SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.5Uso de crack entre jovens: histórias para reconstruir os percursos de cuidado e cidadaniaA infância na (e a partir da) América Latina: produção, instituições e políticas de infância author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades vol.5  Rio de Janeiro  2014

 

ESPAÇO ABERTO

 

“O importante é  alimentar a  curiosidade”: um ponto de partida para a divulgação da ciência junto a crianças e jovens

 

“Lo importante es estimular la curiosidad”: un punto de partida hacia la divulgación de la ciencia entre niños, niñas y jóvenes

 

 

 

Entrevista de Lucia de Mello e Souza LehmannI com Neuza Rejane Wille LimaII

IFaculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Brasil.

IIInstituto de Biologia, Universidade Federal Fluminense, Brasil.

 


Palavras-chave: divulgação da ciência, crianças, jovens, internet, rádio, tevê, museus, revistas.
Palabras-clave: divulgación de la ciencia, ninños, niñas, jóvenes, internet, radio, televisión, museos, revistas.

 

Lucia Lehmann: No momento atual, as agências de fomento têm formulado políticas para incentivar que o conhecimento científico produzido nas universidades e centros de pesquisa possa alcançar os setores mais amplos da sociedade. Neste sentido, tem se dado atenção ao processo de divulgação científica, que nem sempre é fácil ou imediato. Estamos iniciando um movimento em que a divulgação da ciência ganha um destaque maior nos programas e metas do desenvolvimento da ciência e tecnologia e, para nós, é importante avaliar estes movimentos tendo em vista as crianças e jovens. Como você avalia esta questão ao longo dos últimos anos? 

Neuza Rejane: Acho que, nos últimos anos, tem havido uma maior divulgação para o público em geral. Contudo, podemos dizer que, historicamente, a divulgação da ciência existe desde sempre. Os desenhos de Leonardo da Vinci, por exemplo, são divulgação de ciência. No Brasil, a chegada da Família Real, trouxe um interesse pelo conhecimento e os próprios jornais publicavam informações para um público de europeus que vinham para o Brasil e para os poucos brasileiros que tinham a oportunidade de estudar. Assim já se criava aqui uma forma de divulgação de ciência.

Muito mais recentemente, os Estados Unidos foram um dos primeiros países que começaram a discutir a questão da divulgação científica nas escolas, incentivando as pesquisas no país. No Brasil atual, a divulgação científica atinge jovens e crianças, mas ainda de uma forma incipiente.

Lucia Lehmann: Quais têm sido as principais iniciativas para a divulgação da ciência para crianças e jovens?

Neuza Rejane: A mídia tem contribuído com uma parcela significativa para esta divulgação. A revista Ciência hoje, que foi criada nos anos 1980, deu origem posteriormente à revista Ciência hoje das crianças; o jornal O  Globo criou uma seção para crianças, o Globinho. Outras revistas, como a Superinteressante, Galileu, National Geographic, Seleções, do Reader´s Digest, já existem há muitos anos, são apropriadas tanto para o  adulto quanto para o jovem. Existem ainda outras iniciativas que tiveram início há anos e que vêm sofrendo transformações, como a Scientific American, que nos anos 80 não  existia no Brasil, e começou a sair primeiro em espanhol e atualmente existe a versão em português, a Scientific American Brasil. São  revistas que buscam fazer divulgação científica e atingem  também os jovens que têm acesso às mesmas e se interessam por ler.

Por outro lado, existem notícias divulgadas pelas mídias, jornais, rádios, televisão, dirigidas tanto ao público geral quanto aos jovens,  que informam muitas coisas errôneas. Pecam, às vezes, pelo sensacionalismo. Temos que ter um olhar crítico sobre as informações e nem sempre isto é possivel, seja para o público geral, seja para os jovens ou mesmo pessoas que têm informação, mas que não conhecem aquele conteúdo ou não sabem ver incoerências naquela matéria. Algumas notícias são muitas vezes exageradas ou muito generalizadas de forma que não chegam a trazer um efetivo conhecimento. Mas não quero dizer que tudo está errado, não! O próprio professor, que busca se utilizar destas informações, precisa ter cuidado na hora de usar algumas revistas. Ele tem que ler antes, pesquisar e procurar as informações fidedignas, buscar as fontes primárias. Assim como nós, professores universitários e pesquisadores, fazemos com os artigos científicos publicados em revistas especializadas, temos que avaliar o que estamos lendo, saber as fontes....

Lucia Lehmann: Quais têm sido, a seu ver, as principais dificuldades para que se possam consolidar iniciativas voltadas para o público infantil e juvenil e  promover uma efetiva difusão e divulgação da ciência?

Neuza Rejane: Uma das maiores dificuldades é atingir públicos mais específicos, como os próprios jovens, devido a eles não terem acesso, por exemplo, a algumas das revistas citadas. Elas estão disponíveis em vários lugares, até em muitas bancas de jornal, mas, mesmo assim, ainda é dificil que qualquer um possa comprá-las. Há também outros que podem ter acesso, mas não se interessam em lê-las. As escolas tinham que ter acesso a revistas de divulgação., Em geral, as aulas de ciências ainda são expositivas e depois, quando isso é possível, o professor vai para o laboratório e faz umas experiências. O professor não universitário dificilmente busca um artigo científico, isso não faz parte da sua prática. Muitas vezes, também, a divulgação científica não atinge as pessoas porque elas ainda não possuem a cultura de fazer tais leituras. Em resumo, é preciso estimular, facilitando o acesso.

Lucia Lehmann: A internet tem importância na divulgação da ciência? O que se tem feito para a divulgação científica no âmbito de sites na internet? 

Neuza Rejane: A internet é um bom meio de divulgação, só que inclui muita coisa errada e não chega a atingir todos os jovens. Mas as redes sociais oferecem recursos interessantes para divulgar um tema, ou para a crítica e o questionamento. Algumas vezes,, os sites dizem coisas que, se você for pesquisar na fonte, vai ver que não são daquele jeito. O problema da internet é que existe um mundo de coisas ali e não há um controle de quem posta, o que aumenta o risco daquele conteúdo não ser correto. Então, nem sempre a primeira informação que aparece é a melhor. O site da Wikipedia tem coisas maravilhosas e outras totalmente erradas. Por outro lado, pela internet, o jovem acaba tendo hoje mais acesso à informação e, com isso, a possibilidade de ter também mais informação sobre ciência. Além de sites de universidades ou ainda outros sites mais especializados, a internet disponibiliza ferramentas, como o google maps, por exemplo, que vêm se tornando populares e que  acabam sendo um meio de divulgação também da geografia, dos lugares etc. Através da utilização dos filtros de pesquisa, do saber procurar, se consegue encontrar muita coisa na internet. No meu estudo sobre piolhos, por exemplo, consegui encontrar muitos artigos falando sobre a origem dos piolhos e condições de vida. Achei na internet dados originais e consegui informações que não encontrei nos livros, mas é preciso saber filtrar, distinguir o conhecimento.

Os que buscam informação precisam ter certo critério e cuidado na hora de coletar e interpretar os dados. É importante que, a partir do momento que o adolescente tem acesso à informação, queira ir à fonte de conhecimento original do que foi passado pela mídia ou pela internet. Muitos sites têm divulgado material valioso, como acesso a museus com imagens e  também acesso a livros gratuitos.

No caso do conhecimento científico, é importante ser crítico, ir à fonte, aos originais, a outras informações, e ver se está correto, se o texto foi traduzido corretamente. Por outro lado, os jovens buscam o que realmente lhes interessa. Os alunos buscam aquilo que gostariam de aprender na escola.

Lucia Lehmann: Você poderia nos relatar sobre suas inciativas de divulgação da ciência para crianças e/ou jovens?

Neuza Rejane: Atualmente, parte do meu trabalho tem sido transformar um saber com uma linguagem científica, artigos científicos ou publicações bem técnicas, e torná-las mais palatáveis para o grande público, mas  sem  abrir mão da qualidade. Comecei a  escrever vários artigos, vários livros, que foram publicados pela  Faperj, como o Panda gigante, trabalho que se originou de uma monografia de final de curso de uma aluna que orientei. Nós transformamos esta monografia em um livro de bolso, com o auxílio da editora da Universidade Federal Fluminense (Eduff). Este trabalho fez com que eu fosse no programa do Jô Soares falar sobre isso. Dei uma entrevista, abordando a reprodução do panda gigante. Foi uma dupla divulgação científica, o próprio livro e a entrevista, divulgando o livro, mostrando ao grande público um conhecimento da biologia do panda, sobre a preservação desse animal, tema que despertou curiosidade e interesse. É uma forma de divulgar a biologia. Daí  comecei a me interessar e efetivamente a realizar divulgação científica para um público mais amplo.

Durante 14 anos, trabalhei em uma pesquisa sobre o castrador parasitário Riggia paranensis, que é um protozoário da família do tatuí. Ele parece com um tatuí desses encontrados na areia da praia, porém fica dentro dos peixes, castrando-os, impedindo estes peixes de se reproduzirem. O protozoário cresce e impede o desenvolvimento e a reprodução do peixe. Eu desenvolvi a pesquisa, obtive resultados e publiquei através dos órgãos de fomento à pesquisa – a Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Em um determinado momento, esse estudo  finalizou para mim. Pensei então em escrever sobre os resultados que tinha obtido e também falar sobre todos os parasitas de que tinha conhecimento, mas de uma forma que fosse acessível, de modo a ser entendido pelo público em geral, pelo professor do ensino fundamental e do ensino médio. O conhecimento se organiza então numa linguagem mais palatável, sem citar todos os artigos e fontes pesquisadas, sem introduzir a cada momento no texto referências sobre aquele assunto. Esse livro foi aprovado para ser publicado pela Faperj.

Lucia Lehmann: Falar dos animais é um tema que atrai muito o interesse da  criança, do jovem também, não é?

Neuza Rejane: Sim! Quando você fala de animais, as pessoas sempre têm curiosidade. Falar de uma baleia, de um golfinho, é sempre interessante. Uma estratégia que eu utilizei também foi em um trabalho de extensão universitária falar de animais, falar da  zoologia para as crianças. Falei de baleia, de golfinho. Quando você fala de orca, vem logo aquele jargão – “orca baleia assassina!”.  Explicamos, então, que a orca não é uma baleia, é um golfinho gigante, porque tem dentes e a baleia não tem dente! A orca não é assassina porque, na verdade, ela está caçando, ela está predando como qualquer predador, para sobreviver. Assassino é uma pessoa que mata a outra por vingança ou para roubar, isso é ser  assassino, um animal não é assassino.

Lucia Lehmann: Nós temos conhecimento de que você elaborou audiolivros.  Por que se interessou pela edição de livros falados? 

Neuza Rejane: No caso dos audiolivros, pensei mais especificamente no deficiente visual. Também naquela pessoa que está no hospital e não está podendo ler e não tem ninguém para ler para ela. Aí ela coloca o CD para ouvir. Naquela pessoa que está fazendo exercício, alguma atividade física e, durante o movimento, pode estar ouvindo o audiolivro. Ainda o jovem que está fazendo várias coisas e pode estar ouvindo, a criança que ouve como uma história. E ainda o hiperativo, que está cerrando alguma coisa e não consegue parar para ler... enfim, o audiolivro atende a vários públicos.

Lucia Lehmann: Que linguagem é utilizada nos audiolivros destinados à divulgação de ciência?

Neuza Rejane: A linguagem utilizada segue o mesmo raciocínio dos livros impressos, que buscam uma divulgação da ciência para o público. Uma linguagem compreensível, ausência de muitas citações durante o texto, sendo que para os audiolivros são feitas ainda algumas adaptações, em função da ausência de figuras, de tabelas, de apelos visuais. O objetivo é  tornar a obra compreensível e acessível. As referências e  fontes de consultas e outras notas são feitas no final da leitura do texto, o que permite, a quem tiver interesse, poder  buscar as informações que desejar.

Lucia Lehmann: Você avalia que a divulgação científica para crianças e jovens se dá mais intensamente em algumas áreas em detrimento de outras? Há mais iniciativas de divulgação científica para crianças e/ou jovens na área das ciências físicas e biológicas do que nas áreas das ciências humanas e sociais?

Neuza Rejane: Acho que sim, que isso se dá tanto para o público em geral, como também para crianças e jovens. As áreas de biologia, de física, de química têm mais divulgação do que as ciências humanas. Essa é a minha experiência. Acho que este movimento também está ligado à formação. Se você se forma como psicólogo, vai logo para o mercado de trabalho. Não sei se estou certa, você, que é da área de humanas, pode falar melhor sobre isso (risos).

Lucia Lehmann: A divulgação de ciências para os jovens pode se dar por meio da escrita, do rádio, mídia, também dos museus. Qual, ou quais, destes meios têm sido mais interessante para os jovens e para as crianças?

Neuza Rejane: A televisão ainda é o meio que atinge mais, que é mais visto pelo jovem, e mais ainda pela criança. Falamos de internet, mas na TV existem documentários e também programas que têm informações inseridas. Os meus filhos ficam assistindo vários programas de televisão, como, por exemplo, Vivendo no limite, que mostra a comida no ambiente, como  se  lida com o animal; Discovery Kids; Bear grills, acho que é  este o nome, um programa em que o sujeito está na Ásia, com sede, e pode pegar fezes de elefante, espremer na meia e beber que não faz mal, ou coletar água do leito do rio, daquela areia úmida, ele filtra na meia e bebe aquela água. Tem algumas coisas de sobrevivência que tem um pouco de ciência: cheirar a carne para saber se está com cheiro de estragado, estar atento se não está com bactéria, toxinas etc. Então, mesmo em programas que não se propõem exatamente a divulgar conhecimento, tem informações que são passadas de maneira curiosa, dentro de um contexto atrativo.

Por outro lado, você tem filmes, como, por exemplo, Guerra nas estrelas, uma obra de ficção cheia de equívocos físicos, químicos e biológicos. E o filme é passado como se fosse assim referência de um mundo fora do nosso planeta, na verdade, se você for analisar ou ainda conversar com um físico, vai ver uma série de impropriedades.

Lucia Lehmann: Atualmente, grandes eventos, como shows, exposições, encontros de jogos, de música ou culturais, dirigidos a crianças ou ao público geral, têm sido realizados. Como você avalia tais eventos? 

Neuza Rejane: Em relação a temas relacionados a ciências, não acho que haja muitos eventos não; a maioria é de eventos culturais. Existem algumas exposições, mas ainda são os museus que promovem as maiores exposições. No Rio de Janeiro, de importância para a ciência, citaria o Museu Nacional, mas ainda temos pouca coisa. São Paulo tem mais atividades, tem museu itinerante, mais exposições extras e eventos. Neste ponto, o Rio, em relação a São Paulo, ainda tem muito a desejar. No Brasil, São Paulo realmente é uma referência na parte de museus e divulgação de ciências.

Lucia Lehmann: Finalizando, o que você acha importante destacar quando se fala em educar e criar interesse e gosto pela ciência nos dias de hoje, principalmente em se tratando dos jovens e crianças?

Neuza Rejane: É importante alimentar a curiosidade! A criança, o jovem, tem curiosidade, só que, com o tempo, eles vão ficando com uma série de limitações no modo de pensar. Temos muitas vezes um modo de educar de forma fechada, padronizada, que pode levar à perda do interesse. A criança precisa poder explorar. Ela pega um gongolo (animal de tamanho médio, que vive em solo úmido, tipo minhoca) e fica olhando, ela não tem medo. Pega uma formiga, acompanha a formiga, até o pai entrar e matar a formiga, e ainda dizer “mata a formiga senão ela vai te morder”. Matar, exterminar, a ideia única de que faz mal, de que chateia. A criança, que tinha curiosidade, passa a ver uma abelha, uma mosca, e a criar medos, mas ela não nasceu com medo da abelha e da mosca, alguém introduziu isso sem um pensar, sem um raciocínio. Direto: mata! A mesma coisa em relação à pessoa de cor, pessoas diferentes e de vários tons de pele. Sem uma influência do adulto, ela não vai ficar excluindo uma e outra, só que vem o adulto e diz ”não anda com ele, se afasta, não convive”. A criança começa a ter preconceito, afasta-se da curiosidade para com a natureza e vai se massificando, vai criando um medo em relação à natureza.

Grande parte do ensino tem muito de “não me questione”. Muitos dos que ensinam não conseguem dizer não sei, vou procurar saber sobre sua pergunta, a maioria dá um corte e já mata a curiosidade do jovem. “Temos um cronograma que precisamos seguir, x, y, z. Hoje não está no meu cronograma”.

Lucia Lehmann: Então, a educação tem uma parcela de contribuição nesta falta de interesse pela ciência. O despertar da curiosidade da criança, do jovem, e também do adulto, é importante não atrapalharmos esta vontade de saber, a curiosidade, a possibilidade de procurar e descobrir respostas.

Neuza Rejane: Exatamente. As pessoas são curiosas por natureza,  mas começam a perder a curiosidade. Acho que cientista é a criança que não cresceu! Criar ciência e divulgar ciência é não massificar,  não se deixar bitolar, buscar sempre uma coisa nova. Como eu sei sobre o sexo dos peixes? O que eu vou fazer com o piolho? Vou pesquisar piolho, vou me meter, porque  eu gosto, porque  eu quero saber para contar para os outros, é bem coisa de criança: porque  eu quero!

 

I Doutora em Psicologia.  Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Brasil.  Editora Associada da DESidades. E-mail: lehmannlucia@gmail.com

II Doutora em Ecologia e Recursos Naturais. Professora Associada do Instituto de Biologia, Universidade Federal Fluminense, Brasil. Atua na área de Ecologia, com ênfase em Ecologia Teórica e Aplicada. É professora do curso de Pós-graduação em Ciências e Biotecnologia (PPBI) e do Curso de Mestrado Profissional de Diversidade e Inclusão desta universidade. Atua na área de divulgação científica e publicação, e também na divulgação de produtos para promover a inclusão de cegos e surdos nas áreas das ciências biológicas.

Creative Commons License