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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades vol.1  Rio de Janeiro  2013

 

INFORMAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

 

Escritos sobre a infância e reflexões sobre o futuro 

“O futuro da infância e outros escritos", de Lucia Rabello de Castro.

 

Mariangela da Silva Monteiro

Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

 

 

 

Uma coletânea de textos sobre a temática da infância é o que nos apresenta Lucia Rabello de Castro em seu livro O futuro da infância e outros escritos. Nele estão presentes reflexões sobre o futuro, não apenas das crianças, mas de todos que comungam com elas os significados e sentidos da vida. Composto por textos escritos em momentos diferentes, o livro nos fala sobre a produção da infância contemporânea a partir de agenciamentos diversos: a escola, a política, a cidade, a justiça, a literatura.

Nos escritos, entrelaçando presente e passado, o futuro é trazido numa outra perspectiva de entendimento sobre a infância, fazendo abrir mão de formas já estabelecidas que enquadram a produção de conhecimentos sobre a criança em estruturas prévias. A autora reuniu textos sobre infância, juventude e adolescência, produzidos através de pesquisas, docência e extensão, bem como atuação clínica, desde a década de 1970. A infância como objeto de estudos e pesquisas significou  um mergulho nas insuspeitas e profundas ligações de afeto e memória que o tema incita.

Durante anos, tendo como base a psicologia, a autora impôs-se o desafio de entender a infância num mundo em transformações aligeiradas, que configuram  nossos modos de vida, atravessados por formas diversas de comunicação, de vivências do tempo acelerado do espaço real e virtual, e por experiências de convivência, que, por vezes, causam estranhamento à nossa condição humana. Nesse contexto, necessário se faz problematizar as concepções estruturais que têm orientado o modo de pensar e lidar com a infância.

Juntos, os textos tecem considerações sobre a vida na contemporaneidade, discutindo os impasses em torno do lugar das crianças na sociedade. Para a autora, nada parece mais antigo do que a noção ainda prevalente que equaciona as crianças a seres que devem ser “preenchidos” com a razão e o conhecimento de outrem.

Uma análise crítica é feita sobre a cronologia criada pelas ciências humanas,  concebendo o curso da vida e, nele, a infância, possibilitando que a idade sirva para a elaboração de um conjunto de normas de comportamentos, definindo o lugar social do indivíduo, ao mesmo tempo em que ajusta suas expectativas individuais aos sistemas etários de direitos e deveres. Assim, normalizaram-se os percursos biográficos em fases e estágios de vida humana, delimitaram-se as possibilidades que cada indivíduo tinha de desejar ser. Por definição, a sociedade moderna concebeu a criança como uma fase preparatória para a vida produtiva, como um ser ainda não pronto, não socializado, imaturo para participar da vida em sociedade. Teorias sobre o desenvolvimento destacaram a idade, o estrato etário, nos processos de evolução e preparação. Hoje, somos levados a acreditar que certos saberes sobre crianças, jovens e adolescentes permanecem devedores das determinações históricas e culturais.

Diante do exposto, torna-se necessário desconstruir a diferença entre crianças e adultos, tal como foi produzida pelo pensamento evolucionista, desenvolvimentista, e construir outros significados de diferenciação presentes nas dinâmicas sociais, intergeracionais e intrageracionais atuais. A proposta trazida é, portanto, investigar como os atores – crianças e adultos – emergem e se produzem no bojo das redes sociais e históricas.

Entremeando as dimensões sociológica, filosófica e política, fica evidenciado  que as diferenças entre adultos e crianças, bem como entre as crianças, servem para questionar a ordem vigente, levam a discussões sobre, por exemplo, quem é cidadão, quem pode participar, que virtudes a cidadania requer em seus dispositivos de produção de exclusão, de marginalização, de silenciamento. Isso nos permite questionar os lugares que se tornaram naturalizados e essencializados para a infância.

Os textos fazem pensar que as crianças não têm sido reconhecidas como atores sociais. Mesmo quando agem, elas tendem à invisibilidade, menorizadas sem participar da construção e da inteligibilidade do mundo. No entanto, é possível recuperar a polêmica da ação criadora e a capacidade de inventar e reinventar o mundo trazida pelas crianças. Compreende-se que os sentidos da vida para as crianças e os adultos são estabelecidos pela convivência, num mundo compartilhado.

Nesta perspectiva, os acontecimentos vividos em cada cultura podem problematizar a linearidade temporal da história, indicando que nela valem as repetições, os retornos e os desvios que se sobrepõem ao que aparentemente flui. Há, então, a possibilidade de outras visões frente ao constrangimento da linearidade. Reflexões, a partir da filosofia, são indicadas para elucidar outra temporalidade, auxiliando na ruptura com a cronologia e com a quantificação da realidade, proposta intensificada em cada texto.

A criança é alguém que tem a virtude de se lançar no mundo – agir, mesmo quando não conhece a realidade. Frente aos assombros das iniciações, ela tende a inventar e nem sempre suas ações correspondem ao que dela se espera ou a maneiras pré-estabelecidas de caminhar e fazer – a infância é o lugar da (nov)idade. Esta inserção no mundo não seria também significativa para o agir do adulto frente aos assombros que a vida provoca? Essa e outras questões saltam em nós no diálogo com os artigos apresentados.

O primeiro capítulo desenvolve o tema enunciado no título do livro, O futuro da infância: os impasses nas relações intergeracionais e das crianças com seus pares. Com referenciais históricos, são abordadas situações vividas pelas crianças durante o período do Brasil Colônia e no Império, mostrando que a infância cumpriu um papel importante na emergência do Brasil Moderno ao se colocar como principal protagonista do novo laço, que ungiu homens e mulheres adultos das novas elites do país ao Estado Nação. Atrelando o passado ao presente e refletindo sobre o futuro, a autora se vale da filmografia para articular produções, dando um tom visual e emocional ao estudo. Com os filmes descritos, nos posicionamos frente a complexidade das relações inter e intrageracionais. É assinalada a importância do adulto na vida da criança e das crianças entre si, destacando o valor da experiência como troca para a compreensão do mundo. É possível pensar as diferentes infâncias, como também o era no período escravocrata. Pensa-se na infância como não universalizada, pois, dependendo do modo como vivem, crianças podem não parecer crianças. Tal situação nos conduz a pensar o futuro da infância. Trata-se de um texto contagiante.

No texto seguinte, As crianças e a política: o que a infância tem a ver com a democracia?, a proposta é explorar possíveis conexões entre o campo da política e o dos estudos da infância. Nele se discute como as ideias convencionais relativas à comunidade política moderna carregam uma relação intrínseca com teorias da subjetividade. Contrapondo-se à perspectiva teórica desenvolvimentista, é analisado como algumas concepções mais generosas em relação à infância têm podido rever a posição marginal dada às crianças na sociedade. São apresentados dados empíricos de um recente projeto de pesquisa sobre a participação de crianças na escola, com o objetivo de discutir como as crianças lidam com as diferentes situações de modo a conseguir falar por si próprias e construir um ponto de vista singular, diferente daquele dos adultos, acerca de sua experiência nessa instituição, na qual se observa a dificuldade de participação democrática, política. E nos perguntamos: a democracia poderia vir a ganhar se ela incluísse as crianças, até agora marginalizadas das práticas políticas atuais?

Reconhecendo que a escola é uma das experiências mais marcantes da vida das crianças, o capítulo seguinte focaliza, a partir de dados de pesquisa, esta instituição. Em A criança e a escola: ao encalço da “longa revolução”, ficam registradas as dificuldades de acolhimento e de vivacidade do contexto escolar. Muitas questões evocam a forma como a escola hoje se apresenta e como as crianças entendem suas práticas, que tendem a uma formação regulada tão somente pelas oportunidades do mercado de trabalho em uma economia capitalista, pautada no individualismo e na competividade. Não haveria outras formas de realizar as ações de mestre? Como crianças e adultos podem ser protagonistas na escola e nela instituir práticas que os instrumentalizem para a vida em sociedade?

No capítulo A aventura da ação e a participação das crianças na cidade, ao situar a experiência urbana como uma aventura, o texto expressa a convicção de que, na vida urbana, também estão o incompreensível e o invisível a nos desafiar através dos problemas, sustos e perigos. As crianças têm realizado esta aventura na cidade e isso pode servir de caminho para com elas entendermos o como e o por quê se age desta ou daquela forma, num espaço público. O território coletivizado da vida na cidade pode ser o lugar para, com a criança, entender as relações sociais e culturalmente determinadas frente aos desafios da participação cotidiana.

No capítulo A infância e seus direitos: são eles a única via de emancipação das crianças?, discute-se a emergência de garantias para as crianças, adquiridas recentemente, e como tal progresso está crivado de dificuldades, conduzindo, algumas vezes, a retrocessos em lugar dos avanços que se esperam. Quanto à concretude da garantia dos direitos das crianças, duas dificuldades são levantadas. A primeira é o aparente ordenamento que a inteligibilidade jurídica empresta às tensões oriundas das práticas sociais de convivência entre crianças e adultos. Outra dificuldade diz respeito à problematização da verdade jurídica, materializada na forma da lei, como referência última da ética de convivência social entre adultos e crianças. Analisando os direitos de crianças e adolescentes hoje no Brasil, entre outras questões, interroga-se: afinal, como afirmar a posição da criança como sendo sujeito de direitos e, ao mesmo tempo, mantê-la tutelada? Em que sentidos a condição de igualdade da criança pode viabilizar contextos reais de interlocução e ação para a mesma? Como compatibilizar os cuidados devidos à criança e, simultaneamente, impedir que a proteção se torne uma forma de dominação? Como equacionar os direitos das crianças e os dos pais, e  dos adultos de forma geral? Estas inquietações mobilizam o pensamento. Aqui, mais uma vez, a participação e a ação da criança são tomadas para respaldar sua  condição de sujeito de direito.

Para finalizar, temos um conto literário: Infância. Para falar da condição humana é usada a interdisciplinaridade, trazendo a literatura para figurar entre artigos científicos. A narrativa traz uma forma outra de texto, rompendo com os ditames da produção acadêmica na psicologia, área de referência para os trabalhos da autora. No conto, as memórias da infância trazem aquilo que ficou marcado, interiorizado no adulto. Com os registros aparecem muitos significados e sentidos produzidos ao longo dos outros escritos do livro. Trata-se de uma outra forma de dizer – com arte. Escrito com emoção, no bom estilo graciliano, as imagens retratadas dão ao leitor a ideia das cenas vividas pela criança com adultos e com outras crianças. Aqui, aparecem a astúcia e a criatividade da criança para conhecer o mundo, para o enfrentamento do imprevisível, embora submetida ao poder do adulto que a humilha, agride, desconsidera, usurpa seus direitos. Crianças se mostram capazes de compartilhar ações para subverter a ordem que as priva de ser. A narrativa emocionante indica que nada do que um dia aconteceu, como um encontro na infância, fica fora da vida adulta. No conto estão as marcas trazidas como propósito de ressignificação da concepção de infância e a perspectiva de futuro que a ela se associa.

Com a intensidade do mergulho, provocada pela reunião de escritos produzidos ao longo do tempo, considero que este livro é uma obra de referência sobre a temática da infância, e nela o lugar da criança na sociedade. Podemos dizer que o livro subverte a ordem das teorias que veem as crianças sob medida. Trata-se de uma proposta para todos que lidam com a tarefa incomensurável de compreender a infância. Mais que respostas, o leitor encontrará nele uma proposta de diálogo, inquietante, com as relações históricas, sociais e culturais e, a partir disso, poderá pensar como é constituída a infância hoje e imaginar o futuro. Quanto a novos tempos, aprendemos que a esperança nos faz acreditar que é possível mudar o que está posto.


Referências

CASTRO, Lucia Rabello de. O futuro da infância e outros escritos. Rio de Janeiro, 7letras, 2013.         [ Links ]

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