DOSSIÊ REDE INTERAMERICANA DE PESQUISA EM PSICANÁLISE E POLÍTICA

 

O mal-estar colonial: racismo e o sofrimento psíquico no Brasil

 

Colonial malaise: racism and psychic suffering in Brazil

 

El malestar colonial: racismo y sufrimiento psicológico en Brasil

 

 

Deivison Faustino

Deivison Mendes Faustino é professor do Departamento de Saúde, Educação e Sociedade da Universidade Federal de São Paulo e integrante do Instituto Amma .Psique e Negritude. É autor de Frantz Fanon: um revolucionário particularmente negro e de dezenas de artigos sobre o pensamento de Frantz Fanon; racismo, capitalismo e subjetividade; saúde da população negra e pensamento antirracista. sdeivison@hotmail.com

 

 


RESUMO

Com o presente paper objetivo explicitar a relevância do tema "racismo" para a abordagem da subjetividade no Brasil, em particular, e da América Latina, em geral. O desafio que se confronta aqui é o de equacionar as dimensões coloniais da sociabilidade contemporânea, seus fantasmas não elaborados e as suas implicações para a subjetividade de negros e brancos. Tomando como ponto de partida a produção intelectual de Frantz Fanon, Lélia Gonzales e György Lukács estabeleço um diálogo aproximativo entre a sociologia e psicanálise de modo a oferecer uma análise crítica, situada ao Sul global da sociedade capitalista, que reconheça o racismo como determinante social de sofrimento psíquico e, sobretudo, se implique na busca por dispositivos políticos, clínicos e pedagógicos que atuem no sentido de promoção de uma saúde mental em uma perspectiva antirracista.

Palavras-chave: sociogenia, psicanálise, racismo, sofrimento psíquico.


ABSTRACT

With this paper I aim to explain the relevance of the theme "racism" for the approach of subjectivity in Brazil, in particular, and Latin America, in general. The challenge facing us here is to elucidate the colonial dimensions of contemporary sociability, its unworked ghosts and its implications for the subjectivity of blacks and whites. Taking as a starting point the intellectual production of Frantz Fanon, Lélia Gonzales and György Lukács, I establish an approximate dialogue between sociology and psychoanalysis in order to offer a critical analysis, located in the global South of capitalist society, that recognizes racism as a social determinant of psychological distress and, above all, involve the search for political, clinical and pedagogical devices that act to promote mental health in an anti-racist perspective.

Key words: sociogeny, psychoanalysis, racism, psychological distress.


RESUMEN

El presente trabajo pretende explicar la relevancia del tema "racismo" para el abordaje de la subjetividad en Brasil, en particular, y en América Latina, en general. El reto que se plantea aquí es equiparar las dimensiones coloniales de la sociabilidad contemporánea, sus fantasmas no elaborados y sus implicaciones para la subjetividad de negros y blancos. Tomando como punto de partida la producción intelectual de Frantz Fanon, Lélia Gonzales y György Lukács establezco un diálogo aproximativo entre la sociología y el psicoanálisis para ofrecer un análisis crítico, situado en el Sur global de la sociedad capitalista, que reconozca el racismo como determinante social del sufrimiento psicológico y, sobre todo, implique en la búsqueda de dispositivos políticos, clínicos y pedagógicos que actúen en la promoción de la salud mental en una perspectiva antirracista.

Palabras clave: sociogénesis; psicoanálisis; racismo; sufrimiento psicológico


 

 

Introdução

Pensar que a psicanálise brasileira, para falar do que nos compete, conviveu tanto tempo com estes 'crimes de paz', adotando uma atitude cúmplice ou complacente, ou, no melhor dos casos, indiferente, deve conduzir-nos a uma outra questão: que psicanálise é esta? Que psicanalistas somos nós? (Jurandir Freire Costa)

Os desafios apresentados pelo tempo presente têm evidenciado cada vez mais a necessidade de estabelecermos diálogos interdisciplinares pautados, por um lado, pela pesquisa empírica e teórica de rigor, e por outro lado, pelo compromisso ético e político com os temas que tratamos. Como sociólogo e estudioso das relações raciais, arrisco-me a parafrasear a Profa. Dra. Mirian Debieux Rosa em seu advocacy por uma clínica psicanalítica implicada (Rosa & Braga, 2017) argumentando pela necessidade de uma produção teórica igualmente implicada com os condenados de nossa época1. Diante desta tarefa o diálogo entre áreas diversas se faz mais que necessário.

Compartilharei aqui parte da minha pesquisa sobre o pensamento de Frantz Fanon e algumas observações que temos realizado no âmbito do Instituto Amma Psique e Negritude em sua atuação pelo reconhecimento do racismo como determinante social de sofrimento psíquico e, sobretudo, em sua busca por dispositivos políticos, clínicos e pedagógicos que atuem no sentido de promoção de uma saúde mental em uma perspectiva antirracista.

Antes de prosseguir, é válido dizer que o tema racismo é recalcado na produção teórica sobre saúde mental no Brasil (David, 2018). Como veremos oportunamente, esta interdição não é privilégio desta área específica, mas atravessa, de maneira diversa, o conjunto da produção teórica das ciências sociais e humanas no país. Ainda assim, observa-se um relativo crescimento de investigações relacionando a psicologia e as relações raciais (Martins, Et. al, 2013; Martins e Santos, 2013) e, sobretudo, a possibilidade de emergência de uma clínica implicada ou interventiva diante do racismo (DIAS e SILVA, 2018; ROSA e BRAGA, 2017, DAVID, 2018).

O objetivo da presente exposição é explicitar a importância da discussão sobre o racismo para a abordagem da subjetividade no Brasil, e para tal, tomarei a produção fanoniana como ponto de partida privilegiada, mas não exclusiva, de um diálogo aproximativo entre sociologia e psicanálise situada ao Sul global do mapa.

 

1. A sociogenia

Embora Fanon (1925-1961) tenha sido psiquiatra e intelectual orgânico dos movimentos de libertação no continente africano, constata-se que não apenas a sua clínica mas, sobretudo, as suas análises sociológicas e filosóficas foram profundamente marcadas por influências e diálogos com a psicanálise (FAUSTINO, 2018a).

Não é meu objetivo enumerar esses diálogos, mas informar que em seus escritos, tanto a compreensão da sociedade passa pelo equacionamento de questões relacionadas ao desejo, afeto e subjetividade, como a clínica psíquica, em suas mais variadas abordagens, se efetivam adequadamente, segundo defendia, apenas a partir de uma análise acurada a respeito do contexto social e cultural dos indivíduos atendidos. É neste sentido, portanto, que Fanon afirmava já em seu primeiro livro intitulado Peau noire, masques blancs (1952) que:

Reagindo contra a tendência constitucionalista em psicologia do fim do século XIX, Freud, através da psicanálise, exigiu que fosse levado em consideração o fator individual. Ele substituiu a tese filogenética pela perspectiva ontogenética. Veremos que a alienação do negro não é só uma questão individual. Ao lado da filogenia e da ontogenia, há a sociogenia. De certo modo, para responder à exigência de Leconte e Damey, digamos que o que pretendemos aqui é estabelecer um sócio-diagnóstico (FANON, 2008, p. 28).

Como se sabe, a psicologia filogenética ou constitucional é aquela que relaciona o comportamento humano à morfologia e à fisiologia humana, sugerindo uma correlação entre a biologia e as características psicológicas. Fanon, psiquiatra preocupado com as dimensões sociais do sofrimento psíquico, comemora a ruptura representada pela psicanálise freudiana ao trazer o indivíduo singular para o centro da cena, mas reforça as sugestões do próprio Freud ([1924] 1972) de pensar o sujeito em seu contexto histórico e social concreto. Por esta razão, é enfático ao dizer que "o prognóstico está nas mãos daqueles que quiserem sacudir as raízes contaminadas do edifício", pois "a Sociedade, ao contrário dos processos bioquímicos, não escapa da influência humana. É pelo homem que a Sociedade chega ao ser" (FANON, 2008, p. 28).

Isto significa, para Fanon que os processos pelos quais o sofrimento psíquico se constitui em uma sociedade desigual só se tornam acessíveis quando se leva em conta as determinações historicamente concretas ao qual o indivíduo está inserido: no caso, a modernidade capitalista e a sua necessidade de converter o que é genuinamente humano em objeto de sua acumulação. Por isso insistia o autor:

Antes de abrir o dossiê, queremos dizer certas coisas. A análise que empreendemos é psicológica. No entanto, permanece evidente que a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais. Só há complexo de inferioridade após um duplo processo: - inicialmente econômico; - em seguida, pela interiorização, ou melhor epidermização dessa inferioridade (FANON, 2008, p. 28).

Por outro lado, quando pensamos psicanálise e política em sociedades de raiz, tronco, caules e frutos coloniais - como é o caso da Améfrica Ladina2 (GONZALEZ, 1988) - essa tomada de consciência deveria ser pautada por uma análise que ultrapassasse a dimensão meramente econômica da exploração e a dominação política. O próprio marxismo, com o qual dialogou com proximidade crítica no século XX, precisaria ser, segundo argumenta, estendido para dar conta deste mundo (colonial) onde até a dialética opera com restrições (FAUSTINO, 2018b):

Quando se percebe na sua imediatez o contexto colonial, é patente de que aquilo que fragmenta o mundo é primeiro o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça. Nas colônias, a infraestrutura econômica é também uma superestrutura. A causa é consequência: alguém é rico porque é branco, alguém é branco porque é rico. É por isso que as análises marxistas devem ser ligeiramente estendidas, a cada vez que se aborda o problema colonial (FANON, 2010, p.56).

Assim, em um primeiro nível da análise, Fanon ressalta o quanto o racismo e a racialização - implícita à situação colonial - são partes de um processo maior de dominação: a violenta e desigual expansão das relações capitalista de produção para o mundo não europeu. No entanto, esses processos de diferenciação racializada não se limitaram ao estágio primitivo da acumulação de capitais na Europa e nem ao período e territórios assumidamente coloniais, como é o caso das Américas (op. cit.).

Ao contrário, representam dimensões incontornáveis daquilo que a modernidade apresentou como mais autêntico: do humanismo renascentista ao humanismo iluminista, o que se viu foi a afirmação da liberdade e da autodeterminação como essências humanas ao mesmo tempo em que se convivia com a escravidão colonial dos povos não europeus.

O curioso é que essa negação racial de humanidade só foi problematizada, na Europa, quando o racismo científico espalhou seu cheiro fétido no interior de suas próprias fronteiras3. Ainda mais curioso é a pouca importância que as reflexões sobre o racismo adquiriram nos diversos estudos sobre a gênese, função e diferentes estágios da acumulação capitalista.

 

2. A dimensão colonial do mal-estar

É comum nas ciências sociais e humanas contemporâneas a reflexão sobre o quanto as transformações econômicas, sociais e culturais ocorridas sob a pressão do atual estágio de acumulação capitalista4 provocam o desmembramento de laços sociais aparentemente estáveis e, em consequência, um crescente sentimento de insegurança e perda de si. A provocação que nos cabe, quando mobilizamos o referencial fanoniano para pensar uma sociedade colonial como o Brasil é que o efeito disruptivo, provocado pela quebra do contrato narcísico (Aulagnier, 1979 apud Rosa, 2004), não é "privilégio" do presente momento e, muito menos, fruto recente de uma pretensa "onda conservadora" que estaria devorando o pouco de democracia que um dia sonhamos vivenciar mas, sobretudo - e não, exclusivamente - , a repetição não elaborada de assombrações que nos acompanham inquietas desde a fundação destes países que se forjaram sobre o genocídio indígena e a escravização de pessoas de origem africana.

É fundamental reconhecer, quando se pensa no encontro entre psicanálise e política, que a desorganização subjetiva decorrente da emergência daquilo que está fora do sentido e da significação (Rosa, 2004) foi a tônica sistêmica da inserção produtiva (e portanto, social) dos sujeitos que chegaram ao "novo mundo" na condição de escravos-objetos e seguiram estruturalmente objetificados, mesmo após a abolição da escravidão e assim se encontram até os nossos dias (Faustino, 2010, 2013, 2014; Moura, 1994, a, 1994b). Se pudéssemos recorrer a um jargão bastante utilizado no meio negro - e eu preciso informar-lhes que existe um meio negro, pelo menos no Brasil - eu diria: "agora é que vocês perceberam que a democracia está em vertigem? Para a maior parte da população deste país, "essa senhora", a Democracia, lembra o 'Caviar' cantado pelo cantor brasileiro Zeca Pagodinho: 'nunca vi, não comi eu só ouço falar'"5.

Em um esforço para compreender as particularidades sociais e econômicas da sociedade brasileira, o filósofo José Chasin (2000) constatou uma diferença básica na estruturação capitalista tupiniquim quando comparada ao desenvolvimento do capital nos países clássicos como França, Inglaterra e, depois, Estados Unidos. Enquanto nestes últimos, a democracia - não apenas política, mas social - foi pressuposto, ao menos, formal, para a consolidação da nova ordem inaugurada pelo capitalismo industrial, nos territórios em que o capitalismo se impôs pela colonização, e não por fruto de seu próprio desenvolvimento interno, as elites foram criadas apenas para atuarem como mediadora de interesses externos (metropolitanos) resultando, por um lado, no escoamento do excedente produzido - aquilo que poderia dinamizar as formas e as relações de produção - para as metrópoles e, por outro lado, na indisponibilidade desta elite com a democratização, mesmo que parcial, não apenas dos meios de produção, mas até das migalhas que caem de sua opulenta mesa6.

Esse caminho histórico, atravessou a sociabilidade brasileira ao imprimir-lhe - via intensa concentração de terras, rendas e cidadania - um ethos de exclusão e naturalização das desigualdades. Mais do que isso, a relação das elites com o restante da população é quase sempre marcada por uma combinação entre a violenta negação substancial de direitos e a negação formal desta mesma violência. Embora a desigualdade e a violência estrutural de nossa sociedade mate aos milhões e negue direitos básicos à proporção de países em guerra, ostentamos a agradável imagem de uma felicidade essencial e harmonia social.

Se olhássemos com mais cuidado para a história do Brasil, poderíamos nos perguntar o que representou em termos subjetivos para as diversas populações indígenas aqui existentes verem, geração após geração, o genocídio quase completo - embora nunca assumido como tal - de sua população, cultura, divindades e epistemologias. O que significou para as população africanas, e posteriormente amefricanas (Gonzales, 1988) o sequestro em suas terras maternas, a violenta e incerta travessia transatlântica e, sobretudo, a experiência transgeracional da desumanização quase absoluta sob a sociabilidade escravista.

 

3. Algumas perguntas indigestas

Nós brasileiros progressistas temos nos deparados cada vez mais com alguns fantasmas sociais, jurídicos e políticos provocados pela ausência de uma ruptura com aquilo a última ditadura militar representou. O que escapa às vezes, até mesmo a nós, críticos a todas as formas de opressão, é a reflexão rigorosa sobre as implicações simbólicas - e não sancionadas - de quase trezentos anos de estupro, açoite, submissão, e humilhações de toda ordem para garantir a subsunção de seres humanos ao status de animais de carga. O que significa, em termos subjetivos, o fato de não termos rompido radicalmente com a escravidão, mas por um acordo lento seguro e gradual que permitiu que tudo mudasse, tal como descrevia Tomaso de Lampedusa (1979), para permanecer quase o mesmo?

Florestan Fernandes (1979), importante sociólogo brasileiro, alertava que as principais alterações históricas na estrutura social brasileira não foram acompanhadas de grandes rupturas levadas a cabo pelas classes menos favorecidas e nem incorporaram demandas mínimas que as contemplassem. Poderíamos nos perguntar sobre quais as implicações de uma transição do Brasil Colônia para o Império do Brasil sem o fim do trabalho escravo ou a transição do trabalho escravo para o trabalho livre sem o acompanhamento de rupturas materiais e simbólicas com a antiga ordem escravocrata?

Poderíamos ainda nos perguntar como foi, para a maior parte da população brasileira, interiorizar e, ao mesmo tempo, ser instado a corresponder a determinados ideais patriarcais de feminilidade, masculinidade e família em uma sociedade em que, mesmo depois da escravidão, o homem negro não era visto como um trabalhador ideal e, portanto, só era contratado na sociabilidade do capital dependente (Moura, 1994) para funções e tarefas que o branco - pobre e trabalhador explorado na ordem do capital - não se prestava a fazer. Do ponto de vista das mulheres negras, poderia se perguntar ainda, quais são as relações estas podem estabelecer com mitos do amor romântico, em uma sociedade em que "a branca é para casar, a mulata para fornicar e preta para trabalhar? (PACHECO, 2008).

Ainda que a ocasião me instigue a lançar ainda mais perguntas, gostaria de alertar, ainda com base nas contribuições de Frantz Fanon, para uma armadilha presente no rumo da minha própria reflexão, até o momento: a ausência do "branco" nas reflexões sobre os efeitos subjetivos do racismo. Nos poucos espaços acadêmicos em que o racismo chega a ser objeto de reflexão, ainda é bastante comum - a despeito de uma importante e crescente produção teórica sobre branquitude (Cardoso, 2008) - achar que os seus efeitos referem-se apenas às populações não-brancas. Como se os brancos não compusessem aquilo que se convencionou chamar de "relações raciais" e o sintoma do racismo fosse algo próprio ou exclusivo dos negros. A incômoda notícia trazida por Fanon (2010) - mas não inaugurada por ele, é importante que se diga - é que não é possível desumanizar o outro sem perder a própria humanidade.

Como alertava Fanon (2008) em seu conceito de "duplo narcisismo", o colonialismo representou a interdição do reconhecimento do negro como parte da humanidade-genérica e, ao mesmo tempo, a fixação naturalizante de sua imagem em seus atributos historicamente determinados ou fantasiosamente imaginados, ocasionando uma série de distorções sobre percepção de si de negros e brancos, por isso, o autor afirma enfaticamente que o "branco está fechado em sua brancura. O negro está fechado em sua negrura. Tentaremos determinar as tendências desse duplo narcisismo e as motivações que ele implica" (FANON, 2008, p. 27).

Neste caminho, a psicanálise teria muito a dizer, não apenas sobre a subjetividade dos povos alvos da desumanização, mas também, das classes dominantes que se nutriram nos fartos seios da sociabilidade escravista e que permaneceram dominante mesmo depois das relações econômicas reorientarem-se para a generalização do trabalho livre. No plano sociológico, há vários estudos mostrando o quanto essa "transição transada"7 (Fernandes, 1979) resultou em uma economia débil e retardatária, quando comparamos o Brasil com outra ex-colônia americana de igual dimensão territorial e populacional. No plano psicanalítico, a pergunta que poderíamos fazer é: o que significou para um filho da elite escravista - e posteriormente, latifundiária - ganhar um "negro de brinquedo" em sua infância (FREYRE, 2006)8

Do mesmo modo, seria interessantíssimo escutar o que a psicanálise brasileira teria a nos dizer sobre os dilemas edípicos das crianças de elite (em geral, brancas), por exemplo, que ao serem criadas por uma mãe afetiva - escrava e, posteriormente, contratada - que cuidava, afagava e satisfazia as necessidades de seu gozo mas não tinha autorização para impor-lhe limites e nem o seu desejo encontrava uma figura paterna que se lhe opusesse, uma vez que o pai não é marido da Ama de Leite (ou da Babá) mas da outra mãe (biológica) de direito, mas nem sempre de afeto (SEGATO, 2006).

Quais desejos não interditados estão em jogo aqui? Que sentidos de alteridade, solidariedade e de direitos, a sociabilidade colonial brasileira ofereceu a essa casta que por uma série de privilégios históricos e barreiras de classe é ainda hoje a maioria absoluta entre aqueles que decidem a política, a economia e, também, precisamos falar disso, a produção de conhecimento. A pergunta da antropóloga argentina Rita Segato (op. cit.) ao se deparar com o silêncio da antropologia - poderíamos estende-la à psicanálise - sobre as babás brasileiras é: até que ponto a ausência do tema racismo na produção de conhecimento brasileira - e poderíamos dizer, latino-americana9 - antes de ser explicada apenas pela ausência ou baixa prevalência de negros nestes espaços é, principalmente, expressão direta de uma interdição promovida pelos sujeitos que historicamente foram autorizados a definir os termos, problemas e repertório que circula no campo da produção de conhecimento?.

A interdição de um tema desta importância seria explicado, argumenta a antropóloga, pelo risco de colocar em cheque a imagem coerente - as máscaras brancas - que o racismo lhes permite reproduzir, representando, portanto, aquilo que o psicóloga Maria Aparecida Bento chamou de "Pacto narcísico da branquitude" (BENTO, 2002).

 

Conclusões preliminares

O que eu quero de destacar é que o racismo não é um simples ato de inferiorização e estigmatização dos povos não brancos no seio da sociabilidade capitalista mas uma forma de estranhamento10 que interdita as possibilidades do reconhecimento das pessoas negras como seres humanos tanto em sua dimensão singular quanto humano-genérica.

As contribuições de Frantz Fanon nos ajudam a pensar que, por um lado, a própria ordem mundial do capital é ininteligível - tanto do ponto de vista histórico quanto do ponto de vista geográfico - sem o equacionamento dos efeitos do colonialismo e do racismo para a sua universalização e consolidação. Por outro lado, apontam para a necessidade de pensarmos - quando investigamos os efeitos deletérios das atuais reconfigurações econômicas sob a sociabilidade e subjetividade humana - o quanto o racismo imprime uma distribuição desigual dos bens materiais, possibilidades de representação de si e do mundo, afeto, sofrimento, negação e, sobretudo da morte (FAUSTINO, 2019).

Em termos filosóficos - se concordarmos com Fanon (2008) - é possível afirmar que o racismo não se resume a uma opressão política ou à difusão de estereótipos inferiorizadores - embora deles não prescinda - mas representa, sobretudo, a interdição da reciprocidade necessária ao reconhecimento do "outro" como humano. As pessoas negras deixam de ser vistas como humanas e diante de tal "fato", o desnudar pornográfico de sua dor e morte não provoca empatia ou mesmo indignação. Não são raros os casos em que os familiares e amigos de um jovem negro assassinado em alguma comunidade periférica de São Paulo ou de Salvador têm como única opção de elaborar sua perda, a interrupção da ordem posta seja por um protesto pacífico ou mesmo a interdição de vias públicas à luz de pneus (e as vezes ônibus) queimados.

Se o luto, em uma situação comum, pressupõe um ritual de valorização da imagem e dos feitos do falecido, o que se assiste, quando a vítima da violência urbana é negra, é ao enquadramento público do mesmo como suspeito. O negro é um suspeito até que prove o contrário, e os dados contemporâneos da violência urbana mostram que na maioria das vezes, ele não consegue provar. Há na sociabilidade contemporânea - promotora de tantas violências e rupturas de laços sociais - uma distribuição desigual, não penas das diversas instâncias de violência que possamos enumerar, mas, sobretudo, da capacidade - enquanto sociedade - de nos solidarizar com essa dor.

Essa histórica e socialmente determinada distribuição desigual da empatia talvez explique a pouca referência ao racismo e aos autores e autoras negras na formação das mais diversas profissões da saúde mental - onde se inclui a psicanálise -, mas também nos alerta para as possíveis implicações à prática desses profissionais, sobretudo, no que tange à tão necessária contratransferência. Tem sido cada vez mais comum no âmbito das atividades do Amma Psique e Negritude - neste momento em que uma parcela da população negra começa a acessar determinados manejos clínicos que até então não lhes eram acessíveis - a procura por profissionais negros, à medida que, argumentam os possíveis clientes, um profissional branco poderia, por um lado, não partilhar de repertórios sociais e simbólicos mínimos necessários à escuta (onde se inclui o referencial teórico sobre o racismo e as particularidades da cultura negra brasileira) e, por outro lado, poderia não demonstrar empatia com aquilo que ele provavelmente não reconheceria como um problema subjetivamente relevante.

O desafio, eminentemente político, que se apresenta é que o racismo enquanto ideologia (Moura, 1994a), e os seus efeitos concretos ao metabolismo social (Mészaros, 2006) moderno, e brasileiro, em particular, representa uma das modalidades de violência sistêmica geradoras do sofrimento psíquico e em alguns casos, inclusive de adoecimento (CRP, 2007). Se os dispositivos de cuidado, em suas mais diversas abordagens, não estão atentos a essa realidade, correm o risco de configurar-se, tanto pela ação quanto pela omissão, em uma segunda experiência violência e negação. Se esta não for uma preocupação a ser encarada frontalmente quando nos deparamos com um país de via colonial como o nosso, mas que, sobretudo, que goza de uma maioria de população negra, seguiremos, a despeito de boas intensões e práticas, reproduzindo a lógica colonial.

 

Referências bibliográficas

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1 A menção aos "condenados" aqui é uma referência direta à Fanon (2010) que busca provocar a reflexão sobre quem seriam "os condenados da terra" contemporâneos.
2 Lélia Gonzales, em um esforço para evidenciar algumas epistemes invisibilizadas e ao mesmo tempo presentes neste terrotório de Abyi Yala - me refiro as presenças indígenas e africanas -, colonialmente nomeado como América Latina, propõe nomear o presente território como Améfrica Ladina e a sua população, amefricana. .
3 Em um texto célebre inttulado Discursos sobre o colonialismo Aimé Cesaire (1913-2008), professor de Frantz Fanon e um dos criadores do Movimento de Negritude, chega a afirmar que o que chocou a intelectualidade europeia diante do nazismo não foi o assassinato em série racialmente programado de milhões de pessoas, a colonização territorial, cultural e econômica de determinados territórios ou mesmo a negação absoluta do estatuto humano de grupos tidos como raciais, mas sim, o fato destas práticas terem sido efetivas no interior da Europa. Sua afirmação embasa-se no fato de que, antes, durante e depois do nazismo, a Europa seguiu praticando ou promovendo o mesmo tipo de violência sobre os povos não europeus, mas nestes casos, sem reprovação moral ou teórica do cânone europeu.
4 Em concordância com Ferrari (2005) evito usar o termo "neoliberal" para nomear o momento atual devido ao seu alcance restritivo ao reduzir debate às suas dimensões político-ideológicas, ocultando as bases materiais sob o qual determinadas ideologias e projetos de Estado são disputados. Para ela o atual estágio de acumulação capitalista seria marcado por uma restruturação técnico-produtiva em que o neoliberalismo é apenas uma das suas dimensões.
5 Referência à música "Caviar", interpretada pelo cantor Zeca Pagodinho. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ApySl25vgRE
6 Nos termos do filósofo, a história do Brasil oscilou sempre entre os golpes e ditaduras e uma débil democracia política (autocracia institucionalizada) que emerge sem se consolidar ou, se consolida sem nunca romper com o patrimonialismo, patriarcalismo, concentração de riquezas, etc. Ver Chasin (2000).
7 Para Fernandes (1979), a "transição transada" é essa característica que marcou as principais transformações ocorridas na história do Brasil: transitamos da Colônia para o a Independência política sem romper com a escravidão; da escravidão para o trabalho livre sem reforma agrária ou reparações de qualquer natureza; da ditadura promovida por um golpe militar, em 64, para uma democracia formal que manteve preservada as mesmas desigualdades do período ditatorial. Uma transição transada, na medida em que foi sempre, realizada e protagonizada pelo alto.
8 Esse questionamento foi-me apresentado pela primeira vez pela Professora Eunice Prudente em uma palestra realizada em São Paulo no ano de 2016 no IBCCRIM.
9 Aqui, utilizo a expressão colonial "América Latina" sem a transgressão proposta por Lélia Gonzales (1988), para demarcar o caráter normativo que esta nomenclatura geográfica expressa.
10 Emprego aqui a categoria "estranhamento" tal como proposta por Lukacs (2013) como negatividade substancial - reificação - da dimensão humano-genérica e da singularidade individual dos sujeitos onde o ser estranhado pela própria práxis social constitui-se como não-se-humano ou não-humanidade.

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