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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades vol.3  Rio de Janeiro  2014

 

ESPAÇO ABERTO

 

Todas as crianças na escola regular: políticas de inclusão

 

Todos los niños y niñas en la escuela regular: políticas de inclusión

 

 

 

Entrevista de Lucia de Mello e Souza LehmannI com Maria Cristina Carvalho DelouII

IUniversidade Federal Fluminense

IIUniversidade Federal Fluminense

 


Palavras-chave: crianças, escolas, políticas de inclusão, LDB.
Palabras-clave: niños, escuelas, políticas de inclusión, LDB.

 

Lucia Lehmann: Recentemente, houve mudanças na LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), que inclui crianças especiais nas escolas. Que mudanças foram essas e o que elas implicam? Gostaríamos que você esclarecesse também quem são as crianças consideradas especiais.

Cristina Delou: A primeira mudança grande que houve em relação à LDB foi em 1996, quando foi reconhecido o direito de matrícula de qualquer criança, jovem ou adulto, na escola. Não há na LDB restrição a qualquer tipo de matrícula de quem quer que seja, em qualquer momento da vida. Isso tem que ficar muito claro. A obrigatoriedade de entrada na escola era dos seis anos em diante. Então, a partir de seis anos, qualquer pessoa, em qualquer momento da vida, encontraria, segundo a LDB, um lugar para garantir a sua matrícula. A história nos mostra que os alunos com deficiência procuravam as instituições especializadas. Os cegos procuravam o Instituto Benjamin Constant (IBC), os surdos procuravam o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) e havia um estranhamento quando uma criança dessas procurava uma escola regular. Isso aqui no Rio de Janeiro, porque no interior do Brasil, não havendo instituição especializada, as famílias levavam seus filhos cegos e surdos para a escola regular. Eles estudaram, mas em número muito insignificante, com uma invisibilidade muito grande, a ponto de não termos informação de pessoas do interior que conseguiram galgar o ensino superior. Historicamente, há uma migração do interior para o Rio de Janeiro, em busca das instituições especializadas, o IBC e o INES. É comum encontrar alunos de outras regiões que estudam nessas escolas porque elas ainda mantêm o sistema residencial durante o período escolar. No período de férias, essas crianças voltam aos seus lares, e no período de aulas, elas têm o acolhimento nos institutos devido à distância.

Os alunos autistas eram completamente ausentes das escolas. O autismo, visto como um quadro em que as crianças não apresentam habilidades sociais, fazia com que esses alunos tivessem dificuldade de se manter na escola. O fato de elas conseguirem se matricular já era um ganho, mas manter-se na escola, ser aprovado, se tornava complexo, porque a habilidade social é, de certa forma, objeto de avaliação. A dificuldade de relacionamento, a dificuldade de perguntar e tirar dúvidas fazia com que os alunos muitas vezes não conseguissem realizar as provas de forma satisfatória e alcançar aprovação. Os chamados autistas de “alto funcionamento” conseguiam avançar na escola, mas os outros não. Temos notícias de um autista de alto funcionamento, acompanhado terapeuticamente, que alcançou titulação superior. Temos conhecimento de algumas pessoas que tiveram a educação básica na década de 80, 90, que são doutores e que lecionam na universidade pública. Fizeram concursos, foram aprovados, estão nas universidades com um perfil muito singular. Em geral, são professores que precisam da mediação, de alunos monitores, para facilitar o diálogo com os seus alunos. E as áreas de conhecimento contempladas por esse perfil, regra geral, são a matemática, a física, a química, a biologia. São pessoas com um perfil mais introspectivo, com dificuldades de relacionamento interpessoal, que não se sentem à vontade para declarar socialmente que elas têm esta dificuldade e diferença.

Com a nova lei sancionada, há uma atualização da redação sobre portadores de deficiência, há uma ênfase na inclusão dos alunos com “transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação”. Os alunos superdotados, também considerados especiais, sempre estiveram na escola. Durante muito tempo, eles foram privilegiados, porque eram vistos como elite social, porque só da elite social econômica saíam aqueles que iam se escolarizar, aqueles que iam formar a classe dos governantes, dos intelectuais, dos políticos. Isso mudou com o tempo e hoje há uma absoluta vergonha de ser bom aluno. Os bons alunos se envergonham de tirar notas altas. Hoje, os superdotados continuam na escola, mas não têm mais o status que tinham e mudaram a maneira de se apresentar socialmente, buscando outras competências, outras habilidades e não mais a nota dez em matemática ou em português.

Lucia Lehmann: Mas esses alunos não se tornam um “problema” para a escola?

Cristina Delou: Sim. Porque a escola tem que lidar com os diferentes alunos e ritmos de aprendizagem. Em uma sala de aula, os diferentes alunos têm ritmos diferentes de aprendizagem, a escola tenta nivelar o conteúdo e ritmo de ensino para atender a todos. No caso do superdotado, que aprende com facilidade e rapidez, a escola tem que criar condições de suas potencialidades serem aproveitadas, alavancando sua motivação e interesse de aprender e até de servir de apoio aos colegas que têm um ritmo mais lento de aprendizagem. Se a escola não valoriza este aluno, ela afeta diretamente a autoestima dele, o seu bem-estar psíquico. Estamos vendo uma evasão de alunos muito inteligentes nas escolas das classes populares, por volta dos 12 anos de idade, porque eles estão sendo cooptados pelo desvio social, pela marginalidade, pelo tráfico de drogas.

Lucia Lehmann: Você está observando que há alunos especiais que são autistas, alunos que são superdotados...

Cristina Delou: Isso. Essa foi a grande mudança. Na LDB de 1996, aparece a categoria “necessidades especiais”. Os alunos superdotados são citados no artigo 59, quando é abordada a preparação para o trabalho. E agora, na revisão de 2013, essa expressão “necessidades especiais” foi substituída e vieram as três categorias: deficiências, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação.

Lucia Lehmann: Essa inclusão, essa substituição dos termos e essa política de inclusão têm trazido problemas para a escola? A escola está preparada para lidar com isso?

Cristina Delou: Inicialmente, houve um estranhamento cultural, porque não fazia parte da experiência escolar atender os alunos especiais. São passados 24 anos desde que se instituiu o direito de educação para todos, literalmente. Esse tempo é suficiente para fazer uma crítica racional, porque o apoio material, financeiro e econômico não acompanhou o tempo de crescimento e de vida das crianças, que, em 24 anos, formam uma geração. Quem entrou na escola em 1996, por meio de uma matrícula de inclusão, já completou ou está perto de completar 30 anos, e o que aconteceu na vida dessa pessoa? O que acontece é que faz parte, tanto da história da formação dos professores como da formação dos políticos, daqueles que vão ser gestores escolares, secretários de educação, ministros, a mesma história de omissão em relação às pessoas especiais, porque também não conviveram com os especiais nas escolas. Quando as pessoas especiais passam a fazer parte do público alvo da educação, a formação de professores não se apropria deste movimento imediatamente.

Hoje, quando vemos grupos de professores que lidam com a diversidade, ainda há um estranhamento. Alguns dos professores que estão na escola se formaram em tempos em que o conteúdo não era universal para todos, em que não havia a inclusão. Ainda há um movimento de resistência dentro da escola. Por um lado, vemos o pessoal da licenciatura se interessando pela elaboração de materiais didáticos acessíveis aos especiais, mas muitas vezes não vemos o pessoal da Pedagogia interessado nisso. Há uma crítica à inclusão dos especiais nas escolas regulares, para depois se refletir sobre o direito humano à educação, esse direito humano é para qualquer um. Estamos ainda em uma fase de formação de consciência e de profissionais para lidar com a inclusão. E aí, é grave dizer: o nível de consciência da necessidade de inclusão não atinge a todos. Nós ainda temos setores sociais que acham que é um desperdício levar um menino cadeirante, que não fala, que baba, e entregar um tablet para ele numa escola pública, porque ele não vai ter condições de se escolarizar. No entanto, quando a gente descobre que o tablet é uma ferramenta de inclusão e que ele pode se comunicar através do tablet, é uma surpresa geral. Quando a gente descobre que este aluno é uma pessoa de alta inteligência, a perplexidade é maior ainda, porque aí se vê o desperdício.

Lucia Lehmann: Você está dizendo que a inclusão destes alunos cria certa reação pelo desconhecimento e falta de preparo da escola, em alguns momentos, tanto quanto do público e da família que frequenta a escola...

Cristina Delou: Todo o público. A família estranha o que aquele aluno está fazendo na escola regular. Sei do caso de um aluno com transtorno global do desenvolvimento, ou um transtorno do espectro autista, em idade escolar, que, conforme recomendação da Secretaria de Saúde, para prevenir acidentes, devia frequentar a escola de capacete. Inicialmente, o que se pensou foi: ele não vai aceitar o objeto estranho na cabeça, ele vai reagir. Mas ele aceitou o capacete, ele curte o capacete, e quem estranha o capacete? A comunidade escolar. Quem produz a exclusão do aluno porque ele usa capacete? A comunidade escolar. Mesmo sendo esclarecido que é para evitar um traumatismo craniano, porque, quando aumenta a dificuldade de comunicação dele, já que ele não fala, ele bate com a cabeça na parede, a comunidade escolar acha estranho que há um menino na escola que usa capacete.

Lucia Lehmann: Você considera que as políticas públicas em relação a essas crianças especiais têm sido efetivas?

Cristina Delou: Pode parecer estranho, como professora universitária, o que eu vou dizer. As políticas públicas de inclusão são profundamente democráticas e progressistas, porque elas provocam um avanço na humanidade, no sentimento de humanidade. Porque quando passamos a conviver com essas pessoas, descobrimos que elas têm uma força superior para superar as dificuldades e os desafios sociais, e que muitas vezes nós não nos vemos capazes de enfrentar os desafios com aquela coragem. No entanto, a força social é muito grande, a impunidade. Porque a LDB é uma lei educativa, não é uma lei penal, ela não penaliza quem não a executa, quem não a pratica. Mesmo para quem nega matrícula a um aluno surdo em uma escola, alegando que não tem professor de libras, não há penalidade, não há uma reação do Ministério, da Secretaria. O Ministério Público demora muito a reagir e o Conselho Tutelar não toma conhecimento. Então existem ainda muitas crianças fora da escola, porque a escola diz: aqui não tem professora de libras, não posso matricular. Escolas particulares mais ainda, elas se sentem muito à vontade, não há penalidade. A demora para a mudança cultural é muito grande.

Lucia Lehmann: E aí a escola recebe estes alunos. O que tem sido feito no ambiente escolar com estes diferentes especiais – o surdo, o cego, o autista?

Cristina Delou: O Governo Federal estimula a “sala de recursos multifuncional”, que é uma entidade criada por ele. Nenhuma literatura no mundo fala disso. Nem a Declaração de Salamanca fala de sala de recursos multifuncional.

Lucia Lehmann: Você pode explicar o que é a sala de recursos multifuncional?

Cristina Delou: Eu vejo a sala de recursos multifuncional como um instrumento econômico, porque coloca em uma sala, à parte da sala regular, uma professora que se pretende especialista em todas as áreas. A formação do professor para atender as crianças especiais é demorada. Um professor leva dois anos e meio para fazer um curso de libras básico, um ano para aprender o básico de braille e de soroban. A formação em metodologias de ensino, em comunicação ampliada e alternativa, para atender os paralisados cerebrais e os autistas, demanda mais de um ano. Leva-se mais de um ano também para dominar as práticas pedagógicas para trabalhar com alunos superdotados, porque isso é acompanhado de formação acadêmica. Então, como se pretende que em meses, em dias, em horas se abram os braços para receber um aluno, seja ele de que perfil for, para ser acompanhado no contraturno escolar durante um ano pelo menos? Essa é a recomendação do Ministério da Educação (MEC) e é a dificuldade que nós temos para ter professores em sala de aula, porque os professores que não se sentem capacitados não vão para esse tipo de programa. A legislação complementar, que é o parecer 17 de 2001 e a resolução número 2 de 2001, dá à família o direito de escolher onde e como será a educação escolar do seu filho. Inclusive, em alguns casos, é o próprio aluno quem deve escolher, porque muitas vezes ele tem esta possibilidade. É na parceria aluno, família e escola que o planejamento pedagógico deve ser realizado. O aluno com deficiências múltiplas ou profundas tem direito à terminalidade específica. O inciso 2 do artigo 59 da LDB prevê que este aluno tenha acesso aos níveis seguintes da escolarização. Terminalidade específica só se faz na educação básica, não se faz no ensino médio nem na EJA (Educação de Jovens e Adultos). Então este aluno, que tem uma deficiência intelectual, uma deficiência múltipla ou uma deficiência profunda, avaliado psicológica e pedagogicamente, que não tem condições de acesso ao ensino médio regular, ele tem direito a uma terminalidade específica e é encaminhado a um curso profissional, adaptado a pessoas com necessidades especiais. O Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) e o Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) têm participado do Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), mas falta ainda abrir os cursos para as pessoas com deficiência, porque eles precisam se adequar para receber este público. Uma vez profissionalizados, com formação, eles poderiam estar na sociedade, trabalhando ao nível das suas competências. Podem ocupar funções que não precisam ser ocupadas por pessoas que têm mais facilidades. Quanto aos superdotados, que têm direito à aceleração de estudos, a escola depende da família aceitar a proposta da aceleração de estudos ou da terminalidade específica.

Lucia Lehmann: Você pode explicar melhor o que é “terminalidade específica”?

Cristina Delou: Terminalidade específica é uma adaptação curricular. Ela é feita durante o período escolar da educação básica para alunos que estão no sexto ano, não alfabetizados, que não sabem ler e escrever e não conseguem calcular mentalmente. Nisso podem incluir-se casos de Síndrome de Down, de Síndrome de Williams, de Síndrome de West, que são síndromes bastante complexas. Sabemos ser possível que esse aluno venha a desenvolver uma atividade social e profissional, então ele precisa ter um currículo adequado às competências dele. Se isto não ocorrer, inevitavelmente ele será transferido para a EJA (Educação de Jovens e Adultos) após o nono ano. A legislação não ampara a terminalidade específica em EJA e não se sabe como ele vai sair dessa etapa e se profissionalizar. Isso é uma novidade da LDB, existem notas técnicas do MEC, resoluções e documentos, que orientam como a profissionalização deve ser realizada, mas os Projetos Políticos Pedagógicos das escolas ainda não contemplam a rotina descrita nestes documentos. No caso dos superdotados também está prevista a terminalidade específica e ainda a aceleração nos estudos.

Lucia Lehmann: Você acha que efetivamente a inclusão dessas crianças na escola está tendo bom resultado?

Cristina Delou: Genericamente, não. Em alguns casos particulares, sim. Por exemplo, há uma moça com Síndrome de Down em Natal que conseguiu fazer o curso de formação de professores e tornou-se auxiliar de creche. Ela já foi motivo de reportagens. Ela é alfabetizada, examina a agenda das crianças, vê se a mãe leu e mandou recado, lê histórias, ela se ocupa das crianças na creche. Isso é possível. Por que não? Agora, não temos 100 pessoas com Síndrome de Down nestas condições. E se não temos é porque não foi dada a elas a condição de chegar a esse nível de profissionalização. Há um rapaz com Síndrome de Down também, que se formou em Educação Física pela Universidade Tuiuti do Paraná, e que hoje é professor de natação para crianças com Síndrome de Down. Ele conta o que foi feito no currículo escolar dele para poder chegar no ensino superior. Diz que a mãe dele, junto com os professores da escola, fizeram uma adaptação nos currículos de matemática, de química, de física, para ele poder chegar ao final da educação básica, do ensino médio e do ensino superior. Tendo feito Educação Física, ele pode ser professor de natação de crianças com Síndrome de Down. Ele não vai ser treinador, não vai ser pesquisador, não é atleta, não vai dar aula para outras categorias. Ele vai dar aula de natação para crianças com Síndrome de Down. Houve uma iniciativa da família e uma ação social para procurar uma academia ou escola de natação, onde ele fosse empregado para dar aula para alunos especiais.

No caso dos superdotados, é mais comum vê-los tendo um currículo adaptado e realizando a aceleração de estudos, concluindo os cursos em um tempo menor, como a LDB prevê. Tem-se, por exemplo, o caso de um defensor público no Rio de Janeiro, que terminou o curso de graduação em Direito na Universidade Estadual do Rio de Janeiro com 19 anos, com 20 anos ele fez a prova da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), com 21 fez a prova para a Defensoria Pública e tomou posse. Então, isso é possível. Existem programas novos, como o da Universidade Federal Fluminense. Lá tem um programa de altos estudos para 11 cursos de pós-graduação. Esse curso acontece simultaneamente à graduação. O aluno do segundo período se submete a um processo de seleção e, se for selecionado, recebe uma bolsa da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PROAES) e começa a cursar disciplinas do mestrado, que têm correspondentes na graduação. Sendo aprovado na disciplina do mestrado, ele não faz a disciplina da graduação. Este aluno vai terminar o curso mais cedo, tanto de graduação quanto de mestrado, para chegar ao doutorado mais cedo. O que se pretende com isso? Que ele se profissionalize, que chegue às bancadas de pesquisa mais cedo para ter mais chances de fazer descobertas.

Lucia Lehmann: Você acha, então, que qualquer aluno, qualquer criança poderia ser incluída na escola regular, caso tenha disponibilidade e recursos dentro da escola?

Cristina Delou: A frase é exatamente essa. É necessário que haja uma situação humana muito fora do comum, muito fora do padrão, para dizer que a pessoa não tem condições de frequentar a escola. Porque no nosso sistema de ensino, que segue a Declaração de Salamanca, nós temos as escolas regulares e as escolas especiais. Nós ainda não entendemos, como a Declaração de Salamanca diz, que as escolas especiais são a sede da cultura especializada para a criança especial. Nós ainda fazemos uma leitura de que a escola especial exclui. A gente não faz a leitura de que a escola especial inclui pelo conhecimento que ela possui, formando professores para atuar na escola regular. Então, se a escola tem alunos muito diferentes, do ponto de vista do ritmo da aprendizagem, você tem um aluno que precisa três anos para concluir uma escola regular. Qual é o lugar deste aluno? É lá no ritmo de um ano ou no ritmo de três anos? Igualamos as crianças, oferecemos um padrão único, tanto para as crianças que aprendem rápido, como para as que demoram a aprender. Algumas precisam de três anos, para outras bastaria um mês e elas levam três anos na escola.

A escola especial deveria ser vista como a escola que inclui. O Instituto Benjamin Constant oferece cursos livres de formação para professores. Cursos livres que não têm nenhum valor acadêmico. O MEC nunca reconheceu esses cursos como de valor acadêmico. No entanto, é lá que se aprende libras, braille, soroban, orientação e mobilidade, alfabetização para as crianças cegas. Alfabetização de crianças cegas não é uma coisa trivial. A alfabetização das crianças videntes é visual. A professora norteia com gestos e atos a ação da criança. A alfabetização da criança cega é guiada pelas mãos da professora, não importa se a professora é cega ou vidente. Então, a criança cega tem que ter uma professora na sala de aula, reproduzindo a prática pedagógica que vai ser concluída com a leitura. E aí uma criança cega em uma classe regular, com professora vidente e alunos videntes, perde naquilo que a Maria Montessori chamou de momentos críticos do desenvolvimento. Porque a criança fica esperando, na atitude corporal, e deixa de ter informações básicas e necessárias para que possa aprender em um espaço de tempo mais curto, porque ela depende do tato. Quem vai fazer o treinamento para que ela possa, na ponta dos dedos, diferenciar o a do b para poder escrever e ler?

Lucia Lehmann: Então, o que seria o ideal?

Cristina Delou: Crianças cegas e surdas, na fase de alfabetização, têm que estar entre os pares, para que elas possam aprender, no espaço de tempo mais curto, a ler e a escrever.

Lucia Lehmann: Dentro da escola?

Cristina Delou: Dentro da escola. E não é dizer que ela vai fazer isso na sala de recursos, com a professora da sala de recursos, que está na escola, mas funciona em separado das classes regulares no contraturno. A professora da sala de recursos muitas vezes não tem uma formação adequada e essa criança não vai ter pares na sala de recursos. Então, o que não se faz na sala regular e se transfere para a sala de recursos, não é complementação. Complementação é aquilo que vai enriquecer a sala de aula. Se ela está ali na sala de aula, ela tem que ter os meios e o professor adequado para aquela aprendizagem que vai fazer com o coletivo. Se falta o coletivo na sala de recursos multifuncional, não é complementação. Passaram 24 anos, muito dinheiro já foi investido, muita energia já foi gasta, e muito pouco a gente avançou. O que não dá para fazer é a seguinte pergunta, nesta altura do campeonato: será que vale a pena continuar nesta linha? Aí a resposta é: a gente não tem nem o direito de pensar nisso. Porque são pessoas, são cidadãos, é o povo brasileiro. Então, se pensarmos na grande quantidade de pessoas de média idade que estão na cadeira de rodas porque sofreram acidente de trânsito ou alguma doença, a gente está dizendo: elas não têm direito de participar da vida em sociedade!? Então, não se pode questionar isso em relação à criança.

Lucia Lehmann: Recentemente, em uma dinâmica que realizamos com professores de Educação Especial, eles relataram as dificuldades de os especiais e familiares obterem seus direitos de cidadãos. Quer dizer, surgem as leis, mas será que elas estão funcionando efetivamente? Muitos consideram que alguns dos obstáculos para a obtenção dos direitos dos especiais são a falta de esclarecimento, a falta de acesso às políticas públicas, as dificuldades de informação da família, a existência de funcionários esclarecidos que atendam o especial e a concentração de todas as expectativas em cima da educação. O que você poderia comentar sobre isso?

Cristina Delou: Isso tudo é decorrente da crítica a priori que se faz. Não se conhece a política de inclusão, não se conhecem os direitos, faz-se uma crítica a priori. Os anos 90 são os anos do neoliberalismo e da globalização. Costumamos fazer críticas quando nos vemos diante de uma política pública para inclusão. Quase dizemos: olha, a culpa de ter uma política dessa natureza é do neoliberalismo e da globalização, abra o olho! No entanto, estamos criando barreiras na formação de professores, que é o canal de transmissão do conhecimento para as classes populares, para onde estão voltadas estas políticas públicas. A gente não sabe, por exemplo, que em São Gonçalo tem uma menina de seis anos de idade que já está aposentada pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC), porque a mãe foi orientada nesse sentido por profissionais das áreas da saúde e do serviço social. Isto é falta de formação para este tipo de política pública, é uma falta de formação voltada para a pesquisa: vamos ver o que é isso, o que se pretende, vamos projetar isso para o futuro. Qual é a consequência de se ter hoje um Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dizendo que temos 23,91% de pessoas autodeclaradas com deficiência e que passam a ter direito à aposentadoria a partir do momento em que são declaradas incapazes? O que isso significa economicamente para o país? Vamos fazer a crítica a partir do momento em que conhecemos as consequências econômicas disso tudo. Este tipo de assistencialismo, como no exemplo citado da menina, surgiu no bojo da política de inclusão e precisa ser denunciado e criticado. Não é deste tipo de assistência que as pessoas especiais precisam, não são aposentadorias precoces e outras ações deste nível.

Lucia Lehmann: Você acha que a mídia, de um modo geral, focaliza essas crianças e jovens especiais? A mídia tem sido um veículo que dá visibilidade e permite uma conscientização da sociedade?

Cristina Delou: Não. A mídia só faz uso da imagem do especial quando ela vai tirar algum proveito disso. Algum programa social, algum benefício paralelo, mas não há nenhum interesse da mídia em levar esclarecimento. A mídia também não focaliza as crianças e jovens especiais no sentido de fazer uma programação e comunicação voltada para eles, porque, para isso, a mídia terá que se adequar, se adaptar. Como? As televisões teriam que fazer audiodescrição, adaptações da emissão, das formas de comunicação, para atingir os diferentes tipos de especiais. Isso tudo demanda equipamentos e profissionais especializados. Teriam que ter, por exemplo, inúmeros intérpretes de libras para todo tipo de programação. E é difícil ter um profissional de libras todo o tempo. Como será o vínculo deste intérprete e a formação? Quase não temos cursos de formação de libras, os cursos estão começando a surgir agora. O MEC está avaliando pessoas com pró-libras a nível de ensino médio e ensino superior. As pessoas que sabem libras aprenderam muitas vezes nas igrejas, nas práticas religiosas. Isso é muito grave e, ao mesmo tempo, um obstáculo do ponto de vista da mídia, que não tem os recursos compatíveis.

Lucia Lehmann: Você diz, então, que a mídia não tem recursos para atingir vários desses especiais e que também não os focaliza de uma maneira inclusiva, de uma maneira que dê visibilidade aos reais acontecimentos em relação a eles!?

Cristina Delou: Mesmo nos canais governamentais. Eles têm a pessoa falando libras, mas não têm audiodescrição, então os cegos estão fora.

Lucia Lehmann: O que você acha que seria o ideal para aumentar o conhecimento da sociedade em relação a essas crianças e para uma efetiva inclusão?

Cristina Delou: É continuar cativando as pessoas que ainda não conhecem o ambiente das políticas de inclusão. É acolher as pessoas que estão espontaneamente interessadas nessas políticas de inclusão, dando a elas o conhecimento necessário e possível. Ajudar as pessoas a saberem onde podem buscar mais formação para atuar nessa área, mostrando que a mudança social depende muito do nosso papel social. Cada um que chegar à escola vai encontrar um ambiente de resistência e tem um papel ali a desenvolver. Essa pessoa tem duas opções. Uma é aderir ao movimento de resistência que existe na escola. Ninguém precisa dizer que o professor ganha pouco, que as condições materiais de trabalho são inadequadas, que falta tudo dentro das escolas. Mas a gente pode fazer a opção de ser aquela pessoa que vai realizar os projetos, que vai construir as condições, porque as políticas existem, o dinheiro existe.

Lucia Lehmann: As políticas que estão presentes, como a inclusão de especiais em salas regulares, não são impositivas?

Cristina Delou: Não. Tanto não são, que não há penalidade para quem não as cumpre. Então, quem tem vontade de fazer um projeto, que faça, que traga o dinheiro para sua escola, que tire o dinheiro do caminho da corrupção, porque este é o nosso drama atual. Não se usa o dinheiro na inclusão, não se usa na educação, vai ser usado na corrupção! Então, que a gente faça a nossa parte. Os jovens estão sensíveis e atentos, mas eu estou me surpreendendo com muitas pessoas de mais idade que descobriram recentemente o que é uma política de inclusão e que estão vindo com tudo para trabalhar. E são elas que vão enfrentar a resistência da escola. A escola enquanto equipamento social é muito forte. Enfrentar essa força, essa resistência, mostrar com trabalho que a criança aprende no ritmo dela, do jeito dela, isso é de um valor social imenso, de um valor humanitário imenso. E é esse o nosso papel, porque hoje são essas famílias que precisam e amanhã a gente não sabe se somos nós que vamos precisar. A história dá muitas voltas, a vida dá muitas voltas. Quem combate, não valoriza ou não se importa hoje, pode precisar amanhã. É preciso pensar nisso. É a lei da física, lei de causa e efeito. Que a gente tenha consciência de que hoje é aquela pessoa que tem uma situação que necessita de atenção especial. Não sei se amanhã serei eu!


I Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense na Faculdade de Educação e no Curso de Mestrado Profissional Diversidade e Inclusão. Editora Associada da DESidades. E-mail: cristinadelou@id.uff.br
II Professora Associada da Universidade Federal Fluminense. Psicóloga. Doutora em Educação. Coordenadora do Curso de Mestrado Profissional Diversidade e Inclusão e do Curso de Pós-Graduação Lato-Sensu Educação Especial e Inclusiva da UFF. E-mail: lehmannlucia@gmail.com

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