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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades vol.5  Rio de Janeiro  2014

 

INFORMAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

 

A infância na (e a partir da) América Latina: produção, instituições e políticas de infância

“Pensar la infancia desde América Latina: un estado de la cuestión”, de Valeria Llobet (coord.)1

 

Gabriela MagistrisI

IUniversidade de Buenos Aires, Argentina.

 
Palavras-chave: Infância, Direito de crianças e adolescentes, Estudos sociais da infância, América Latina.
Palabras-clave: Infancia, Derechos de niños, niñas y adolescentes, Estudios sociales de infancia, América Latina.

 

 

Se há uma nota distintiva da América Latina é a da desigualdade. De fato, quando refletimos sobre a questão social nessa região, não se pode deixar de mencionar sua imersão em um contexto de potentes e persistentes desigualdades sociais, culturais, econômicas e étnicas; desigualdades que se conectam e se entrecruzam umas com as outras, atravessando diferentes divisões: classe social, idade, gênero, etnia. “Pensar a infância” implica, na verdade, não somente compreender as condições de existência e as significações sobre a infância, mas iluminar, ao mesmo tempo, a leitura sobre os processos sociais mais gerais. Produzir reflexões analíticas sobre a infância nos leva, desse modo, não só a uma análise sobre como emergem, produzem-se e se reproduzem as hierarquias sociais no interior dessa categoria social, mas também de que maneira se constituem os principais vetores de diferenciação social (Milanich, 2009). A divisão etária se transforma, assim, não em um eixo a mais a se levar em consideração, mas em um atravessamento sem o qual se tornará inócua a compreensão, com certa complexidade, do caráter de nossas sociedades contemporâneas. 

O presente livro é o resultado de um trabalho coletivo de uma rede de pessoas e instituições vinculadas ao Grupo de Trabalho do Clacso (Conselho Latino-americano de Ciências Sociais) denominado “Juventudes, Infâncias, Políticas, Culturas e Instituições Sociais na América Latina e no Caribe”2.

O trabalho reúne diversos artigos de pesquisadores dessa região que têm empregado um enorme esforço de reflexão e análise com respeito à conformação dos estudos da infância na (e a partir da) América Latina na atualidade. Não se trata de textos desconexos uns dos outros, ou que não se comunicam entre si; ao contrário, percebe-se  um tracejado de eixos articuladores vinculados com os contextos, modos de produção, instituições e políticas da infância na América Latina. Desse modo, constitui uma incalculável colaboração para a literatura regional, certamente escassa, sobre a questão social infantil, ao possibilitar uma perspectiva sociohistórica, crítica e contemporânea nesse continente, valendo-se das contribuições dos estudos e investigações precedentes3 e dando foco a alguns pontos nevrálgicos que constituem o núcleo das problemáticas sociais, vinculadas direta ou indiretamente à infância.

Por tudo isso, este livro representa um material significativo para a consolidação do campo de estudos da infância na América Latina, dando-nos uma visão atualizada e heterogênea das investigações sobre infância, no marco de uma forte aposta no diálogo interdisciplinar e pluralista, fazendo dialogar múltiplos enfoques e perspectivas, tanto teóricas quanto metodológicas. Além disso, consegue confluir artigos que consolidam o conhecimento acadêmico, mas que também alavancam o objetivo de transformação social, a partir de uma perspectiva situada, crítica e reflexiva.

O livro começa com um sugestivo prólogo escrito por Diana Marre, no qual se faz uma reconstrução histórica do conceito e da categoria de infância, desde a clássica obra de Ariés até a atualidade. Para tal, recuperam-se dois eixos centrais: a historicidade da categoria infância e a interdisciplinaridade.

Na introdução feita por Sara Victoria Alvarado e Valeria Llobet, anuncia-se a complexidade que consiste pensar as infâncias e as juventudes no contexto latino-americano, sustentando a necessidade de propor a reflexão, considerando a pluralização da infância e atendendo à multiplicidade de experiências e modos de vida de meninos e meninas. Essas pluralidade e heterogeneidade não emergem somente do lado das crianças, mas também do interlocutor “pensante” da região, cruzando diferentes perspectivas disciplinares, modos de construção dos objetos de investigação e maneiras de reconstrução dos contextos sociopolíticos e históricos.

A publicação se divide em três partes, com ênfase nos contextos, modos de produção da infância e nas instituições e políticas na América Latina.

Na primeira parte, temos o artigo de María Camila Ospina-Alvarado, Sara Victoria Alvarado e Héctor Fabio Ospina, no qual refletem sobre a “Construção social da infância em contextos de conflito armado na Colômbia”. O leitor encontrará aqui uma análise construtivista centrada nas crianças que vivem e/ou têm vivido  no contexto do conflito armado na Colômbia, direta ou indiretamente. O foco está na construção social gerada através das interações dos meninos e meninas com outros atores, entre os quais sobressaem as famílias, os pares, os grupos armados legais e ilegais, os docentes, os agentes comunitários. Os autores apresentam uma compreensão sistêmica e complexa dessas crianças, a partir do reconhecimento de seus recursos e potenciais individuais e coletivos.

No artigo seguinte, René Unda Lara e Daniel Llanos Erazo escrevem sobre a “Produção social de infâncias em contextos de mudanças e transformações ’rurbanas‘ (resultado da mescla das palavras ‘rural’ e ‘urbanas’). Exploram nesse texto as continuidades, mudanças, rupturas e transformações que operam no contexto de sociedades nas quais a diferenciação entre o rural e o urbano expressa misturas, hibridações e heterogeneidades, que favorecem novas geografias físicas e sociais. Recupera-se a visibilidade crescente da infância em um contexto que localiza o urbano e a acumulação econômica como equivalentes à felicidade e à liberdade, o que incitaria meninos e meninas a deixarem de ser crianças o quanto antes para migrar até a cidade e desfrutar dos benefícios que as grandes urbes supostamente asseguram, ao mesmo tempo em que promoveria uma pretendida liberação dos adultos da comunidade.

Na segunda parte, denominada “Narrativa, discurso e cultura. Compreensão e produção de ‘infância’ e do infantil”, Marieta Quintero Mejía, Jennifer Mateus Malaver e Natalia Montaño Peña realizam um sugestivo trabalho sobre as narrativas do dano moral de crianças em experiências extremas. Sustentam que essas experiências não só estão presentes nos relatos de tragédias, mas que se fazem concretas nas narrativas contemporâneas de meninos e meninas. Esses relatos apresentam como particularidade o fato de desnudarem a crueldade humana, o grau de precariedade, o mal-estar e a dor na vida comunitária. Relatos que se articulam com as representações da infância que remarcam a natureza frágil e vulnerável como qualidade “natural” de tais sujeitos, e com o grau de indefensibilidade dos meninos e meninas em relação a seus vitimários, isto é, às situações de desigualdades geracionais.

De sua parte, Isabel Orofino, em seu artigo “Mídias, culturas e infâncias: reflexões sobre crianças, consumo cultural e participação”, reflete sobre o entrecruzamento das infâncias e os meios de comunicação a partir de aportes teórico-metodológicos que tomam como ponto de partida a compreensão das crianças como atores sociais, inseridos em contextos particulares. O eixo de análise se coloca sobre crianças que aparecem cada vez mais atravessadas pela crescente midiatização de conteúdos que não foram especificamente produzidos para esse público.

Em seguida, María Edith Stephani Chacón Bustillos, em seu texto “Infâncias e saberes especialistas. O olhar da infância a partir das teses de graduação de Psicologia”, investiga de que maneira a infância se realiza no discurso da Psicologia como o discurso especialista por excelência, conseguindo assumir o lugar de interlocução privilegiada da infância. Para isso, explora a institucionalização do âmbito acadêmico universitário de Psicologia enquanto espaço habilitador para a acreditação e reconhecimento dos especialistas, mediante a análise das teses de graduação que os estudantes escrevem para obter seu título acadêmico.

Na terceira parte, chamada “Instituições, políticas e categorias de ‘infância’, Myriam Salazar Henao e Patricia Botero Gómez encabeçam a seção com um interessante artigo denominado “Política, infância e contextos de vulnerabilidade. Traços e narrativas em um contexto local da Colômbia”. As autoras exploram as narrativas sobre as condições subjetivas, objetivas e as pautas institucionalizadas que assinalam a vivência dos direitos a partir da política social no âmbito local, as regularidades e rupturas identificáveis entre as vivências de crianças em seus contextos, nas diferentes práticas institucionais e as aplicações normativas no cumprimento dos direitos. Os principais resultados da investigação descrevem as tensões e categorias emergentes em três dimensões que se apresentam inter-relacionadas: ético-afetiva, material/institucional e simbólica/política/cultural.

Na sequência, María Carolina Zapiola escreve um capítulo intitulado “No alvorecer do institucional. O surgimento de instituições de reforma para menores na Argentina”, no qual se indaga a respeito das condições que permitiram a segmentação da infância argentina em dois grupos diferenciados, as crianças e os menores, assim como sobre as modalidades que adquiriu tal processo e suas implicações no estabelecimento de políticas públicas específicas para menores entre as décadas de 1880 e 1930. Para isso, reconstrói a estrutura institucional que começou a se formar nessa época, enfocando a fundação do Asilo de Correção de Menores Varões da Capital (1898), a qual constituiria um veículo privilegiado para a criação da menoridade, assim como do modelo das políticas públicas para menores baseado em soluções provisórias e materialmente factíveis como um tipo de resposta à menoridade. 

Carla Villalta avança com seu artigo sobre “Estratégias políticas e valores locais. O impacto da apropriação criminal de crianças na sociedade argentina”. Nesse artigo, a autora assevera que a apropriação criminal de crianças desenvolvida durante a última ditadura militar na Argentina (1976-1983), como “evento crítico” (Das, 1995), teve efeitos políticos e sociais que contribuíram tanto para redefinir e reorganizar significados e categorias tradicionais, quanto para dar forma a uma nova retórica pública. É analisada a incidência desse discurso na sociedade, plasmada através de distintos mecanismos, muitos dos quais constituíam procedimentos jurídico-burocráticos que não eram inovadores, mas que estavam arraigados em práticas institucionais de longa data na Argentina.

Por último, o artigo de Valeria Llobet – “A produção da categoria ‘criança-sujeito-de-direitos’ e o discurso psi nas políticas sociais na Argentina. Uma reflexão sobre o processo de transição institucional” – investiga a imbricação entre o discurso psi e o discurso de direitos no contexto argentino, enfocando as estratégias de atores institucionais e as significações sobre a infância e os direitos articuladas em tais estratégias. Apresenta-se um debate com as perspectivas que visualizam de maneira normativa a ideia de “transformação”, assim como com aquelas que identificam de maneira totalizadora o discurso de direitos com estratégias de governo populacional.

Concluindo, o livro “Pensar a infância a partir da América Latina” oferece uma incalculável contribuição no caminho de fortalecer e consolidar o campo dos estudos sociais sobre a infância, enquanto se aprofunda na reflexão sobre as potencialidades de transformação social na região.

Referências

Cicerchia, Ricardo, Devoto Fernando y Madero Marta. Historia de la vida privada en la Argentina. Buenos Aires, Taurus, 1999.         [ Links ]

Guy, Donna. The State, the Family and the Marginal Children in Latin America. Em: Hecht, Tobias: Minor Omissions. Children in Latin American History and Society. Madison, U. Wisconsin Press, 2002.         [ Links ]

Hecht, Tobias. Minor omissions: children in Latin American history and society. Madison, University of Wisconsin Press, 2002.         [ Links ]

IFEJANT. Infancia y adolescencia en América Latina. Aportes desde la sociología. Tomos I y II, IFEJANT, Lima, 2003.         [ Links ]

Jackson Albarrán, Elena y Sosenski, Susana (coords.). Nuevas miradas a la historia de la infancia en América Latina: entre prácticas y representaciones. México, Universidad Nacional Autónoma de México, Instituto de Investigaciones Históricas. Serie Historia Moderna y Contemporánea 58, 2012.         [ Links ]

Llobet, Valeria (comp.). Pensar la infancia desde América Latina: un estado de la cuestión. 1ª ed. Buenos Aires: CLACSO, 2013.         [ Links ]

Lvovich, Daniel y Suriano, Juan  (Eds.). Las políticas sociales en perspectiva histórica. Argentina, 1870-1952. Buenos Aires, UNGS - Prometeo Libros. Libros de la Universidad - Filosofía e Historia Nº 31, 2006.         [ Links ]

Milanich, Nara. Children of Fate. Childhood, Class, and the State in Chile, 1850-1930. Durham, Duke University Press, 2009.         [ Links ]

Potthast, Bárbara y Carreras, Sandra (Eds.). Entre la familia, la sociedad y el Estado. Niños y jóvenes en América Latina (siglos XIX-XX). Madrid-Frankfurt, Iberoamericana-Vervuert, 2005.         [ Links ]

Rodríguez, Pablo (Coord.). La familia en Iberoamérica 1550-1980. Bogotá, Convenio Andrés Bello – Centro de Investigación sobre la dinámica Social, Universidad Externado  de Colombia, 2004.]

Rodríguez, Pablo y Mannarelli, María Emma (Coords). Historia de la infancia en América Latina. Bogotá, Editorial Universidad Externado de Colombia, 2007.         [ Links ]

Data de recebimento: 20/08/2014
Data de aceitação: 20/11/2014

 

1 Resenha traduzida por Thais Passo Marçal.

2 Trata-se de uma equipe que reconhece seu antecedente no Grupo de Trabalho “Juventudes e Práticas Políticas”, que foi se ampliando e consolidando com pesquisadores da região que focalizavam seu olhar nas infâncias de nosso continente até que, em 2013, formou-se um grupo que envolvia ambas preocupações, tanto as juventudes quanto as infâncias.

3 Os estudos de corte sociohistóricos, de médio ou longo prazo, com respeito à infância na América Latina, não são abundantes. É possível encontrar estudos centrados na vida privada e nas famílias, nas políticas sociais ou na história da educação (vale mencionar os trabalhos de Rodríguez, 2004; Llvovich e Suriano, 2006; Cicerchia, Devoto e Madero, 1999), mas em todos esses casos, tomam-se as crianças não como atores centrais, mas como marginais e/ou acessórios ao tema que se investiga. Além disso, é mais difícil ainda encontrar estudos de recorte regional sobre a temática, tanto na produção local quanto na leitura feita desde os contextos anglofalantes dos estudos latino-americanos. De qualquer maneira, vale a pena mencionar algumas exceções, que de alguma maneira são antecedentes a esta investigação e publicação coletiva: Potthast e Carrera, 2005; Rodríguez e Mannarelli, 2007; Hecht, 2002; Guy, 2002; Jackson e Sosenski, 2012; IFEJANT, 2003.


Professora em Ciências Jurídicas (Universidade de Buenos Aires, Argentina). Mestre em Direitos Humanos e Políticas Sociais (Universidade Nacional de San Martín, Argentina), doutoranda em Ciências Sociais (Universidade de Buenos Aires, Argentina). 

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