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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades vol.7  Rio de Janeiro June 2015

 

ESPAÇO ABERTO

 

A violência contra jovens no Brasil: com a participação do Estado?

 

La violencia contra los jóvenes en Brasil: ¿con la participación del Estado?

 

 

 

Entrevista de Heloisa Dias BezerraI com Dijaci David de OliveiraII

IUniversidade Federal de Goiás, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

IIUniversidade Federal de Goiás, Faculdade de Ciências Sociais.

 


Palavras-chave: juventude, violência, maioridade penal.
Palabras-clave: juventud, violencia, mayoría de edad.

 


Heloisa Dias Bezerra: Fale um pouco sobre a sua formação e sua história pessoal, como você começou a se interessar pela temática da violência contra jovens?

Dijaci David de Oliveira: Eu sou sociólogo e fiz a minha tese de doutorado sobre o desaparecimento de pessoas, passando por temas como direitos humanos, segurança pública e, sobretudo, a violência policial e a violência contra jovens. Sempre trabalhei com o desaparecimento de pessoas. Nos últimos tempos, eu comecei a notar, particularmente aqui no estado de Goiás, denúncias muito fortes sobre o desaparecimento forçado de jovens que não são investigadas porque boa parte da sociedade tem uma indisposição muito veemente contra os jovens, ao mesmo tempo que se queixa da violência contra eles. Essas contradições me levaram ao debate sobre o problema da redução da maioridade penal. 

Heloisa Dias Bezerra: Na sua tese de doutorado você já trabalhava com juventude?

Dijaci David de Oliveira: Quando trabalhei com o desaparecimento de pessoas, eu constatei que no Brasil existe um preconceito arraigado contra os jovens. Por exemplo, no caso de adolescentes, toda vez que as mães chegavam às delegacias para relatar o desaparecimento de um filho, os policiais diziam: “Ah, não vamos perder tempo com eles não”. Então, dá para perceber que há um discurso fortíssimo dentro da polícia de que o jovem é irresponsável, que ele desaparece porque resolveu sair para uma festinha, que não está nem aí pra família. Mas nós percebemos, na pesquisa do doutorado, um alto índice de desaparecimento de pessoas na adolescência, principalmente mulheres. O desaparecimento de garotas entre 12 e 15 anos, certamente relacionado à exploração sexual dessas adolescentes, chega a quase 40% do total de desaparecimentos. No Pará, a polícia constatou que elas desapareciam de suas cidades, eram levadas para municípios próximos, presas em prostíbulos durante meses ou anos, dois, três anos, depois reapareciam em outras cidades, abandonadas.

Heloisa Dias Bezerra: Tem aí uma questão de gênero, além da faixa etária: não é qualquer desaparecimento, são os sujeitos mais vulneráveis.

Dijaci David de Oliveira: Agora, aqui no estado de Goiás, a gente percebeu não somente a prática do desaparecimento, mas também a da violência letal contra os jovens.

Heloisa Dias Bezerra: Nos últimos anos, a sociedade brasileira viu crescer significativamente o número de homicídios de jovens, especialmente daqueles oriundos das famílias de baixa renda, negros ou pardos.  A que se deve essa situação?

Dijaci David de Oliveira: Houve uma redução das mortes em geral no Brasil. Quando a gente pega os dados, percebe que as chamadas mortes “naturais” foram reduzidas, pois melhorou o sistema de saúde, saneamento, habitação. Mas, por outro lado, houve um aumento das mortes chamadas violentas ou de causas externas, homicídios, suicídios, acidentes trânsito. E com algumas características incômodas. Quem é que está morrendo? São os jovens da periferia, são jovens pobres, negros. Só para se ter uma ideia, nos últimos 20 anos, o número de homicídios de jovens negros dobrou em relação ao de jovens brancos. Ao mesmo tempo, o mercado de trabalho não os acolhe, os espaços culturais não os atendem e há, de fato, uma incidência muito significativa de mortes violentas entre jovens da periferia.

Heloisa Dias Bezerra: Você está falando do crescimento do número de mortes entre jovens em um segmento muito específico, de jovens de famílias de baixa renda. Tem aí um corte econômico e também racial?

Dijaci David de Oliveira: Sim, quando a gente observa quem são esses jovens, vê que, de fato, há um recorte racial, muito significativo, de mortes de jovens negros e de baixa renda. A gente vê que realmente quem está morrendo são os jovens pobres e negros, vítimas de violência por armas de fogo. Os negros ainda estão longe dos direitos dados aos brancos.

Heloisa Dias Bezerra: Você está dando destaque a um tipo de homicídio envolvendo armas de fogo.

Dijaci David de Oliveira: Há homicídios cometidos com uso de facas, pedras, espancamentos, diversas formas de violência física. Mas, no Brasil, a maior parte dos homicídios envolve o uso de armas de fogo. E o segmento jovem está muito envolvido com o uso de arma de fogo. Pensa bem, em um conflito, se uma pessoa tem uma arma de fogo em casa, vai lá, pega a arma e pronto. Se não tem a arma, principalmente em casa, aumenta a probabilidade do conflito não resultar em morte. 

Heloisa Dias Bezerra: Então, há mais homicídio por arma de fogo do que outras ocorrências.

Dijaci David de Oliveira: Realmente, as mortes por arma de fogo estão superando até mesmo os acidentes de carro. E os jovens são as vítimas potenciais. 

Heloisa Dias Bezerra: Quem são os principais autores dessas mortes? As vítimas são essas pessoas vulneráveis, jovens de baixa renda, negros?

Dijaci David de Oliveira: Nós temos os jovens como vítimas e os jovens como autores. Aí vem aquela pergunta bem capciosa: se os jovens são os maiores perpetradores, então evidentemente que os jovens são perigosos. Não, isto não é fato, os jovens são as vítimas. Os dados estatísticos mostram que a maior incidência de violência é contra os jovens. Eles são perpetradores de violência? Sim, mas é preciso distinguir, pois a taxa de violência entre jovens adolescentes é de cerca de 2% a 3%, mas, no debate sobre a redução da maioridade penal, entra tudo na mesma conta, na mesma faixa de classificação: os jovens na faixa etária de 16, 17 anos, são colocados entre os jovens mais velhos, de 18 a 25 anos. No caso de homicídios entre adolescentes, a taxa chega a cair para 1%.

Heloisa Dias Bezerra: Como a polícia e as forças de repressão, em geral, vão aparecer no debate sobre a prática de homicídios contra jovens?

Dijaci David de Oliveira: Nós temos um modelo de socialização que exige dos jovens uma constante demonstração de força, de virilidade, então, de certo modo, o mundo adulto instiga os jovens a resolverem os conflitos por enfrentamento, com violência. E, quando isto ocorre, o Estado e as forças repressivas, entendem que devem tratar toda forma de conflito também com uso de violência. No estado de Goiás, presenciamos as queixas das mães, especialmente no caso de jovens e adolescentes desaparecidos, de que em vários casos havia indícios de que as forças policiais estavam envolvidas diretamente em ações de violência contra os jovens. Nós temos recentemente dois casos sendo investigados e há indícios claros de que a polícia participou do desaparecimento dos jovens.

Heloisa Dias Bezerra: A sociedade é conivente, aceita esta situação? Nós podemos apontar as forças sociais que apoiam este comportamento das forças policiais?

Dijaci David de Oliveira: A sociedade, de modo geral, apoia fortemente. Cada um está vivendo o seu dia a dia, não há sentimento de pertencimento, de vida comunitária. Ninguém quer saber de problema, se envolver, todos querem quer cuidar da própria vida, da sua pequena rede. Há pessoas que preferem entrar e sair sozinhas da garagem, que evitam compartilhar o elevador, exatamente para não ter que se encontrar com os vizinhos. Então, quando tomam conhecimento de que houve um desaparecimento, um homicídio, algum problema qualquer, essas pessoas esperam apenas que a polícia resolva da maneira mais rápida e eficiente. Só que a eficiência da polícia é com uso de tortura, violência. Muitos dos chamados “autos de resistência” são relatados como casos em que, supostamente, a polícia foi chamada para conversar, para abordar um jovem, e quando chegou no local foi recebida com violência. Em Goiânia, nós encontramos quase 30 casos de “autos de resistência” nos últimos dois anos. Em todos eles, a polícia diz que foi alvo de uma ação dos jovens, mas o fato é que a polícia foi chegando e atirando, disparando cinco, seis tiros pelas costas. Então, como é possível afirmar que quem está enfrentando a polícia tome um tiro nas costas? Quem está enfrentando estaria de frente, e não de costas.

Heloisa Dias Bezerra: Então, do lado da sociedade, a gente teria um medo generalizado e também um individualismo que parece nos levar a não querer olhar a situação, a se acomodar, e até mesmo se sentir aliviado com a repressão policial que culmina nessas mortes?

Dijaci David de Oliveira: Nós vivemos em uma sociedade altamente midiatizada. Temos que pensar como a mídia transforma um tiro em um tiroteio. A repetição de um mesmo tiro, que reaparece diversas vezes. Então, as pessoas vivem esse pânico.

Heloisa Dias Bezerra: Um pânico social generalizado.

Dijaci David de Oliveira: Isto se repete nas redes sociais, nos noticiários da Internet, sem que haja nenhum debate sobre redução das armas.

Heloisa Dias Bezerra: Os inquéritos sobre os “autos de resistência” nem sempre são iniciados ou não têm prosseguimento. Por que, de uma forma geral, não parece haver inquérito sobre os “autos de resistência” e a autoridade policial é pouco questionada?

Dijaci David de Oliveira: Nós temos o problema da segurança e o da autoridade. O governador vai ser popular se ele for capaz de reduzir a criminalidade, se for capaz de dar segurança. É uma prioridade dos governantes, e eles precisam da força policial, mas o policial também não tem segurança, não tem seguro de vida, nem condições para enfrentar a violência, a não ser com uso de tortura, de métodos condenáveis. Essa é a polícia que vai dar a resposta para os governantes. Então, recebem todo o respaldo jurídico. A polícia é parte do aparato de dominação. O poder da polícia no Brasil é muito forte e nada do que a polícia faz é objeto de investigação, nem de julgamento. 

Heloisa Dias Bezerra: Então, só há inquérito sobre os “autos de resistência” se tiver alguma prova, uma gravação, algo que mostre que realmente houve exacerbação da força, se tiver repercussão na mídia. Caso contrário, ele é arquivado e a investigação desaparece?

Dijaci David de Oliveira: Olha, dependendo do caso, nem isto acontece. Você pega, por exemplo, o desaparecimento do jovem Murilo Soares Rodrigues, de 12 anos, aqui no estado de Goiás, vítima da polícia, da Rotam. O Ministério Público apresentou 27 testemunhas que viram a Rotam carregar este jovem, de 12 anos, e um outro, de 19, e tem a gravação de um policial, dizendo “Ah, se a gente tocar fogo com pneu, será que sobra vestígios?”. E não aconteceu nada. Nem com as 27 testemunhas, nem com a gravação. O juiz falou que nada disto era prova suficiente, “arquive-se”. Ou seja, às vezes, nem com provas substantivas se consegue condenar, porque se trata daqueles envolvidos que fazem parte de uma tropa de elite.

Heloisa Dias Bezerra: Uma tropa de elite autorizada a matar.

Dijaci David de Oliveira: Exato, infelizmente.

Heloisa Dias Bezerra: Como você analisa a relação que o aparato policial estabelece com este segmento da população, esses jovens de origem social pobre e de cor parda ou negra?

Dijaci David de Oliveira: A polícia tenta produzir medo entre os jovens. Eu tenho ouvido sobre uma prática que vem ocorrendo, em que a polícia pega os jovens, coloca para brigar e vai filmando, manda um bater no outro. Em outros casos, eles filmam os jovens fazendo sexo oral uns nos outros, fazem a edição e jogam nas redes sociais e, com isso, vão produzindo identificação, tentando desqualificar esses jovens, descaracterizar, humilhando publicamente, de forma que eles vejam quem é que manda e não reajam mais, pois podem ser vítimas fáceis. Daí o “auto de resistência” vai  aparecer também na reação desses jovens a este tipo de humilhação. Eles não aceitam, querem ser respeitados, querem ser tratados como cidadãos. Eles sabem que existem leis, só que não para eles, existe lei para os jovens ricos e não para eles que são pobres.

Heloisa Dias Bezerra: A relação permanente, assim, é de tensão, de um confronto que acaba sendo humilhante para os jovens.

Dijaci David de Oliveira: É uma relação tensa, de constante confronto e falta de confiança. Toda a ideia de uma polícia comunitária, de que a polícia tenha uma relação com a comunidade, que se veja a polícia como uma instituição colaboradora, na verdade, não acontece. A polícia não é uma instituição colaboradora, não tem interesse na comunidade, é uma instituição que desrespeita sistematicamente as comunidades pobres, os jovens, e continua a usar de práticas de humilhação, violência, pois acha que é o que tem que fazer. Eles aprendem isso na Academia. Fazem os cursos de direitos humanos só por fazer, porque, na prática, eles dizem “olha, tem que resolver mesmo é na bala”, ou seja, a polícia é treinada para entrar na guerra, para bater, dominar, para matar. Não temos uma polícia capaz de dialogar com as pessoas. Ela é treinada para entrar em “guerra”. Quem é treinado para uma guerra, não usa palavras, usa apenas a força. Não foi treinada para ouvir, mas apenas para dar ordens. Os autos de resistência, se é que existem, que respondem por muitas mortes, não são fruto da má educação, da truculência dos jovens. Pelo contrário, seria uma forma de resistência aos abusos cometidos pela polícia, que já chega batendo, empurrando e tratando com desrespeito.

Heloisa Dias Bezerra: Qual o perfil dos jovens que estão sendo encarcerados ou mortos com base nessa política de segurança que permite os autos de resistência?

Dijaci David de Oliveira: Quando a polícia vai para as ruas, para onde ela vai? Para a periferia. Quem vão prender? Jovens de periferia. Quando vão para os ambientes mais caros, quem eles param para revistar? Jovens negros e pobres. Já têm um padrão: usa boné, camiseta e bermudão, é suspeito. Outro dia, um policial me falou “Ah, professor, a maior parte das pessoas que prendemos com drogas são negros”. Claro, eles não param e revistam os brancos, logo não vão encontrar drogas com eles. Este é o problema, eles criaram um estereótipo das pessoas que usam e vendem drogas. Tem um filme recente, vencedor do Festival de Cinema de Brasília de 2014, que menciona uma prática policial racista, em que a polícia chegava em um ambiente e dizia “branco sai, preto fica”. Aliás, este é o título do filme, do diretor Adirley Queirós, um cineasta goiano atualmente radicado em Ceilândia, Brasília. 

Heloisa Dias Bezerra: Que formas de violência, além desta extrema, que é o homicídio, têm atingido os jovens pobres mais frequentemente?

Dijaci David de Oliveira: A agressão é uma forma de violência sistemática. Fala-se muito de briga entre torcidas organizadas, das gangues, mas a agressão não vem somente dos grupos organizados. O jovem sofre violência porque não tem respaldo social, então sofre com violências que vêm de todos os lugares, do ambiente familiar, da vizinhança, do mercado de trabalho. Se a gente tomasse os dados de agressão, teríamos números extraordinários, mas estes números não aparecem, a maior parte não figura como boletim de ocorrência e a agressão é percebida como algo menos importante. O que é a agressão? Nada. É como no desaparecimento de pessoas, em que a polícia simplesmente diz que é insignificante se não houve um sequestro, um roubo. Eu entrevistei delegados em Brasília e perguntei o motivo dessa indiferença. A resposta mais comum era de que todos os dias eles tinham dezenas de ocorrências – roubo de cargas, sequestro, assalto. Por que, então, ele perderia tempo com algo insignificante como um desaparecimento? Você acha que um delegado vai perder tempo com alguém que levou socos? Não vai. Essa violência de menor intensidade não é registrada, será esquecida, mas fará parte do repertório de socialização de quem apanhou. 

Heloisa Dias Bezerra: Não entra nas estatísticas.

Dijaci David de Oliveira: Elas vão ficar apenas na memória do indivíduo, nas práticas de socialização violentas. É o bullying. A lógica do bullying é mostrar inúmeras práticas dentro da escola que são permeadas por algum tipo de agressão mais ampla, como sexismo, homofobia, preconceito racial e de origem. Se é nordestino, negro, deficiente, não vale nada.

Heloisa Dias Bezerra: De que forma o tráfico de drogas se associa à violência contra jovens?

Dijaci David de Oliveira: Em algumas regiões isso é mais tenso. No estado de Goiás, o tráfico de drogas é recente, diferente de outros lugares em que já aparece bem mais estruturado, como Rio de Janeiro, Espírito Santo, São Paulo. O que a gente sabe é que quando começa a haver uma renda que não vai ser encontrada dentro do mercado de trabalho formal, a prática da violência se torna mais complexa e resistente. Se a renda média é de R$ 1.800 a 2 mil, por que os indivíduos vão abrir mão desse emprego? Se o menino pode ganhar R$ 2 mil, por que ele vai abrir mão de uma renda que ele só teria com o ensino superior?

Heloisa Dias Bezerra: Então, o tráfico de drogas abre as portas do mercado de trabalho.

Dijaci David de Oliveira: Exatamente. E quando faz isto, se institucionaliza de uma forma que não se consegue enfrentar. O tráfico de drogas de alta rentabilidade, como o da cocaína, por exemplo, ao se enraizar, fornece ao indivíduo poder, possibilidade de consumo e renda fácil, sem toda aquela necessidade de ter que conquistar o mercado de trabalho, ter escolaridade. Os teóricos da educação já mostraram que esses grupos não vão romper essa barreira fácilmente. Ou seja, a escola não foi feita para garantir que esses garotos se tornem empresários ou que ocupem cargos importantes.

Heloisa Dias Bezerra: Refletindo sobre outras formas de violência, poderia falar um pouco sobre a violência praticada contra jovens trans e homossexuais?

Dijaci David de Oliveira: Na pesquisa que fiz sobre desaparecimento de pessoas, me chamou a atenção o grande número de jovens que figuravam como desaparecidos, mas que, na verdade, haviam fugido de casa porque não conseguiam falar da sua condição sexual, além dos jovens expulsos de casa pelos pais. É uma situação problemática, pois, ao mesmo tempo em que se cria a possibilidade de conquista, de um cenário positivo em que alguns  segmentos começam a ganhar direitos, a gente cruza com uma reação muito forte até mesmo na política. Aquilo que no Congresso aparecia como possibilidade de crescimento, agora se configura como uma ameaça. Na Comissão de Direitos Humanos se discutia a possibilidade do reconhecimento da união homoafetiva. Agora não. Agora temos proposições que tentam eliminar o que já foi conquistado, um cenário de crescimento dos conservadores que querem rever os direitos conquistados. Isso colabora para o crescimento daquele segmento que tinha um certo receio de se manifestar, de acusar. Agora esses indivíduos conservadores se sentem mais à vontade para assumir abertamente uma postura mais violenta e dizer “sou a favor da ditadura”, “sou contra os homossexuais”.

Heloisa Dias Bezerra: Essas vitórias parciais, como o casamento homoafetivo, algumas políticas que garantiram direitos para o segmento trans e homossexual, isto fez aumentar a violência como uma reação da parte conservadora da sociedade em relação aos direitos adquiridos?

Dijaci David de Oliveira: É uma discussão complexa, porque tem a resistência religiosa, tem a resistência da sociedade machista e homofóbica, a gente não sabe exatamente o que está contribuindo para a violência em curso. Eu não sei até que ponto a ascensão do segmento conservador acaba contribuindo  para o aumento da violência. A gente sabe que há uma reação. Em São Paulo, onde existe a Parada Gay, nesses últimos anos, a gente já viu episódios de atentados, de violência, que partiram de grupos que até então se manifestavam fazendo piadinhas. Esta é a novidade. Segmentos que agora aceitam a agressão. Você tem um movimento de quase três milhões de pessoas que estão vulneráveis a um atentado com bomba e ninguém sabe quem pode ser atingido. Essa incerteza é que vai produzindo medo.

Heloisa Dias Bezerra: E quanto à redução da maioridade penal, isto pode implicar em aumento da criminalização dos jovens pobres?

Dijaci David de Oliveira: Os jovens estão pagando um preço muito caro por diversos problemas da sociedade, principalmente, estão sendo responsabilizados pelo aumento da violência, que não é cometida especificamente por eles. Eles são o bode expiatório da história. Quando se tem estatísticas que mostram que os jovens menores de 18 anos respondem por 2% da violência, e todo mundo quer reduzir a maioridade porque acha que vamos ter um cenário totalmente diferente na segurança, tem um segmento que vai pagar bem alto por isto. Mas deveria ser o segmento mais protegido, afinal, é o que mais morre no Brasil.

Nenhum país que aprovou esse tipo de medida obteve a redução da violência. A aprovação da lei do crime hediondo é outro exemplo de insucesso. O criminoso não tem direito à fiança, a lei é mais dura, mas não mudou nada no Brasil. A redução da maioridade penal é um tipo de política de endurecimento das penas e de mais encarceramento. O Brasil já experimentou as duas coisas, as leis ficaram mais rígidas, como no caso da lei do crime hediondo, e hoje encarcera-se três vezes mais do que na década de 1990. Nem por isso os crimes diminuíram. Me desculpe, mas não existe expectativa de redução da criminalidade. Existe má-fé.

Nos Estados Unidos, o que garantiu a redução da criminalidade entre jovens foram as melhorias nas políticas sociais. Mais oferta de emprego, bolsas de estudo para os jovens infratores concluírem a educação básica, acompanhamento das famílias.

Heloisa Dias Bezerra: A redução da maioridade penal requer a revisão do artigo 228 da Constituição Federal, que define um limite etário quanto à responsabilidade social e de consumo dos indivíduos.

Dijaci David de Oliveira: A PEC 171/93, do ex-deputado Benedito Domingos, do Distrito Federal, não se diferencia das outras propostas de redução da maioridade penal. Nós temos projetos de autoria de José Roberto Arruda (PSDB), Benedito Domingos (PP), Osório Adriano (DEM), Alberto Fraga (DEM), e todos têm como forte apoiador o empresário Osório Adriano, que é dono da maior revendedora autorizada Volkswagen em Brasília. O relator da PEC 171/93 é o delegado Laerte Bessa (PR), da bancada da bala. Isso evidencia o interesse do segmento de revenda de automóveis para jovens ricos de 16 e 17 anos. Venderão muitos carros para eles. É isso que importa e não a segurança, como afirmam. Em busca do lucro, não medem esforços nem se importam com os problemas que surgirão. Imagine como será o mercado de exploração sexual comercial sobre os adolescentes de 16 e 17 anos ou o mercado de bebidas sobre esse segmento. Os estragos não serão pequenos. Todos nós sabemos que o automóvel está por trás dos altos índices de mortalidade juvenil, juntamente com o álcool. O efeito será trágico.

Heloisa Dias Bezerra: Que outras consequências sociais a gente pode esperar com a exclusão ou revisão desse artigo da nossa Constituição?

Dijaci David de Oliveira: Dramáticas, eu diria. Por exemplo, a bebida é a droga mais consumida na sociedade brasileira, e é uma droga legal, que responde por um forte percentual de suicídios, de práticas de violência, de acidentes. Com a redução da maioridade penal, os adolescentes que hoje vão aos shoppings poderão facilmente pedir uma cerveja. Imagina, se os jovens podem dirigir, se podem ser presos, o que é tomar uma cerveja?
Atualmente, mesmo que o consumo de bebida alcoólica seja proibido para os adolescentes, cerca de 25% na faixa etária de 16 e 17 anos já consumiram alguma bebida alcoólica. E quando chega aos 18 anos, esse percentual praticamente dobra. Com o fim do limite proposto no artigo 228 da Constituição Federal, o que teremos? Existem boas possibilidades desses índices passarem para as faixas etárias mais baixas. Se adolescentes de 16 e 17 anos passam a beber legalmente, consequentemente aumenta o consumo entre os jovens de 14 e 15 anos.

Heloisa Dias Bezerra: Desdobramentos em termos de permissividade do que hoje não é legal – consumo de carros, de bebidas, de cigarro...

Dijaci David de Oliveira: Uma série de mudanças em diversas esferas e também no mercado de trabalho. Se hoje os jovens das classes baixas já são empurrados para abandonar a escola e começar a trabalhar aos 17, 18 anos, isso vai acontecer aos 15, 16 anos. Eu acho que vamos ter problemas também na finalização da educação básica, com mais adolescentes abandonando o ensino médio muito mais cedo. Se o objetivo da redução da maioridade penal é ampliar a segurança, o caminho escolhido é muito ruim. Vai intensificar a vulnerabilização dos jovens, incidir no aumento da violência em geral contra esses jovens. Vamos pensar na exploração sexual comercial. Se hoje existe um assédio para as garotas posarem nuas para as revistas aos 18 anos, esse assédio vai recair sobre as adolescentes de 16, 17 anos. Vai ser a grande novidade do mercado. Haverá uma pressão do mercado pornográfico, da prostituição, sobre as faixas etárias que estão logo abaixo, sobre as meninas e meninos de 14, 15 anos. São os efeitos perversos da redução da maioridade.

Heloisa Dias Bezerra: A gente pode falar de um expediente legal, que vai legitimar o aumento de violências contra os jovens?

Dijaci David de Oliveira: Com certeza. Vai permitir mais violências contra os jovens e aumentar a vulnerabilidade, pois estarão mais expostos à punição, apesar e em consequência da maior permissividade. A questão mais complicada é o que vem em decorrência. Por exemplo, em algumas regiões de São Paulo, ficou constatado que há maior incidência de criminalidade em locais de muito comércio voltado para a venda e consumo de bebida alcoólica. Mas nós estamos criando uma lei para diminuir a violência, autorizando que mais jovens possam participar desses ambientes, desse tipo de consumo. Tem um lado muito perverso nessa coisa toda: todos os projetos trabalham com a aplicação do dispositivo conhecido como discernimento. Ou seja, nós vamos definir se o jovem sabia ou não o que estava fazendo. E o que significa o discernimento? Significa que se vai perguntar ao jovem que cometeu um crime se ele sabia o que estava fazendo. E quem é que pode ter mais condição de ter discernimento? Claro que é o jovem da classe pobre. O filho da classe rica não tem experiência da violência, pois não vive em um lugar violento, não foi socializado em um ambiente violento, então ele nunca irá para a cadeia. Mas o filho da classe pobre, ele nasce e cresce num meio violento, então é claro que ele sabe, tem condições de saber exatamente o que estava fazendo, e claro que irá para a cadeia. O dispositivo do discernimento está presente em todas as propostas que estão tramitando no Congresso. É um dispositivo que foi abolido do direito brasileiro nos idos de 1800, pois era visto como a ditadura do juiz, que olhava para um e para outro e dizia “você tem discernimento”.

Heloisa Dias Bezerra: Quer dizer que as propostas de redução da maioridade penal trazem o retorno do dispositivo do discernimento.

Dijaci David de Oliveira: Claro. Pense bem, se um jovem filho da classe alta, dirigindo um carro, embriagado, atropela e mata alguém, o dispositivo do discernimento pode ser usado para o juiz dizer “não, ele atropelou por acaso, não tinha a intenção de matar, é um jovem de boa índole, tem boa formação”. Mas e se for um jovem pobre? Vai ter o mesmo discernimento?

Heloisa Dias Bezerra: Esse cenário que você está apontando é muito dramático. Existe algum grupo que está se organizando para propor dispositivos legais ou políticas que possam interromper este ciclo, que parece apontar para o aumento da violência contra os jovens, especialmente os mais pobres?

Dijaci David de Oliveira: A sociedade não está informada sobre todos esses desdobramentos. Não há consenso no âmbito dos grupos organizados. Por exemplo, a última pesquisa feita no âmbito da Associação de Magistrados do Brasil apontou que a maioria é favorável à redução da maioridade. O único movimento que vem atuando de modo coeso, até onde sei, é o Conselho Federal de Psicologia. Mas a grande questão é que reduzir a maioridade penal não vai ajudar a reduzir a violência contra jovens pobres. Isto requer uma grande mudança na mentalidade da polícia, nas formas de organização dos direitos sociais, políticas públicas, assistência social e, infelizmente, há muita resistência por parte dos governantes.

Heloisa Dias Bezerra: Que experiências têm sido exitosas no sentido de transformar indicativos de violência interpessoal em relações de respeito e reciprocidade?

Dijaci David de Oliveira: Nos EUA, eles têm feito um grande debate sobre o fracasso das políticas de encarceramento, envolvendo os dois principais partidos, Democratas e Republicanos. É claro que não dá para resolver isso de uma hora para outra, é um aparato gigantesco, então começaram a buscar saídas intermediárias para a redução da violência. Começaram a trabalhar com políticas de inclusão de menores infratores, envolvendo a escola, o esporte, uma política de acompanhamento para fazer com que os jovens voltassem para o seu ambiente local, procurando envolver a família e os grupos mais próximos deles. Assistência e acompanhamento psicológico dos jovens e das famílias, bolsas de estudo para permanência na escola.

Em Brasília, um projeto que deu certo foi o “Esporte à meia-noite”. Os jovens podem se divertir em um ambiente seguro, o que aumenta a sociabilidade, as trocas e o respeito.

Heloisa Dias Bezerra: Uma ressocialização no próprio grupo de origem, seja a família, a escola ou os amigos.

Dijaci David de Oliveira: Ressocialização acompanhada.

Heloisa Dias Bezerra: Finalizando, que consequências éticas e morais a gente pode esperar desse conformismo da sociedade diante do crescimento da violência contra os jovens, principalmente os pobres?

Dijaci David de Oliveira: Vou pegar novamente um exemplo dos EUA, bem emblemático. Como se deu a rebelião em Baltimore. Uma comunidade negra, que começa a se rebelar contra um sistema político que encarcerava os negros porque eles não tinham dinheiro para pagar as multas aplicadas contra eles, que os levava a contrair mais dívidas e levava a comunidade a ficar cada vez mais pobre, mais precária. Ora, a gente pode ter um cenário de confronto? Podemos ter uma comunidade que começa a se perceber como vítima de uma violência institucional, que conta com respaldo social. Na sociedade brasileira, o cenário mais dramático é a juventude cansar de ser vítima e se insurgir. Por exemplo, o que são os Black blocs? Eles não acreditam em nenhuma instituição, nem no Estado, nem em nada, não acreditam nas estruturas existentes. Acreditam que a resposta mais efetiva é a destruição das estruturas existentes. Eles não se veem representados, não se consideram protegidos, então reagem com violência.

Heloisa Dias Bezerra: Falta de confiança nas instituições, ausência de acolhimento na própria sociedade. Um mundo estranho, agressor, quase uma situação de anomia social.

Dijaci David de Oliveira: Em uma situação de anomia, de falta de confiança e proteção, como os indivíduos vão reagir? Vão para os pequenos grupos, para um tipo de organização que só a experiência vai nos mostrar o que pode vir a ser. Enfim, também podemos ter nossos “Baltimores”.

Heloisa Dias Bezerra: Eu te agradeço muitíssimo pela disponibilidade em falar sobre um tema tão importante quanto difícil para o momento em que estamos vivendo. A sociedade brasileira merece ser informada sobre a reflexão que você fez, sobre os caminhos que estamos levando os jovens a trilhar.

Dijaci David de Oliveira: Eu que agradeço, é muito importante podermos debater  sobre esses problemas e, principalmente, divulgar isso para um público mais amplo.

 

I Doutora em Ciência Política, professora da Universidade Federal de Goiás e da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Editora associada da DESIDADES. Pesquisadora na área de juventude, democracia e novas tecnologias. E-mail: diasbezerra.h@gmail.com
II Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), professor da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Federal de Goiás (UFG). Especialista em estudos sobre violência e desaparecimento de pessoas. E-mail: dijaci@gmail.com

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