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Revista Sul-Americana de Psicologia

versión On-line ISSN 2318-650X

Rev. Sul-Am. Psicol. vol.1 no.1 Americana jul. 2013

 

 

Relato de um toxicômano - não existe resposta simples face à adictologia

 

Report of a drug addict - there are no simple answer face adictologie

 

Informe de un drogadicto - no hay respuesta simple para enfrentar adictologia

 

Renata da Rocha Campos Franco1

Instituto Católico de Toulouse

 

 


RESUMO

O presente estudo de caso visou compreender os motivos que levaram uma pessoa de 50 anos de idade a procurar um tratamento de desintoxicação para a heroína na França. A metodologia empregada para investigar a problemática da adictologia foi qualitativa, descritiva e apresentada por meio de entrevistas livres. Houve quatro encontros de duas horas, totalizando oito horas de entrevista e as questões abordadas contemplaram três dimensões. A primeira foi a própria pessoa com os seus recursos, vulnerabilidades e patologias (historia de vida, traumas, problemas psíquicos e infecções adquiridas pela heroína como HIV). A segunda dimensão foi o produto e os efeitos ligados a consumação, modalidades de uso e o caráter ilícito. E por ultimo, o ambiente em que a pessoa vive, seu meio social e familiar.

Palavras-chave: toxicomania; drogadição; dependência; heroína.


ABSTRACT

This case study aimed to understand the reasons that drove a 50 years old person to seek treatment for heroin detoxification in France. The methodology used to investigate the doubtful of addictology was qualitative, descriptive and presented by means of free interviews. There were four meetings of two hours, totalizing eight hours of interview and the issues covered three dimensions. The first was the own person with its resources, vulnerabilities and pathologies (life history, traumas, psychological problems and infections acquired by using heroin such as HIV). The second dimension was the product and the effects related to consummation, means of use and the illicit character. And lastly, the environment in which the person lives, its social and family environment.

Keywords: drug addiction, dependence, heroin.


RESUMEN

Este estudio de caso tuvo como objetivo comprender las razones de la búsqueda de tratamiento de desintoxicación de la heroína en una persona de 50 años en Francia. La metodología utilizada para investigar el problema de la adicción fue cualitativa, descriptiva y realizada a través de entrevistas libre. Se realizaron cuatro reuniones de dos horas, un total de ocho horas de entrevista y los temas contemplan tres dimensiones: La primera fue la persona con sus propios recursos, vulnerabilidades y patologías (historia de vida, traumas, problemas psicológicos y las infecciones adquiridas por la heroína como el VIH). La segunda dimensión es el producto y los efectos relacionados con el consumo, condiciones de uso y el carácter ilícito. Por último, el entorno en el que vive la persona, su entorno social y familiar.

Palabras-clave: adicción a las drogas, la dependencia, la heroína.


 

Introdução

 

A França desde a década de 70 é reconhecida como um país que investe na busca de um melhor apoio e tratamento para o usuário de droga (Olievenstein, 1983). A presença do governo é significativa e evolui juntamente com as novas necessidades do adicto, o que reforça a missão da luta contra a droga e a toxicomania. A rede intersetorial da França é ativa, funcional, complementar e envolve uma articulação constante e complexa no progresso, na criação e na aplicação de políticas públicas. As ações médico-sociais incluem assistências emergenciais, preventivas e de redução de danos como os consultórios de rua, plantão telefônico, centros de distribuição de kits para uso higiênico da droga, salas para o consumo da droga que contam com a supervisão de profissionais da saúde e centros terapêuticos especializados para atender públicos distintos (Féraud, 2013).

Os centros terapêuticos, do tipo casa de internação (Post-Cure), geralmente são localizados no centro da cidade e tem capacidade para receber em média 10 pessoas por vez. As casas são adaptadas para atender um público em específico e esta “setorização” visa encontrar tratamentos e estratégias mais rápidas, dirigidas e eficazes. As casas destinadas a adolescentes buscam adaptar o ritmo do dia as necessidades e motivações do publico jovem. As vivências são mais dinâmicas, incluindo atividades esportivas, de informática, atividades pedagógicas individualizadas para recuperar o nível de escolarização interrompido ou perdido, atividades artísticas e a elaboração de um projeto profissional. Do ponto de vista clínico o centro conta com uma equipe pluridisciplinar que auxilia o jovem na aprendizagem das relações sociais, favorecendo a readaptação de sua vida física, psíquica, sanitária. Os jovens passam por atendimentos semanais em grupo e individuais com psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais focados em ações terapêuticas que procuram dinamizar o potencial individual e reativar as competências que foram abaladas pelo consumo das drogas.

Em relação as casas terapêuticas destinadas à mulheres grávidas e/ou jovens mães, as atividades são voltadas para lidar com as questões do universo mãe-bebê, acionando na rotina do dia-a-dia consultas ginecológicas/obstétricas, psicológicas, judiciais, administrativas e sociais. A missão das casas destinadas as mulheres é assegurar o bem estar da mãe e do bebê, ajuda-las a fazer uma reinserção social de forma autônoma nos diferentes domínios (formação, emprego, lazer, e saúde) e também criar momentos de reflexões em torno da adicção (aprender a controlar do desejo diante do produto, esclarecer informações sobre o universo da adicção, orientar e fazer possíveis encaminhamentos à serviços especializados, etc)

Apesar da “setorização” praticada na França, todos os estabelecimentos do tipo casa de internação apresentam regras de contrato semelhantes. A pessoa que reside na casa, o residente, deve ter um engajamento com a equipe, com o cronograma de trabalho proposto e com a organização e funcionamento da casa. Todas as questões que envolvem o consumo (desejo pelo produto, medo da recaída, angustias, etc) devem ser verbalizados e trabalhados com a equipe. É proibido o consumo de drogas e álcool, qualquer tipo de tráfico, atos delituosos, violência física sobre pessoas ou objetos da casa. O período da estadia pode variar entre seis meses a um ano, dependendo do comportamento e do envolvimento de cada residente com o trabalho terapêutico.

A equipe é composta por educadores, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e médicos que se revezam para estarem na casa todos os dias. Os educadores sociais são responsáveis pela organização e funcionamento da casa no geral. Eles organizam as entrevistas de entrada com as pessoas que procuram ajuda, explicando a proposta do tratamento, informando sobre as regras de funcionamento coletivo e organizando tabelas de atividades para a manutenção diária do funcionamento da casa (limpeza, comida, supermercado, etc). Os educadores também pensam nas atividades que serão propostas e trabalhadas coletivamente com os residentes ao longo da semana.

O elo entre a equipe é bastante integrado e a proposta do tratamento de internação é fundamentado em três pilares de ação. O primeiro é a desintoxicação do produto consumido “sevrage”, no caso da heroína a desintoxicação conta com a ajuda de medicamentos utilizados no tratamento da adicção de opióides como a Metadona e a Buprenorfina. Esses remédios, prescritos por médicos, suavizam a crise abstinência deixando-a menos violenta e, em médio prazo o adicto reduz lentamente as doses até zero miligrama.

O segundo pilar é a reflexão psicológica sobre a personalidade que cada pessoa internada deve exercitar durante a sua estadia. A pessoa adicta só estará livre da consumação se ela fortalecer a sua estrutura de personalidade, compreendendo e aprendendo a necessidade de mudar a sua postura frente a vida como um todo. As vezes, esse processo pode levar anos da vida de uma pessoa, assim o compromisso com o tempo da cura não é uma prioridade para os centros terapêuticos. As vezes, uma mesma pessoa, ao longo do seu percurso de consumo abusivo de um determinado produto, faz mais de três estadias em um mesmo centro terapêutico.

O terceiro e último pilar está atrelado a reinserção social, o que inclui um projeto personalizado de pós-tratamento. Por exemplo, algumas pessoas têm como projeto voltar a estudar ou a trabalhar, outras querem reativar o contato perdido com a família, outras querem praticar uma vida mais saudável, sem a droga, com novos hábitos como o esporte e uma boa alimentação, outras ainda querem iniciar ou retomar o tratamento da HIV e outras doenças que foram adquiridas no contexto da droga. Cada pessoa tem um projeto e os educadores em parceria com os psicólogos vão, em primeiro lugar, verificar a viabilidade e motivação da pessoa para executar o projeto e depois juntos, educadores e residentes, vão iniciar um roteiro com os planos de ações para que cada residente consiga desenvolver o projeto de forma exitosa. A questão do projeto de saída é uma primeira tentativa para a pessoa assumir novas responsabilidades e dar um novo rumo em sua vida. Segundo Martins (2003), o conceito de tratamento exitoso é relativo e as recaídas fazem parte do processo de recuperação e não são, necessariamente, sinônimos de fracasso. Assim, o dependente deve ser tratado como um doente crônico e que precisa de cuidados continuados à longo prazo.

Para especialistas da França (Pedinielli, Rouan & Bertagne, 2000; Taïeb, 2011) A relação entre a pessoa, o consumo abusivo de um produto e a dependência deve ser compreendida diante do contexto de vida e época em que a consumação acontece. Diferentes eventos (externos e internos) podem influenciar na conduta da pessoa e diferentes fases da vida podem marcar um percurso mais ou menos patológico com a droga (Olievenstein, 1983).

Seguindo esta linha de pensamento, as politicas públicas de saúde da França associada com o apoio complementar do setor privado e das universidades realizam ações enérgicas para lidar com todos os tipos de usuários de droga. No que diz respeito as ações universitárias, diversos estudos científicos demonstram avanços sobre o conhecimento dos aspectos psicofarmacológicos, psicológicos e epidemiológicos da drogadição na atualidade (Attale, 2002; Barreteau, 2004, Caiata Zufferey, 2006; Taïeb, 2006; Reyre, 2008; Franco, 2011; Franco 2012). Em relação aos fatores psicológicos que levam uma pessoa a iniciar e ou a interromper o consumo abusivo de um determinado produto Franco (2011) verificou que tanto na França quanto no Brasil os motivos levaram vinte homens entre trinta e cinquenta anos a experimentar ou parar um determinado produto, apesar de serem subjetivos, apresentam vários pontos em comum nos dois países.

Entre os participantes dez eram franceses e faziam uso da metadona, medicamento auxiliar para a desintoxicação física da heroína. E dez outros participantes eram brasileiros e faziam uso de medicamentos psiquiátricos para estabilizar o humor. O estudo visou compreender as semelhanças e as diferenças entre as politicas públicas sanitárias, a qualidade do tratamento oferecida no Brasil e na França e o perfil contemporâneo do usuário de drogas nos dois países.

Ao que se refere as diferenças encontradas nos dois países, Franco (2011) diz que a maior diferença entre a França e o Brasil está atrelada as politicas públicas sanitárias e médico-sociais. Para a França o início do tratamento de desintoxicação passa pelas as ações de redução de risco e prevenção. Os centros de redução de risco « Le Centre d’Accueil et d’Accompagnement à la Réduction des Risques pour Usagers de Drogues (CAARUD) » têm como missão manter o usuário o mais saudável possível. Os assistentes sociais, educadores, enfermeiros e chefes de serviços são capacitados para orientar de forma individual, personalizada, confidencial e gratuita o usuário de drogas sobre diferentes demandas. Os centros oferecem ao usuário o acesso a uma higiene pessoal, isto é, os centros são equipados com máquina de lavar roupa, chuveiros, cozinha, banheiro, etc...Os usuários podem lavar suas roupas, podem tomar banho, comer, tomar café, usar o telefone a internet e o que mais for necessário. A equipe que trabalha nesses centros oferece aos usuários informações práticas sobre locais ondem eles podem fazer exames laboratoriais gratuitos para prevenir ou controlar os riscos de doenças infeciosas como a AIDS e a hepatite C. A assistente social do centro ajuda os usuários a acessarem seus direitos e os ajuda a refazer documentos que eventualmente foram perdidos. Além de tudo isso os centros também colocam a disposição um material esterilizado para o consumo higiênico e seguro da droga. Segundo Franco (2011) no Brasil as ações de redução de risco são precárias e mínimas. As ações de politicas públicas sanitárias são preconceituosas e desatualizadas.

Em relação aos pontos comuns entre a França e o Brasil, Franco (2011) ressalta que o perfil do dependente vem mudando desde a década de 90 e os elementos que contribuem para o novo perfil estão ligados a poli consumação de substâncias psicoativas como a maconha, álcool, tabaco, cocaína, heroína, crack, etc. Na França o puro dependente de heroína “l’héroïnomane” é praticamente inexistente, hoje em dia o consumo da heroína também está associado ao consumo de medicamentos opióides destinados ao tratamento da dependência da heroína. Ligada a poli consumação, Franco (2011) também relata a existência de uma hierarquia entre os produtos. O álcool, o cigarro e a maconha são considerados produtos menos agressivos quando comparados com o crack, cocaína e heroína. Entre os dependentes de heroína, a maconha, o cigarro e a bebida alcoólica são produtos utilizados como alternativa de consumo quando não há heroína. Entre os dependentes de álcool o cigarro é considerado uma alternativa de substituição, pois ele é capaz de trazer o prazer oral sem mudar o estado mental da pessoa.

Outro elemento que também contextualiza o cenário atual da droga está ligado aos diferentes tipos de uso da droga: simples, abusivo e dependente. A pessoa que usa a droga ocasionalmente, que tem controle e que escolhe um momento propício para o uso é classificada como usuária simples. Já aquele que usa todos os dias, mas ainda se mantém produtivo do ponto de vista profissional é reconhecido pelos próprios usuários de droga como alguém que ainda tem controle sobre sua vida e que consegue manter uma rotina de trabalho, vida social e responsabilidades familiares. No caso do dependente a pessoa não consegue ter e produzir nada, nem trabalho, nem vida social, nem nenhum tipo de responsabilidade. O único objetivo de vida para o usuário dependente é o consumo do produto e nesses casos os próprios usuários são estigmatizados de toxicômanos ou adictos.

Em relação aos fatores que motivaram os participantes a iniciarem seu percurso com o álcool para os brasileiros ou a heroína para os franceses foram, na maioria das vezes, justificados pelo contexto emocional em que eles se encontravam no momento do consumo. Para dez participantes, seis brasileiros e quatro franceses, a morte de algum de um amigo, parente e até mesmo de um animal de estimação foram evocados como o principal motivo para suavizarem o sofrimento. Dois outros participantes franceses falaram de uma decepção amorosa. E os outros oito participantes, quatro brasileiros e quatro franceses, elegeram outros motivos como fracasso profissional, a curiosidade e o entretenimento.

Em relação aos fatores decisivos que levaram os participantes a procurarem ajuda, destacaram-se os problemas financeiros para manter o vício, atitudes de delinquência ou risco de virarem delinquentes, prostituição, complicações somáticas, em particular a infecção da AIDS para os franceses usuários de heroína, desejo de mudar depois de terem chegado “no fundo do poço”, pressão e rejeição dos familiares e amigos, nascimento de uma criança, medo da morte, fracasso no trabalho, sofrimento psíquico e físico e a sensação de tempo perdido.

Partindo dos fatores que impulsionam uma pessoa adicta a procurar ajuda, considera-se importante compreender a representação que o paciente tem dele mesmo e de seu percurso de vida. Segundo Taïeb (2011) a expressão e a percepção do sofrimento associado com as representações estigmatizadas levam a pessoa a tomar consciência de seu problema e ajuda na construção de um espaço terapêutico mais eficaz. Nesta mesma proposta, o presente trabalho apresenta um estudo de caso de uma pessoa de 50 anos de idade dependente de heroína que relatou seu percurso e percepção sobre a dependência.

 

Metodologia

Participante

O participante é francês, do sexo masculino, tem 50 anos de idade, é solteiro e sem filhos, tem um nível de escolaridade mediano, apresenta uma formação profissional diversificada na área da construção civil, mora no norte da França, seus pais são falecidos e tem duas irmãs de aproximadamente 40 anos. O participante não tem contato com as irmãs a mais de cinco anos e relata ter tomado essa decisão para acabar com o sofrimento e a decepção que sentem por serem irmãs de um toxicômano. Diz que pretende reativar o contato somente quando estiver curado e livre do vício.

Ele é dependente de heroína e Buprenorfina há 15 anos, mas nos últimos 12 meses ele tem usado Subutex (Buprenorfina) de forma distorcida do indicado para o tratamento da dependência de opióides. A substituição da heroína pelo Subutex aconteceu por falta de recursos financeiros para comprar heroína. O remédio é gratuito, bastando apenas conseguir receitas médicas nominativas e atualizadas. Para conseguir as receitas o participante relata passar dias indo de consultório em consultório para convencer um médico a prescrever uma receita para o seu problema de adicção. Segundo o participante, as vezes é preciso fazer cinco visitas num mesmo dia para conseguir a tal receita.

O participante contagiou o vírus da HIV quando tinha 39 anos em uma festa quando injetava heroína. Diz que o fato de ser soropositivo ajudou a agravar sua dependência, pois sabe que a doença é mortal. Diz que a contaminação pelo HIV ou hepatite C é uma consequência no percurso de um viciado, assim como a morte por overdose.

O participante decidiu procurar ajuda, pois as crises de abstinência eram insuportáveis. Ele tem a expectativa de que o tratamento assistido possa ajuda-lo na libertação de seu vício. Ele sabe que milagre não acontece e que o tratamento é longo, mas ele não aquenta mais a sua vida e precisa mudar. Ele deseja pensar em outra coisa que não seja a heroína e espera tirar a palavra droga e drogado se sua vida.

O participante foi entrevistado pela primeira vez depois de um mês de internação e tratamento psicológico e medicamentoso a base da Metadona. Num intervalo de duas semanas foram realizados quatro encontros de duas horas, totalizando oito horas de entrevista. As questões abordadas contemplaram três dimensões. A primeira foi a própria pessoa com os seus recursos, vulnerabilidades e patologias (historia de vida, traumas, problemas psíquicos e infecção do vírus HIV). A segunda dimensão foi o uso da heroína e os efeitos ligados a sua consumação, modalidades de uso e o caráter ilícito. E por ultimo, o ambiente em que a pessoa vive, seu meio social e familiar.

Procedimento

A metodologia empregada para investigar a problemática da adictologia foi qualitativa, descritiva e apresentada por meio de entrevista livre. Todos os procedimentos éticos foram respeitados e o participante assinou um termo de consentimento que explicava os objetivos da pesquisa.

 

Resultados e Discussão

A percepção do paciente sobre ele mesmo, seus recursos, vulnerabilidades e patologias (primeira dimensão abordada na entrevista) apresenta um sentido realista de seu sofrimento e das consequências causadas pela adicção. Seus maiores ressentimentos dizem respeito a rejeição social, solidão, sintomas da abstinência, imagem corporal, infecção do vírus HIV e fracasso no âmbito familiar e profissional.

“No início eu não queria que ninguém soubesse do meu problema, no trabalho nunca ninguém soube (...) nunca coloquei no meu currículo que sou um viciado (...). Tentei esconder o máximo que pude da sociedade, dos amigos, da família, mas com os anos é impossível de esconder, a alteração da imagem, dos dentes, as marcas no braço (...). Quando a sociedade vê um magro sem dentes, todo mundo já sabe que é um toxicômano e ai todo mundo se afasta (...)”.

“Eu tudo perdi, trabalho, namorada, amigos. Quando você diz que perdeu? Sua namorada te deixou? Ela me deixou, enfim, ela faleceu de overdose, como outros amigos também. Hoje eu estou sozinho, não tenho nada e ninguém (...). Com 39 anos eu fiquei doente, peguei AIDS, e ai eu entrei de cabeça na heroína. As doses começaram a ficar insuficientes, meu corpo ficou tolerante a heroína e passei a usar cada vez mais (...) tive problemas financeiros para sustentar meu vício, entrei para o crime e tive problemas com a polícia (...). Minha historia não é nada bonita, perdi muitas coisas (...). Posso dizer que estou numa ruina moral e física”.

O participante vincula a sua solidão a uma mudança de personalidade ocasionada pelo uso abusivo da droga. Ele diz que ficou mais irritado, confuso, impulsivo e paranoico. “A droga me modificou, eu mudei, mudei pra pior. Fiquei malvado, irritado e agressivo. Parece que fui possuído por um mostro, um animal selvagem. A droga me deixou egoísta e confuso. Meus amigos se afastaram e minhas irmãs não me reconhecem mais. Meus pais nos educaram bem, eu aprendi a ser educado e gentil, mas depois da droga tudo mudou”.

O participante diz de perdas concretas, amigos, família, trabalho e saúde. Mas, outras perdas mais abstratas como a liberdade, dignidade, controle, confiança e tempo de vida também são relatadas. “Eu não vi muita coisa passar na minha vida, eu já tenho cinquenta anos e nada construí. Na minha idade eu deveria ter algum sucesso profissional, o que não é o caso. Eu ainda não me casei, não tenho filhos. Já estou na metade de minha vida e posso dizer que joguei mais de vinte anos fora, fiquei aprisionado no mundo do vício”.

O tempo parece ser uma perda significativa e que está associada a sentimentos de desesperança com relação ao futuro e decepção em relação ao passado. Diz ser velho e que tudo foi perdido para a doença da adicção. A percepção do tempo é modificada e deformada ao longo de seu discurso. A idade de cinquenta anos é uma medida de que o tempo passou rápido. O sentimento de fracasso profissional e pessoal reforça a ideia do tempo perdido. “Foi só agora com cinquenta anos que eu tive consciência que o tempo passou rápido (...). Quando você usa heroína o tempo é efêmero, o futuro não interessa, você vive o dia após o dia, você não calcula a longo prazo, apenas o amanhã e o depois de amanhã. Você vive o momento, o tempo presente”. A nostalgia do tempo perdido reverbera em seu corpo na forma de sentimentos desagradáveis de ansiedade, vivências de sofrimento físico e psicológico como dores de cabeça, choro e pânico.

Embora o participante não tenha associado claramente a doença da AIDS a seu sentimento de desesperança, observa-se que o fato dele ser soro positivo traz a representação da doença mortal. “Com droga ou sem droga, de todo jeito eu vou morrer mesmo (...). Quando eu penso que estou condenado pela AIDS uso heroína sem culpa ou arrependimento (...). De certa forma sinto um alívio quando penso que posso decidir morrer de overdose”. A noção do tempo, mais uma vez, é introduzida no seu discurso. A imagem associada a morte pela overdose parece ser menos assustadora que a morte pela AIDS. Escolher o momento de sua morte também suaviza a ideia de uma morte sofrida e traz finalmente a sensação do controle sobre o tempo. “Antes eu acreditava que a minha morte seria com muito sofrimento, mas depois, pensando em uma possível overdose, a ideia do sofrimento foi atenuada”. O fato de ser soro positivo para e le é sinônimo de morte. “Mesmo entre os toxicômanos, quando você sabe que alguém é soro positivo, você o associa logo de imediato com a morte (...). Quando alguma pessoa vê as minhas placas na pele, ninguém se aproxima”.

O sentimento de vergonha, arrependimento e o olhar dos outros são elementos que interferem na sua expectativa em relação ao futuro. “Ainda hoje em dia eu tenho vergonha e sinto constrangimento quando encontro algum conhecido na rua (...) mesmo estando aqui, num centro de tratamento, sei que a opinião das pessoas não irá mudar (...) somos catalogados (...) é como se eu tivesse uma etiqueta colada nas costas: atenção, ele é um viciado”. A identidade atribuída pela sociedade interfere na identidade pessoal do participante. “Eu me afastei das minhas irmãs porque para os vizinhos elas eram as irmãs do drogado. Por causa das minhas burradas, por causa da droga, as minhas irmãs também ficaram mal vistas (....) afinal de contas, eu era o drogado do bairro”. A vergonha incitou o participante a se afastar de sua família e a consumir ainda mais a heroína. “Depois que você perde o respeito das pessoas que te amam, você não pensa em mais nada, só em se divertir”.

O participante relata que sempre gostou de se divertir com a poli consumação da maconha, bebidas alcoólicas, cigarro e cocaína. “Desde moleque comecei a beber e a fumar maconha. A bebida era fácil de achar e menos cara, depois a convivialidade dos bares sempre me agradou e foi só depois com vinte e cinco anos que eu passei para a cocaína e outras drogas mais eficazes (...). Eu que fui atrás de tudo isso, não sou vitima do destino, ninguém me obrigou a nada, mas depois, quando você menos espera você vira escravo das drogas”.

Em relação ao produto e os efeitos ligados a consumação (segunda dimensão abordada na entrevista). O participante relata que começou a ter consciência de sua doença, a dependência, depois que passou a procurar a droga não apenas para ter prazer, mas sim para aliviar o sofrimento. As crises de abstinência eram tão violentas, que mesmo sabendo das consequências devastadoras do consumo abusivo, o impulso para procurar e usar a droga era tudo que importava. “A primeira crise aconteceu numa noite, em que sem ter usado heroína, acordei molhado e tremendo como um doente (...) assustado, pensei o que poderia ser e quando falei com meus amigos, que também usavam heroína, fui informado que isso era a abstinência. Eu perguntei o que era a abstinência e eles me disseram que quando não tem mais heroína no sangue, o corpo te pede. E é isso te obriga a consumir (...) é infernal, é um verdadeiro ciclo vicioso”.

Para o participante a diferença entre o consumo pelo prazer e o consumo pela dependência está atrelado a quantidade e frequência do uso do produto. “A dependência acontece quando a consumação deixa de ser uma escolha e passa a ser uma necessidade”. O corpo impregnado da heroína adquire uma tolerância ao produto que exige o consumo continuo e progressivo. Assim, a tolerância ao produto associado com as crises de abstinência são os primeiros sinais que alertam a pessoa sobre a gravidade do vício.

A percepção da perda do controle sobre a consumação é o sinal de que a liberdade foi perdida. Depois da primeira crise de abstinência a vida cotidiana se organiza em torno da busca pela droga, consumação do produto e recuperação dos efeitos colaterais do pós uso. “Para mim a dependência passou a ser um modo de vida, um trabalho. Acordava de manhã pensando em como faria para conseguir a minha dose, e quando chegava de noite, pensava na dose do dia seguinte (...) à partir do momento que você abre os olhos, você sabe que você precisa da droga para poder ter uma atividade não somente física quanto psicológica”.

A necessidade de consumir cada vez mais para lutar contra a tolerância e evitar os sintomas da abstinência reflete na relação financeira da pessoa dependente. A quantidade de dinheiro utilizada para saciar a consumação fica problemática. “Em quinze dias eu acabei com todas as minhas economias do banco e mesmo assim meu desejo ainda era grande (...) a vontade é furiosa, você é capaz de tudo (...) foi nessa época que eu comecei a usar o Subutex (Buprenorfina), sem dinheiro a única coisa que me restava era se servir dos remédios que não custavam nada”.

A falta de dinheiro é um fator que atiça o dependente a cometer atos delituosos. O ambiente, o meio social e familiar (terceira dimensão abordada na entrevista) é caracterizado pela realização de atividades que ligam a pessoa à droga. Segundo o participante, a vida do viciado é condicionada a comportamentos delinquentes. “Para os homens o tráfico e/ou o roubo faz parte da trajetória, já para as mulheres, a prostituição é natural”.

De simples consumidor o participante passou a traficar em troca de heroína e cocaína. “Para mim o tráfico foi uma solução, ou melhor, foi um bom negócio, pois a quantidade de heroína que eu precisava injetar para me acalmar era impagável (...). Preferi correr o risco da prisão ao invés de roubar velhinhos na rua ou da própria família como fazem outros toxicômanos”. O participante foi condenado e preso por dois anos e ele traz em seu discurso um desejo de recomeçar sua vida. “Eu já paguei pra sociedade as besteiras que fiz (...) ter passado no tribunal, na frente do juiz, tudo isso me faz sentir vergonha (...) agora eu quero correr atrás do tempo perdido, recuperar a minha vida (...) Eu não quero começar do zero, pois como já disse não sou vitima do meu destino, mas quero construir alguma coisa de bom”.

Quando o participante fala que não é vitima de seu destino ele se coloca no papel de ator de sua vida e também de sua morte, já que a morte segundo ele é um risco evolutivo e possível. “Eu desafio a morte todos os dias, eu já sofri um acidente cardíaco depois de ter consumido seis gramas de com a cocaína (...) meu corpo está tão tolerante a heroína que é só eu usar uma dose além do limite que pode acontecer a overdose (...). Ninguém quer morrer, mas eu sei que é uma realidade (...) como você já sabe, tive amigos e namorada que morreram de overdose (...). Por isso, sei que se eu se não fizer nada para mudar também posso morrer”.

A ideia da cura e do tratamento terapêutico ainda não está muito clara para o participante. Ele tem uma modesta expectativa. Pensa em recuperar um pouco da sua saúde e dar início a algumas ações admirativas. “Eu quero dar um break, fazer uma pausa. Preciso refazer meus documentos, tentar arrumar um trabalho e depois veremos (...) para conseguir um emprego preciso mudar de cara, pois todo mundo reconhece um toxicômano, as marcas no braço, a magreza, os dentes”.

Para ele a dependência é uma doença crônica e o risco de recaídas é permanente. “Eu penso em me curar, mas essa é uma promessa difícil de fazer (...). Quando você tem a experiência (...) com cinquenta anos eu já vi muita gente tentar parar e não conseguir”.

O reconhecimento da importância de seguir um tratamento assistido é consciente. “Sozinho é impossível sair, preciso do médico para prescrever o remédio da abstinência, preciso da equipe para controlar meu estado psicológico e para organizar a minha vida (...). Acho que o tratamento pode me ajudar a ter um futuro melhor, mas o tempo que a droga me roubou ninguém pode devolver (...). Eu demorei a iniciar um tratamento terapêutico, mas agora eu acho que entendi que não da para ser um drogado por toda vida, em algum momento é preciso parar, ou pelo menos, tentar”.

A construção narrativa descrita nesse estudo de caso demostrou que a tomada de consciência é um passo importante para a mudança da personalidade e para um envolvimento ativo no trabalho terapêutico. Assim, estudos que promovam a reflexão e expressão subjetiva de diversos eventos que marcaram o percurso da dependência podem abrir novos caminhos para responder e reformular questões sobre a problemática da adição.

Conclusão

As informações descritas no presente trabalho corroboram com as pesquisas realizadas na França (Pedinielli, Rouan & Bertagne, 2000; Taïeb, 2011) que evidenciam que a tomada de consciência sobre a problemática da dependência é um processo longo e subjetivo. Cada usuário precisa encontrar suas próprias motivações para impulsionar o desejo de mudar e de libertar-se do vício. No caso do participante desse estudo, o desejo de se curar foi associado com a sensação de não ter domínio sobre o impulso do consumo e também com os dolorosos sintomas da abstinência. No entanto, o confrontamento com o tempo perdido também foi um elemento presente e que tende a estimular o participante a mudar de vida e/ou a suportar o tratamento terapêutico.

De acordo com as informações relatadas observou-se que, durante a fase da dependência, a percepção do tempo cronológico (tempo externo) foi deformada pela experiência vivida com a droga. O tempo interno do participante se paralisou na repetição continuada de uma mesma necessidade. Todos os dias se pareciam um único dia, o qual infinitamente tinha a mesma missão: buscar, consumir e se recuperar dos efeitos causados pela droga.

A noção do tempo fugas, tanto invocada ao longo das oito horas de entrevista, pode ser reflexo do tratamento terapêutico iniciado um mês antes da primeira entrevista. Já que, na casa de internação em ele se encontrava, uma das propostas terapêuticas é estimular a pessoa a pensar sobre o seu percurso de vida. Para a equipe que trabalha na casa de internação, fazer a pessoa dependente se sentir ator de suas escolhas favorece o processo de tomada de consciência sobre a sua existência e ajuda no envolvimento ativo diante de ações sociais, médicas, culturais e psicológicas. Assim, as informações descritas no presente estudo evidenciaram que o participante se encontra em um estágio de tomada de consciência favorável para construir um espaço terapêutico consistente.

 

Referências

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Submissão: 03/03/2013
Última revisão: 16/04/2013
Aceite final: 07/05/2013

 

 

 

Sobre a autora

Renata da Rocha Campos Franco Psicóloga e doutora em Avaliação Psicológica pela Universidade São Francisco-Itatiba. É também pesquisadora do Laboratório de Avaliação Psicológica de Saúde Mental (LAPSaM) da universidade São Francisco e atualmente é professora do Instituto Católico de Toulouse na França.


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Dra. Renata da Rocha Campos Franco
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