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Clínica & Cultura

On-line version ISSN 2317-2509

Clín. & Cult. vol.8 no.2 São Cristovão Jul./Dec. 2019

 

DOSSIÊ REDE INTERAMERICANA DE PESQUISA EM PSICANÁLISE E POLÍTICA

 

Psicanálise e sujeito neoliberal: "logo, toda sua psicanálise caberá dentro de uma pílula"

 

Psychoanalysis and the neoliberal subject: "soon all your psychoanalysis will fit within a pill"

 

Psicoanálisis y sujeto neoliberal: "pronto, todo tu psicoanálisis cabrá dentro de una píldora"

 

 

Ivan EstevãoI; Sérgio PrudenteII

IPsicanalista, professor de psicologia na graduação da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP), professor do programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, membro do Laboratório de Psicanálise e Sociedade do Instituto de Psicologia da USP e membro do Fórum do Campo Lacaniano
IIProfessor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

 

 


RESUMO

Esse artigo tem como objetivo discutir sobre o estatuto da concepção lacaniana de sujeito dentro de um modelo neoliberal. Parte de uma introdução que situa certas questões da relação do sujeito com a realidade, fazendo uma análise parcial do filme Matrix. Em seguida, circunscrevemos o conceito lacaniano de sujeito e suas características para depois localizar as condições da construção de uma subjetividade neoliberal, tendo como operador a discussão em torno do jogo Monopoly. Isso feito, caminha-se para as consequências da articulação entre o conceito de sujeito e a subjetividade neoliberal, que além de possibilitar uma sociedade narcísica cínica e individualista, ainda faz uma elisão do afeto da vergonha. O retorno da vergonha na sociedade atual pode ser o motor para o fenômeno de certos suicídios da atualidade.

Palavras-chaves: Psicanálise, sujeito, Lacan, subjetividade, neoliberalismo, vergonha.


ABSTRACT

This article aims to discuss the status of the Lacanian conception of the subject within a neoliberal model. It starts from an introduction that situates certain questions of the subject's relationship with reality, making a partial analysis of the film Matrix. Then, we circumscribe the Lacanian concept of subject and its characteristics to later locate the conditions for the construction of a neoliberal subjectivity, having the discussion about the Monopoly game as operator. That done, we move towards the consequences of the articulation between the concept of subject and neoliberal subjectivity, which in addition to enabling a cynical and individualistic narcissistic society, also makes an elision of the affect of shame. The return of shame in today's society can be the engine for the phenomenon of certain suicides today.

Keywords: Psychoanalysis, subject, Lacan, subjectivity, neoliberalism, shame


RESUMEN

Este artículo pretende discutir el estatus de la concepción lacaniana del sujeto dentro de un modelo neoliberal. Comienza con una introducción que sitúa ciertas cuestiones sobre la relación del sujeto con la realidad, haciendo un análisis parcial de la película Matrix. A continuación, circunscribimos el concepto lacaniano de sujeto y sus características para luego ubicar las condiciones de la construcción de una subjetividad neoliberal, teniendo como operador la discusión en torno al juego Monopoly. Hecho esto, caminamos hasta las consecuencias de la articulación entre el concepto de sujeto y la subjetividad neoliberal, que además de posibilitar una sociedad narcisista cínica e individualista, aún hace una elisión del afecto de la vergüenza. El retorno de la vergüenza en la sociedad actual puede ser el motor del fenómeno de ciertos suicidios en la actualidad.

Palabras clave: Psicoanálisis, sujeto, Lacan, subjetividad, neoliberalismo, vergüenza


 

 

Introdução

Começo com uma curta historieta pessoal e, portanto, falo no singular: quando anunciei que pretendia fazer faculdade de psicologia e me tornar psicanalista, um amigo disse que a psicanálise não passava de curandeirismo. A frase central dele foi: "Logo, toda essa sua psicanálise caberá dentro de uma pílula!".

Emendo com algo que considero curioso: em 1999 estreou o filme Matrix e dentre muitas cenas que se tornaram icônicas, uma delas é sobre as duas pílulas que são apresentados a Neo antes dele saber do que se tratava, a pílula azul (que faria ele acordar em sua cama e manteria as coisas como estão) e a pílula vermelha, que o faria seguir por Wonderland na busca da toca do coelho e revelaria uma verdade da qual não se tem mais retorno. A própria ideia de "não teria mais retorno" já sugere que a verdade que será revelada poderá produzir algum sofrimento a quem ela se revela, uma queda.

Sabemos qual pílula Neo escolhe, a vermelha e a verdade que se mostra por meio de um recuo do imaginário revelando uma estrutura que organiza o nosso universo sensível, nos mínimos detalhes, conhecida como Matrix. Aqui ficamos diante de dois aspectos: o Ato como portador da verdade do sujeito, e o que esse ato pode revelar, a estrutura da Matrix. A função dessa estrutura, construída por máquinas sapientes, é usar a energia humana como combustível para manter tais máquinas funcionando e a Matrix é uma realidade virtual da qual os humanos se veem submetidos e governados sem sequer saber que o são.

A ideia básica do filme é tema comum nas obras distópicas: o aprisionamento da humanidade por aquilo que ela criou. Colocando em termos psicanalíticos, seria o correspondente a dialética do senhor e do escravo, ou seja, passamos a servir aquilo que nos servia. Em Matrix, a humanidade/bateria serve a máquina que, um dia, foi criada por ela. Tal servidão possui uma estrutura latente na ficção da Matrix. Logo, a verdade é sempre encoberta por uma experiência de corpo alienada ao Outro máquina. É o que podemos observar no pedido de Cypher (um dos vilões do filme) para voltar à realidade ficcional e comer um filé sangrento. No entanto, é no descompasso do tempo que isso está mais evidente: enquanto o mundo ficcional está em 1999, o tempo da Matrix é o de 2109, isto é, o tempo é o tempo do Outro, um verso (vers/verité) que se revela como um tempo impossível de se historicizar como simbólico.

Ora, na concepção lacaniana de discurso, a partir do aparelhamento de gozo que o discurso permite, encontramos justamente essa relação com o verso. Lacan joga com a assonância dos significantes Avesso e Verdade, que é imperceptível em português, mas marcada na língua francesa nas palavras envers e verité, para destacar isso que, em Matrix, vemos como a realidade do mundo ficcional e o real da Matrix. Assim, levando em conta o gozo, entendemos que o discurso é a forma como a linguagem aparelha o gozo colocando-o em formas discursivas que marcam lugares, posições e funções.

Desse ponto de vista, não é exatamente energia vital que está em jogo para as máquinas - pois nesse caso bastaria criar pessoas acéfalas -, mas pulsional e gozante e daí sim podemos pensar o porquê transformar humanos em baterias ao invés de animais, o que, pragmaticamente, faria mais sentido. Mais que isso, o porquê de precisar de todo um universo que emula a vida cotidiana. O filme chega a sugerir uma primeira Matrix que não era uma reconstituição do mundo cotidiano dos humanos antes das máquinas, mas um mundo idílico, paradisíaco, em que todos os desejos eram satisfeitos.

Essa posição intervalar entre duas Matrix reforça os polos que destacamos até aqui: pílula vermelha x pílula azul, ficção da Matrix x o real da Matrix, o ato x a inação, a verdade x a fantasia, o senhor x o escravo, o verso x o avesso, história x impossibilidade histórica, etc. Esse intervalo entre Matrix nos coloca diante da verdade do ato tão cara a Kierkegaard e para Lacan.

Em Gênesis (3,7), encontramos: "Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira e fizeram cintas para si." Esta passagem bíblica se refere a Adão e Eva logo após comer a maçã. A referência a uma nudez anterior que não causava vergonha, pressupõe um abrir de olhos para algo ainda não experimentado. Mas o que Adão e Eva experimentaram? Agambem (2009) fala de uma transgressão e, para isto, ele retoma Santo Agostinho para chegar à veste da graça que cobria os corpos de Adão e Eva antes de pecarem. Esta veste não é uma roupa, mas a própria graça que o homem recebe no paraíso, responsável por recobrir, na natureza, aquilo que pode ser abandonado pela glória de Deus, a saber: "(...) a natureza abandonada pela glória de Deus e remetida a si própria, se apresenta como possibilidade da degenerescência da natureza humana naquilo que as escrituras chamam carne, o devir visível da nudez do homem, a sua corrupção e putrefação." (AGAMBEN, 2009, p.79).

Temos, logo, o ato do pecado como elemento inaugural e que é ponto central na antropologia da angústia de Kierkegaard (Kierkegaard, 1844/2010). Pelo filósofo dinamarquês, o pecado original é o promotor de uma queda que engendra a angústia, o afeto que ocorre ao se perder o manto da graça, ou a primeira Matrix. Lembremos que a primeira Matrix foi projetada para que todos fossem felizes, mas ela fracassou. O agente Smith chega a dizer sobre isso que: "Os humanos parecem definir a realidade pelo sofrimento e pela desgraça." É nesta desgraça da finitude da carne que Adão e Eva se afastam de Deus.

O pecado, portanto, torna-se realidade expressa na existência e figura como elemento da própria condição humana. O pecado torna-se realidade que se expressa na existência. Com a queda vem o ato de liberdade, comer o fruto é a escolha engendrada pela angústia. Assim, pecar é consequência da angústia, que representa o mais alto grau de egoísmo, pois o indivíduo olha somente para si e perde a vista de Deus.

A referência ao pecado que Kierkegaard nos apresenta, marca o ponto de retomada, não do passado, mas do traço da primeira inscrição do significante, que estabeleceu a díade Lei/transgressão que determina o gozo. Pecado e gozo se subsumem e, tanto em Kierkegaard como em Lacan, a angústia é a via para o acesso a eles e, consequentemente, ao real. A questão aqui passa a ser: o que o real da Matrix nos aponta de uma satisfação com a ficção da realidade? Lacan nos indica que "um sonho desperta justamente no momento em que poderia deixar escapar a verdade, de sorte que só acordamos para continuar sonhando - sonhando no real, ou para ser mais exato, na realidade." (LACAN, 1969-1970/1992, p.59).

Logo, o sonho é o avesso da consciência, ou o avesso da representação. Assim, o sujeito é uma espécie de contrapartida (upokeimenon), uma pura suposição significante, sem substância. Ou seja, o sujeito só pode: "gozar de um corpo, de um corpo que o Outro o simboliza, e que comporta talvez algo de natureza a fazer pôr em função uma outra forma de substância, a substância gozante. (...) Direi que o significante se situa no nível da substância gozante" (LACAN, 1972-1973/1985, p.36).

Neste ponto, retomamos a questão colocada para Neo: "Você já sentiu como se não soubesse se está acordado ou sonhando?" "É sua escolha sair ou não." No que consiste tal escolha?

 

Sujeito - Uma escolha forçada

Quanto a pílula vermelha, revela a verdade de submissão inconsciente do sujeito frente a um Outro em uma relação que sabemos, pela via da psicanálise lacaniana, que é sempre conflituosa. Na medida em que se apresenta como uma escolha forçada, apresenta-se o impasse entre o não-ser ou a alienação ao significante que vem do Outro. Lacan sintetiza tal impasse por meio da questão: "a bolsa ou vida", onde ele aponta uma escolha forçada, pois perde-se a bolsa de qualquer forma (Lacan, 1964/1998, pp. 855). O conflito se dá porque a alienação ao significante produz um efeito de divisão, separando Eu e sujeito. Este sujeito aparece de modo elidido nas entrelinhas dos significantes, recusando de forma contínua ter um predicado atribuído a ele. Ou seja, o sujeito é a própria recusa da predicação do Outro, de uma modalidade de submissão.

Isso nos posiciona para além de uma interpretação do texto do Mal-Estar de Freud (Freud, 1930/2004), que supõe a ideia do indivíduo contra a sociedade (Lacan, 1959-1960/2008, pp. 129): trata-se de ir além dessa concepção sociológica pensando em termos estruturais: há algo de inadaptável no cerne de cada indivíduo e disso decorre um sujeito.

Há, com efeito, algo de radicalmente inassimilável ao significante. É, simplesmente, a existência singular do sujeito. Por que será que ele está ali? De onde ele sai? O que está fazendo ali? Por que vai desaparecer? O significante é incapaz de dar-lhe a resposta, pela simples razão de que ele o coloca justamente além da morte. O significante o considera já como morto, ele o imortaliza por essência. (LACAN, 1955-1956/1997, p. 205.)

Desse modo, não nos arrisquemos a falar de um sujeito com certos predicados. Se mantivermos o rigor lacaniano, o sujeito é o sujeito do inconsciente, sem qualidades e a sustentação do arcabouço teórico exige a manutenção dessa característica. Trata-se de um sujeito caracterizado justamente na recusa da predicação. O recurso pedagógico usual de predicação do sujeito, dentro do escopo da psicanálise lacaniana, acontece em geral para se dizer de uma condição na qual o sujeito se depara.

Ao falarmos de sujeito perverso dizemos do sujeito que se vê às voltas com a estrutura perversa, constituída a partir das próprias respostas do sujeito aos registros. O sujeito não é a estrutura, mas se constitui ao mesmo tempo que ela e de modo interligado. Não há, assim, um sujeito do capitalismo, um sujeito neoliberal, um sujeito perverso, mas o sujeito sem qualidades. Do mesmo modo o sujeito também não se confunde com a ideia de subjetividade. Askofaré (2009) demarca esta diferença entre sujeito e subjetividade.

Por sujeito, Askofaré (2009) entende, em sua leitura da obra de Lacan, a estrutura que sustenta a fala, ou seja, o falasser. Este sujeito é efeito do significante, suporte material da função da fala e que, por isso, enquanto houver fala, haverá sempre sujeito. Já por subjetividade Askofaré (2009) entende uma forma histórica e determinada de traços, de posições e de valores que os sujeitos de uma época têm em comum, em suas relações com o Outro, como discurso. Portanto, ao falarmos de subjetividade do sujeito do capitalismo ou neoliberal, estaremos nos referindo ao efeito do significante que sustenta a fala em um sujeito historicamente situado em nosso contemporâneo, com suas contingências e traços, posições e valores.

Podemos ainda destacar, com Soler (2011), que a subjetividade diz respeito ao falante consciente de si e de seu lugar na sociedade, portanto sempre histórico e datado. O sujeito está entre o corpo, o meio, o significante, a subjetividade. Há, entre estas mediações, o que podemos chamar de resposta do sujeito.

De novo, não se trata de um sujeito essencialmente neoliberal, mas sim de se pensar quais condições são dadas para o engendramento e sustentação de uma subjetividade que é ao mesmo tempo efeito da resposta do sujeito e também meio através do qual o sujeito irá responder.

A pílula azul ou pílula vermelha são dadas nas mesmas condições, trata-se apenas de uma escolha: a reposta do sujeito, que não se enquadra nunca, é a escolha de uma delas, assim como a escolha entre a bolsa ou a vida.

Isso posto, formulemos a pergunta: quais condições engendram determinada subjetividade com a qual o sujeito tem de se haver?

Desde o Colóquio Walter Lippman em 1938, e a primeira reunião da Sociedade Mont Pèlerin em 1947, o neoliberalismo se tornou um campo de debates entre estudiosos. Na amplitude desses estudos, o interesse pela dimensão clínica e política do neossujeito (Dardot & Laval, 2016), é incontornável para um campo psicanalítico que pretenda entender a extensão e a transformação das subjetividades no mal-estar da nossa cultura.

Um elemento a partir do qual podemos sintetizar materialmente a transformação subjetiva que marca a passagem histórico/processual do liberalismo para o neoliberalismo. Isto implica considerar a transição do naturalismo liberal para o construtivo neoliberal (Dardot & Laval, 2016), ou seja, estamos aqui situados numa espécie de momento em que sinais começam a indicar as direções dessa passagem.

Nesse sentido não estamos colocando marcadores precisos, não é esse o nosso interesse, pois existem pesquisas específicas sobre isso. Estamos, de certa forma, destacando no movimento histórico, um elemento, um jogo, que catalisa os vapores de um modelo de subjetividade. Não obstante é preciso considerar que o neoliberalismo é um conceito complexo extraído de desdobramentos que se passam na transição do liberalismo clássico nas décadas que antecedem 1930. Aqui é preciso destacar o papel da arte de governar colocada por Foucault, no contexto a partir do século XVIII, como um modus em que o governo conhece e respeita os mecanismos econômicos. Isto quer dizer que a política conhece o mercado, seus circuitos, de modo que os limites do seu poder não é o da liberdade individual, mas os do respeito às análises econômicas (Foucault, 1978-1979/2008, pp.84). Logo, o liberalismo estaria mais para um "naturalismo governamental" do que, de fato, para algo apontasse para a liberdade.

Assim, nas intercorrências surgidas em torno da década de 1930, os problemas do liberalismo clássico abria um horizonte de transformações no interior dos governos liberais. Nesse sentido, a superação do pensamento dos séculos anteriores se afirmava como uma necessidade política, todavia, isto não foi suficiente para um questionamento radical do capitalismo e a racionalidade de mercado. O que restou nesse ínterim foi o papel do estado e suas possibilidade de governar. É por isso que a governabilidade aponta para algo além do caráter econômico. Laval & Dardot (2016, pp.26) comentar que não se trata somente de uma crise econômica no sentido clássico. Há uma extensão das transformações sociais, culturais e subjetivas introduzidas pela difusão das normas neoliberais em toda sociedade. "O neoliberalismo não é apenas uma resposta a uma crise de acumulação, ele é uma resposta a uma crise de governabilidade" (LAVAL & DARDOT, 2016, pp.26).

É nesse sentido que Foucault (1978-1979/2008) fala de uma nova maneira de conduzir indivíduos, é por esta senda que recortamos o jogo do Monopoly como elemento lúdico/político de formação da condução dos indivíduos nos campos da satisfação das identificações na cultura de mercado.

Logo, o uso que faremos no termo neoliberalismo, leva em conta um discurso cuja mutação se dá até hoje com o ultraneoliberalismo, por exemplo, mas que podemos assumir como ponto de virada, essa transformação ocorrida nas primeiras décadas do século 20, onde o caráter naturalista do liberalismo clássico sofre mutações e engendra um construtivismo neoliberal (DARDOT & LAVAL, 2016).

 

Monopólio do gozo: o jogo da subjetividade contemporânea

Em seu livro The Monopolists: Obsession, Fury, and the Scandal Behind the World's Favorite Board Game, Mary Pilon (Pilon, 2015) narra a história do jogo chamado aqui no Brasil de "Banco Imobiliário", mas mundialmente conhecido como "Monopoly". Quem já teve a experiência de jogá-lo talvez tenha sido afetado pelo constrangimento que ele pode gerar. Trata-se de um jogo onde o objetivo é constituir um monopólio imobiliário e submeter todos os outros jogadores a ele (se você cai em uma das propriedades de seu adversário no jogo, é obrigado a pagar o aluguel - exorbitante, às vezes). Ganha aquele que não vai a falência, ou seja, o último que resta e que se torna o dono do monopólio imobiliário. Dessa forma, ao jogá-lo com crianças, nos vemos na estranha situação de levá-los à falência ou de falirmos nós mesmos para que eles ganhem.

Nosso interesse nesse jogo é por sua história: a versão oficial é que Charles Darrow o inventou durante a grande depressão, mas Mary Pilon conta que a primeira versão do jogo foi feita por Elizabeth Magie em 1903. Inspirada pelos ideais de Henry George, que propunha a ideia de taxa única (ou simples) das terras, Magie pensou um jogo chamado Landlord´s Game que tinha duas versões de regras, Prosperidade e Monopolista. No primeiro, anti-monopolista, cada jogador ganhava quando alguém adquiria uma nova propriedade e o fim do jogo era quando o jogador que começou mais pobre dobrasse o que ganhou. Nesse contexto, havia só vencedores, ou seja, um jogo que buscava a prosperidade geral, sem um derrotado.

A versão Monopolista é mais próxima da forma que o jogo é jogado até hoje: aquele que adquire propriedade cobra aluguel dos jogadores que caem na casa de sua propriedade e vence o jogo aquele que consegue levar todos os outros à falência.

É claro que o jogo proposto por Magie é crítico: aponta o que certas concepções de coletividade e individualidade produzem como efeito. Pode-se dividir a riqueza entre todos e todos ganham ou pode-se competir e se tornar um vencedor derrotando os outros. Tratava-se, afinal, de um jogo crítico à lógica monopolista do capitalismo. O jogo foi um sucesso, chegando a esgotar.

Em 1902, enquanto elaborava o jogo, Maggie o chamava de Game of Life, nome que Milton Bradley deu ao seu jogo criado em 1860, que se tornou também icônico até hoje. O curioso é que quem se tornou conhecido por ter "inventado" Monopoly foi mesmo Charles Darrow, que patenteou o jogo em 1935 dizendo que o havia criado para passar o tempo, pois estava desempregado na depressão de 29. Ele adotou unicamente a regra monopolista e vendeu a patente para Parkers Brothers, que ao saberem mais sobre a verdade do jogo compraram a patente também de Maggie.

É preciso marcar uma questão de ordem em relação ao momento de passagem do Game of Life para o Monopoly. É importante apontar que é no intervalo em que acontece na transição histórica do liberalismo para os primeiros passos do neoliberalismo. Portanto, estes jogos são exemplos representativos dessa passagem em termos subjetivos dos valores, posições e questões que interrogavam os sujeitos.

Monopoly é um sucesso mundial, jogado por mais de um bilhão de pessoas pelo mundo, capturando-as em um ideal monopolista narcísico. Já o outro jogo citado, Jogo da Vida, é parecido, mas com características diferentes. Na versão atual, seu slogan é "Uma disputa emocionante em busca do sucesso!". Nele se espera que o jogador escolha seu caminho entre Negócios ou Universidade, que invista em ações, que escolha o casamento e constitua família. Ele pode avançar na vida ou voltar para trás e, no Dia do Juízo (casa obrigatória!) ele recebe pelos filhos que tem, paga as promissórias que deve e decide se tentará tornar-se Milionário ou Magnata. O risco é ir à falência, mas se conseguir ser Magnata ganha o jogo. Se ninguém virar Magnata, o primeiro Milionário vence. Ou seja, trata-se de uma vida formatada para o dinheiro, o sucesso, o casamento e os filhos.

Tal qual Monopoly, o Jogo da Vida teve grande sucesso (mas não tanto quanto o primeiro). O que nos interessa aqui não é tanto a explicitação dos ideais vigentes nestes dois jogos, eles são claros. O sucesso se divide em duas frentes: ganhar dinheiro e falir o outro, que é tomado, necessariamente, como adversário, se não, inimigo. Em Monopoly as duas coisas são concomitantes, faz-se dinheiro e sucesso ao levar os outros a falência. É cristalino. O que de fato chama a atenção é que, mesmo nas variações de formas do capital, estes jogos persistem, ampliam-se, crescem. Continuam povoando as fantasias das pessoas em um gozo proposto na lógica individualista e de competição. Mas Monopoly nos ensina algo a mais: a forma irônica como a crítica ao capitalismo se transforma no seu próprio motor. Se Maggie propõe o jogo para dar ênfase a coletividade, a ideia é que a lógica monopolista produza um efeito de vergonha, o constrangimento que comentamos no início. Mas, ao contrário, o que sua vendagem conota é que o jogo pode promover júbilo, prazer pela superioridade financeira (mesmo que lúdica) e satisfação narcísica na lógica do winners e losers.

A ironia - agora uma outra - está na desvergonha de Darrow ao se apropriar da ideia de Maggie e, mais ainda, na desvergonha de transformar uma crítica ao capital em lucro. Essa transformação, que se deu pela via da apropriação, não é só um mero gesto condenável do ponto de vista de uma primeira reprovação moral. Ele é um princípio normativo de gozo que furou o dique da vergonha e instituiu uma nova moralidade, a da pessoa de Sucesso! Darrow alcançou o sucesso!

Mas a lógica do sucesso é a do winners and losers. Ou seja, existe um outro pólo sem o qual o sucesso não é possível. Pólo este que funciona como medida de desempenho e de gozo. O jogo Monopoly está situado no mesmo período histórico da virada do fordismo para o pós-fordismo nos desdobramentos do neoliberalismo em seu estado inicial. Sincronia que não poderia ser mais reveladora. O fordismo aparelha e eleva o desempenho industrial por meio das linhas de produção. O tempo da produção é o tempo do desempenho, o tempo de um Outro que institui uma nova moralidade que, uma vez alcançada, não é possível retornar, pois o preço seria o da derrota.

Logo, Darrow pode ser entendido também como um colaborador desse espírito do sucesso. A condição de colaborador aponta para uma ambivalência - winners/losers - que impulsiona a produção industrial, mercadológica e, sobretudo, de gozo. Portanto, é a transformação que culmina na moralidade do sucesso que justifica a apropriação da ideia de Maggie. Afinal, "alguém teria que fazer!".

O espírito colaborador é destaque em obras como Banalização da injustiça social, de Christophe Dejours, Sale Boulot, de Paulo Arantes e Os Carrascos Voluntários de Hitler. O povo alemão e o Holocausto, de Daniel Goldhagen. Todos estes estudos aproximam o colaboracionismo ao modo de trabalho instituído nos campos de concentração nazistas. Não entraremos neles, mas recortaremos uma ideia: a da valorização do mal como um elemento fálico de medida de desempenho e capacidade. Ou seja, existem coisas que poucos são capazes de fazer. E isto, se transforma, justamente, no índice que separa os losers (incapazes de ação) dos winners (os corajosos). Portanto, o mal da exploração do outro vira o modelo de escalada do sucesso que normaliza a violência da exploração dos corpos, dos desejos e dos afetos do outro.

Esta moralidade do sucesso é demarcada pelas posições identificatórias winners e losers. São posições reversíveis, portanto, o imperativo superegoico não cessa de cobrar o gozo mais e mais. O aparato imaginário que fornece as imagens especulares para tal, é onipresente em nossa cultura. Nos referimos as de formatações de corpos eleitos como modelos imagéticos como, por exemplo, o corpo magro, ou o musculoso. Existe ainda o modelo proativo, empreendedor, agressivo, focado e ambicioso na direção do vencer, tão comum na linguagem coorporativa.

Seguindo esta tendência, nota-se a profusão de discursos de auto-ajuda, motivação e obediência, profundamente associados a categorias estético/morais como força de vontade, beleza, superação, bom caráter e forma física e de saúde. Por outro lado, aos que contrariam essas categorias é reservado a culpa, a preguiça, a fraqueza de caráter, a pouca força de vontade, a feiúra, e a falta de saúde. No bojo deste cenário existe um grande mercado de academias, médicos, psicólogos, esteticistas, suplementos alimentares, medicamentos, moda, coachs, pastores e mídia, que acirram ainda mais os imperativos impostos pela via mais imediata de laço e relação com o outro, a saber, a imagem de si.

Portanto, o sucesso do Monopoly denota o discurso do sucesso em que a exploração é ligada a coragem, a oportunidade e a competitividade. No entanto, na mais cristalina inspiração freudiana, os exploradores também são explorados. Gozar do outro como objeto implica também em ser gozado como objeto por um Outro. O que temos ao se revelar este modo de gozo?

 

O ponto da vergonha

Se a faceta Monopolista do jogo tinha por função a vergonha, o tiro saiu pela culatra. Mas porque a vergonha? A ideia de vergonha remete ao afeto produzido quando a imagem de si é desvelada enquanto ficção fantasmática, expondo um para-além desta fantasia, um modo de gozo. Lacan nos fala da vergonha como o furo do qual brotam os significantes mestres, como esse afeto que alude à fantasia fundamental que aparece desvelada frente ao olhar do Outro. Ao se desnudar diante do Outro, o que advém é a vergonha de mostrar-se na sua divisão e em seu gozo.

A vergonha remete a questão da relação do sujeito com o Outro, então trata-se de um efeito do laço social e dos discursos (Prudente, 2016). Lacan chama de vergonha de viver, a vergonha daquilo que não merece a morte (Lacan, 1969-1970/1992. pp.173). De acordo com Prudente (2016): "No bojo desse comentário [de Lacan] está uma crítica à subjetividade do sujeito contemporâneo que aponta para as consequências afetivas que o contexto do capitalismo tardio engendra, a saber, a perda da vergonha e a rejeição do amor." (PRUDENTE, 2016, p.730).

Ainda com Prudente (2016), essa seria a forma servil e impudente do consumo que traz consequências diretas ao laço social, no que Lacan chamou de degenerescência do significante mestre: "Aqui, a degenerescência do significante é segura - segura por ser produzida por um fracasso do significante, ou seja, o ser para a morte, na medida em que ele concerne ao sujeito." (Lacan, 1969-1970/1992, pp. 191). "Não surpreende vocês serem servis, vocês podem dizer que não há mais vergonha' (LACAN, 1969-1970/1992, pp. 212).

Logo, é possível apontar para dois caminhos do servilismo sem vergonha: 1) a mudança no lugar do saber para o Mestre, o que gera uma produção de saber como mercadoria, o que Soler (2011, pp.94) denominou de dizeres impudentes; 2) a rejeição da castração e a rejeição das coisas do amor (LACAN, 1971-1972/s.d., pp. 49)

O que Prudente (2016) aponta, são os efeitos da suspensão da vergonha que tem como consequência, para Lacan, a rejeição da castração - não há nada do que se envergonhar em relação a gozar do outro; e a rejeição das coisas do amor - nada com que se enlaçar no outro como sujeito. Todos estes são consequências da primazia do discurso capitalista. O que Lacan nos diz, e que nos assalta ao jogarmos Monopoly, é que estamos em uma discursividade que pauta o laço social em um além da vergonha, elidindo-a, o que culmina com a própria elisão do laço social, fazendo o Um que se dá na superação dos outros, levando-os à falência.

O ponto chave para se destacar é que: "um discurso é aquilo que determina uma forma de liame social" (Lacan, 1972-1973/1985, pp.110). Ou seja, o laço social se precipita via discursos que organizam, como uma linguagem, o mal-entendido fundamental das relações com os objetos. Esta relação se torna impudente e deletéria ao laço social por estabelecer um curto-circuito entre o S (barrado) e "a".

Soler (2011) fala que este modo de relação produz um individualismo que ela chama de narcinismo (narcisismo + cinismo). É a mistura de Narciso, que só pensa em si mesmo, e o cinismo, que se devota ao próprio gozo. Soler deixa claro que o cinismo a que ela se refere não é o transgressor da escola filosófica dos cínicos, na Grécia antiga, mas ao cinismo contemporâneo que não subverte nada. Este narcinismo diz respeito a sujeitos que "não têm diante deles como projeto senão o sucesso pessoal, a promoção pessoal ou a derrota." (SOLER, 2011, pp.64).

Isso, é o vencer na vida!

Fala-se muito da subjetividade narcisista, individualista, cínica: acrescentamos a ela o esforço em se fazer uma subjetividade desavergonhada.

E como retorna o mal-estar na sociedade desavergonhada?

 

A pílula azul

Em 2018, encontramos a seguinte chamada em um site de divulgação no item Celebridade: "veja alguns famosos que se suicidaram". Lista Kurt Cobain, Marilyn Monroe, Alexander McQueen, Robin Williams, Chris Cornell, Chester Bennington. Todos estes suicídios aconteceram ao longo de anos. Mas na semana de 03 ao 09 de junho deste ano houve dois suicídios de famosos que acenderam um alerta: o midiático chef e crítico gastronômico norte-americano Anthony Bourdain (com 61 anos) e a estilista e jornalista Kate Spade (com 55 anos). Ambas são pessoas de "sucesso", importantes em suas áreas e com reconhecimento social acentuado.

O "sucesso" se transforma em uma visão de mundo organizando, discursivamente, o imaginário do espetáculo e o curto-circuito com o objeto de gozo. Por isso, vale tudo pelo sucesso! Ciência e Religião - como as doutrinas da prosperidade - impulsionam esta cosmovisão, normalizando, medindo, atestando e, sobretudo, fornecendo uma forma retórica para verdades contingenciais. É fácil observar isto em expressões contemporâneas de sucesso como os coachs, instagramers, influencers, empresários midiáticos, nos discursos de empreendedorismo, enfim, nas formas atuais de self-made-men.

Freud aponta para a neurose de fracasso. Não há nada de novo psicanaliticamente falando: o fracasso pode ser mortal. François Vatel, uma celebridade do século 17, foi um maître d'hôtel que se tornou famoso por promover eventos e festas com grande esplendor. No ano de 1671, ele foi imbuído da grandiosa tarefa de promover três dias e três noites de festa para receber toda a corte. Tudo correu bem até o jantar da última noite; para o qual ele havia planejado servir peixes e frutos do mar, mas esses produtos não foram entregues a tempo. Ao ver que a recepção preparada por ele fracassaria, Vatel comete suicídio. O Rei Luís XIV e toda a sua corte ficaram admirados com a sua atitude e sua morte tornou-se uma tragédia nacional.

O gesto de Vatel seria próximo ao de Antígona. Seu ato, na mortificação do esfacelamento do Eu, no momento de intensa angústia, tenta conservar a instância mais radical que suporta sua existência. É como se Vatel pudesse dizer: "não há vida possível para além da reputação que me precede."

Todavia, no caso de celebridades recentes o ideal de sucesso no jogo da vida se faz presente como componente imaginário do Ideal de Eu (ou Ideal do Outro). O que coloca um risco inusitado: o risco de ter atingido o seu Ideal. Há quem possa pensar em uma neurose de sucesso. O que se apresenta aqui é o processo de queda da alienação que está presentificada pela pílula azul e o momento de desmontagem do Ideal, chamado de destituição subjetiva, que revela o primum vivere - a vida simplória e sem honra. Nesse momento, encontra-se não com o júbilo, mas com o deserto do Real.

Vergonha e honra são termos facilmente moralizáveis, como vimos na lógica dos winners e losers. No entanto, o que está em jogo aqui é um ato que coloca o sujeito diante da vida e da morte. Radicalidade que se tornou elemento incontornável para se pensar política atualmente, a exemplo de Achile Mbembe com a necropolítica (MBEMBE, 2018).

Por um lado, no contexto da degenerescência do significante mestre mobilizado nos ideais de sucesso contemporâneos, vergonha e honra são transformados a partir desse novo desempenho e ritmo colocados pelo senso moral que normaliza o sucesso como medida. A honra como elemento que sustenta o valor da vida no laço social, que barra a impudência e restitui o valor da vida diante do olhar do Outro, agora, é a honra viril de vencer derrotando o loser. Logo, a desvergonha da vida de sucesso depende da produção de insucesso do outro, da produção do outro como outro-resto, (a)bjeto.

A desvergonha é correlata ao que Lacan chama de vergonha de viver. Esta é a vergonha do sujeito inadequado ao laço social do sucesso, fora de uma possibilidade de transmissão justamente pela degenerescência do significante mestre e pela sua redução a uma condição de mercadoria (a). Um sujeito sem um significante do nome do pai com força de simbolização, de interdição, aspecto que, para Gérard Pommier (2010), é essencial na vergonha. Este é o aspecto da vergonha no sujeito-resto.

A redução a um (a)bjeto, a um primum vivere, indica a direção que o olhar lança sobre o desnudamento dos seres como objetos no discurso do capitalista, com o olhar de um Outro que promove a vergonha devido aos efeitos produzidos pela experiência de gozo singular em cada um. É neste sentido que a vergonha pode ser também um sentimento radical de estranhamento, ou seja, de ter ido longe na dissolução entre gozo e laço como suprimidos e excluídos no olhar do Outro pela condição de coisa, de resto.

O encontro com o olhar do Outro pode levar a experiência da vergonha até as últimas consequências. O estranhamento e o horror causado pela vergonha opera uma dessubjetivação súbita, uma destituição subjetiva selvagem. Ela incide no real do corpo, no significante que resvala na morte, o significante-mestre ou o ser para a morte, como coloca Lacan (Lacan, 1969-1970/1992, pp.191). O olhar que é visto no campo do Outro reduz o sujeito à vergonha de ser objeto e gozar como tal. Isto se evidencia quando, no encontro com o ideal, o sujeito desaba da condição de sujeito de sucesso para a de um resto, cujo gozo encontra o eco do imperativo do gozo e da ferocidade do superego. Esta é uma característica da subjetividade neoliberal: o fascínio da imagem e do corpo.

Esta não está mais ligada à consistência do Outro, cujo desejo é um enigma, no simbólico. A consequência disto é uma miséria humana expressa na forma como esse discurso afeta o desejo de viver. Uma miséria que engendra uma vergonha de viver que, por sua vez, é efeito de um retorno da vergonha no discurso. O significante-mestre sofre a degenerescência no Discurso do capitalista que modifica o estatuto da vergonha na medida em que modifica o estatuto do próprio mestre e do laço.

O discurso do capitalista permite uma escamoteação cínica da vida com desonra através do desaparecimento da antiga forma de vergonha. Ou seja, há uma suficiência desavergonhada da subjetividade do sujeito neoliberal, que se assenta em uma outra vergonha. A liberdade apolítica de um homem submetido a um imperativo de gozo sem referências e sem história. Temas tão caros ao discurso político atual em várias formas como: do incômodo humorístico com o politicamente correto que reclama de piadas que ridicularizam corpos, sexualidade e cor da pele; o negacionismo da história; a liberdade sobre o outro; as estéticas arquitetônicas pré-moldadas e etc.

O mal-estar do sujeito-resto volta como angústia de nada Ser, alimentada nas tentativas desesperadas de satisfação objetal, que não justificam, senão, a menor valorização de sua existência. Diante disso, encontramos um problema narcísico que estabelece um modo de rivalidade e denega uma certa ordem que legisla sobre o laço entre o sujeito e o semelhante. Trata-se de desmentir o lugar de rivalidade, onde o sujeito encontra no outro o paradigma de todas as formas da semelhança. Do efeito jubilatório do encontro com o espelho, este confronto com o semelhante transforma-se "no escoadouro da mais íntima agressividade." (LACAN, 1960/1998, pp.823.)

Sendo assim, não se trata mais do lugar do pai do qual esta rivalidade tenta inicialmente tomar o lugar. Já não se busca mais reconhecimento na rivalidade com o outro, mas se busca o próprio desejo como único possível. Neste sentido não há rivalidade, há uma reivindicação narcísica que oblitera o outro no laço social e busca uma tomada de poder: sozinho e único, supostamente satisfeito consigo mesmo e livre de qualquer perda, enfim, o Sucesso!

Por isso, o sujeito não se identifica ao semelhante, e sim é tomado numa lógica de inveja, ciúmes e concorrência que pressupõe o outro como passível de ser destruído, passando da agressividade à violência. O que se produz a partir disso é um sujeito condenado à solidão e à insegurança. O imediatismo da vida esbarra na concorrência onde todos estão condenados a serem repostos como peças, esvaziando o sentido de uma possível sucessão em um dever permanente pelo sucesso. Dardot & Laval (2016), comentam que:

Seguindo o quadro clínico do neossujeito, vemos que a empresa em si mesmo tem dois rostos: o rosto triunfante do sucesso sem pudor e o rosto deprimido do fracasso diante dos processos incontroláveis e das técnicas de normalização. Oscilando entre depressão e perversão, o neossujeito é condenado a ser duplo: mestre em desempenhos admiráveis e objeto descartável (DARDOT & LAVAL, 2016, p.374).

Com Lacan, podemos concluir que a vida ficcional da Matrix é uma espécie de equivalente homogêneo dos objetos que ele consome, a. Logo, na subjetividade desavergonhada, o que advém é a tristeza como efeito do encontro com o vazio que como abismo precipita o sujeito ao ato. Do terror pela experiência de destituição subjetiva selvagem, dissemina-se a tristeza pelo caráter dolorido de sua iminência. O pudor, virtude pública por excelência, apesar de fazer muralha, é uma dupla face que esconde o ponto de vergonha.

Neste momento, algo da pílula azul deixa de operar e o que se revela é o troumatism (Lacan, 1977/1978), o buraco que o simbólico faz no real, ou como desdobramento do trauma inscrito na entrada na linguagem. Este nada estrutural, que não tem como resposta a vergonha, pois não é circunscrito nas possibilidades do laço que o discurso coloca. O que se revela como fato é que o suicídio parece estar se tornando o retorno do mal-estar elidido na atualidade, fenômeno preocupante. O que tomar: a pílula vermelha (da vergonha) ou azul (da tristeza)?

 

Conclusão

O filme Matrix e o jogo Monopoly são dois modelos possíveis para se pensar um modelo de aparelhamento de gozo, o que Lacan chama de discurso a partir dos seminários XVI e XVII. Desse ponto de vista, o próprio processo de constituição psíquica e estruturação são modos desse aparelhamento acontecer.

Nas sequências do filme Matrix, faz-se alusão ao fato de haver um erro na Matrix, uma falha "insanável", que exige a ativação de um processo de correção constante. Esta falha é a própria resistência. Este grupo poucas pessoas que, ao retornar na realidade criada pela Matrix, assumem, a partir dessa falsa vida que se repete, a incumbência de sabotá-la. Por isso a existência de alguém como Neo. A resistência mantém a repetição da operação de sanar a falha na Matrix, por meio dos agentes. É uma espécie de tentativa de apagamento do furo, da falha, mas que concentra os esforços do sistema em torno daquele evento.

Neo, cujo sentido é o novo, assume uma função sutura entre a realidade da Matrix e o Real da Matrix, na medida em que ele é o elemento (desconhecido) mas que organiza os esforços da resistência no Real, e os esforços dos agentes na ficção do mundo. Ou seja, Neo é o significante que representa a resistência para um outro significante, o de um saber e a possibilidade de um futuro. Mas também, Neo é o significante que representa as defesas da Matrix para outro significante, o da falha, o do sucesso, o da estabilidade /instabilidade. É em torno do ato de Neo, um ato de não-saber, um ato jamais cometido, que se coloca justamente aquilo que a psicanálise propõe como cura: um processo de transformação sem resultado prévio, enfrentado sem conhecimento a priori, onde o ato de escolha já transforma a própria escolha.

Portanto, o furo da vergonha ou isso que, como falha, retorna retomando uma experiencia de queda das identificações, pode colocar uma escolha ética para esse sujeito que goza com esse discurso.

Nesse sentido, que a lógica da Matrix é monopolista. Apenas um ganha, a Matrix. Enquanto a lógica da resistência é anti-monopolista: todos ganham compartilhando um destino e as escolhas. Há estas duas perspectivas bem marcadas tanto em Matrix quando na história do Monopoly. Mas, se em Matrix e no Monopoly a escolha efetivada por um ato é apresentada por uma ficção (do filme ou da brincadeira), a escolha no campo dos discursos no laço social enfrenta a radicalidade de sustentar uma ética diante de um modo de gozo possível nesse laço.

Na vergonha, o sujeito experimenta estar desprotegido por suas identificações egóicas e reduzido à nudez do ser falante, quando tropeçam durante a busca de vantagens no discurso do mestre pervertido. É no momento do tropeço que a hiância irrompe na evidência da passagem do signo ao significante, onde surge a diferença.

Isto coloca uma "questão de existência", que, segundo Lacan, não vem tanto pela angústia, suscitada no nível do eu, mas como uma questão articulada: "quem sou eu nisso?" (Lacan, 1955-56/1998, pp.555), cuja resposta ética dada por Neo, vem com o ato que o nega, mas também relança-o para a posição que permite a ele se situar no entre mundos da realidade da Matrix e o seu Real.

 

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