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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades vol.1  Rio de Janeiro  2013

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Controle e medicalização da infância

 

Control y medicalización de la infancia

   

 

Maria Aparecida Affonso MoysésI, Cecília Azevedo Lima CollaresII

IFaculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas

 

 


Palavras-chave: medicalização, infância, dificuldades do aprender, patologização.
Palabras-clave: medicalización, infancia, dificultades del aprender, patologización.

 

 

Controlar é preciso

Ao longo da história do mundo ocidental, as pessoas que não se submetem aos padrões aceitos como comportamentos normais, apresentando comportamentos distintos ou questionando tais padrões, sempre incomodaram a maioria, docilmente submetida, sendo alvo de perseguições.  Por que alguém que exibe comportamentos “acima de qualquer suspeita” é  afetado por um outro alguém diferente, a ponto de precisar retirá-lo de seu campo de visão, e mesmo eliminá-lo? Talvez porque ver uma pessoa que não se enquadra nas normas escancare que é possível ser diferente, isto é, que os padrões não são naturais, não foram e não serão sempre os mesmos.

O comportamento humano não é biologicamente determinado, mas tramado no tempo e nos espaços geográficos e sociais –, histórico enfim. O ser humano é essencialmente um ser cultural; entretecido em um substrato biológico, sim, porém datado e situado.  A naturalização dos padrões de comportamento, levando à crença generalizada de que se deve agir segundo determinados moldes, é um dos elementos fundantes da submissão, do não questionamento, da docilização de corpos e mentes, tão cara e necessária à manutenção da ordem vigente, em todos os tempos.

Está pronto o terreno para afastar e eliminar os que perturbam a ordem. Só faltam os critérios, os rótulos e, mais importante, o grupo a ser investido de poder para julgar e definir punições. Até o século XVI, o poder advinha da religião; autoridades eclesiásticas torturavam e condenavam à morte ateus, hereges, bruxas... Com o advento da ciência moderna, esta passa a ocupar os espaços discursivos do saber e do poder, tornando-se a autoridade investida de poder para exercer as mesmas ações, agora renomeadas: identificar, avaliar, tratar, isolar.

A medicina será o campo científico a ocupar, privilegiadamente, esse espaço, passando mais e mais a legislar sobre a normalidade e a anormalidade, a definir o que é saúde e o que é doença, o que é saudável e o que não é, o que é bom e o que é ruim para a vida. E a definição do comportamento desviante, ou anormal, será feita em oposição ao modelo de homem saudável, ou homem médio, estatisticamente definido. A normalidade estatística, definida por frequências e um raciocínio probabilístico, não por acaso coincidente com a norma socialmente estabelecida, é transformada em critério de saúde e doença.  Através dessa atuação normatizadora da vida, a medicina assume, na nova ordem social que surge, um antigo papel. O controle social dos questionamentos.

E os critérios anteriores começam a ser substituídos por outros.

De início, loucos e criminosos... Trancafiados, isolados, para seu próprio bem e para o bem dos normais. Castrados para evitar que se reproduzam e se propaguem pela Terra. Mortos, por condenação formal ou por “acidente”, nos interrogatórios de avaliação, nas prisões, nas enfermarias...

O desenvolvimento científico e tecnológico, ao mesmo tempo em que possibilita seu próprio avanço, exige complexificação e sofisticação. O campo médico se especializa. A psiquiatria e a neurologia tomarão por seu objeto de saber/poder o comportamento. A psicologia se descola da psiquiatria, porém sem romper com sua filiação paradigmática. Surgem os especialistas, agora com poder ainda maior para definir os limites da normalidade.

Surgem novos critérios, novos nomes, novas formas de avaliação, novas formas de punição. A vigilância se sofistica.

Cérebros disfuncionais são a causa da violência. Cérebros disléxicos e baixo QI justificam o fracasso na escola. Alterações genéticas explicam os medos de viver em meio à violência. Frustrações na infância provocam instabilidade emocional.

A normatização da vida tem por corolário a transformação dos problemas da vida em doenças, em distúrbios. O que escapa às normas, o que não vai bem, o que não funciona como deveria... tudo é transformado em doença, em problema individual.

Afasta-se a vida, para sobre ela legislar, muitas vezes destruindo-a violenta e irreversivelmente.

E os profissionais, com sua formação acrítica e a-histórica, exercem, a maioria sem se dar conta, seu papel de vigilantes da ordem. Crentes nas promessas de neutralidade e objetividade da ciência moderna, não sabem lidar com a vida, quando se defrontam com ela. Sem disponibilidade para olhar o outro, protegem-se ancorando-se em instrumentos padronizados de avaliação.

Sem preocupação com as consequências de seu laudo para a vida do outro, o profissional nem mesmo se permite perceber que a classificação não decorre do diagnóstico, e este de uma avaliação adequada, como lhe ensinaram. Os rótulos se urdem já nas primeiras impressões, no olhar preconceituoso; rótulos que classificam e embasam diagnósticos que os confirmam...

 

Medicalizar para controlar

Nas sociedades ocidentais, é crescente a translocação para o campo médico de problemas inerentes à vida, com a transformação de questões coletivas, de ordem social e política, em questões individuais, biológicas. Tratar questões sociais como se biológicas iguala o mundo da vida social ao mundo da natureza. Isentam-se de responsabilidades todas as instâncias de poder, em cujas entranhas são gerados e perpetuados tais problemas.

No mundo da natureza, os processos e fenômenos obedecem a leis naturais. A medicalização naturaliza a vida, todos os processos e relações socialmente constituídos e, em decorrência, desconstrói direitos humanos, uma construção histórica do mundo da vida (Moysés e Collares, 2007).

Não se deve esquecer que a medicina constituiu seu estatuto de ciência moderna, na transição entre os séculos XVIII e XIX, atribuindo-se a competência para legislar e normatizar o que seja saúde ou doença – o que significa definir o “homem modelo” – e, honrando suas raízes positivistas, passa a reger todos os aspectos da vida dos seres humanos a partir de um olhar biologizante, que reduz pessoas a corpos. Ao ser a primeira ciência ligada aos seres humanos a se constituir como ciência moderna, a medicina constitui-se, por sua vez, em modelo epistemológico para as ciências do homem.

A biologização, embasada em concepção determinista, em que todos os aspectos da vida são determinados pelas estruturas biológicas que não interagem com o ambiente, retira do cenário os processos e fenômenos característicos da vida em sociedade, como a historicidade, a cultura, a organização social com suas desigualdades de inserção e de acesso, valores, afetos... Essa redução da vida, em toda sua complexidade e diversidade, a apenas um de seus aspectos – células e órgãos, tomados de maneira estática e determinista – é uma característica fundamental do positivismo.

Uma vez reduzida a vida a seu substrato biológico, de modo que todo o futuro esteja irremediável e irreversivelmente determinado desde o início, prepara-se o terreno para a medicalização, ideário em que questões sociais são apresentadas como decorrentes de problemas de origem e solução no campo médico. Deve ser ressaltado que quando se fala em reducionismo e medicalização, está-se referindo à concepção de medicina enraizada no paradigma positivista.

A expressão medicalização foi difundida por alguns autores, com destaque para Ivan Illich em 1982, em seu livro A expropiação da saúde: Nêmesis da medicina (Nemesis medica), ao alertar que a ampliação e extensão do poder médico minavam as possibilidades de as pessoas lidarem com os sofrimentos e perdas decorrentes da própria vida e com a morte, transformando as dores da existência em doenças. Segundo o autor, a vida estava sendo medicalizada pelo sistema médico que pretendia ter autoridade sobre pessoas que ainda não estavam doentes, sobre aquelas de quem não se poderia racionalmente esperar a cura e sobre as que tinham problemas para os quais os remédios prescritos por médicos têm resultados muito semelhantes aos oferecidos por familiares mais velhos e experientes (Illich, 1982).

Posteriormente, esse processo foi bastante discutido por Michel Foucault (1977, 1980), autor fundamental quando se discute medicalização. Para ele, um dos elementos de sua sustentação é a dupla promessa da medicina, ao se afirmar capaz de curar e prevenir as doenças, a ponto de poder construir um futuro em que sua própria existência será dispensável, pois terá eliminado todas as doenças. Embora sua impossibilidade de realizar tais promessas esteja se evidenciando mais e mais, a medicina as mantêm em seu discurso.

No Brasil, uma das primeiras autoras a discutir a medicalização foi Cecília Donnangelo, socióloga, professora da Faculdade de Medicina da USP, que se dedicou a pesquisar as relações entre saúde e sociedade. Em sua tese de doutorado, bastante atual decorridos mais de 30 anos, analisa as consequências desse projeto de medicalização da sociedade, iniciado há quase dois séculos; aponta as formas pelas quais ele se concretiza nos tempos atuais, destacando a extensão da prática médica como elemento primordial.

No que se designa aqui por extensão da prática médica há que destacar pelo menos dois sentidos que devem merecer atenção: em primeiro lugar, a ampliação quantitativa dos serviços e a incorporação crescente das populações ao cuidado médico e, como segundo aspecto, a extensão do campo da normatividade da medicina por referência às representações ou concepções de saúde e dos meios para se obtê-la, bem como às condições gerais de vida. (Donnangelo, 1976:33)

Ainda no Brasil, merece destaque a socióloga Madel Luz, que aprofundou o entendimento do papel político que passa a ser desempenhado pelas instituições médicas:

(...) a medicalização generalizada como substitutivo do que é retirado da maioria pelas condições sociais da produção: um mínimo de controle sobre as decisões de política econômica (salários, ‘produtividade’, planejamento da economia, etc..) conquistado historicamente a duras penas; um mínimo de controle sobre as políticas de saúde (planos, programas, organização de serviços e a própria concepção de saúde); um mínimo de controle sobre a produção e a reprodução (o ensino) dos conhecimentos em medicina. Ao povo restam os ‘milagres’ médicos e os milagreiros populares. De fato, se economicamente e politicamente ele foi o grande excluído do ‘milagre’ só lhe restou a procura de outros santos. As Instituições Médicas têm sido, assim, um ‘santo remédio’ para os males da saúde do povo. (Luz, 1986: 19)

Até hoje, a medicina mantém em seu discurso promessas de salvação e felicidade, presentes desde o início de sua constituição moderna, embora sua impossibilidade de realizá-las esteja se evidenciando mais e mais.

Porém, a medicalização da sociedade somente poderá se efetivar a partir de uma teoria de saúde e doença que viabilize e instrumentalize a intervenção médica no campo da vida social, que teima e resiste a normas e controles, inclusive médicos, desafiando seus pressupostos e seu discurso articulado. A medicina do século XX será caracterizada como a medicina do poder e da perplexidade; de um lado, o desenvolvimento científico e tecnológico lhe atribui maior poder de controle e intervenção sobre a vida e a morte; de outro, vê-se constantemente confrontada por novos problemas e obstáculos, que desafiam e desmentem suas promessas de salvação e de um futuro sem medicina (Lain Entralgo, 1982).

Mais recentemente, a crítica à medicalização tem sido objeto de pesquisa de vários autores, destacando-se três – Peter Conrad, Peter Breggin e Thomaz Szasz – por sua incansável luta contra a medicalização da vida e o uso crescente de drogas psicotrópicas, com relevantes pesquisas e reflexões teóricas sobre o processo de medicalização em geral e em particular do campo educacional e comportamental.

Especificamente em relação à medicalização da vida de crianças e adolescentes, ocorre a articulação com a medicalização da educação na invenção das doenças do não-aprender e com a medicalização do comportamento. A medicina afirma que os graves – e crônicos – problemas do sistema educacional seriam decorrentes de doenças que ela, medicina, seria capaz de resolver; cria, assim, a demanda por seus serviços, ampliando a medicalização.

A medicalização do campo educacional assumiu, e ainda assume, diversas faces no passado recente, alicerçando preconceitos racistas sobre a inferioridade dos negros e do povo brasileiro, porque mestiço; posteriormente, a inferioridade intelectual da classe trabalhadora foi pretensamente explicada pelo estereótipo do Jeca Tatu, produzido pela união de desnutrição, verminose, anemia... Preconceitos, nada mais que preconceitos travestidos de ciência (Moysés e Lima, 1982; Collares e Moysés, 1996; Moysés e Collares, 1997)!

A partir dos anos 1980, ocorre a progressiva ocupação desse espaço pelas pretensas disfunções neurológicas, a tal ponto que hoje a quase totalidade dos discursos medicalizantes referem-se à dislexia, transtorno por déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtorno do espectro autista (TEA), transtorno de oposição desafiante (TOD) (Moysés e Collares, 2010; 2011; 2013).

A aprendizagem e os modos de ser e agir – campos de grande complexidade e diversidade – têm sido alvos preferenciais da medicalização. Em consequência, crianças e adolescentes são os mais atingidos.

Apenas para uma aproximação da dimensão dessa epidemia de diagnósticos de transtornos jamais comprovados ou questionados pela própria medicina1, nos Estados Unidos da América, o número de pessoas com diagnóstico de TDAH subiu de 500.000 em 1985 para 7.000.000 em 1999 (Breggin, 1999);  em 2007, 6 milhões de pessoas eram medicadas com Ritalina®, sendo 4.750.000 crianças, das quais 3,8 milhões meninos2.

Apesar da ausência de estatísticas confiáveis sobre o número de pessoas que recebem esse diagnóstico, podemos afirmar que o Brasil é um dos países em que esse processo é mais intenso, pelo fato de ser o segundo consumidor mundial de metilfenidato, substância psicoativa comercializada com os nomes de Ritalina® (Novartis) e Concerta® (Jansen). Aqui, as vendas de metilfenidato crescem em ritmo assombroso: 71.000 caixas em 2000, 739.000 em 2004; 1.147.000 em 2008; em 2010, as vendas ultrapassaram 2 milhões de caixas3.

O mecanismo de ação do metilfenidato e das anfetaminas é exatamente o mesmo da cocaína: poderosos psicoestimulantes. Com estrutura química semelhante, aumentam os níveis de dopamina no cérebro, neurotransmissor responsável pela sensação de prazer. Como consequência desse aumento artificial, o cérebro torna-se dessensibilizado a situações comuns da vida que provocam prazer, como alimentos, emoções, interações sociais, afetos, o que leva à busca contínua do prazer artificial provocado pela droga, culminando na drogadição.

Além disso, especula-se se aumentos desnecessários da dopamina durante a infância poderiam alterar o desenvolvimento do cérebro. Como a medicação costuma ser retirada em torno dos 18 anos, esses jovens podem se tornar adictos à cocaína na vida adulta, como modo de substituir a droga legal que tomaram por anos4. As reações adversas do MPH são inúmeras e bastante graves, ao contrário do que costumam afirmar os que defendem seu uso. Afetam todos os aparelhos e sistemas do corpo humano, com destaque para sistema nervoso central (psicose, alucinações, agitação, suicídio, convulsão, insônia, sonolência etc); sistema cardiovascular (arritmia, hipertensão, taquicardia, parada cardíaca etc) e sistema endócrino-metabólico (alteração dos hormônios controlados pela neurohipófise, como hormônio do crescimento e hormônios sexuais). Ainda em relação ao sistema nervoso central, merece destaque o efeito “zumbi-like”, em que a pessoa fica contida em si mesma, obediente, “tranquila”. Trata-se de reação adversa, indicando a retirada imediata da droga e não efeito terapêutico; mas é para isto que é administrada...

Analisemos a questão por um outro ângulo, deixando de lado a ausência de comprovação de se tratar de doença neuropsiquiátrica, a fragilidade do diagnóstico, as reações adversas das drogas psicoativas. E se essas drogas funcionam mesmo, ajudando a maioria das pessoas que recebem esse diagnóstico, independente de qual seja o problema real e quais suas causas?

Frequentemente, somos confrontadas com essa questão. Dizem-nos: “está bem, os remédios não são seguros, mas nenhuma droga é isenta de efeitos colaterais; todas as pesquisas, porém, provam que funcionam, que ajudam crianças e jovens a se concentrarem e a aprenderem”.

O que há de verdade nas afirmações categóricas de profissionais quando dizem que os efeitos benéficos são comprovados por milhares de pesquisas (geralmente, fala-se em cinco mil, dez mil estudos) e os efeitos negativos são raros e passageiros?

Em outubro de 2011, a Agency for Healthcare Research and Quality (AHRQ), do Department of Health and Human Services do governo dos Estados Unidos da América, publicou a mais extensa metanálise (pesquisa sobre as pesquisas publicadas5) acerca dos resultados dos diferentes tratamentos de crianças e adultos com diagnóstico de TDAH. Esta investigação foi realizada em um dos mais renomados centros de pesquisas de metanálise no mundo, o McMaster University Evidence-based Practice Center (Charach et ali, 2011).

A investigação levantou tudo que foi publicado sobre efetividade de tratamento para TDAH no período de 1980 a maio de 20106; cada paper foi analisado por dois revisores independentes, a partir de critérios predefinidos bastante claros; discordâncias eram resolvidas por um terceiro revisor.

Pois bem, das sempre citadas cinco mil, dez mil pesquisas, apenas 12 – repetimos, APENAS 12 PESQUISAS puderam ser analisadas. Todas as demais foram descartadas por ausência de cientificidade!!

Essas 12 pesquisas mostraram que em pré-escolares há forte evidência de efeitos benéficos da orientação familiar e ausência de efeitos adversos, em contraste com fraca evidência de efeitos benéficos do metilfenidato, aliada a efeitos adversos; orientação mais metilfenidato mostraram fraca evidência, porém maior que somente a droga. Nas demais idades, encontrou-se fraca evidência de efeitos benéficos com metilfenidato ou atomoxetina.

Além disso, os dados sobre rendimento escolar são inconclusivos; também não há evidências de que o tratamento medicamentoso melhore o prognóstico a longo prazo.

O único efeito comprovado dos psicoestimulantes foi a “melhora” isolada do comportamento, em meninos em idade escolar.  Mas é esse o objetivo? Que parem de ser “descomportados” e se enquadrem em normas rígidas, que negam a vida?

Então, as drogas psicoativas não funcionam!

A doença não tem comprovação, o diagnóstico não se sustenta, o remédio não melhora!

E por que essa onda só aumenta? Ignorando inclusive pesquisas com resultados pouco efetivos feitas pelos próprios divulgadores dos transtornos, pelos laboratórios farmacêuticos, por pesquisadores ligados ao NIMH (National Institute of Mental Health) e ao FDA (Food and Drug Administration).

Ainda não existem evidências científicas que sustentem uma alteração neurobiológica nem a segurança de tratamento com psicoestimulante. Ao contrário. Entretanto, a pressão é tão grande que se chega ao absurdo de precisar provar que não existe o que nunca ninguém provou que existe. Em ciência, algo absolutamente surrealista.

Leo (2002) destaca que mesmo a American Psychiatric Press Textbook of Psychiatry, que sustenta a ideia de que esta seja uma doença neurológica, reconhece que “com critérios diagnósticos não claros, é difícil definir ou mesmo conceitualizar um conceito unitário sobre TDAH ou sua etiologia (...) permanece considerável incerteza sobre a validade de TDAH como uma entidade diagnóstica” (p. 52).

A partir dessa posição de uma das entidades mais ardorosas na defesa da doença TDAH, é ainda mais assustadora a decisão do NIMH (National Institute of Mental Health), que  iniciou  estudo em que crianças pré-escolares, de três anos de idade, receberão medicamentos para tratar uma suposta TDAH.

Essa espiral lança uma teia sobre todos nós. Apropria-se de profissionais de diferentes áreas. Apropriados, passam a constituir e a serem constituídos pela própria teia, pronta a aprisionar qualquer um de quem outro alguém afirme não se enquadrar nas normas esperadas...

O atendimento preconizado para as pessoas que caem nessa teia será sempre multidisciplinar. Afinal, é preciso manter todos os profissionais da teia satisfeitos, sem disputas entre si. Por trás da equipe, menos visível, a estrutura que mantém a teia: a indústria farmacêutica, interessada em ampliar o número de pessoas aprisionadas e apropriadas.

Moynihan e Cassels, jornalistas que têm se dedicado a desvelar as estratégias da indústria de criar e vender doenças para aumentar seus lucros, ajudam a entender seus modos de agir e a amplificação da medicalização em ritmo atordoante por interesses financeiros:

As estratégias de marketing das maiores empresas farmacêuticas almejam agora, e de maneira agressiva, as pessoas saudáveis. Os altos e baixos da vida diária tornaram-se problemas mentais. Queixas totalmente comuns são transformadas em síndromes de pânico. Pessoas normais são, cada vez mais, pessoas transformadas em doentes. Em meio a campanhas de promoção, a indústria farmacêutica, que movimenta cerca de 500 bilhões de dólares por ano, explora os nossos mais profundos medos da morte, da decadência física e da doença, mudando assim literalmente o que significa ser humano. (...)
Sob a liderança de marqueteiros da indústria farmacêutica, médicos especialistas e gurus sentam-se em volta de uma mesa para ‘criar novas ideias sobre doenças e estados de saúde’. (Moynihan e Cassels, 2007: 151)

Segundo esses autores, pode parecer estranho que indústrias farmacêuticas busquem criar novas doenças, mas isto é moeda corrente no meio, traduzida em bilhões de dólares anualmente. A estratégia, que consta em relatório do Business Insight, consiste em mudar o modo de as pessoas lidarem com seus problemas reais, até então vistos como simples indisposições, convencendo-as de que são dignos de  intervenção médica.

 

De volta a um futuro sem futuro

Cabe destacar que, historicamente, é a partir de insatisfações e questionamentos que se constituem possibilidades de mudança nas formas de ordenação social e de superação de preconceitos e desigualdades. A medicalização tem assim cumprido o papel de controlar e submeter pessoas, abafando questionamentos e desconfortos; cumpre, inclusive, o papel ainda mais perverso de ocultar violências físicas e psicológicas, transformando essas pessoas em “portadoras de distúrbios de comportamento e de aprendizagem”.

Aprendizagem e comportamento; exatamente os campos de maior diversidade e complexidade, constituintes da – e constituídos pela – subjetividade e singularidade; campos em que a avaliação é mais complexa e mais questionada.

Aprendizagem e comportamento; crianças e adolescentes. Estes são os alvos preferenciais dos processos que buscam padronizar, normatizar, homogeneizar, controlar a vida. Processos que patologizam a vida.

E nesses processos de medicalização, controle e judicialização da vida, um instrumento é fundamental: os laudos. Laudos médicos, psicológicos, fonoaudiológicos, pedagógicos etc etc.  Instrumento fundamental porque realiza a função de julgamento, condenação e sentença. Fundamental porque desvela o protagonismo dos profissionais, atuando de modo acrítico e quase em modo automático, em função de vários fatores, entre os quais devemos destacar a formação tecnicizada, regida pelo e para o mercado.

Vivemos em uma sociedade fundada em uma vida cada vez mais produtivista e consumista, cada vez mais constituída não por cidadãos, mas por consumidores, preferencialmente bioconsumidores, homogeneizados (Iriart e Iglesias-Rios, 2013).

Cabe, por fim, nos perguntarmos sobre que futuro estamos construindo, ou talvez, destruindo. Transformar em doenças mentais sonhos, utopias, devaneios, questionamentos, discordâncias; abortá-los com substâncias psicoativas pode resultar em impossibilidades de futuros diferentes. Podemos estar legando a nossos filhos e netos, como bem disse Victor Guerra7, o genocídio do futuro.


Referências

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1 Foge ao escopo deste texto aprofundar essa controvérsia. Remetemos os leitores para alguns textos de nossa autoria (Moysés e Collares, 1992; 2010; 2011; 2013).

2 Dados do Genetic Science Learning Center, University of Utah, disponíveis em: http://learn.genetics.utah.edu/content/addiction/issues/ritalin.html

3 Dados gentilmente fornecidos pelo Instituto de Defesa dos Usuários de Medicamentos (Idum), em comunicação pessoal, à época em que este texto foi redigido. Atualmente, os dados estão disponíveis em www.idum.org.br. O Idum extrai esses dados do IMS-PMB – Pharmaceutical Market – publicação de instituto suíço que levanta e atualiza todos os dados do mercado farmacêutico brasileiro.

4 Disponível em http://learn.genetics.utah.edu/content/addiction/issues/ritalin.html, acesso em 28/02/2009.

5 As pesquisas de metanálise constituem a base da Medicina Baseada em Evidências e têm por objetivo a comparação sistematizada de resultados de pesquisa sobre a eficácia de diferentes tratamentos, de modo a possibilitar uma prática médica embasada em dados científicos comprovados, em evidências científicas. A primeira fase da pesquisa, após o levantamento de todas as publicações sobre o tema, é identificar as pesquisas que preenchem critérios de rigor metodológico, de cientificidade, descartando as demais. 

6 O levantamento partiu das bases de dados mais relevantes em medicina, psicologia e educação: MEDLINE, Cochrane CENTRAL, EMBASE, PsycInfo, ERIC (Education Resources Information Center).

7 Psicanalista uruguaio, em conferencia em Buenos Aires, em 2011.

I Professora Titular de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Aprendizagem, Desenvolvimentos e Direitos, no CIPED (Centro de Investigações em Pediatria) da UNICAMP. Autora do livro "A institucionalização invisível: ciranças que não aprendem na escola". É membro fundador do Fórum de Estudos sobre Medicalização de Crianças e Adolescentes, que tem articulados discussões, eventos e ações sobre medicalização da vidsa e da educação.
II Livre-docente em Psicologia Educacional. Docente da Faculdade de Educação da UNICAMP, no Departamento de Psicologia Educacional, atualmente aposentada. Publicou inúmeros artigos em periódicos científicos nas áreas de Educação e Psicologia. É autora do livro "Preconceitos no Cotidiano Escolar. Ensino e Medicalização".
É membro fundador do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, que tem aticulado reflexões críticas e ações que buscam enfrentar e superar os processos medicalizantes da vida de crianças e adolescentes. 

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