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Desidades

versión On-line ISSN 2318-9282

Desidades vol.2  Rio de Janeiro  2014

 

ESPAÇO ABERTO

 

A judicialização da infância: seus impactos na vida das crianças e suas famílias

 

Judicialización de la infancia: sus impactos en la vida de los niños y sus familias

 

 

Entrevista da Equipe Editorial da Revista DESidades com Flavia Cristina Silveira LemosI

IUniversidade Federal do Pará, Brasil.

 



Temos assistido nos últimos anos uma crescente participação do Estado regulando, através de leis e normas, os comportamentos das famílias e dos adultos no cuidado com as crianças. A imposição de padrões normativos legais sobre as relações das crianças com adultos, pais e educadores, ou colegas da escola, parece criar um foco de tensão que nos convoca a uma análise. Em geral, os indivíduos envolvidos se sentem desautorizados daquelas orientações que os guiavam até então. O envolvimento do aparato jurídico age em nome da proteção à infância, mas reforça a percepção de falta e incompetência das famílias, dos educadores e de todos que têm a responsabilidade de cuidar das crianças.

Para conversarmos sobre os problemas da inflação jurídica no cotidiano infantil, convidamos a professora Flavia Cristina Silveira Lemos, da Universidade Federal do Pará, que tem se dedicado ao estudo sobre a judicialização da infância nos últimos anos.

Equipe Editorial: Gostaríamos que você nos falasse um pouco de sua trajetória e de sua relação com a temática da judicialização da infância.

Flavia Cristina: Pesquiso sobre direitos da criança e do adolescente há 15 anos e estudo os trabalhos de Michel Foucault há 19. Assim, minha relação com a temática da entrevista se dá pela leitura dos textos de Foucault a partir da problematização que ele trouxe a respeito das relações entre poder, direito e verdade, bem como por minha participação em grupos de pesquisa e de trabalho, fóruns, movimentos sociais e conselhos no campo dos direitos das crianças e dos adolescentes. Tudo isso me possibilitou estar em espaços de discussão do tema da judicialização juntamente com muitos colegas docentes de diversas universidades e ativistas pertencentes a organizações governamentais e não governamentais.

Equipe Editorial: Nos últimos anos, é possível perceber uma crescente interferência do Estado regulando, através de leis e normas, os comportamentos das famílias e dos adultos no cuidado com as crianças. Como podemos entender esta situação?

Flavia Cristina: Os movimentos em busca da proteção e conservação da vida das crianças e dos adolescentes, ao mesmo tempo em que propiciaram a queda da mortalidade infanto-juvenil e o surgimento de uma rede de estabelecimentos de cuidado, simultaneamente possibilitaram o aparecimento de um conjunto de saberes e de profissões voltado a formular leis e normas que subsidiassem o atendimento deste segmento. Todo esse aparato permitiu a entrada do Estado de maneira cada vez mais intensa na vida das famílias em nome da defesa, da garantia e da proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes.

Equipe Editorial: No que consiste o processo denominado ‘judicialização da infância’?

Flavia Cristina: Implica em transformar um amplo campo de práticas no âmbito da proteção da infância em encomendas dirigidas ao Poder Judiciário diretamente como se este fosse a primeira e única instância responsável pelo cuidado desse segmento da população. Também há um segundo movimento de judicialização que está relacionado à invasão do Poder Judiciário em todas as esferas de nossas existências em nome da defesa, proteção e garantia de direitos de crianças e de adolescentes. Estamos falando de forças centrífugas e de forças centrípetas que operam a formação de um dispositivo de segurança e que criam paradoxos, tais como o de que a proteção integral deve ser realizada pela inflação jurídica e, portanto, apenas por meio da intensificação da lei, das penas e medidas judiciais aplicadas a todos os acontecimentos que dizem respeito ao atendimento de crianças e adolescentes. Outro paradoxo é o de que qualquer situação de ameaça e de violação deverá ser imediatamente levada ao Poder Judiciário ou aos equipamentos de normalização que estão nas adjacências do mesmo, articulando normas e leis.

Equipe Editorial: Pode dar exemplos que estão relacionados a este processo no Brasil?

Flavia Cristina: Podemos citar o Conselho Tutelar, conforme especificado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), um órgão administrativo que pode funcionar como receptor de notificações de ameaças e violações dos direitos das crianças e adolescentes e, então, encaminhá-las para o Ministério Público. Apesar de ampliar a proteção em certos aspectos, o Conselho Tutelar aumenta a regulação da vida das crianças, dos adolescentes e de seus familiares, pois pode receber as notificações até mesmo por telefone e anônimas. Antes da criação do Conselho Tutelar, abrir um processo era um procedimento moroso e só poderia ocorrer após a violação acontecer e não antecipadamente, por meio de uma suspeita, como é o caso agora. Instala-se um paradoxo: amplia-se o cuidado por meio do paradigma da proteção integral, porém, aumenta-se a normalização e a encomenda ao Poder Judiciário, após serem realizadas as denúncias ao Conselho Tutelar. O aumento da criminalização das drogas e o acirramento da política criminal punitiva para aqueles que vendem drogas consideradas ilegais implicaram na intensificação da privação da liberdade de adolescentes legitimada pelas medidas socioeducativas de internação.

Equipe Editorial: Como podemos perceber os efeitos desse fenômeno na vida cotidiana, por exemplo, através de leis como a da alienação parental ou do projeto de lei que restringe a comercialização de bebidas e comidas não saudáveis em escolas públicas?

Flavia Cristina: O filósofo Michel Foucault, em muitos de seus escritos já nos alertou para o fato de que, quanto mais buscamos formular leis em nome da segurança da infância, mais penas, crimes e intervenção criamos do Poder Judiciário na vida das famílias, dos adultos, das crianças e dos adolescentes. Assim, na articulação entre normas e leis, que são operacionalizadas em estabelecimentos, organizações, equipamentos, grupos, profissões e espaços arquitetônicos ditos de proteção e de segurança, mais modalidades de julgamentos e de maneiras de punir são forjadas com vistas a aumentar a regulação e a regulamentação do que é objetivado como violência, violação e problema de governo da vida da infância. Em nome da proteção, paradoxalmente, amplia-se a judicialização com legalismos e inflação jurídica referentes ao cotidiano nas escolas, nas famílias, nas tensões sociais, nos espaços de convivência social, nas ruas e no comércio. Esquadrinhar e controlar cada detalhe se tornou um projeto de segurança, em que custos e benefícios são calculados o tempo todo, atrelados à noção de Estado de Direito e à racionalidade de ordem e lei como estilo de existência no mundo contemporâneo.

Equipe Editorial: Qual o impacto que a judicialização da infância produz na forma como nos relacionamos, como adultos, com as crianças?

Flavia Cristina: Toda vez que criamos leis e normas, alteramos as práticas que fazem operar as relações sociais e familiares entre adultos e crianças e entre diferentes grupos e estabelecimentos de cuidados. Assim, os saberes e os poderes andam juntos com os processos de subjetivação, ou seja, as regras e as leis criam assujeitamentos que normatizam e normalizam cada vez mais em nome do aumento da segurança frente ao que passa a ser designado como risco e perigo. A vulnerabilidade de crianças e adolescentes se torna objetivada a partir desse campo relacional de forças heterogêneas. Um exemplo são as normas forjadas pelos saberes médicos e psicológicos que embasam a criação de leis de proteção e cuidado com crianças e adolescentes. As normas são transformadas em leis e poderão trazer todo um campo de punições se os pais não as cumprirem. Ou seja, condutas que antes eram operadas pela mediação da cultura passam para a instância legislativa e judiciária, tais como as que afirmam que crianças e adolescentes estarão em risco se os pais e responsáveis não cumprirem as normas de saúde e de educação em saúde produzidas pelos saberes médico-psicológicos. Assim, práticas de poder poderão ser materializadas na punição disciplinar da família, como um encaminhamento à psicoterapia e a programas sociais. Também práticas de poder jurídicas poderão ser efetivadas, como a perda de poder familiar e envio de filhos para abrigos, entre outras.

Equipe Editorial: Na sua opinião, o processo de judicialização afeta diferentemente as diversas infâncias, ou seja, a vida de crianças de contextos socioeconômicos e culturais diferentes?

Flavia Cristina: Sim. Algumas infâncias são mais punidas do que outras, algumas são menos protegidas do que outras, ou seja, a balança da justiça tem cor, lugar, grupo, escolaridade, etnia, raça, gênero e configuração familiar. Isto passou a ser chamado de seletividade penal pela criminologia crítica. Em uma sociedade, como a nossa, marcada pelo racismo, pelas desigualdades socioeconômicas, pelo acesso desigual às políticas públicas, pela maneira de organizar as relações e decidir sobre o orçamento, a balança pode pender para um lado ou para outro conforme os interesses em jogo e os grupos que estão disputando os mesmos. É uma sociedade que seleciona quem deve responder e quem não deve, sendo que a retribuição penal é dirigida para a infância e família advindas dos segmentos mais pobres, negros, com baixa escolaridade, moradora de bairros mais distantes, sem acesso às redes de proteção ou com acesso precário às mesmas. Um exemplo dessa prática é a prisão em massa de pessoas negras, pobres e com baixa escolaridade. Outro é a notificação massiva de famílias pobres ao Conselho Tutelar, que funciona como uma polícia desse grupo social. Ora, se acontece violência e violação de direitos independentemente de classe social e raça/etnia, por que somente famílias pobres são reguladas pelo Conselho Tutelar? Se brancos e negros, ricos e pobres cometem crimes, por que, em geral, são os negros pobres que são presos? Aí está a seletividade penal.

Equipe Editorial: O que você poderia dizer sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente passados mais de 20 anos de sua implementação?

Flavia Cristina: O Estatuto trouxe rupturas e atualizou práticas, eu o vejo como um diagrama de forças em tensão, múltiplas e heterogêneas. Ele rompeu com a menoridade, com o assistencialismo, com a situação irregular, com a internação massiva de crianças e adolescentes em abrigos e em espaços denominados de correção e com a centralidade da figura do juiz, por exemplo, que estavam presentes no Código de Menores, de 1979. Instituiu o paradigma da proteção integral à criança e ao adolescente como sujeitos de direitos, descentralizou a política de atendimento, priorizou a atenção em meio aberto, estipulou o direito à convivência familiar e comunitária, entre outras transformações. Todavia, a situação irregular tem sido atualizada na noção de crianças e adolescentes em risco, por exemplo. Também ainda há uma visão cada vez mais focada no Poder Judiciário, na figura das intervenções do Ministério Público e na inflação jurídica encaminhada pela criação do Conselho Tutelar. Outro ponto crítico é que as medidas de proteção têm sido pouco aplicadas em função do orçamento não estar sendo definido pela perspectiva de prioridade absoluta prevista no ECA. Um outro problema é o fato de que há ainda resquícios da prática encarceradora de adolescentes autores de ato infracional e de envio de crianças e adolescentes para abrigos por tempo indeterminado em função da pobreza das famílias, não sendo estas ações excepcionais como deveriam ser de acordo com o ECA.

Equipe Editorial: Você entende que esta crescente judicialização concorre para uma maior proteção da infância?

Flavia Cristina: Acredito que esta situação pouco permite proteger de fato a criança e o adolescente e acaba burocratizando muito a atenção, fragilizando a rede de garantia de direitos ao potencializar mais uma de suas esferas em detrimento das outras. A judicialização aumenta os índices de encarceramento e pouco favorece a afirmação da criança e do adolescente como sujeito de direitos, pois acaba por torná-los mais objetos das práticas jurídicas do que possibilita sua proteção efetiva pautada em princípios mais democráticos e que não operem pela lógica punitiva.

Equipe Editorial: É possível perceber impactos na forma como as crianças se relacionam com as instituições–escolas, espaços comunitários – a partir da implementação de uma série de leis que regulam sua relação com estes espaços?

Flavia Cristina: De fato, há impactos na correlação de forças que atualizam cotidianamente as práticas educativas escolarizadas e comunitárias no entrecruzamento entre normas e leis, saberes e poderes, na dinâmica das relações sociais e da produção de subjetividade, no espaço contemporâneo, em termos dos processos de judicialização da infância. Cada vez mais, a escola vem sendo chamada a cumprir um mandato social de identificar e denunciar situações de violência e de violação de direitos das crianças. Leis que obrigam a escola a notificar como e quando, sob pena de ser responsabilizada caso não obedeça a essa encomenda, como ocorre no Projeto Escola que Protege. Por meio do ECA, a partir de documentos de referência da Educação em Saúde e do Conselho Nacional de Justiça, da Secretaria de Direitos Humanos, do Ministério da Educação e do Ministério da Saúde, entre outros órgãos e organismos formuladores de diretrizes para a educação de crianças e adolescentes em direitos humanos, a proteção integral das mesmas se faz operar pela proliferação de práticas denominadas de justiça restaurativa e/ou de justiça por mediação de conflitos, entre tantas outras que emergem em nome da educação para a paz e pela prevenção e punição da violência nas escolas e nas comunidades.

 

I Doutora em História e Sociedades (UNESP), Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Pará.

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