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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades vol.8  Rio de Janeiro set. 2015

 

ESPAÇO ABERTO

 

Conflito armado na Colômbia e suas consequências para crianças e jovens

 

Conflicto armado en Colombia y sus consecuencias sobre niños y jóvenes

 

 

 

Entrevista de Paulo Cesar Pontes FragaI com Germán Muñoz GonzálezII

IUniversidade Federal de Juiz de Fora, Brasil.

IIUniversidade de Manizales, Colômbia.

 


Palavras-chave: conflito armado, Colômbia, crianças, juvenicídio, deslocamento.
Palabras-clave: conflicto armado, Colombia, niñez, juvenicidio, desplazamiento.

 

Germán Muñoz: Sou professor na Universidade de Manizales, uma província perto de Bogotá, a capital, onde eu moro. Sou coordenador de uma linha de pesquisa chamada “Jovens, Culturas e Poderes”, no Doutorado em Ciências Sociais, Infância e Juventude, que é muito importante por sua produção científica na área de estudos sobre juventude. Na nossa linha de pesquisa, temos nos voltado mais recentemente para os debates e temas de pesquisa relacionados com duas grandes categorias que são importantes hoje, no mundo em geral, e em particular na América Latina e Colômbia: necropolítica e juvenicídio. Os temas relacionados à infância e juventude estão ligados. Na Colômbia e na região latino-americana, falamos do impacto da violência sobre crianças, adolescentes e jovens, pois esta problemática se encontra diretamente relacionada com os temas infância e juventude. Eu me ocupo mais com o tema “jovens” e nesse campo se situa minha pesquisa atual.

Paulo Fraga: A Colômbia, como outros países do continente, tem atravessado muitos problemas relativos à violência nas últimas décadas, mas, no caso colombiano, existem particularidades relacionadas com a questão da guerrilha e do narcotráfico. Sabemos que, nos últimos anos, há avanços nas negociações de paz, mudanças da política do governo. Como está a situação do conflito armado na Colômbia atualmente e que impacto tem sobre crianças, adolescentes e população em geral?

Germán Muñoz: Quando falamos da Colômbia e do tema da guerra, do conflito armado, estamos falando de uma longa história de um pouco mais de 60 anos, que principalmente tem antecedentes, por razões muito diversas, na luta pela terra. Outras causas mais recentes, desde os anos 1970, têm sido a irrupção do narcotráfico e, posteriormente, da paramilitarização. A pobreza, precariedade, situação de injustiça e o lugar que o Estado tem ocupado neste conflito armado, mesmo que de diversas formas influenciem diretamente toda a população, afetam de maneira particular as crianças, adolescentes e jovens.

A guerra tem atingido mulheres e homens, tem traumatizado e prejudicado as famílias e comunidades, e segue sendo parte da vida da comunidade nacional, apesar de estarmos num processo de negociação de paz em Havana, onde se encontram na mesa de negociações representantes da guerrilha das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e o governo nacional. A negociação já dura mais de dois anos e ainda não foi concluída, encontra-se num ponto crítico. Já se alcançaram avanços significativos, porém, há muitas forças obscuras da economia e da política nacional que não estão interessadas em que o processo tenha sucesso.

As marcas da guerra têm sido muito destrutivas, mas a população civil tem sido a mais vulnerável, especificamente as crianças, que têm sofrido danos e consequências segundo suas idades, experiências de vida e condições do entorno. É preciso dizer que a guerra na Colômbia tem causado a morte de milhares de crianças, algumas nos massacres, outras nos enfrentamentos armados. As crianças têm falecido também por causa de campos minados, por incursões e ataques nos seus povoados, têm sido vítimas de quase todas as modalidades de violência. Podemos dizer que, aproximadamente, dois milhões e meio de crianças têm sido deslocadas; 70.000 têm sido vítimas de violência sexual, desaparecimentos forçadas, homicídios, minas antipessoas e recrutamento forçado nas facções da guerrilha e paramilitares.

As crianças têm experimentado a violência de maneira dramática e crua, porque têm sido testemunhas de fatos atrozes, como o assassinato e tortura de seus pais, mães, familiares e vizinhos, incêndio e destruição de seus lares, animais e objetos pessoais. Elas têm ficado com marcas permanentes em seus corpos, têm tido seus membros amputados por minas antipessoas; têm sofrido abuso sexual, tortura, recrutamento ilícito, treinamento para a guerra por parte dos grupos armados; têm sido recrutadas por esses grupos armados, entregues para serem criadas pelas famílias de seus capturadores, arrancadas de suas famílias e comunidades; e os que sobrevivem, fogem da guerra em condição de deslocamento forçado. Tudo isso faz parte de uma história que ainda hoje se vive em muitos territórios do país.

Paulo Fraga: Duas questões que você mencionou chamaram minha atenção. Primeiramente, a questão dos deslocamentos forçados. Sabemos que a Colômbia foi durante muito tempo o país do mundo com maior número de deslocamentos forçados de pessoas internamente no seu território; hoje, qual é a situação a esse respeito? Quais são os territórios com maiores conflitos neste sentido? Depois, qual é a situação das crianças e adolescentes nesses territórios que historicamente têm sofrido maior violência?

Germán Muñoz: Quando mencionamos deslocamentos forçados, falamos de aproximadamente cinco milhões de colombianos que têm vivido esta grave situação. Quem sofre deslocamentos, abandona tudo: suas casas, amigos, sua história, biografia etc. Cerca de 70% dos deslocados são menores de 18 anos. É uma situação muito grave, que também se apresenta nas cidades, não somente nos territórios da periferia ou áreas rurais. Dentro das cidades, acontecem também, permanentemente, deslocamentos forçados, porque, quando estes camponeses e indígenas deslocados chegam às cidades, não encontram acolhida, nem atenção. Não existem programas coerentes nem políticas públicas estruturadas para atendê-los e, nos bairros da periferia onde vão morar, seguem recebendo o fustigamento de forças armadas de diferentes tipos, que consideram que, como fugiram, faziam parte de algum grupo armado; assim, os deslocados continuam marcados e segregados.

Quando as crianças deslocadas vão às escolas, são identificadas como os filhos de deslocados e sofrem igualmente essa discriminação. É uma situação que continua fazendo parte da vida nacional e, embora exista uma unidade de restituição de terras e de atenção a vítimas por parte do governo de Juan Manuel Santos, o atual presidente, não é claro que os camponeses conseguirão receber de volta as terras que lhes foram furtadas porque há muitos interesses implicados e, quando eles voltam a seus territórios, ainda existe a possibilidade real de serem novamente vitimizados por quem se apoderou ilicitamente das terras. 

Os impactos diretos do deslocamento em crianças e adolescentes são o desenraizamento, degradação da qualidade de vida, amontoamento, fome, enclausuramento nos lugares onde se estabelecem de forma precária, porque a vida nas cidades os confronta com muitas humilhações, exclusões, discriminações raciais, étnicas, de classe etc. Enfrentam humilhações por sua origem étnica, cor da pele, costumes camponeses, modos de falar, tudo o que implica degradação em situações que são geralmente de extrema pobreza. Isto incide sobre a identidade, a autoestima de crianças e adolescentes e o desenvolvimento de suas personalidades, que se encontram em processo de formação. Sem dúvida, trata-se de fatos que têm um grande impacto na vida do país. Apesar disso, não parecem ser objeto de atenção.  

Em quais territórios há conflito armado? A guerra, com todas as suas implicações de violência permanente, bombardeios, perseguição, enfrentamentos nos quais a população civil fica no meio do fogo, acontece com mais frequência nas áreas da periferia afastadas das grandes cidades. Fala-se que, na Colômbia, metade do território, ou seja, o sul do país, tem sido desde há muito tempo território da guerrilha, e o norte, aproximadamente a outra metade do país, tem sido território de paramilitares, exércitos de contingência patrocinados por pecuaristas, grandes latifundiários e, inclusive, pelo próprio Estado, em franca conivência com as ações violentas. Então, não existe uma única faixa do território na qual a guerra está acontecendo, porque ela acontece em quase todo o território nacional e, dentro das cidades, existem igualmente disputas territoriais. Em geral, as consequências do conflito armado afetam todo o país.

Não obstante, no caso de você vir de férias a cidades como Bogotá, Cali, Medellín e/ou Cartagena, usualmente não vai perceber o conflito armado. De fato, esta área de proteção urbana praticamente se encontra à margem do conflito armado, porque se tenta não enxergá-lo; porém, é um conflito que afeta tranversalmente toda a vida nacional.

Paulo Fraga: Além das mudanças no atual governo, em comparação ao anterior, em relação à questão de tentar pôr fim ao conflito armado, também se produzem mudanças em relação às políticas para adolescentes e crianças?

Germán Muñoz: Quando falamos do governo atual, o governo Santos, estamos falando de um governo que com certeza tem continuidade com o governo anterior, ou seja, o governo [Álvaro] Uribe [Vélez]. O governo Uribe foi o primeiro governo reeleito na Colômbia, que esteve um período muito longo no poder, supostamente para acabar de ‘pacificar’ o país, mas o confronto armado continuou com níveis semelhantes. No final do século passado, a violência atingiu um nível muito elevado e com o “Plan Colombia” [“Plano Colômbia”], apoiado pelos Estados Unidos, virou uma guerra com armamento muito mais pesado e tecnologia sofisticada. Santos foi o Ministro de Defesa no governo Uribe, por isso, digo que existe continuidade total entre os dois governos. Não se trata de uma postura nova, senão de uma postura de continuidade na forma de enfrentar a guerra.

Apesar disso, no governo de Santos, o diferencial tem sido o tema da paz ou da negociação do conflito armado na mesa de Havana. Esta negociação começou sem a presença de todos os atores da sociedade civil. Somente alguns deles assistiram, quase em segredo. Gradualmente, a negociação foi se abrindo e tem sido um pouco mais conhecida por parte da sociedade colombiana.

O que acontece com as crianças e os jovens no meio desta situação? Ontem [22 de junho], tomou posse o novo Ministro de Defesa e, curiosamente, a partir deste momento, a Procuradoria da República trouxe à tona o tema da responsabilidade dos militares em relação aos chamados “falsos positivos”.

Quando me apresentei, no começo da entrevista, falei do juvenicídio:    tema do meu interesse de pesquisa. Eu entendo o juvenicídio como crimes de Estado, práticas que têm sido socialmente aceitas e que estão associadas com numerosas e diversas formas de atentar contra a vida dos(as) jovens, formas que não são exclusivas da Colômbia. Por conseguinte, o assunto dos assassinatos sistemáticos de jovens, os atentados contra a vida digna de jovens e a forma como, através dos meios de comunicação, eles são apresentados e marcados como perigosos, sujeitos que representam um risco para a sociedade, permitiram que ocorressem cerca de 5.700 assassinatos sistemáticos cometidos pelo Exército Nacional da Colômbia durante os anos do governo Uribe, particularmente, de 2002 até 2010. Estes assassinatos foram chamados “falsos positivos”. 

Recrutavam jovens, prometendo-lhes trabalho, por exemplo, ou capturavam jovens camponeses em seus pedaços de terra, em diversas regiões do país. Depois, eles eram vestidos como guerrilheiros e apresentados aos meios de comunicação como guerrilheiros mortos em combate, para assim cobrar recompensas por seus corpos. Isso foi feito por muitos batalhões ao longo do país. Em termos da “segurança democrática”, nome que recebeu o plano de governo de Uribe, tratava-se de combater organizações da guerrilha e do terrorismo, mostrando resultados e apresentando “baixas”. Na realidade, foram mais de cinco mil assassinatos, que correspondem, na maior parte, a jovens de camadas populares e camponeses, com responsabilidade política, claramente, do Estado colombiano.

Considero que estes fatos mostram uma política implícita dos governos nacionais. Política que, é claro, não aparece referida em nenhum documento, porque, no lugar disso, se fala em termos da luta contra o terrorismo, ou a guerrilha, mas, na realidade, os fatos mostram outra política, que não se enuncia abertamente e que definitivamente afeta a vida de crianças e jovens através das execuções extrajudiciais. Como podemos entender o que significa ser criança no meio da guerra, quando crianças e jovens são apresentados como guerrilheiros e assassinados em meio a situações atrozes? É preciso enfatizar que se trata de uma guerra com um nível de atrocidade desmedido, enquanto o Estado lava as mãos ante este tipo de situação. 

Paulo Fraga: Você falou de uma questão fundamental, o juvenicídio. Nós, no Brasil, não temos uma guerra civil, como na Colômbia, mas temos uma situação muito grave em relação aos jovens assassinados. As principais vítimas de homicídios no Brasil são os jovens, e hoje há um litígio, uma luta muito forte no nosso país, sobre o tema da redução da maioridade penal para 16 anos. Os setores conservadores trabalham com dedicação para transformar a lei. Hoje, no Brasil, temos um Congresso muito conservador, que contribui para que a lei seja transformada. Esses setores conseguiram colocar em pauta a questão da diminuição da maioridade penal. Gostaria de saber qual é a situação da Colômbia neste sentido, assim como sua opinião sobre a redução da maioridade penal. No Brasil, dizem que os jovens com 16 anos sabem muito bem o que estão fazendo, portanto, eles devem assumir a responsabilidade pelos crimes que cometem, ainda que a maioria dos crimes violentos sejam cometidos por adultos.

Germán Muñoz: Depois de quase dez anos de vigência do Sistema de Responsabilidade Penal para Adolescentes, não existe uma política que enfrente o fenômeno da justiça juvenil, nem justiça juvenil específica e pedagógica pensada para jovens em conflito com a lei, e menos ainda, medidas preventivas para dissuadir os jovens de escolher o caminho do delito. Deveríamos contar com mais política social e menos política criminal para os jovens na Colômbia.

Na Colômbia, não é somente o Congresso, nem o governo, mas a maioria da sociedade que é conservadora demais; e esse modo de pensar, essa ideologia conservadora, expressa-se nos meios de comunicação, nas leis, em temas como, por exemplo, o matrimônio igualitário, o consumo moderado de substâncias psicoativas etc. Temas que aqui dificilmente poderão ser legislados, porque a igreja, o exército, a polícia, a sociedade em geral não aceitam sequer que sejam objeto de debate.

O tema do juvenicídio, como você expressa muito bem na sua pergunta, não é exclusivo desta sociedade colombiana nem da mexicana. A palavra juvenicídio começa a entrar em cena, através de livros, da academia e dos meios de comunicação, a partir de José Manuel Valenzuela, pesquisador do tema dos jovens e da cultura no México que, num livro seu chamado “Sed de Mal” [Sede de Mal], se refere ao tema juvenicídio associado ao tema feminicídio.

Quando falamos de juvenicídio no contexto latino-americano, não falamos de fatos isolados, não são erros, nem crimes cometidos contra jovens vinculados à delinquência, à ilegalidade. Estamos falando de que em todos os países da América Latina, nestes tempos, mas também desde tempos mais antigos, têm existido permanentemente políticas sistemáticas bem dissimuladas, através das quais pode ser rastreado o objetivo de atentar contra a vida dos jovens. Você menciona o Brasil, evidentemente; basta ler as estatísticas de assassinatos de jovens no Rio de Janeiro. O mesmo acontece no México (lembremos Tlatelolco), a “Noite dos Lápis”, na Argentina; teríamos que falar dos massacres em Lima (na Universidade de San Marcos), do casarão universitário em Guayaquil, no Equador; dos 43 jovens normalistas de Ayotzinapa, no México, que recentemente têm gerado um movimento muito forte de indignação. 

Quando hoje falamos de juvenicídio, para muitos pesquisadores latino-americanos, estamos falando de todas as formas de atentar contra a vida digna, contra a vida ‘decente’ de jovens, mediante atentados contra suas possibilidades de emprego, na dimensão econômica; atentados contra a participação, na dimensão política; atentados contra uma adequada representação midiática, através das formas simbólicas; e, é claro, atentados contra a vida propriamente dita.

Então, acho muito útil fazer-nos uma pergunta arrepiante e dolorosa: por que morrem os jovens hoje nos países da América Latina? A resposta na Colômbia ou no México (ver trabalhos de Rossana Reguillo), ou em São Paulo (ver resultados do grupo de pesquisa de Silvia Borelli e Rita Alves) etc., revela que os jovens se matam ou os matam, ou seja, se suicidam ou são assassinados. Logo, a tendência observável em escala global evidencia que os jovens morrem fundamentalmente por causa da violência e os números são aterradores. Reguillo, a pesquisadora mexicana, diz que no México, em 2012, morreram 20.700 jovens, ou seja, mais de 20.000 filhos, irmãos, estudantes, esposos e pais jovens; mais da metade deles morreram por causa da violência direta.

No caso colombiano, considero muito significativo compreender que muitos jovens que têm sido mortos, no meio do conflito armado, têm sido mortos por causa de crimes de Estado. Eles têm sido assassinados por razões de conveniência política. O autor camaronês Achille Mbembe, no livro “Necropolítica”, fala justamente, não da “nuda” vida da que falava Agamben, mas da “nuda” morte. Estamos falando de uma forma sistemática de administrar a morte na sociedade contemporânea. Ou seja, a sociedade hoje, através de seus mecanismos de poder, decide quem merece viver ou morrer e, aparentemente, entre os que devem morrer se encontram mulheres e jovens, e isso é o que se chama necropolítica.

Considero que quando falamos dos “falsos positivos”:    que constituem o juvenicídio mais significativo e atroz da recente história colombiana, em que mais de cinco mil civis, cidadãos comuns, de setores populares que não estavam implicados na guerra, que viviam em seus bairros, em suas veredas, no campo e nos povoados de todo o país, foram feitos prisioneiros, sequestrados, assassinados, disfarçados como guerrilheiros –, estamos falando de crimes de Estado, sobre os quais o Estado colombiano não vai querer falar, já que não admite ser acusado como autor desses crimes, que afetam crianças e jovens numa grande proporção.

Paulo Fraga: No Brasil, eu estou trabalhando o tema do envolvimento de agricultores, trabalhadores rurais, com o cultivo de ‘cannabis’. O Brasil produz cerca de 30, 40% da ‘cannabis’ que se consome no país. Gostaria de saber o que está acontecendo na Colômbia com a produção de cocaína e outras substâncias consideradas ilegais para o consumo e sobre a participação de jovens e crianças nesta atividade de produção.

Germán Muñoz: Não existe uma participação direta de crianças e jovens na produção de coca, ‘cannabis’ ou das substâncias psicoativas em geral. Os que moram nos territórios onde existem os cultivos, os chamados ‘raspachines’ (coletores das folhas), fazem esta atividade para sobreviver. Há muitas regiões da Colômbia, onde os cultivos de coca, ‘cannabis’, papoula estão em territórios cujos habitantes cultivam muitas outras plantas para sua alimentação. Os que moram lá não são produtores, são mão de obra contratada pelos donos dos cultivos, por grandes narcotraficantes e pelas guerrilhas, já que é uma fonte muito grande de riquezas para suas empresas; eles estão envolvidos porque moram lá e fazem a colheita nas plantações. Os consumos de psicoativos têm crescido ou se mantêm, mas, na Colômbia, estão proibidos, são perseguidos por acordos com o governo dos Estados Unidos. Não é como no Uruguai, onde existe uma regulação do consumo por parte do Estado. Como falei anteriormente, a Colômbia é uma sociedade muito conservadora, onde esses temas não são discutidos abertamente, muito menos a legalização das drogas. 

Paulo Fraga: Como a academia, na Colômbia, através de suas pesquisas, de suas formas de participar, responde a esta situação tão desafiadora e difícil, que é o juvenicídio, aos diversos tipos de violência contra crianças e adolescentes? Como participa a academia, que postura assume ante esta grave problemática social?

Germán Muñoz: Os centros de pesquisa começaram a tomar consciência e a colocar na sua agenda, desde os anos 1990, o tema dos jovens. De fato, não somente na Colômbia, mas na América Latina e em quase no mundo inteiro, as crianças e jovens ganharam visibilidade há não mais de 20, 30 anos. O tema ‘mulheres e gênero’ tem uma tradição mais longa e um acervo muito mais forte e significativo de produção científica. Quando falamos de crianças e jovens, devemos lembrar que, em 1985, a ONU declarou, pela primeira vez, o famoso Ano Mundial da Juventude e a partir desse momento entrou nas agendas públicas o tema juventude.

O tema ‘infância’ tem uma agenda um pouco mais antiga. Desde 1991, a Convenção Internacional dos Direitos da Infância, assinada pela grande maioria das nações do mundo, coloca na sua agenda pública o tema da infância, mas o tema juventude entra lentamente, com menor profundidade e reflexão, porque não existe uma diferença muito clara entre o que é uma criança ou um jovem, ainda se fala de adolescentes, de puberdade, e não é claro de quais populações estamos falando. 

Já não parece tão importante fazer essas diferenciações etárias, porque a academia tem gerado mudanças significativas na forma de compreender hoje o que significa ser jovem e, mais ainda, compreender a condição juvenil. Apenas na última década do século passado, o tema entra nas agendas públicas; por sua vez, em abordagens mais recentes, as práticas juvenis entram nas agendas de pesquisa e nos meios de comunicação, práticas musicais, práticas do corpo, que emergem como práticas de resistência.

No ano 2000, começou um doutorado em infância e juventude que tem seu epicentro na cidade de Manizales. Contar com um doutorado neste tema expressa a importância que a academia começa a lhe outorgar, mas eu penso que em temáticas como juvenicídio, nem a academia, nem as políticas públicas, nem os meios de comunicação têm tido clareza. É um tema que apenas há um ou dois anos começa a emergir; na minha opinião, nem a direita, nem a esquerda, nem os governos locais ou nacionais têm conseguido entender essencialmente a gravidade do assunto ou lhe dar a importância que merece.

Desde 2002, começam a ocorrer os “falsos positivos”, mas, na Colômbia, a história da violência armada contra crianças, jovens e a população civil é uma longa história de 60 anos. Entretanto, se você ler o documento do Centro Nacional de Memória Histórica1, um documento de 250 páginas, ou os 12 ensaios da Comissão Histórica do Conflito e suas Vítimas2, de mais de 850 páginas, nesses dois documentos que estão na mesa de negociação de Havana, o tema dos jovens não aparece, não está presente, é mencionado apenas de forma muito tangencial. Os jovens não têm sido representados na mesa de Havana.

A academia tem uma dívida grande em relação ao tema da juventude e está começando a prestar atenção a suas formas de resistência, às novas formas de ação coletiva. A ação coletiva juvenil é um tema fundamental que tenho trabalhado nos últimos cinco anos de pesquisa. Através das formas de ação coletiva, os jovens enfrentam decididamente as formas de governo e o horror. O horror, como categoria de análise, é o assunto fundamental sobre o qual é necessário promover um deslocamento analítico para reconfigurar nossa maneira de interpretar o mundo no qual hoje vivem, ou melhor, morrem, os jovens, sem que exista por parte da sociedade uma postura clara para enfrentar esta morte crua, esta necropolítica.

Paulo Fraga: Gostaria de fazer uma última pergunta: onde está a luz ao final do túnel? Na sua opinião, quais seriam as principais medidas que devem ser tomadas para que aconteça uma mudança ou uma melhora na situação de crianças e adolescentes, em relação ao que você chama necropolítica e juvenicídio na América Latina, especificamente na Colômbia?

Germán Muñoz: A vida dos jovens começa a ser colocada como objeto de reflexão pública no mundo inteiro; começa-se a falar sobre o que está acontecendo a partir do horror chamado Ayotzinapa, o horror chamado “falsos positivos” na Colômbia, o horror de muitos lugares na América Latina, onde a violência contra indígenas, contra jovens camponeses está um pouco mais oculta, mas nem por isso é menos forte.  

O livro que está no prelo, “Prohibido Olvidar” [Proibido Esquecer], tem um capítulo inteiro de pesquisadoras brasileiras tratando o tema do assassinato sistemático de jovens indígenas em diversas regiões do Brasil. Todo esse horror é um horror que não tem se tornado público e sobre o qual as sociedades latino-americanas ainda não têm uma postura clara, mas todo esse horror, que começa a ganhar luz pública, vai nos obrigar, primeiro, a prestar atenção a este modo de violência contra crianças e jovens. Segundo, vai tornar visíveis as crianças e jovens como sujeitos afetados pela violência, mas também como protagonistas do presente e do futuro, porque visibilizá-los é uma tarefa pendente, nos acostumamos a vê-los como perigosos, como causadores de problemas, mas não os temos visto como protagonistas, atores sociais do presente e do futuro. E terceiro, esta visibilidade está fomentando um diálogo coletivo, através do qual os atores sociais descobrem um “nós” que não estava sozinho, senão que compartilhava desesperanças e solidão, e no meio de toda esta violência, crianças e jovens estão tomando a palavra, estão aparecendo publicamente.

Quando eu falo de ação coletiva juvenil, o que considero importante é que surge um rosto jovem diverso, mutável. Este setor da população está convocando toda a sociedade para gerar uma nova forma de vida, uma reformulação dos modos de pensar, uma reconfiguração dos significados da vida social para transformar o alicerce da sociedade, para compreender o mundo de outra maneira, para postular com sua ação um mundo distinto, um mundo onde caibam muitos mundos; e isto vai ter relação com todos os grandes temas que hoje inquietam os jovens, por exemplo, a mudança climática, o cuidado com a natureza, de modo que, como está estabelecido nas Constituições Nacionais do Equador e Bolívia, o fundamental seja o bem viver mais do que o desenvolvimento selvagem, o bem viver mais do que o consumo, onde sejam considerados os direitos à água, à terra, das comunidades e de todos os atores sociais, entre eles, crianças e jovens, com suas vozes e suas formas de ação.

Paulo Fraga: Doutor Germán, muito obrigado por conceder-nos esta entrevista, por vinculá-la com seu trabalho, que consideramos muito importante.

Germán Muñoz: Eu também estou muito agradecido a você e a DESidades pelo convite. Estarei no JUBRA3 em setembro próximo, espero poder nos conhecer pessoalmente.



1 http://www.centrodememoriahistorica.gov.co/micrositios/informeGeneral/

2 http://www.altocomisionadoparalapaz.gov.co/oacp/Pages/informes-especiales/resumen-informe-comision-historica-conflicto-victimas/el-conflicto-y-sus-victimas.aspx

3 VI Simpósio Internacional sobre a Juventude Brasileira, com realização no Rio de Janeiro, Brasil, de 10 a 12 de setembro de 2015.

 

I Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, Brasil. Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Especialista em estudos sobre Violência, Direitos Humanos, Droga e Política Pública. E-mail: pcp_fraga@yahoo.com.br
II Doutor em Ciências Sociais, Infância e Juventude (Centro de Estudios Avanzados de la Universidad de Manizales:    CINDE, Colômbia). Docente e pesquisador em Ciências Sociais com especialização em Estudos Culturais, nas áreas da Comunicação, Sociologia da Juventude, Educação e Desenvolvimento Social na Universidade de Manizales, Colômbia. E-mail: germancitom@yahoo.es

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