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Clínica & Cultura

On-line version ISSN 2317-2509

Clín. & Cult. vol.8 no.2 São Cristovão Jul./Dec. 2019

 

DOSSIÊ REDE INTERAMERICANA DE PESQUISA EM PSICANÁLISE E POLÍTICA

 

Memória e Infância: Reflexões sobre o Acolhimento Institucional

 

Memory and Childhood: Thoughts on Residential Home Centers

 

Memoria e infancia: Reflexiones sobre el Acogimiento Institucional

 

 

Matias Marchant

Universidad de Chile

 

 


RESUMO

No presente artigo se fará uma reflexão sobre as características dos abrigos institucionais, tendo como ponto de partida a nossa experiência de trabalho com crianças acolhidas institucionalmente no sistema de proteção chileno, bem como se discute sobre as razões pelas quais a institucionalização prolongada tem efeitos negativos sobre todas as áreas de desenvolvimento de uma criança. Deste modo, propõe-se mostrar que, do ponto de vista psicanalítico, a história subjetiva e a memória das crianças acolhidas são habitualmente arrancadas ou apagadas, processo este que está na base das violações de direitos que se produzem dentro dos centros residenciais. A proposta deste trabalho é mostrar que as crianças devem ser entendidas como sujeitos de memória, pois se compreende que tal entendimento pode ajudar a melhorar as práticas de cuidados nos alojamentos residenciais.

Palavras-chave: Infância, memória, cuidados alternativos, proteção.


ABSTRACT

This article reflects on the characteristics of residential care centres for children (i.e. foster care). It argues that prolonged institutionalisation has negative effects on all areas of a child's development. Congruently with the latter, this article suggest that, from the psychoanalytic point of view, both the subjective history and memory of children within care centers are usually taken away. The former, in turn, is at the root of human rights violations that take place within residential centres. Given the latter arguments, this study posits that children should be understood as subjects of memory. Ultimately, the study sets out to improve practices within residential care centers.

Keywords: childhood, memory, alternative care, protection.


RESUMEN

El presente artículo reflexionará sobre las características de los albergues institucionales, tomando como punto de partida nuestra experiencia de trabajo con niños alojados institucionalmente en el sistema de protección chileno, además de discutir las razones por las cuales la institucionalización prolongada tiene efectos negativos en todas las áreas del desarrollo del niño. De este modo, se propone mostrar que, desde un punto de vista psicoanalítico, la historia subjetiva y la memoria de los niños acogidos suelen ser arrancadas o borradas, proceso que está en la base de las violaciones de derechos que se producen dentro de los centros residenciales. La propuesta de este trabajo es mostrar que los niños deben ser entendidos como sujetos de la memoria, ya que se entiende que dicha comprensión puede ayudar a mejorar las prácticas de cuidado en los alojamientos residenciales.

Palabras clave: Infancia, memoria, cuidados alternativos, protección


 

 

Sobre a institucionalização de crianças

Por que a internação de crianças em centros residenciais é tão prejudicial para suas vidas psíquicas e tem efeitos tão nefastos em todas as áreas do desenvolvimento?

Existem inúmeras abordagens que respondem a essa pergunta. Buscaremos identificar alguns dos aspectos mais prejudiciais que podem afetar o desenvolvimento de uma criança. A princípio, quando a concepção do ser humano e, sobretudo, da infância, era muito básica e simplista, entendia-se que tão somente a satisfação das necessidades básicas proporcionava todo o necessário para que elas pudessem se tornar adultos. Entretanto, a medida que se aprofundaram os conhecimentos sobre a infância, vários aspectos relevantes foram somados, tais como a educação, a estimulação afetiva e cognitiva, os cuidados dos adultos, etc. Nesse artigo, faremos uma breve revisão dos fatores relevantes que favorecem o desenvolvimento humano, descobertos em contexto de crianças institucionalizadas, a fim de somar um aspecto que nos parece relativamente novo e pouco explorado: os processos de memória na infância e a concepção da criança como sujeito de memória. Pensamos que este olhar poderá nos ajudar a compreender um aspecto menos explorado do vínculo que une a criança a um outro, e que é fundamental em relação às práticas de cuidado e de proteção de crianças.

As primeiras investigações a partir da Psicologia e da Psicanálise, promovidas por Bowlby (1988) e René Spitz (1968), centraram-se em buscar a razão fundamental ou a causa pela qual as crianças sofriam tão intensamente no contexto residencial. Outros psicanalistas, como Anna Freud (1945; 1948), buscaram descrever o tipo de experiência que as crianças têm nos centros de acolhimento institucional. Winnicott (1941; 1945), nesse mesmo período, desenvolveu sua própria teorização em torno da deprivação afetivai.

Podemos retomar, nesse contexto, as primeiras conceituações realizadas com o objetivo de conhecer as razões do sofrimento experimentado pelas crianças dentro das instituições, segundo os autores de maior expressão na psicanálise.

Graças a todos estes investigadores e suas conceituações clínicas se pode chegar à conclusão de que os cuidados básicos como alimentação, moradia e ações de saúde são insuficientes para a adequada proteção das crianças em acolhimento institucional. Chegou-se rapidamente a um consenso - não sem surpresas nesse tempo - que satisfazer as necessidades básicas não é suficiente para realizar, de maneira adequada, o exercício da maternidade e, assim, favorecer o desenvolvimento adequado das crianças.

A partir de tais estudos, podemos resumir que as investigações conduzidas por Bowlby (1998) levaram-no a identificar a separação afetiva como a principal causa dos graves transtornos observados em crianças institucionalizadas. Investigações posteriores nesta mesma linha acrescentaram, aos estudos anteriores, pesquisas sobre os estilos de apego e os transtornos que poderiam ser observados em decorrência de cada modalidade de vínculo. As observações se centraram na reação das crianças frente à separação afetiva.

Contemporâneo a Bowlby, René Spitz (1968) sustentou que a principal razão pela qual as crianças sofriam nos centros de acolhimento era a carência afetiva, ou seja, a falta de uma relação terna e continuada com uma figura de cuidado. O autor chegou à conclusão de que o afeto é tão essencial quanto o alimento para o adequado crescimento e desenvolvimento das crianças.

Anna Freud (1945) reforçou a hipótese de que a separação das figuras materna ou de cuidado, em conjunto com a interrupção das relações de objeto, resulta como elemento mais importante na compreensão das graves manifestações que se observam no contexto de crianças privadas de cuidado parental e que vivem nos sistemas de acolhimento residencial.

Winnicott (1991), por sua vez, argumentou que a falta de relação afetiva e de cuidados com uma figura materna era condição suficiente para entender os comportamentos antissociais que, habitualmente, as crianças separadas de suas famílias e criadas em ambientes institucionalizados desenvolviam.

Revisadas as teorizações anteriores, parece-nos possível assinalar que um dos principais problemas experimentado no sistema de alojamento residencial no continente latino-americano manteve todas, ou pelo menos quase todas, as condições que se apresentam como potencialmente patógenas para o desenvolvimento da criança que acabamos de mencionar (Pinheiro, 2006), embora seja inequívoco que as condições de ingresso e as características das instituições latino-americanas são distintas daquelas que se produziram no contexto europeu pós-guerra. Melhor dizendo, as crianças nos centros residenciais estão expostas aos agentes patógenos antes identificados, submetidas que são às seguintes condições, as quais replicam algumas características estudadas pelos autores que se debruçaram sobre esse problema (BOWLBY,1998; SPITZ, 1968):

1- Separação afetiva: duas razões confluem para este problema; a primeira se refere à falta de iniciativa das instituições, pois não fazem todo o necessário para preservar os laços e vínculos entre as crianças e seus cuidadores dentro dos centros residenciais, posto que a alta rotatividade de cuidadores, no cotidiano e no passar dos dias, dificulta a consolidação e preservação desses vínculos. A outra explicação se deve aos obstáculos impostos pelos centros de acolhimento à manutenção dos vínculos entre as crianças e suas famílias de origem. Não existe, sequer, a infraestrutura para que as crianças vivam junto com as suas famílias em residências de acolhimento do Estado, as quais sempre foram pensadas como espaços de cuidados massivos de crianças, e nunca se idealizou uma arquitetura que os recebessem junto a algum familiar que tivesse o interesse de assumir seus cuidados. A arquitetura dos abrigos institucionais de crianças na América Latina não abarca a possibilidade de um espaço de acolhimiento das crianças com os seus familiares, conforme descrito nos vários relatórios de organizações internacionais e locais (ONU, 2010; UNICEF 2012; NHRI 2018 ).

2- Carência afetiva: Este fator se deve, principalmente, à falta de funcionários (ONU, 2010; RELAF, 2019) necessários para dar atenção às crianças que vivem no sistema de residência institucional. Nesse contexto, o principal motivo está relacionado à falta de recursos humanos necessários à atenção, de maneira singular, de cada criança que ingressa no sistema residencial. Uma proporção de 6 a 8 crianças por cuidador é insuficiente para atender às necessidades afetivas e de vínculo mencionadas anteriormente. A escassez de recursos econômicos condiciona, na maior parte das vezes, o déficit de adultos para cuidar de um grupo de crianças, os quais são sempre numerosos.

Gostaríamos de propor neste trabalho que somente a superação destas condições não é suficiente para proporcionar acolhimento adequado às crianças que vivem no sistema institucional. Nem evitar a separação (que não é possível no sistema de proteção), tampouco a atenuação da carência afetiva, é bastante para evitar o sofrimento que experimentam dentro do sistema residencial. A contribuição que gostaríamos de oferecer aqui representa um terceiro fator, este menos trabalhado no contexto de atenção a crianças em centros residenciais. Antes de assinalarmos esse fator, ou seja, além da carência e separação afetiva, é necessário destacarmos uma situação muito característica dos centros residenciais, a qual permitiu torná-lo visível: a violação de direitos que se produz dentro dos sistemas institucionais, mesmo quando se propõe uma medida de proteção; dito de outro modo, o Estado, mesmo quando implementa medidas de proteção, viola outros direitos das crianças que são acolhidos por ele. É necessário reconhecer que desde a fundação de hospícios, orfanatos, casas, centros de acolhimento e famílias substitutas há uma violação sistemática dos direitos das crianças que passam por esses espaços, e que, no entanto, tem sido mais difícil de visualizar e revelar. Em outras palavras, há situações de violência que se produzem no interior dos centros residenciais, ao que temos prestado pouca atenção.

Os estudos históricos e descritivos mais recentes que dispomos nos permitem afirmar que crianças privadas dos cuidados de seus progenitores são expostas a situações de violência e abuso institucional ou, dito de outro modo, seus direitos são frequentemente violados, como podemos observar, no caso chileno, através do relatório elaborado pelo Instituto de Derechos Humanos (Instituto Nacional de Derechos Humanos (INDH), 2018), ou, a nível latino-americano, através de diversas comissões especializadas, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Comisión Interamericana de Derechos Humanos, 2013). O fato de agora podermos falar de uma crise no sistema de cuidados alternativos de crianças é tão somente o resultado de voltarmos a olhar (e historicizar) a situação das crianças que vivem em centros e residências com novos olhos, pois esta situação tem sido permanente desde a origem mesma das residências. Particularmente no Chile, onde mais de 1300 crianças morreram dentro do sistema de proteção em um período de 10 anos. (Comisión Especial Investigadora SENAME II, 2017)

As práticas dos Estados e da sociedade civil que se referem há séculos à infância, e que agora são objeto de um outro olhar, merecem os questionamentos mais profundos. Tanto é assim que, precisamente neste momento, são objeto das mais qualificadas discussões e reflexões por parte de parlamentares e governos no Ocidente: Reino Unido tem uma dívida com 150 mil crianças enviadas a abrigos nos quais foram expostas a gravíssimas situações de maltrato; na Austrália, o parlamento teve de pedir perdão à chamada "Geração Roubada", os filhos dos aborígenes que foram criados por famílias brancas depois de serem arrancados de seus pais; Espanha, através de uma prática sistemática de sequestro de bebês por parte de uma comunidade organizada entre a igreja e médicos; Romênia, através da mais grosseira internação de centenas de milhares de crianças submetidas às condições mais precárias que se tem registro na história; Argentina, através do sequestro de filhos de torturados e assassinados na ditadura; e, no Chile, recentemente se abriu uma investigação a partir da constatação de que 1.313 crianças morreram nos últimos 10 anos enquanto faziam parte do sistema de proteção, sendo que 200 delas morreram enquanto estavam no sistema de acolhimento residencial. Poderíamos recorrer a distintas latitudes e a distintos períodos da história para evidenciar que crianças foram expostas as mais graves situações de violência dentro do sistema residencial nos quais eram acolhidas: roubo, rapto, sequestro, manipulação, golpes, etc.

A partir da minha experiência e trabalho com crianças em acolhimento institucional em torno do desenvolvimento de um novo (dispositivo de) trabalho, El Libro de Vida (o livro da vida), realizado e implementado pela corporação Casa del Cerroii (Marchant, 2014), parece-me que posso agregar às investigações altamente reconhecidas um novo fator (ou conceito) que pode ajudar a entender a situação de violência dentro dos abrigos, tão frequente e tão estendida em nossa história recente e continental.

Tal fator implica na compreensão da infância como sujeitos de memória. Para chegarmos a esse argumento é necessário ter presente os antecedente descritos acima, os quais apontam para o isolamento, em contextos de cuidados em centros residenciais, de algumas variáveis que dificilmente costuma ocorrer na vida comum. Assim como Spitz mostrou que em contexto institucional, separava-se os cuidados higiênicos do afeto, argumentamos, a partir das nossas pesquisas sobre a infância, que há a separação entre os vínculos afetivos e os processos de memória em contexto de crianças institucionalizadas. Quando pensamos na infância como sujeitos de memória aparecem novas dimensões no cuidado com crianças, seja no sentido ético (que implica a responsabilidade com o outro) como nas práticas de cuidado consideradas necessárias com crianças que requerem a proteção do Estado.

 

As crianças e a memória

Qual racionalidade, qual pressuposto ou preconceito construiu um sistema tão violento para que o mundo inteiro tenha exposto as crianças, por séculos, a uma condição de vulneração crônica de seus direitos dentro do sistema residencial como aconteceu no Chile nos últimos 10 anos?

Se essas práticas foram operadas e realizadas em tantos lugares distintos entre si, é necessário explicá-las de algum modo. Parece-me que não basta dizer que nos abrigos institucionais há carência afetiva, ou que as crianças que ali vivem estão submetidas à separação afetiva. Estas condições respondem bem às primeiras perguntas que os pesquisadores fizeram na Europa no contexto de pós-guerra.

Entretanto, a explicação que busco oferecer aqui diz respeito à possibilidade de identificar um discurso e um saber sobre a infância, os quais operam implicitamente para permitir que esta situação tenha se produzido e se reproduza com uma regularidade que não nos deixa de surpreender. Qual é esse discurso, ou pressupostos, ou preconceitos que deram lugar a essas práticas relativas à infância?

A principal hipótese de trabalho proposta neste artigo é de que se trata de um discurso que nos fizeram pensar por séculos, segundo o qual as crianças não têm memória, ou sua memória é manipulada a vontade, ou, em todo caso, sua memória é tão frágil que pode ser apagada e substituída pelas ficções que os adultos as desejam impor. Em outras palavras, é pensar que as crianças não são sujeitos de memória por si sós e que, portanto, seria possível manipular suas histórias de vida e sua memória. Tal raciocínio permite as adoções ilegais e a manutenção de segredos que dizem respeito à história pessoal das crianças.

Quando supomos que outro ser humano não possui a faculdade da memória (de ser capaz de memorizar), o despojamos imediatamente de um valor humano fundamental: o exercício da justiça para si e para os outros (Marchant, 2014). Não há justiça sem lembrança. Destituídos de uma ética da memória, podemos chegar facilmente à suposição de que a vida humana pode ser administrada, controlada e regulada segundo os nossos próprios princípios e ideologias. Dito em termos metafísicos, mas que nos auxilia na compreensão, seria o equivalente a arrebatar a alma do outro. Deste modo, as violências praticadas contra aqueles que não podem lembrar teriam sua expressão facilitada, uma vez que poderiam ficar sem registro. Tal suposição poderia explicar o fato de os adultos, geralmente, desvelarem sua violência em face de uma criança, pois teriam a esperança de que a criança não pode recordar do ocorrido e, caso o recorde, seu testemunho só poderia ser integralizado decorrido muito tempo. (MARCHANT, 2014)

Um golpe sem memória fica impune. Uma violência sem registro corporal e verbal não é objeto do Direito. Um abandono sem nome não reclama justiça. Poderíamos mesmo falar em uma anuência para machucar um outro vulnerável na salvaguarda e esperança de que o dano infligido caia no esquecimento ou, simplesmente, fique sem registro. Parece-me que este fator serve como grade de análise para a existência de grupos mais vulneráveis nos dias de hoje: crianças e idosos, principalmente, uma vez que não lhes é suposta a capacidade de exercício da sua palavra, uma vez que sua voz está silenciada. Nesse contexto, podiam denunciar as violências sofridas, entretanto o mero ato de denunciar não implicava a escuta. É precisamente isso o que se passa com as crianças e os idosos.

A partir deste artigo busco oferecer uma linha de reflexão muito simples: para fazer uma institucionalidade da infância necessitamos ter como inequívoco o princípio segundo o qual as crianças são seres de memória e de memorização. Podem tanto ser testemunha quanto denunciar; podem ser parte na construção da história social.

Se o argumento utilizado nesse texto estiver correto, então os agentes educativos, no contexto de crianças internadas nos centros de acolhimento, transformam-se em atores centrais no processo de institucionalização. Nessa perspectiva, o agente educativo não apenas pode ajudar a escrever e ler, mas mais importante que o processo de aprendizagem, leitura e escrita, o que está em jogo em relação às práticas educativas no contexto de reclusão, como o são as casas de acolhimento e os abrigos institucionais, é a possibilidade de dar ferramentas para a construção de uma escrita que possa articular memórias individuais e coletivas. O tipo de cuidado oferecido, no contexto de alojamento residencial, ocupa um lugar fundamental na criação e instalação de espaços de inscrição. Tais escritas, promovidas pelos cuidadores, podem servir como base inicial para a construção de memórias individuais e coletivas.

Em outras palavras, as práticas de cuidado podem abrir espaço para modificações na concepção que temos da infância. O tipo de cuidado que as crianças recebem nos centros residenciais podem possibilitar uma transformação em relação à maneira como as entendemos, pois reconhecer que a criança tem uma memória permite pensar e dispor de novas superfícies de registro.

Não nos parece suficiente colocar em marcha funcionamentos cognitivos, ou pensar isoladamente o funcionamento cognitivo e a adaptação das crianças dentro dos espaços de acolhimento residencial. Do ponto de vista que quero ressaltar aqui, o que interessa nas práticas de cuidado nos contextos de reclusão é que se pode entender que toda relação com uma criança, por mínima que seja, fica inscrita em sua memória. A infância é um processo de inscrição e registro que resulta em um ser humano, o qual pode entrelaçar suas lembranças à memória pessoal e à história subjetiva que o antecede.

Uma característica muito relevante das instituições totais, descritas por Goffman (2001), é a supressão de toda a memória como condição de ingresso e permanência nesses lugares, de modo que todo signo de identidade deve ser suprimido, toda expressão da singularidade deve ser anulada para que se passe ao anonimato do coletivo. Os centros de acolhimento de crianças não ficaram imunes a esse rito, o qual se baseia em um tipo de pretensão (consciente ou inconscientemente) que se supõe capaz de apagar toda a memóriaiii. Resulta que as crianças compõem a faixa etária mais vulnerável em relação à memória, sobretudo se estiverem sob a proteção do Estado.

Quando um cuidador tem clareza de que sua violência deixa marcas em uma criança, a natureza inadmissível dessa prática se torna mais evidente e, por conseguinte, ele se verá obrigado a se tornar responsável pelo ato, pois saberá que haverá uma superfície de registro que poderá ser lida por outro. Imediatamente o problema da justiça se coloca.

Um cuidador que tem em mente que um pranto sem conforto deixa uma cicatriz nas esperanças humanas, não poderá voltar a fazer ouvidos surdos. Um cuidador que não permite a violência praticada contra uma criança alimenta nela a possibilidade de paz, através de uma prática consistente de bons tratamentos.

Um cuidador que protege as feridas de origem de uma criança pode olhá-la nos olhos quando ela o pergunta e demanda testemunho daquilo que lhe aconteceu em sua infância. Em outras palavras, pensar a infância como período no qual as crianças são dotadas de memória torna os adultos potencialmente responsáveis ​​por suas ações.

A partir do exposto, é-nos possível afirmar ser de suma importância criar práticas cotidianas que nos ajudem a pensar nas crianças como sujeitos de memória, onde o trabalho do adulto envolvido em seus cuidados tem, no limite, a possibilidade de criar condições que permitam às crianças serem agentes ativos de memória.

Os adultos que exercem a função de cuidadores podem ter seu trabalho enriquecido se reconhecerem que o trabalho desempenhado com crianças em acolhimento não só se refere à oferta de abrigo, mas também, e ao mesmo tempo, contribui como parte essencial na criação de uma nova superfície de registro de memória. Investidos desse entendimento, os cuidadores podem ser agentes fundamentais na proteção dos direitos da criança no contexto residencial.

As práticas de cuidado podem estar a serviço de diversas formas de escrita e inscrição (jogos, desenhos, representações, canto etc.), mas também podem ajudar a mudar as concepções da infância. Somente a partir de uma mudança de olhar sobre a infância, novas configurações nas maneiras de lidar com as crianças podem ser arranjadas. Nesse sentido, a educação desempenha um papel fundamental na construção de uma outra relação com a infância, contribuindo, assim, para novas formas de vinculação entre adultos e crianças, as quais podemos identificar em três simples eixos de trabalho:

1) A exigência de veracidade: a partir dessa premissa, somos obrigados e solicitados a sermos verdadeiros em nossos relatos. Ajudar a criança a escrever e inscrever sua história de maneira verídica e, de igual modo, revelá-la como tal. Muitas vezes, no trabalho com crianças, supõe-se que é preferível ocultar ou não falar sobre determinadas circunstâncias da vida, a partir do pressuposto de que falar sobre os fatos ocorridos pode acarretar dores maiores. O trabalho com a história, inclusive àquela que se refere ao ingresso da criança no centro de acolhimento residencial, produz a percepção de que se faz necessário evitar relatá-las, pois são supostas como traumáticas. Essa situação evidencia uma relação com a infância na qual o valor da verdade é relativizado pelo simples fato de se referir a uma criança; é isso que deve ser profundamente alterado em qualquer regime de cuidado infantil. Pensar as crianças como sujeitos de memória as coloca em uma relação direta com a exigência da verdade pessoal.

2) A memória da criança é a memória do outro. A criança não tem um aparato plenamente consolidado para dar conta de si mesma, por isso requer um outro que o sustente e lhe forneça uma memória representativa, da qual está desprovido ao nascer.

A falta de memória representacional que permita organizar os fatos de uma forma que possam ser reproduzidos, como na escrita ou seguindo uma organização cronológica, dão lugar a uma dimensão de responsabilidade; responsabilidade essa que guardam todos àqueles que possuem relação com a criança enquanto estas se encontram privadas dos cuidados parentais. Em outras palavras, o adulto que exerce cuidados temporários também é uma superfície de inscrição; para tanto, podem se transformar em agentes e fiadores da memória das crianças que moram em abrigos (MARCHANT, 2014).

3) A memória na infância requer um vínculo que a sustente e a preserve (Marchant, 2014). Um testemunho pode ser dado pela simples presença em determinado contexto. Assim sendo, só é possível ser testemunha quando se participa, de alguma forma, do que aconteceu. Isso confere à experiência da testemunha sua natureza de intrasmissibilidade, ao mesmo tempo em que lhe confere a dimensão do compromisso de se fazer responsável pela transmissão da experiência para transformá-la em espaço de memória. Nesse sentido, podemos concluir que a memória da infância se sustenta no vínculo com o outro.

 

Referências Bibliográficas

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i Embora o conceito apresentado tenha sido traduzido em castellano por "deprivación" e em português por "deprivação", a obra objeto de análise possui traduções distintas nos dois idiomas, tendo sido traduzida por "deprivación y delincuencia" em castelhano e por "Privação e delinquência" em português. Optamos, na presente tradução, pelo termo "deprivação", a fim de nos mantermos o mais próximo possível do conceito.
ii www.casadelcerro.cl
iii Na política de Acolhimento institucional vigente no Brasil há normas que preconizam a relação familiar e o registro da história de vida da criança, como podemos observar nas normas técnicas de 2009, disponível em http://www.mds.gov.br/cnas/noticias/orientacoes_tecnicas_final.pdf. No Chile, onde se desenvolveu nossa pesquisa, existem regras e programas similares que buscam proteger as informações sobre as origens das crianças. No entanto, tais informações coletadas correspondem a relatórios psicológicos, registros ou prontuários médicos e não se referem a relatos de vida, a uma narração em que possam ser descritos os aspectos mais íntimos ou pessoais da criança que permitem falar sobre uma verdadeira história de vida ou de uma biografia contada por um adulto que tenha um relacionamento íntimo e significativo com a criança enquanto ela estave em acolhimento institucional. As histórias da vida cotidiana geralmente não costumam ser adequadamente protegidas dentro dos abrigos institucionais. Essa realidade é compartilhada por outros países latino-americanos.

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