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Clínica & Cultura

versión On-line ISSN 2317-2509

Clín. & Cult. vol.8 no.2 São Cristovão jul./dic. 2019

 

DOSSIÊ REDE INTERAMERICANA DE PESQUISA EM PSICANÁLISE E POLÍTICA

 

Crianças públicas, adultos privados: Falar da infância

 

Public children, private adults. Talk about childhood

 

Niños públicos, adultos privados: hablar de la infancia

 

 

Rinaldo Voltolini

Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano -Universidade de São Paulo (USP) -São Paulo, SP -Brasil. Pós-doutoramento em Psicopatologia e Psicogênese -Universidade Paris XIII -Paris -França. Professor -Faculdade de Educação -Universidade de São Paulo (USP) -São Paulo, SP -Brasil, Professor doutor na FEUSP, São Paulo -SP-Brasil. E-mail: rvoltolini@usp.br

 

 


RESUMO

Este texto tem como objetivo principal analisar criticamente o discurso atual sobre a infância e o faz entremeando duas dimensões do referido discurso: a histórico-social e a estrutural. Considerando que a concepção da infância e, portanto, a experiência concreta que temos com as crianças é tanto condicionada por determinantes histórico-sociais - História - quanto pelo recalque que todo adulto tem de sua própria infância - psicanálise - dedicamo-nos a perscrutar uma figura emblemática do discurso atual sobre a infância: a infância incluída. No percurso do texto procuramos desenvolver a hipótese segundo a qual a inclusão moderna da infância no cenário das considerações políticas, ou seja, a admissão política de seu caráter público, gerou, entre outras coisas, o efeito paradoxal de encerrar as crianças em um universo no qual sua própria palavra corre o risco de ser eclipsada pela palavra do especialista da infância.

Palavras chave: infância, adulto, inclusão, Psicanálise, História.


ABSTRACT

This text has as its main objective to critically analyze the current discourse on childhood and does so intersecting two dimensions of the referred discourse: the historical-socialandthe structural one. Considering that the conception of childhood, and therefore the concrete experience we have with children, is as much conditioned by historical-social determinants - History - as by the repression that every adult has of his or her own childhood - Psychoanalysis - we dedicate ourselves to peer into an emblematic figure of the present discourse on childhood:. childhood included. In the course of the text we seek to develop the hypothesis that the modern inclusion of childhood in the scenario of political considerations, that is to say, the political admission of its public character, generated, among other things, the paradoxical effect of enclosing children in a universe in which their own word risks being eclipsed by the word of the childhood specialist.

Keywords: childhood, adult, inclusion, Psychoanalysis, History


RESUMEN

Este texto tiene como principal objetivo analizar críticamente el discurso actual sobre la infancia y lo hace entremezclando dos dimensiones de dicho discurso: la histórico-social y la estructural. Considerando que la concepción de la infancia, y por tanto la experiencia concreta que tenemos con los niños, está condicionada tanto por los condicionantes histórico-sociales -la Historia- como por la represión que cada adulto tiene de su propia infancia -el psicoanálisis- nos dedicamos a escudriñar una figura emblemática del discurso actual sobre la infancia: la infancia incluida. A lo largo del texto pretendemos desarrollar la hipótesis según la cual la inclusión moderna de la infancia en el escenario de las consideraciones políticas, es decir, la admisión política de su carácter público, ha generado, entre otras cosas, el efecto paradójico de encerrar a los niños en un universo en el que su propia palabra corre el riesgo de ser eclipsada por la palabra del especialista en infancia.

Palabras clave: infancia, adulto, inclusión, Psicoanálisis, Historia.


 

 

Introdução

Iniciemos com uma constatação: a infância é uma questão eminentemente politica. Provavelmente foi a força do discurso pedagógico, hegemônico em nossos tempos no assunto da criança, mesmo longe de ter o monopólio de estudo sobre o tema, que contribuiu para que esta constatação permaneça velada, eclipsada por nossa crença já naturalizada de que a infância é uma fase da vida, definida, portanto, em termos biologizantes e acompanhada de uma psicologia que busca descrever e prescrever seu desenvolvimento. O discurso pedagógico que se estabeleceu de forma dominante no Ocidente contemporâneo é essencialmente mistificador (Charlot, 2013): busca ocultar as contradições sociais que condicionam politicamente a educação traduzindo todo conflito surgido nesse meio em uma linguagem naturalizante e generalizante.

Por trás dessa imagem naturalizada e generalista d'A criança (Voltolini, 2008) esconde-se que aquilo que a define, assim como em que termos ela deve ser considerada, se dá segundo coordenadas histórica e politicamente determinadas, conforme as proposições discursivas que como sempre mesclam saberes com poderes. Desde essa perspectiva, a criança é, sobretudo, um fato de discurso, ou seja, haverá tantas infâncias quantas forem as formas de narrá-la.

O determinismo político da questão da infância já foi suficientemente denunciado pela mão, principalmente, dos historiadores que nos fizeram ver a sucessão ao longo dos tempos dos modos de considerar a cria humana e pelos sociólogos que nos fizeram ver que há uma infância pobre - em geral sentida como ameaçadora - e outra rica - magnífica e emblemática de um futuro idealizado. Acompanhar essa variação histórica e social é fundamental quando se quer pensar de modo consequente e rigoroso a criança, sem o risco da mistificação, mas seria necessário reconhecer, para além dessas dimensões histórico-política e sócio-política, imprescindíveis na análise, uma outra, que temos, desde a psicanálise, chamado de dimensão estrutural. Entremeado ao que varia em cada época e em cada classe social há a invariável e insistente dessimetria geracional, dessimetria essa menos de cunho cronológico ou sociológico, que de cunho lógico.

A própria palavra geracional indica a dimensão lógica em jogo: há um que gera e outro que é gerado. Para sermos mais precisos em identificar em que registro essa questão lógica da geração se coloca, há um que narra e outro que é narrado. Importa menos neste caso a ocorrência do fato natural do nascimento que a emergência do fato lógico da natalidade (Arendt, 2003). É lógico porque a emergência inevitável do novo, já que o antigo não tem como perpetuar-se, só pode se dar em relação ao antigo: o novo nunca surge ex nihil. O neófito, portanto, terá que passar pelo antigo, pelo já constituído, para constituir-se e para produzir em seguida a sua diferença, a sua separação.

Foi mesmo essa lógica constituinte da emergência do novo que foi capaz de mostrar o caráter não contingente, mas necessário para toda sociedade de delimitar com uma linha demarcatória clara uma menoridade e uma maioridade. Em que termos essa linha demarcatória se definirá pode variar e variam, mas nunca a sua ocorrência. Foi também destacando a importância constitutiva dessa delimitação que Arendt pôde demonstrar o risco que nossa sociedade atual vive ao esfumaçar, via importação aligeirada de valores democráticos para a infância e a educação, a fronteira entre a criança e o adulto: o risco de inviabilizar a criação do novo.

Será no enodamento dessas duas dimensões - a estrutural e a da contingência histórica - que propomos desenvolver um aspecto para nós decisivo e constituinte do discurso contemporâneo sobre a infância: a infância incluída.

Se podemos comemorar por um lado que a criança encontrou um lugar no discurso social do qual em toda uma época ela foi excluída, devemos, por outro, identificar as vicissitudes do que se passa com elas quando se encontram incluídas em um discurso que as narra, as contabiliza, enfim, as normatiza. O risco aqui é que o preço de sua inclusão no discurso seja a supressão de sua palavra.

Pretendemos neste texto perscrutar esse modo particular de nossa época de falar a infância esperando neste percurso lançar luz sobre alguns dos impasses vividos pelas crianças em nossa sociedade.

 

Psicanálise e psicologia: dois modos de falar a infância

Para tanto, propomos a fórmula: crianças públicas, adultos privados, cujo escopo e pertinência se demonstrarão ao longo de todo o texto. A inspiração para essa fórmula, nascida do corpo de nossas pesquisas sobre a infância desde o campo da psicanálise, parte de uma paráfrase da célebre frase de Bernard Mandeville (2017/1924) em seu livro de título também sugestivo: a Fábula das abelhas ou Vícios privados, benefícios públicos, no qual o autor coloca em xeque - à semelhança do que fez Freud em toda a sua obra - a pertinência de uma linha divisória clara entre o que pode ser considerado vício e virtude. A valorização da virtude em detrimento do vício, típica da moral pública, esconde a solução de continuidade que existe entre esses dois termos, sendo a virtude apenas a apresentação em boa imagem daquilo que em uma análise mais acurada poderia revelar sua origem menos nobre.

Essa crítica do valor da virtude, bem como da solução de continuidade entre ela e o seu primo-irmão, o vício, nos pareceu oportuna e rica para explorarmos aquilo que o adulto formula atualmente como a virtude presente em sua abordagem da criança. Desde a psicanálise sabemos que essa abordagem da criança pelo adulto traz a marca própria do recalque de sua infância. Todo adulto, quando se reporta a uma criança, mesmo que pretenda comparecer nessa relação do modo mais racional possível, não pode impedir-se de que essa relação se apresente condicionada por aquilo que de sua infância restou como resíduo, recalcado e que retorna sobre determinando a relação atual.

É mesmo por essa razão que podemos formular, também parafraseando outro autor, Lacan no presente caso, que "il n' y a pas de rapport enfant-adulte1. -A relação entre a criança e o adulto, só poderia ser pensada, segundo a psicanálise, considerando que essa relação é marcada pela falta de proporção, não por inadequação da posição de um dos lados, passível de ser reparada por algum aprimoramento, senão marcada por uma proporção inultrapassável, impossível.

Essa condição constitutiva da relação adulto-criança implica pensar que esses dois termos devem ser pensados ao modo moebiano2 em sua estrutura, cabendo saber somente com que forma o elemento estrutural se apresenta em cada contingência. Na contingência que marca nossa época, ou seja, no laço atual criança-adulto, a criança é colocada do lado da virtude enquanto o adulto no lado do vício3. Curiosa inversão contemporânea se pensarmos que a criança do cristianismo já nascia viciada, pecadora e precisava se livrar do pecado pela purificação do batismo e começar a conhecer a virtude que só os adultos, bem orientados na palavra sagrada, poderiam lhe ensinar.

Para nós, essa fórmula provocativa é também um ponto de cruzamento que coloca em primeiro plano e em contraste dois modos distintos de um Falar da infância: (1) O falar da infância que é coextensivo do dispositivo da associação livre - de fato quando alguém se permite falar livremente termina inevitavelmente falando sobre sua infância -já que como dizia Freud (1913/1996), tomando a expressão de Wordsworth, 'a criança é o pai do homem'; (2) o falar da infância desde um discurso que a toma como objeto, do direito, da ciência, do mercado, etc. forma que se não sendo exclusiva de nosso século certamente é nele que ganhou um impulso considerável.

O primeiro modo é subjetivante e singularizante: Eu (sujeito) falo da "minha" (singular) infância - sofro em mim mesmo os efeitos da minha fala - enquanto o segundo é objetivante e objetalizador: Fala-se "da" infância e é ela que vai sofrer os efeitos dessa fala. O cruzamento desses dois modos de falar da infância permitiu-nos introduzir a psicanálise num debate cada vez mais condicionado pelo segundo modo de tratamento da infância.

Com efeito, podemos facilmente constatar, em contraste com épocas anteriores que no século XX o interesse pela criança cresceu imensamente. Mesmo que possamos relativizar a célebre obra de Philipe Ariès (1981) História social da família e da infância que de fato já teve sua contestação feita por outros historiadores, tais como Pierre Riché e Danièle Alexandre-Bidon (1994), no livro L'enfance au Moyen age, é indiscutível que aquilo que ela atesta essencialmente é verdadeiro: nunca nos importamos tanto com a criança quanto no século XX.

É a criança do século XX que ganha o interesse do direito que promulga as leis que a protegem de adultos que podem lhe ser perniciosos; que ganha o interesse da ciência que a toma como objeto de estudo para encontrar nela as leis de seu desenvolvimento e tentar garantir com elas práticas que o favoreçam; que ganha da escola a promoção de seu status ao centro do processo educativo, condenando outra visão de escola centrada na disciplina do conhecimento e na autoridade do professor; que ganha o interesse do mercado por ser percebida como consumidora voraz com capacidade de persuasão de pais cada vez mais sucumbidos ao bebê majestade, como apontava Freud (1914/1996), e que se tornaram os primeiros a demandar as Super Nanys sempre de plantão. Acreditar em super heróis não é mesmo uma questão característica da infância?! Pais infantilizados, portanto, acreditando na super heroína da dita boa educação?

Contudo, como nos ensinou a psicanálise, a uma elevação do amor corresponde outra do ódio, seu correlato inevitável. Foi, então, também em torno da criança do século XX que vemos surgir um aumento considerável de sequestros de crianças para o tráfico de órgãos; o esquecimento e a criminalização da infância pobre que viria macular essa imagem gloriosa d'A criança; o surgimento de demandas cada vez mais seletivas que pedem à ciência médica e seus métodos de procriação assistida, um filho sob medida; o surgimento e o crescimento exponencial das chamadas patologias da infância, dis- funcionamentos para os quais se requer tratamentos, correções de percurso, e por fim medicamentos cada vez mais receitados com o fim de possibilitar a criança feliz que, nos termos de nossa civilização atual não é mais aquela que brinca, mas aquela que performa.

Mas isso não deveria nos espantar porque aí flagramos a mesma ambivalência encontrada no tratamento de toda majestade: de um lado uma adoração daquilo que ela supostamente portaria de sagrado, de superior, de transcendente; de outro uma vigilância contínua, panóptica, de seu bom comportamento, da correção de seus gestos, de suas escolhas. Um rei pode tudo escolher, menos deixar de ser rei. Mesmo que ele escolha a deserção pra viver como um cidadão comum, isso não lhe será permitido e sua prisão, expulsão ou até mesmo sua execução começará a ter curso.

Sua realeza não lhe pertence, mas àqueles que o adoram, o veneram, ao preço de mantê-lo na estrita observância de seu comportamento ideal. Para tanto nunca se medirá esforços: se for preciso ele será tolhido, censurado, tratado, internado, etc. como sabemos, sempre para seu próprio bem!

Mas as crianças se prestam mal a serem majestades. Desalinham facilmente como nos mostra de forma eloquente o célebre conto A roupa nova do rei de Hans Christian Andsersen (2011/1837), no qual é uma criança - e a moral da história é que só uma criança seria capaz de fazê-lo - que foi capaz de apontar a nudez do rei que nenhum adulto ousava denunciar. Essa interessante oposição entre a criança e a majestade deveria nos levar mais longe em nossas discussões.

O contraste - que nos referíamos antes - entre as duas posições do falar da infância, encontra aqui seu melhor desenvolvimento. De um lado, a criança como majestade: a criança falada pela ciência, direito, mercado, etc.; de outro a criança como derruba-majestade: a criança que fala e falando irrompe o pacto feito por adultos - pacto esse, que como aprendemos com a psicanálise, é adultocêntrico, ou seja, feito em torno do recalque da infância. Que a história de Andersen se dê em torno da nudez do rei - elemento francamente sexual - encoberta pela crença dos adultos de que ali não haveria nada de sexual, não é distante de tudo o que a psicanálise sublinhou sobre as relações do elemento sexual com o social.

A prova histórica desse contraste, podemos ver no fato de que é atribuído à Psicologia o mérito de ter reconhecido à infância o status de tempo da vida, com suas características próprias. De fato, podemos admitir que é com ela e por ela que a criança se torna falada, objetivada e capturada no discurso científico, mas será com a psicanálise - com destaque particular para a figura pública de Dolto4 - que o que a criança fala será ouvido.

Se tomamos, por exemplo, o caso de Piaget - tal como sua pesquisa foi tomada por um pensamento pedagógico que roubou seu nome para constituir a partir dele e por vezes contra ele uma filosofia e um método de trabalho educativo - vemos configurada essa concepção da infância como tempo próprio, com características particulares de pensamento e que devem ser consideradas na abordagem que os adultos fazem com as crianças.

O método por ele utilizado - notadamente o clínico - para realizar seus experimentos e chegar às suas conclusões, concebia-se essencialmente de perguntas adultas feitas para a criança. Exemplo: num universo de vinte bolinhas de madeira sendo 6 azuis e 14 verdes, pergunta-se à criança: Aqui temos mais bolinhas verdes ou bolinhas de madeira?

Os objetivos dessa pergunta e suas conclusões são bastante claros - só para o adulto pesquisador. Contrastemos, no entanto essa posição paradigmática com a posição de Freud para abordar a infância De fato, não foi nas perguntas adultas feitas à criança que ele encontra sua démarche, mas, ao contrário nas perguntas infantis feitas para o adulto, como mostra o exemplo da curiosidade da criança, que se desdobra incialmente no campo da sexualidade adulta e sua elaboração em teorias - as teorias sexuais infantis. Para Freud uma criança edipiana é um teórico, mais, inclusive, do que o psicanalista que é no máximo um curioso balizado.

Duas posições adultas distintas frente à criança; dois modos distintos de falar com ela. Em todo o caso, apesar do contraste importante entre essas duas posições, ambas servem para pôr em relevo como as crianças estão condenadas a se constituir como sujeitos, amando estes que a amam sempre para seu próprio bem. É como sonho do adulto que uma criança vem à vida; é na contingência particular do desejo concreto de algumas pessoas que uma criança poderá se constituir como sujeito e jamais fora ou a revelia dela.

Trata-se aqui de uma anterioridade lógica e não psicológica, sociológica ou histórica, embora vá encontrar nas modalidades históricas e sociais de sua emergência os moldes nos quais irá formatar-se. Mesmo quando o adulto deseja ver a criança livre do que ele supõe ser o peso dessa anterioridade lógica- concepção cada vez mais frequente e dominante em nossos tempos atuais que vive uma espécie de delírio de liberdade - desejará em vão, já que é novamente a seu sonho de liberdade que ela, criança, terá que responder.

Por isso, em nossa fórmula: crianças públicas, adultos privados, pretendemos formular o modo como em nossos tempos esta disjunção adulto-criança vem sendo pensada e vivida de modo hegemônico no tecido social. Para uma criança pública, virtuosa segundo aquilo que a ciência e o direito têm a falar dela, um adulto privado, vicioso, repleto de deveres, proletário no saber, já que em nossa sociedade a palavra foi retirada deles, não para ser dada à criança, mas ao expert 5 que não fala como adulto com uma criança, mas como especialista sobre a criança.

 

A infância pública incluída

Com a proposição dessa démarche do assunto da infância propomos recortar um fragmento de nossa experiência enquanto psicanalista envolvido com a infância e as políticas públicas que as tomam como objeto. Cremos ser possível com esse fragmento desdobrar um certo numero importante de questões, com consequências importantes para pensarmos as vicissitudes da infância pública.

Na sequência de uma longa tradição de trabalho iniciada por Maud Mannoni - com quem temos uma relação filiante e não filiatória, lembrando a ideia lacaniana de retorno a Freud que é a condição para poder supera-lo -, com sua escola experimental de Bonneuil, iniciamos um trabalho no qual nos ocupávamos da escolarização de crianças e jovens psicóticos e autistas6. Jovens que temos chamado, para dar a eles uma fórmula representativa no cenário das políticas públicas de jovens em conflito com o saber.

O mesmo status de feios, sujos e malvados, frequentemente atribuído aos jovens em conflito com a lei, encontramos nas crianças psicóticas e autistas em sua circulação social. Feios quando não portam a estética própria esperada da criança - o famoso fofinho - sujos porque não raras vezes nos fazem ver seus produtos, aqueles mesmos que a convenção social determina serem transformados em caca, e malvados porque também com significativa frequência protagonizam cenas de agressividade e ataque aos colegas.

Propúnhamos a escolarização dessas crianças baseada em alguns princípios de trabalho que foram instituintes em Bonneuil.

1) O primeiro é ligado a uma ideia de desinstitucionalização. Seguindo a crítica feita pelos movimentos antimanicomiais à instituição asilar, entendeu-se a importância de se combater o risco que tem toda instituição de se tornar cúmplice e mantenedora daquilo que ela mesma é concebida para tratar. Lição weberiana: as instituições passam mais tempo a se proteger do que a buscar novidades. Uma instituição psiquiátrica, por exemplo, concebida para tratar os pacientes de suas moléstias mentais, podia tonar-se anti-terapêutica dada a rigidez imposta pelos seus muros, os físicos, mas principalmente os conceituais. Livrar o louco de seu encarceramento nessa instituição panóptica que lê todo o seu comportamento como derivado de sua doença, essa mesma objetivada por um discurso médico, aparecia como condição preliminar a todo tratamento possível da psicose.

2) Essa desinstitucionalização deveria vir acompanhada da elaboração de novos espaços de circulação possível para os psicóticos, agora liberados do peso de seu encarceramento. A loucura nas ruas precisava ser dialetizada, era necessário acompanhar esses sujeitos em suas tentativas de dar conta de seu jeito particular e sui generis de excursionar no laço social. A escola experimental de Bonneuil foi concebida como um espaço de acolhimento para crianças e jovens excluídos das escolas e que podiam encontrar lá um lugar de vida, mais do que um lugar de tratamento;

3) Lugar de vida - mais que uma expressão despretensiosa é um conceito para Mannoni (1988)- que se define por oposição à ideia de lugar de tratamento. Um lugar pra viver é um lugar onde se encontra, sobretudo, as condições para uma experiência concreta e rica do laço social, normalmente comprometida no laço técnico, próprio à dimensão do tratamento, por ser este último essencialmente objetalizante. Para tanto, seria importante valer-se de propostas culturais, como ocorre em princípio em toda escola, acompanhada, em paralelo, de uma supressão dos chamados banhos de tratamento a que todas essas crianças eram inevitavelmente submetidas em decorrência de seus inúmeros distúrbios, alimentares, comportamentais, de aprendizagem, psicomotores, etc.;

4) A instituição em questão deveria ser concebida de tal modo a evitar o mesmo risco das outras, de se tornar rígida e encarceradora do sujeito num discurso que o objetiviza sem dar a ele nenhuma chance de ser ouvido naquilo que ele tem a falar. Para tanto, a alternância de ambientes - ou seja, a saída para ambientes alternativos onde se poderia viver outra coisa - e a instabilização do instituído - o que se convencionou chamar em Bonneuil de instituição explodida - eram conceitos e procedimentos essenciais. Uma instituição forte, segundo este modelo, era aquela que seria capaz, paradoxalmente, de desestabilizar-se em sua constituição sem perder nessa instabilidade transitória os princípios de seu funcionamento, tornando-se porosa aos acontecimentos em seu interior. Instituição forte é aquela que é capaz de reavivar o que nela há de instituinte, sempre prestes a sucumbir nas rotinas instituídas.

Com esses princípios de trabalho conduzíamos os jovens em conflito com o saber em sua escolarização, como em sua circulação social mais ampla, até que a questão da inclusão social passou a ser discutida nos termos da lei e da administração institucional consagrada em políticas públicas da inclusão.

Essas crianças foram então convocadas, mais do que convidadas, a se matricularem nas escolas regulares, agora obrigadas por força de lei a se tornarem inclusivas. Estranha e corriqueira crença pós-moderna, a da solução jurídico-administrativa dos problemas sociais.

Essas crianças se viram então colocadas em escolas inevitavelmente despreparadas, para a aflição de todos: elas, seus pais e seus professores. Despreparadas, entretanto, é um termo que admitimos apenas parcialmente, porque é naquilo para o qual e o como elas estão preparadas que para nós reside o ponto principal a analisar. A instituição escolar, dita inclusiva, está preparada em oposição a todos os pontos levantados há pouco como princípios de trabalho em Bonneuil:

1) É uma instituição que propõe uma reinstitucionalização do excluído. Propõe que é no seu interior, agora supostamente reformado segundo as necessidades educativas especiais de seus internos, que a criança terá seu melhor atendimento. Para tanto deve ela reformar-se;

2) As tais necessidades educativas especiais, como são elas definidas? Pelo concurso dos experts que com seus saberes saberão informar às autoridades administrativas e escolares o que essa criança precisa. Curiosamente, para esta tarefa, vimos serem convocados os mesmo experts que no dia anterior foram aqueles que fizeram a exclusão dessas crianças das escolas, desviando-as para o regime de educação especial: psicólogos, fonoaudiólogos, médicos etc. Os tais banhos de tratamento retornam agora no interior da instituição dita inclusiva, revestidos, dessa vez, da aparência de melhoria no ensino e suporte de trabalho para os professores;

3) Qualquer alternância de lugares de trabalho é em princípio mal vista. No máximo tolerada como último recurso naqueles casos em que ninguém mais sabe o que fazer, mas jamais concebida como princípio propositivo de trabalho;

4) Uma instituição assim concebida, não pode evitar de desembocar nos problemas próprios a toda instituição total. O que acontecerá com essa criança quando tiver que deixar a instituição? Nada por acaso é a mesma pergunta dos pais a propósito de suas mortes: O que será de meu filho quando nós partirmos?; Nessa pergunta, o vaticínio de nenhuma possibilidade de separação. Na linguagem administrativa o problema aparece sob o termo: terminalidade escolar;

5) Longe de ser uma instituição explodida, a escola inclusiva é uma instituição sólida, sem porosidade, na qual se vê retornar a figura do especialista com sua identidade profissional fortemente erigida e que fala no lugar da criança. Uma instituição que pretende trazer para seu interior tudo o que a criança precisa, claro, para seu próprio bem!

Um breve percurso por essa instituição é suficiente para flagrar nela sua inépcia fundamental. Seu discurso inclusivo é muito mais retórico que teórico. De teorização encontramos muito pouco e quando ocorre vem acompanhando o estilo especialista voltado para as características próprias a cada deficiência, ou ainda sob a forma de um discurso sociologizante, de cunho panfletário, supostamente defensor dos direitos dessas crianças.

Feita pelo paradigma jurídico-administrativo e tecida pelo discurso científico dos experts, a escola dita inclusiva é uma excelente demonstração de um falar da infância - a infância excluída neste caso - modo objetivante que cala tudo o que a criança ou o jovem teria a dizer no assunto.

No caso das crianças e jovens psicóticos e autistas - não por acaso aqueles considerados o principal problema no trabalho cotidiano institucional da inclusão - esse calar parece ainda mais autorizado na medida em que se supõe neles uma inaptidão discursiva para opinar sobre seu próprio destino: o que teriam a dizer não é seguro para fiar-se; afinal são insanos, desorganizados mentalmente e não podem discutir seus próprios destinos.

E, no entanto, não cessam de nos dar provas de sua inteligência, uma inteligência sui generis, sem dúvida, mas ainda assim uma inteligência que, em geral, se desenvolve melhor nas bordas do escolar. Ali onde, mesmo ainda havendo um espírito escolar - de aprendizagem de conteúdos socialmente partilháveis - pode-se relativizar o peso da performance e da demanda.

Letícia7, uma criança psicótica, aprende aos nove anos a ler e escrever. Sua escola, animada com o resultado e seguindo a pauta curricular, decide lhe propor a passagem da letra bastão para a cursiva.

Seu mundo se desmorona face ao que para ela longe de ser a substituição metafórica entre sistemas de escrita, disparou uma desorganização do mundo. Ela se põe a desenhar minhocas em resposta clara e direta ao desenho da letra cursiva. Desenho que ela mesma chama de minhocada. Suas crises de angústia, seguidas de agressividade, bem como sua paralisação na aprendizagem acabaram por fazer Letícia, depois de várias tentativas fracassadas, ser expulsa da escola.

Fora da escola, mas não fora da perspectiva escolarizante, ela prosseguiu seus estudos acompanhada em pequenos grupos com finalidade terapêutica e mais particularmente por sua acompanhante terapêutica com quem conseguiu fazer um laço transferencial importante. 2

Nestes espaços - que vamos chamar de para-escolares - ela se viu aprendendo matemática e geografia por conta de seu interesse em localizar lugares que fossem o mais distante possível de toda ameaça de invasividade do Outro. Checou mapas da cidade, criou sistemas de contagem do espaço que, apesar de incomensuráveis com os sistemas existentes, eram coerentes e eficazes em sua lógica própria. Com esse sistema de contagem percorria espaços da cidade com destreza e seu interesse, fora de toda demanda escolar, levou-a a desenvolver sua inteligência.

Mas essa possibilidade nasceu de um modo diferente de falar a infância. Modo que deixa a criança falar apostando que nisso há um risco a correr: o risco de que alguma coisa se ouça e nos desvie do programado.

Mas estão os adultos de hoje interessados e aptos a ouvirem as crianças? Um filme feito para crianças para os adultos se divertirem deixa realmente no ar essa resposta. Trata-se do filme da Pixar: Monstros S/A. Nele, os monstros que, como nos mostra Diana Corso (2001), representam os adultos, de modo invertido são os que temem as crianças, que portariam uma espécie de risco e ameaça a toda a sociedade. Por isso é necessário protegerem-se dela para que a ordem estabelecida e o mundo dos lucros continue funcionando bem. Talvez esse filme seja mesmo representativo da relação atual do adulto com a criança: um adulto com medo da criança preferindo recorrer aos que os especialistas têm a dizer sobre ela sem mesmo se dar a chance de ver o que a experiência com ela é capaz de indicar. Adultos monstros, crianças ameaças, talvez seja esta uma boa imagem, emblemática do conflito que vive o adulto pós-moderno em sua relação com a criança.

 

Referências Bibliográficas

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1 A paráfrase toma como ponto de partida a fórmula lacaniana "il n'y a pas de rapport sexuel", cuja melhor tradução seria "a proporção sexual não existe".
2 A banda de moebius é uma figura topológica adotada por Lacan (2003) para possibilitar pensar essa estrutura que desenha uma solução de continuidade entre dois termos que se articulam em uma mesma superfície.
3 Mesmo quando se identifica em uma criança - a criança pobre geralmente - uma característica viciosa - o consumo de drogas ou a execução de infrações, por exemplo - ela será, ou protegida por trás de um discurso que responsabiliza os adultos pelo ocorrido, ou será adultizada precocemente - como mostram todos os debates sobre maioridade penal no Brasil -- para assumir seus delitos como todo e qualquer adulto.
4 A psicanalista francesa Françoise Dolto - cuja obra se encontra plenamente traduzida para a língua portuguesa - é reconhecida por sua pioneira participação na emancipação social da criança, em particular por sua impressionante capacidade de dar voz às crianças de um modo nunca dantes destacado e por sua militância com relação ao direito das crianças de falarem e de serem ouvidas.
5 Segundo a feliz expressão utilizada por Zafiropoulos (2006) em francês ex-père - literalmente ex-pai - que guarda uma homofonia com expert, para demonstrar -essa operação ocorrida no discurso social na qual alí onde estava o lugar do pai acabou advindo o lugar do expert.
6 Trata-se do trabalho na pré-escola terapêutica Lugar de Vida em São Paulo.
7 O transcurso desse caso foi amplamente desenvolvido no artigo "Ouvrir la porte par le dedans: pontuctiations sur la scolarisation inclusive des enfants psychotiques" (2016).

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