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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades vol.9  Rio de Janeiro dez. 2015

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Pérolas aos poucos: o relato de uma adolescência congelada

 

Perlas poco a poco: el relato de una adolescencia congelada

   

 

Fátima Florido CesarI

Universidade do Vale do Paraíba

 

 


RESUMO

No texto que se segue é apresentado um caso clínico em que destaco, no relato, os sentimentos de tédio e vazio vivenciados pela adolescente e, ainda, o lugar da arte e de objetos culturais como forma de comunicação entre a mesma e a analista. Vem sendo constatada a chegada aos consultórios de jovens adultos com dificuldades de passagem, de transitarem para um estar-no-mundo de outro modo rumo à independência, ao ser-adulto – seguindo adiante em seu processo de maturação. Apresentam um cotidiano vazio e sem sentido, tédio, inércia psicossomática, sentimentos de não pertencimento e uso de drogas. São jovens que lutam para alcançar a vida, como se refere Winnicott – e a desesperança diante desta luta se traduz através das vivências de vazio. A referida “adolescência congelada” vivida ora com desespero, ora com apatia requer uma específica aproximação. O encontro clínico extrapola a comunicação verbal e solicita a configuração de um espaço potencial em que o uso de objetos culturais e da arte pode vir a se apresentar como instrumento terapêutico.

Palavras-chave: tédio, vazio, criatividade, adolescência, objetos culturais.


RESUMEN

En el siguiente texto es presentado un caso clínico en el que destaco, en el relato, los sentimientos de tedio y vacío vivenciados por la adolescente y, además, el lugar del arte y de objetos culturales como forma de comunicación entre la paciente y la analista. Se viene constatando la llegada a los consultorios de jóvenes adultos con dificultades de pasar, de transitar para un estar-en-el-mundo de otro modo rumbo a la independencia, al ser-adulto – siguiendo hacia adelante en su proceso de maduración. Presentan un cotidiano vacío y sin sentido, tedio, inercia psicosomática, sentimientos de no pertenecer y uso de drogas. Son jóvenes que luchan para alcanzar la vida, como refiere Winnicott – y la desesperanza ante de esa lucha se traduce en las vivencias de vacío. La referida “adolescencia congelada” vivida algunas veces con desespero, otras con apatía requiere de un abordaje específico. El encuentro clínico extrapola la comunicación verbal y solicita la configuración de un espacio potencial en que el uso de objetos culturales y del arte pueda presentarse como instrumento terapéutico.

Palabras-clave: tedio, vacío, creatividad, adolescencia, objetos culturales.


 

 

Spleen
Nada iguala à extensão destes dias tão mancos,
Quando, sob florações graves dos tempos brancos,
O tédio, fruto da morna incuriosidade,
Assume as proporções da própria eternidade.

Charles Baudelaire

Comecemos pelo conceito de tédio. Velho conhecido enquanto objeto de estudo da filosofia, companheiro dos poetas, mais especificamente dos românticos; o tédio e o vazio também chamam a atenção da psicanálise, que pode contribuir frente a essas manifestações da subjetividade contemporânea, tanto em termos metapsicológicos quanto terapêuticos. ‘Spleen’, termo já utilizado no romantismo, é associado ao poeta Charles Baudelaire, designando melancolia, profundos sentimentos de desânimo, isolamento, angústia, que aparecem nos poemas reunidos no livro ‘As Flores do Mal’. O ‘spleen’ baudelaireano, que pode designar tanto a ruína de uma época, quanto o tédio proveniente de uma interioridade do poeta, é aqui enunciado porque bem pode ilustrar as queixas que envolvem tédio e melancolia que chegam aos nossos consultórios. Escolhi iniciar dessa forma o presente artigo: nada como os poetas para bem entenderem a alma humana e nada como Baudelaire, com seu ‘spleen’, para ilustrar a inércia e tristeza que observamos em grande número dos pacientes que nos procuram.

Destaco Winnicott, como um dos psicanalistas que se dedicou à compreensão e tratamento de pacientes com queixas de sensação constante de vazio, irrealidade, futilidade e impossibilidade de se sentirem criativos. Estamos aqui diante, ora do desespero, ora da apatia, mas fundamentalmente da desesperança.

Ressaltando: Winnicott (1959,1963/1980) estuda e se dedica clinicamente àqueles pacientes nos quais predominam os sentimentos de vazio e tédio e a sensação/ vivência de que nada é real.

O “viver criativo”, de que fala o autor, não corresponde à elaboração de obras de arte, mas a uma possibilidade de saúde mental para além da ausência dos sintomas. No que ele denomina de “apercepção criativa” (1971, p. 95), é possível “inventar” uma realidade e, paradoxalmente, ter conhecimento de que a realidade existe não apenas como um “feixe de projeções”, mas também por si só.

Não se trata de pacientes neuróticos, nem de casos de colapso total: Winnicott refere-se a pacientes ‘borderline’ e/ou psicóticos (1963/1989, p. 93). Psicose é considerada como uma enfermidade que tem seu ponto de origem nos estágios de desenvolvimento anteriores ao estabelecimento do EU SOU (integração). São pacientes que vivem assombrados pelo temor da morte, do vazio e do colapso.

O colapso temido refere-se a uma grande catástrofe em que todas as defesas cairão por terra e o corpo sofrido do ser arderá em carne viva mergulhando para sempre no vazio que sempre temeu. Entretanto, no texto “O medo do colapso” (1963), Winnicott ressalta que o colapso temido já acontecera na precocíssima infância, quando o indivíduo fora exposto a uma experiência de vazio para a qual não estava preparado.

 

Nem isto se sente talvez

Não se sente nada, a não ser um
automático cá embaixo,
A fazer umas pernas que nos
pertencem levar a bater no chão,
Na marcha involuntária, uns pés
que se sentem dentro dos sapatos.
Nem isto se sente talvez.

Fernando Pessoa

Proponho que o tédio e vazio a que se referia Winnicott já apontavam para uma patologia de novos tempos. A sexualidade já não se situava no centro do sofrimento psíquico. A dor se relaciona agora a “tempos brancos”, de “horas brancas”, como o diz Baudelaire (1857), em que a repetição em série vem gestando indivíduos sem mais lugar de pertencimento e sem possibilidade de singularização. Um tempo de miséria simbólica.

Sublinho o interesse de estudo dessas vivências na medida em que elas extrapolam o individual: o ‘spleen’ de Baudelaire fazendo parte de um mundo dessacralizado – deposto que fora o mundo anterior pela era da industrialização.

Após essa breve introdução, concentro-me no objetivo do artigo: a descrição dos encontros clínicos com adolescentes que arrastam em seu dia a dia a sensação de não terem começado a existir.

Refiro-me aos jovens, em sua adolescência arrastada, adultos adiados, com o cotidiano vazio ou atemorizado; mas aqui, o cotidiano sem sentido deixa cair para fora do mundo estes seres desamparados. Adolescência congelada, fixada em horas paradas, os anos passando e o adiamento de entrar na vida. O gelo conserva, mas aqui deixa imobilizados os recursos internos que colocariam em movimento os processos de maturação, o colocar a existência em devir. Constatamos ainda a procrastinação compulsiva, a incomunicabilidade, a inércia psicossomática, o sentimento de marginalidade, o uso de drogas como recurso e como prótese de um aparelho psíquico que não consegue “imaginar” sua vida ou projetar um futuro. Apresentam dificuldade de ingresso na vida, temerosos e impotentes para lidar com o mundo do trabalho e com a aquisição da identidade adulta.

É pelo encontro entre o repertório cultural deles e o meu que vem sendo possível um início de diálogo. A arte vem se apresentando – quando a comunicação verbal direta não é possível – como um espaço de interlocução, em que a “incuriosidade deixa de assumir as proporções da própria eternidade” (Baudelaire, 1857).

Convido os leitores a acompanharem o relato de meu encontro com uma paciente que solicitou de mim algo além da comunicação verbal.

 

Andréa1 e eu

Que inquietante estranheza, quando as mães vacilam, elas que, só elas, ficam entre nós e a redenção (Freud em carta a Fliess).

Eu me interrogo sobre Andréa, hoje ao menos, tanta letrinha e ela me olhando, parece que não lhe interessa – ela quer falar, ela me conduz – parece cansada das minhas traduções. Quer falar das suas gravuras, de seus peixes estranhíssimos, de seu entusiasmo pela primeira exposição. Ficou para trás, ou do lado, num canto dissociado no quarto do pânico ou do segredo? Os grandes furtos, as fugas de casa, as tentativas muito mal explicadas de suicídio.

Tivemos dois períodos de encontro – primeira fase: Andréa deprimida, 17 anos, mora desde os 12 com o pai, no interior de São Paulo, a mãe (separada) a traz de volta para casa após tentativas de suicídio. Eu recebo uma moça alta, se vestindo desleixada, com uma depressão grave, com tricotilomania (mania de arrancar cabelos), continuando com tentativas de suicídio. A mãe provocava um estado de confusão na filha: ora cuidando, ora invadindo com violência: acolhe e simultaneamente acha a filha um estorvo, atrapalhada, ovelha negra, perturbada-perturbadora, desorganiza a casa, encosta, folgada, suja de sangue os sofás (com menstruação), urina atrás dos móveis (em criança); mas ama tanto, e amou desde sempre, e fica louca quando a cria some. E eu odeio essa mãe quando rejeita aos berros com todo seu ódio essa filha-peste.

Quando melhora, passa no vestibular em Artes Plásticas porque quer ir para São Paulo. A contragosto da mãe, que teme sua perdição, vai. Atendo por coincidência em São Paulo. Ela falta muito, cada vez mais arisca, não quer mais, não sente necessidade. Depois de um tempo, a bomba estoura. Viciada em cocaína desde adolescente, namora outro viciado. Diz que não tinha coragem de me falar, avisava-me que tinha um lado ‘trash’ e que eu... Eu me sinto um lixo – penso que falhei “brabo”. “Enquanto Freud explica as coisas, o diabo fica dando os toques” (Raul Seixas).

Dancei na curva.

Segunda fase: tempos depois. Sei que a mãe a recolhe de volta. Esta me liga eventualmente, me dando notícias. Está grávida do moço de São Paulo. Na gravidez e nos primeiros anos, estrutura-se minimamente, volta-se para a filha com a ajuda da mãe. O pai da criança é rejeitado por Andréa no sétimo mês de gravidez, mas continua ligado – é um bom moço, agora trabalha. Andréa, que já começara a desenhar na primeira fase, intensifica seus estudos com um professor da cidade. Torna-se sua aluna preferida. Seu caminho-salvação é a arte. A mãe aluga um ateliê. Pinta. Não pinta o sete. Por enquanto. Pelo menos.

Até que fala que descobriu um professor de “vanguarda” na minha cidade, que é algo além de seu velho professor acadêmico. Vem para cá fazer aulas – é um desafio viajar sozinha, largar um pouco a casa da mãe, quer voltar a fazer análise.

Na primeira sessão vem arrumada. Como uma mocinha. Traz seus trabalhos. Me surpreendo. Quanta produção. Quanta evolução nestes dois anos em que não nos vimos.

Inicia o curso e é um longo percurso entre os seus desenhos “ingênuos”, que são desconstruídos pelos “vanguardistas”, e um difícil caminho, o de sobreviver às críticas, desamparada e paranoica, e encontrar um novo mundo-meio de expressão que é o da gravura. Grava em metal. Deixa as marcas: as figuras assustadoras, medonhas e competentes e magistrais de quem não tinha futuro. No meio de um período de depressão, me ‘apresenta seus peixes graves’ e diz: “meus peixes não são de Ubatuba”. Sou tomada de uma vergonha estranha em relação a uns peixes estilizados da minha sala de espera, como se desrespeitassem seu mundo interno em ruínas e como se sua depressão me fizesse lembrar e cuidar de meus peixes mortos, podres, esquecidos em algum aquário. Fico possuída, abduzida. Sessão seguinte. Digo: você me disse: “Seus peixes não são de Ubatuba”. “É”, me responde sorrindo, matreira: “são de Fernando de Noronha”.

Atônita, entendo sua mãe, odeio-a naquele momento porque guardei por alguns dias, como num freezer fedorento, seus peixes abissais e eu própria me acreditara aquele dia – pelas nossas semelhanças anímicas – um ser abissal. Tive que esperar alguns dias para voltar à superfície e sonhar com o mar de Fernando de Noronha.

Terceira fase: voltando das férias, me conta de seus demônios: muita cocaína, ficante, tra-ficante, ficante “mulher”.

Volta, cuida do jeito que pode da filha, volta a namorar o pai da filha, pensam em morar juntos.

Largada, desleixada, avesso do avesso do avesso. Entretanto, seu jovem e novo professor reconheceu nessa jovem delinquente um talento promissor. Ela monta sua primeira exposição. Corre de um lado para o outro atrás das “coisas da vida comum”, que são difíceis de fazer: patrocínio e organização da exposição. Com as unhas pretas, acima do peso, telefona, faz contato com gravuristas famosos. O demônio rondando na coca, na ameaça de rupturas repentinas, na coisificação do outro. Bem, mas os peixes falam.

Qual o meu papel no cenário deste outro tempo?

Não saberia responder. Fico atenta aos demônios, mas também em não satanizá-los em demasia. Era e é um momento de voltar para o mundo e o pânico continua. Muita coisa ela não diz (verbalmente). Inúmeras vezes diz que viver é demais para ela, não dá conta.

Mas sigamos brevemente Cardoso (2002) em suas considerações sobre os enclaves psicóticos – como o mais estrangeiro, mais encravado, o mais impossível de tradução no psiquismo. Cardoso citando Laplanche: “O que é determinante, último é o demoníaco, o oculto, o inquietante (‘das Unheimliche’), o que é “de outro mundo”, o que vem originalmente do outro, sobre o modo do outro” (p. 36).

Levanto como hipótese que em Andréa, esta coleção mórbida de intraduzíveis foi o resultado do que Laplanche chama de intromissão do outro, distinta da implantação. Enquanto esta última é um processo comum neurótico, normal, a intromissão é violenta e impossibilita a tradução-recalcamento. A dupla Andréa e sua mãe vivem um jogo violento e recíproco (pela delinquência e tentativas de suicídio, Andréa tentou todos esses anos livrar-se daquela sem conseguir ir muito longe).

A gravura acolhe o informe e o autoriza e ela não precisa defender-se, responder ao “comando estrangeiro”. Ali não será julgada. Pode descansar um pouco: buscando transformar o trauma em pertencimento a um mundo que lhe faça sentido.

Não penso que deixe de ser do mar, da água dos pântanos, mas é uma luta para sentir-se menos um “Peixe fora d’água” (título de sua exposição).

Telefonema

Andréa acaba de me telefonar, conta sobre os preparatórios para a exposição. Está exultante porque talvez fique – a partir de então – com a curadoria do espaço em que estará expondo. Diz: “Estou me sentindo viva!”. Fico contente com ela, na verdade, fico esperançosa.

Recorro a Pontalis (1988) quando este se refere àqueles pacientes, e antes, fundamentalmente, a Winnicott, em “O medo do colapso” (1963). O colapso temido já aconteceu, mas está escondido num inconsciente (numa outra tópica, afirma Pontalis), que o ego imaturo demais não foi capaz de abranger, reunir aquilo dentro de sua área da onipotência pessoal.

O paciente continua procurando o que não foi experienciado, de forma que o ego possa reunir a experiência original da agonia primitiva dentro de sua própria e atual experiência temporal e do controle onipotente agora – com o apoio do ego auxiliar da mãe ou analista.

Não é possível lembrar de algo que ainda não aconteceu, porque o paciente não estava lá. A única maneira de lembrar neste caso será na transferência.

O vazio aparece aqui, como destaca Pontalis, diferente do vazio necessário no sujeito – um vazio anterior ao grau de maturidade que tornaria possível ao vazio ser experienciado. Não há trauma a ser lembrado, mas o vazio precisa ser experienciado.

Pontalis acrescenta: “teve lugar qualquer coisa que não tem lugar” (p. 214). O que não foi vivido está no ‘oco do sujeito’. O não-vivido pede para ser reconhecido! Que se entre em relação com ele, para que ganhe sentido e adquira vida: porque é da não-existência que a vida pode começar!

Penso no vazio de Andréa, nos gritos de dor, no intolerável, como pode o vazio doer? Nela e em tantos outros. Mas existe a possibilidade de contornar o informe, comunicar o vazio – encontrar um lugar para apresentar a dor e começar a existir.

Aproprio-me de interrogação de Pontalis: Que loucura é esta de querer mudar os outros? Encaminho-me por pensar esta loucura primeiramente como um desafio que nos fisga com todos os seus perigos e descaminhos: de entrar no jogo, da tradução excessiva, da desesperança. E Andréa... como fui “tomada” na tarefa de ser sua analista, e minhas vacilações e os caminhos nos quais o vazio e sua delinquência2 foram escavando nas escarpas, nos precipícios, nas escamas dos peixes mortos. Caminhos – tentativas de entrar no mundo, ensaiar sair do sótão, mostrando para os que podem acolher - e ‘não recusar’ sua coleção de morcegos.

Volta

Andréa retorna, diz que está voltando para o ateliê de gravura aqui na cidade. Repete enfaticamente que quer muito voltar, tantas coisas para me contar. Mas quando vem, não conta sobre o tempo que deambulou, andarilha por São Paulo. O que aconteceu após a exposição? Aprontou o quê? Penso secretamente. Quando algo de bom acontece, lá vêm novamente a tormenta, os desvarios, os furtos (dólares, anel de brilhante), o vício pelo bingo. A tendência antissocial apresentando sua face explícita.

Não me conta sobre sua delinquência, apenas sobre o desejo de morrer ou de não existir, desistir dessa luta insana, da angústia que estraçalha. Assassinar a si mesma, sua angústia e a mãe, todas juntas.
Livrar-se da dor aguda que a impede de sustentar um sorriso, jogo de esconde-esconde entre a doçura (voz doce que não conhece ou através da qual disfarça o que sente – digo-lhe) e a transparência do estar ali e não estar. Livrar-se da distância que vai se prolongando e ela se afastando, o encanto virando pó. Como comunicar-se em palavras se o vidro opaco de seu olhar nos separa e a dor a leva correndo (algumas vezes chega a interromper a sessão)? O mal a corroendo de dentro e eu vejo estampada na face a impaciência dolorosa que denominamos angústia. Angústia que não é possível partilhar, que leva para longe, pernas automáticas andando sobre um solo que não oferece descanso.

Durante todo o período que frequentava o ateliê de gravura, nossos encontros se concentravam em torno de ela trazer suas produções. Andréa e sua pasta, mostrando-me uma a uma suas gravuras.

Eu interessada, meus olhos também brilhando de curiosidade, instigada, intrigada, pescada com a isca de algo que não sabia o quê, às vezes emprestava algum lírio/livro de poesia (ela adorou Hilda Hilst), e ela andava por aí com o livro, devorando as poesias de morte e ódio-amor.

A mudança e o medo

Andréa recebeu da mãe (de presente) um apartamento, dois andares (acima ou abaixo?) de onde aquela morava. Uma tentativa entre doação – do tipo, “isso é meu, mas estou te dando” – e uma separação na marra.

A mãe, tantas vezes odiosa, que começava a falar mansinho e de repente jogava tudo fora, cuspia fogo e maldições sobre a filha – lutava muito também. O tanto que, entre mel e fel, acolheu e jogou ao chão inúmeras vezes, lutando com sua própria loucura, foi conseguindo trazer Andréa para a conquista de condições mínimas de viver bem!

A angústia maior de Andréa era: “eu não sei viver”, “eu não vou dar conta” – uma fala das duas que eu ouvia tantas vezes. Sobre não saber viver: levantar-se, minimamente cumprir tarefas da vida, algo aquém da depressão, caminhar no concreto do chão, qualquer que seja, das pessoas que se cumprimentam, da louça para lavar, do dia para viver.

Andréa relutou em mudar. Queria, mas uma espécie de pânico a trazia de volta ao ninho, “não ia dar conta” de cuidar sozinha de si e da filha, não ia dar conta da separação.

Até que foi literalmente expulsa pela mãe. Com a ajuda financeira desta, a casa já vinha sendo montada, a casa preenchida, cheia, o ninho pronto prenhe de ovos – faltava o morador.

Andréa me descrevia as cores, tapetes, quadros da casa – era uma casa colorida, como pedia sua alma de artista e sua ânsia por aconchego e alegria.

Quando mudou, nossas sessões eram permeadas pela oscilação entre o relato da dor de ficar só, dos dias em que só queria dormir e as gravuras que me mostrava. Ó pedaço de mim – às vezes apenas a tristeza, o sofrimento calado e as gravuras. Tinha a sensação que ela só ia ali para me mostrar suas produções, partilhar comigo aquilo que eu recebia com afeto e prazer.

O mal

Continuava lhe oferecendo poemas suscitados pelos filmes que a interessavam ou pelas gravuras apresentadas.

Nas entrelinhas dos desenhos: a dor, os demônios quase sempre presentes, as sombras habitando os disformes chifres de faunos, casais desencontrados, homens diabólicos, mulheres solitárias.

E eu? O verbal escapava pelos vãos dos dedos, nós nos acompanhávamos naquele jogo de trocas, mas a dúvida me assombrava. Será? Será?

Comecei a pensar em conversar mais sobre os desenhos em relação a seus aspectos ‘trash’. Pensei: se neste momento ela só se comunica desse jeito, que o seja. Vou mergulhar em seu mundo de pesadelos e sonhos e trocar com o meu de letrinhas, dando forma e possível sentido mais verbalizável. Talvez fosse necessário. Talvez não.

O verbo e o amor

Na sessão após minha conversa (com meus botões), para surpresa minha, Andréa chega sem a pasta. Está ali, estava ali, frente a frente, sem gravura, desenho, poesia – numa comunicação de outra espécie, a que sai pela boca, olhos, ouvidos, os corpos se mexendo, contrações, crispações. O espaço potencial (Winnicott, 1951/ 1971) não dispunha de um objeto que por tanto tempo fora preciso para que atravessássemos nossas mil e uma noites antes de sermos degoladas pela angústia e desencontro.

Se perguntarem o que conversamos naquela sessão, não me recordo. Sei que foi convidada pelo pai para um cruzeiro e que a mãe ajudou-a a escolher e comprar roupas (até então, o desleixo permanecia em sua apresentação e cuidado pessoais, moletons largos e largados, figura quase andrógina – estrangeira para olhos do cotidiano das vestes bonitas).

Quando volta das férias, Andréa chega arrumada – pergunto se é para mim. Não, anda mais cuidadosa agora, faz a unha, está contente porque não puxa mais o cabelo (me mostra a falha enorme, hoje sem vergonha, e eu me assusto, sem compreender o progresso apontado. Para mim, continua a mesma clareira, o oco aparecendo, oculto pelos ralos fios que o cobrem).


Alguns comentários

Pérolas aos poucos
Eu jogo pérolas aos poucos ao mar
Eu quero ver as ondas se quebrar
Eu jogo pérolas pro céu
Pra quem pra você pra ninguém
Que vão cair na lama de onde vêm...

...Grãos de areia
O sol se desfaz na concha escura
Lua cheia
O tempo se apura
Maré cheia
A doença traz a dor e a cura
E semeia
Grãos de resplender
Na loucura

Zé Miguel Wisnik e Paulo Neves

Tantas vezes me perguntei por que continuávamos juntas, o que Andréa esperava de mim. Não sei com que palavras definir o sentido da gravura e de sua produção na vida de Andréa. Objeto de ligação com a vida, de buscar ancorar-se para não submergir à angústia e às margens (à marginalidade) vazias e sem rumo. Objeto de expressão de um mundo interno que não se revelava em palavras ou na doce voz: mas na depressão, na ausência radical de se sentir vivo e capaz de viver e nos atos delinquenciais. Objeto de reconhecimento na medida em que ia construindo uma praia, a partir do olhar do professor, com as ondas se estendendo até os colegas artistas. A gravura era um objeto onde buscava ancoragem, mas sempre se equilibrando num fio de navalha, porque era preciso mergulhar num mundo de desorganização e caos para que o informe ganhasse formas, para que figuras assustadas e terríveis ganhassem mínimos contornos.

O que Andréa procurava na arte?

Existe uma dificuldade em viver o dia a dia: vive uma vida a vida ou mesmo uma morte a morte – lenta e/ou impulsiva. Está em busca de um viver em que emerjam sentidos. A miséria simbólica, as restrições que a vida onírica de pesadelos impõem levam o lidar com o trabalho do dia a dia como peso das tarefas esmagando-lhe a vontade e impossibilitando o sonhar que conduz a um fazer criativo. Às vezes devaneios. Quem sabe, nem devaneios: algo aquém do fantasiar.

O que a arte é capaz de propiciar? Não necessariamente cura – vide inúmeros artistas. Obra de arte não é sinônimo de viver criativo, já dissera Winnicott (1971).

Obra de arte, adverte Winnicott, é diferente do viver criativo próprio ao viver total. São pessoas como Andréa, em especial, que tentam encontrar-se através de suas experiências criativas – na busca de seu eu (‘self’). Entretanto, pensar na arte como único ou garantido caminho para a cura pode ser um equívoco, uma busca interminável e mal sucedida. Para alguns, a arte é fundamento como única sustentação possível para a ligação com a vida e sobrevivência psíquica. Para outros, a arte é um atalho enquanto o viver o dia a dia beira o insuportável.

O amor à vida não acontece, e o mesmo objeto de salvação pode tornar-se de perdição. Mas poderá assim mesmo constituir-se como um objeto de comunicação com outro humano? Ou delineia-se apenas como gesto esboçado que, se o outro não está ali, para partilhar e reconhecer a realidade da criação, cairá no vazio?

Lembro-me de um tempo em que Andréa ficou sem produzir, mas, simultaneamente, começou a se arrumar, viajou com o pai, ampliou horizontes para fora da arte. Conta-me, então, que evitava “mexer em gravura” naquele momento, com medo de perder a estabilidade. Foi importante o assinalamento de Andréa, que provocou em mim um estranhamento e posterior questionamento, em relação à percepção do uso terapêutico da arte.

De um lado, vemos pacientes que temem que o curar sua loucura jogue fora (o bebê junto com a água do banho) a sua parte criativa. De outro, pacientes (ou os mesmos) que jogariam fora suas possibilidades de talento pelo sentimento de normalidade e estabilidade, e de fazer parte da humanidade.

Aqui recorro novamente a Winnicott:

Na busca de eu (‘self’), a pessoa interessada pode ter produzido algo valioso em termos de arte, mas um artista bem sucedido pode ser universalmente aclamado e, no entanto, ter fracassado na tentativa de encontrar o eu (‘self’) que está procurando. O eu (‘self’) realmente não pode ser encontrado no que é construído com produtos do corpo ou da mente, por mais valiosas que essas construções possam ser em termos de beleza, perícia e impacto. Se o artista através de qualquer forma de expressão está buscando o eu (‘self’), então se pode dizer que com toda probabilidade, já existe certo fracasso para esse artista no campo do viver geral criativo. A criação acabada nunca remedia a falta subjacente do sentimento do eu (‘self’). (1971, p. 81).

É preciso uma “sensibilidade especial”, que vá além dos limites da consciência: estar frente ao outro de modo sensível e cuidadoso numa escuta sem demandas.

Por isso devemos ser cuidadosos em relação ao pré-conceito referente à arte como garantida forma de cura – cuidadosos para não comunicar a arte como única expressão do eu (‘self’) deste paciente.

Sem dúvida, a arte constitui uma poderosa âncora enquanto expressão da vida subjetiva, mas o trabalho do analista deve ser o de auxiliar na construção de um trabalho para que a arte não funcione apenas como paradeiro (lugar seguro/de parada), mas como movimento que produza novos momentos na direção de um futuro de criação para além da obra em si. A obra como abertura para criar na vida.

Sessão mais recente de Andréa

Andréa não me traz mais suas produções – aliás, as mais recentes não são gravuras, mas desenhos com outra técnica que dispensam o uso de prensas e o contato com a sujeira. Já estávamos quase finalizando a sessão, quando ela me reafirma o seu medo e quase determinação em não trabalhar com artes plásticas com a regularidade anterior. Argumenta que entra num processo em que se suja muito, a casa suja, a sujeira e desorganização do entorno ganham uma proporção “enorme”. Não se interessa mais em manter as coisas arrumadas. O mundo acaba ali. Quando começa a trabalhar vai noite adentro, perde a noção das horas e do tempo.

Angústia de entrar num estado caótico, tanto físico, quanto de alienação em relação ao que acontece fora de si. O cuidado de si mesma, da filha e do ambiente ficam impossibilitados. Dá-se um contato quase direto, sem mediação, com seus aspectos “trashes” (assim ela diz), como se não fosse possível criar a partir de outro interior, se não o mais terrorífico, louco, da dor de feridas (incuráveis).

Será possível criar a partir de um belo sereno? Será possível criar sem contar com sua loucura desorganizada? Como possível solução, Andréa está pensando em usar o ateliê do professor eventualmente, sem compromisso.

Um talento importante que vem desenvolvendo há algum tempo é cozinhar. Caprichosa, sofisticada, pesquisa pratos refinados, ingredientes diversos, “especiarias”; faz almoços e oferece às pessoas que lhe são importantes. Pretende iniciar o curso de gastronomia enquanto amigos artistas a reprovam e a incentivam a fazer curso de Artes Plásticas.

Entendo sua mudança e a acompanho, podendo entender que a arte nela segue – neste momento – por caminhos mais seguros, com contornos em que é possível lidar com a sujeira da cozinha, e as produções podem ser oferecidas aos outros com garantias, de consumo e de que estará acompanhada de pessoas reais e não de demônios, peixes mortos, esqueletos.

Escolha de um caminho mais alegre (ou menos doloroso), onde a ameaça do transbordamento da aflição e da loucura fique distante.

Pérolas aos poucos, jogadas paulatinamente para que seja possível o lidar com a lama que vem junto, lama-origem da pérola, onde o sujar-se e o limpar sejam possíveis – de modo a possibilitar a tolerância da destrutividade e o vislumbre da esperança e da possibilidade de viver criativamente.


Referências

BAUDELAIRE, C. As Flores do Mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.         [ Links ]

CARDOSO, M. R. Superego. São Paulo: Escuta, 2002.         [ Links ]

PESSOA, F. O Livro do Desassossego por Bernardo Soares. São Paulo: Brasiliense, 1995.         [ Links ]

PONTALIS, J. B. Perder de vista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.         [ Links ]

WINNICOTT, D. W. Objetos Transicionais e Fenômenos Transicionais. In: ______. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1971 (Original de 1951).         [ Links ] 

______. A Criatividade e suas Origens. In: Op. cit., 1971.         [ Links ]

______. Nada no Centro. In: ______. Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 1989 (Original de 1959).         [ Links ]

______. O Medo do Colapso. In: Op. cit., 1989 (Original de 1963).         [ Links ]

______. A Psicologia da Loucura: uma contribuição da psicanálise. In: Op. cit., 1989 (Original de 1965).         [ Links ]
 

 

Data de submissão: 29/08/2015
Data de aceite: 15/10/2015

 

1 O nome Andréa é fictício, dada a necessidade de preservar a identidade da paciente.

2 Poderia ter trabalhado o caso sob a perspectiva da tendência antissocial. A delinquência está presente, mas optei deliberadamente por encaminhar a discussão de outra forma.

I Psicanalista, doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora no Curso de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP). Autora dos livros "Dos que moram em móvel-mar”, “A elasticidade da técnica psicanalítica” e "Asas presas no sótão: Psicanálise dos casos intratáveis" e de artigos em diversas revistas. E-mail: fatacesar@gmail.com

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