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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades vol.9  Rio de Janeiro dez. 2015

 

ESPAÇO ABERTO

 

A escuta de crianças no sistema de Justiça: ações e indagações

 

La escucha de niños en el sistema de Justicia: acciones e indagaciones

 

 

 

ENTREVISTA DE de Tatiana FernandesI com Leila Maria Torraca de BritoII

IUniversidade Federal de Juiz de Fora, Brasil.

IIUniversidade de Manizales, Colômbia.

 


Palavras-chave: escuta judicial, abuso, criança, infância, adolescência.
Palabras-clave: escucha judicial, abuso, niño, infancia, adolescencia.

 

Tatiana Fernandes – Gostaríamos de saber um pouco sobre a sua trajetória na universidade.

Leila Torraca – Tenho trabalhado com disciplinas relacionadas à Psicologia Jurídica desde 1986, quando comecei a lecionar no curso de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), no curso de especialização em Psicologia Jurídica e, posteriormente, na pós-graduação em Psicologia Social.

Sobre o tema específico da escuta da criança no sistema de Justiça, logo que surgiu a demanda para atuação de psicólogos no chamado “depoimento sem dano”, iniciei, junto com alunos, uma série de pesquisas e discussões. A investigação começou com um projeto em que se buscava entender como era feito esse depoimento das crianças que supostamente sofreram abusos sexuais. Posteriormente, em outra pesquisa na qual contamos com o apoio da Faperj, iniciamos uma série de entrevistas com psicólogos em diversos estados de todas as regiões do país. Com esse estudo, começamos a analisar como era feita essa “escuta da criança”, não só nos tribunais, mas também nas delegacias e no Ministério Público.

Tatiana Fernandes – Como se dá, no sistema de Justiça, a escuta da criança que supostamente foi vítima de abusos sexuais?

Leila Torraca – Quando se começa a falar mais sobre violências e abusos contra crianças, surgem também serviços especializados para lidar com esses casos. E aparecem com o objetivo de colaborar e realizar parcerias com o Judiciário, visando uma avaliação mais ampla da situação apresentada. Em 2003, porém, surgiu no Rio Grande do Sul a proposta de aplicação da técnica denominada de “depoimento sem dano”, um projeto do Dr. José Antonio Daltoé César. A partir de então, muitos serviços são instalados com base nesta proposta.

Tatiana Fernandes – O que seria o “depoimento sem dano”?1

Leila Torraca – Hoje, após várias discussões sobre qual seria a denominação mais apropriada – depoimento sem dano, depoimento especial, depoimento com redução de danos –, utiliza-se a nomenclatura “depoimento especial”. Este surgiu com o propósito de uma escuta diferenciada da criança. Ao invés de falar diretamente ao juiz, ela fica em uma sala separada, na companhia de um psicólogo, que permanece com um fone de ouvido, enquanto o juiz, os advogados e os demais interessados estão na sala de audiências. Alega-se que, nesses casos, o psicólogo serviria de mediador, intérprete, recebendo as perguntas do juiz e transmitindo-as às crianças, com o intuito de adequar para elas as informações. O depoimento é gravado e transmitido em tempo real para a sala de audiências. O projeto inicial, lançado pelo Dr. Daltoé, previa uma sala especializada, adequada para a criança se sentir bem, com mesinhas e cadeirinhas, material lúdico, brinquedos. A fase inicial consistiria em um ‘rapport’, um acolhimento da criança. Esta fase não é filmada e dura cerca de 20 minutos. Depois, ocorre a fase das perguntas e no final pode ser feito o encaminhamento. Esta última fase também não é filmada.
 
Nas pesquisas que realizamos, percebemos diferenças na maneira de executar este depoimento especial, portanto não poderíamos dizer que seria o mesmo procedimento, tampouco que traria os mesmos resultados e desdobramentos. Em alguns serviços, por exemplo, era a criança que ficava com o fone de ouvido, escutando as transmissões diretamente do juiz, e o psicólogo, ao lado, auxiliando caso existisse alguma dúvida. Mas a transmissão era feita diretamente para a criança. Em alguns lugares, não havia a presença de brinquedo ou materiais lúdicos na sala porque se julgava que poderiam distrair a criança. Em outros serviços, inicialmente havia brinquedos, mas esses foram retirados da sala porque distraíam as crianças ou atrapalhavam as filmagens, então os brinquedos ficavam escondidos atrás de uma cortina. Quando a criança não queria falar, os brinquedos apareciam.
 
Existem ainda os casos em que as crianças passavam primeiro pela avaliação psicológica para depois participar do depoimento especial. Percebemos, portanto, práticas de escuta realizadas de maneiras bem diferentes, podendo acarretar resultados também diferentes. Assim, não podemos achar que, por serem todas denominadas de escuta especial, são feitas da mesma forma. Em alguns lugares, foram mudando esta prática. É isso que precisa ser pensado sobre a variedade de procedimentos com a mesma designação.

A implicação do psicólogo com a ética nestes procedimentos é muito importante. Na época da pesquisa, encontramos situações em que as entrevistas psicológicas realizadas antes do depoimento também eram filmadas e gravadas. Em vista disso, perguntávamos: onde está a ética e o sigilo se esse material está sendo filmado? Esta atitude fere o nosso código de ética em nome do direito da criança. Muito profissionais nos diziam, como justificativa, que o depoimento especial estaria contribuindo para um maior número de condenações. Não sei se isto é bom, se estamos condenando mais inocentes ou não, pois o fato de haver mais condenações não quer dizer muita coisa. Como ficará a criança quando descobrir a condenação? Atualmente se sabe de condenações de pessoas aparentemente inocentes. Então, quais as consequências destas condenações para a criança?

Tatiana Fernandes – Quais seriam os motivos para o surgimento e tamanha adesão do Judiciário quanto à necessidade de escutar essas crianças?

Leila Torraca – Tempos atrás, junto com uma aluna, fiz um levantamento bibliográfico para entender, especificamente, quais os motivos para o surgimento desta demanda. Observamos que a justificativa dessa escuta vem no sentido de se estabelecer a melhor prova, porque muitas vezes não há outra, sendo difícil concluir sobre uma “verdade jurídica”. Outra justificativa, para alguns que defendem o depoimento sem dano, é sobre o fato de se proteger a criança da revitimização. Acreditam que, se não fosse por meio desse procedimento, a criança teria que relatar o caso muitas vezes, para diversos serviços, para distintos profissionais, e por meio da escuta nos moldes do depoimento sem dano a criança seria ouvida apenas uma vez e não seria revitimizada.

Um argumento importante, nesta perspectiva, é o fato de que, ao contrário dos operadores do Direito, os profissionais da Psicologia e do Serviço Social teriam conhecimentos específicos para ouvir a criança. Outros alegam, ainda, que seria um procedimento rápido, pois se chegaria logo a alguma conclusão sobre a ocorrência ou não do fato. Seria então um procedimento novo, rápido, simples e de baixo custo. Alguns também dizem que desta forma se estaria valorizando a palavra da criança. Lógico que diante de todas essas argumentações existem também contra-argumentações.

Tatiana Fernandes – Com o surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, tem origem o reconhecimento da criança como um sujeito de direitos e, a partir disso, desenha-se uma nova configuração social diante da violência contra a criança. Qual a influência do ECA nesta escuta de crianças?

Leila Torraca – É importante lembrar que atualmente vários autores vêm questionando a utilização dos termos “sujeito de direitos”, tanto para o adulto quanto para a criança. Essas indagações surgem no sentido de se pensar o que se tem feito destas expressões e denominações. O surgimento do ECA foi a concretização de toda uma luta para se considerar as crianças, suas prioridades e direitos. Mas percebe-se que o rumo dos acontecimentos não foi exatamente esse. Existe uma série de justificativas para ações e imposições sobre o que as crianças deveriam fazer em nome dos seus direitos. A partir disso, é importante pensar e discutir: o que seriam os direitos da criança? O que eles se tornaram? Notamos uma grande judicialização da sociedade atual, que pode ter relação com o aumento do número de crianças ouvidas no sistema de Justiça.

Um dos argumentos frequentes no início desses trabalhos do depoimento sem dano é que as salas para tomada de depoimento das crianças seriam especiais e que antes o Judiciário não estava preparado para receber essas crianças. Acredito que não havia um lugar especial para as crianças nos tribunais porque não se pensava que estas fossem frequentar tanto esse sistema. Podemos, então, perguntar: seria este um lugar para crianças? Como pensá-las enquanto sujeito de direitos sem que haja uma imposição para seus depoimentos? Então, cabe atualmente uma grande discussão sobre o uso que se tem feito dessa expressão “sujeito de direitos”.

Tatiana Fernandes – As crianças também eram chamadas para serem ouvidas na época do Código de Menores (1979), antes do ECA?

Leila Torraca – As crianças eram ouvidas sim, mas em outra perspectiva e contexto. Na época do Código, o trabalho das equipes de Psicologia e Serviço Social ocorria mais com jovens acusados de cometerem atos infracionais. Podemos perceber, entretanto, que o ECA se insere dentro de uma conjuntura global que, com a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, passa a privilegiar a doutrina da proteção integral. Com certeza, após o ECA, foi possível um novo posicionamento diante das violências sofridas pelas crianças. Não havia, antes do ECA, essa escuta nos moldes do depoimento sem dano em relação aos casos de violência sexual contra crianças.

Tatiana Fernandes – Quais as concepções de criança que habitam a escuta do Sistema Judiciário? Como um “sujeito de direitos”, um “sujeito em desenvolvimento”, conforme preconiza o ECA?

Leila Torraca – Vou falar a partir de pesquisas que realizamos sobre a escuta de crianças, pois fizemos entrevistas com psicólogos e assistentes sociais e analisamos a jurisprudência proferida por desembargadores a respeito dessa “escuta” para saber qual a argumentação deles a esse respeito. Se eram favoráveis, desfavoráveis, o que era considerado. Percebemos que, ao mesmo tempo em que existe preocupação de se entender a criança como sujeito de direitos, também existe uma tentativa de adequação dessa criança para a obtenção de provas.

A utilização de crianças muito novas nestes processos, submetidas ao depoimento com idades de três anos, cinco anos, acaba produzindo algumas dúvidas quanto aos resultados obtidos e esperados. Então, o que se pretende com esses depoimentos, o que se espera dessas crianças? Encontramos situações e interpretações interessantes, desde aquela que sugere que a fala das crianças é “robusta, consistente, não deixando margens a dúvidas”, até afirmações de que a criança não teria motivos para mentir em seus depoimentos. Como se pudéssemos reduzir toda a complexidade das situações numa diferença entre mentira e verdade.

A ausência de respostas e até mesmo as dúvidas das crianças com relação aos acontecimentos não são bem vistas e aceitas pelo Judiciário. Como se a criança não pudesse ter momentos de dúvida, já que eles não produzem provas. Muitas vezes, a criança é levada a dar uma resposta. Outro ponto importante a considerar é que a criança, em certa idade, não gosta de dizer que não sabe algo diante da figura de um adulto. O fato de dar voz para as crianças nestes depoimentos não significa, necessariamente, a valorização da criança, mesmo que a intenção seja a de sua defesa. Existe a necessidade de se investigar quais as repercussões do depoimento na situação de cada criança e se é dada a possibilidade de ela não depor.

Na maioria das vezes, a criança é obrigada a participar do processo e, se não quer falar, é questionada: “por que não fala?”. É dito que o depoimento “será importante para ela”, que “se sentirá melhor”. Estes são acontecimentos e posicionamentos que precisam ser investigados, porque são garantias que não podemos dar. Não sabemos se será melhor. São muitas variáveis que precisam ser analisadas nestes depoimentos. Tenho sérias dúvidas se estamos protegendo ou expondo a criança.

Tatiana Fernandes – Atualmente, por meio do disque-denúncia (disque 100), qualquer pessoa pode ligar e denunciar uma violência contra a criança, violências domésticas. Muitas vezes, essas denúncias se desdobram em vários serviços de atendimento na rede de proteção à infância, para além do Sistema Judiciário. Como estas denúncias são tratadas no Sistema Judiciário?

Leila Torraca – Levando em consideração o que você disse no “para além do Judiciário”, o que podemos observar é que, no momento em que a criança chega ao Judiciário, muitas vezes ela já passou por diversas instituições. Quando chega para fazer o depoimento especial, por vezes já foi submetida a outros depoimentos, nas delegacias, com filmagens, e não foi ouvida uma única vez, como se pretendia. Quando surge uma denúncia, é praticamente impossível que a criança seja ouvida uma única vez. Até porque as pessoas próximas conversarão com ela sobre o assunto. Então, quando essa criança chega para o depoimento especial, ou atendimento do caso, a sua fala já foi ressignificada por muitas pessoas. Isso nos mostra a importância de ser analisado todo o caso e não somente a criança.

Recentemente, estive em um evento da área da Psicologia, e uma psicóloga questionou a importância de o acusado também ser ouvido. Ela fez essa pergunta porque sabia de casos em que eram ouvidos a criança e o autor da denúncia, mas o acusado não. Enquanto psicóloga, acredito que devemos dar atenção ao caso como um todo. Ainda mais em um contexto de Justiça com alguém acusado. Como vou fazer um trabalho sem ouvir aquele que foi denunciado? A alegação dos profissionais, nestes casos, é de que o acusado mentiria. Há casos muito complexos, daí a importância de se ouvir todas as partes, ficando muito incompleto o atendimento ou a escuta só da criança. Isso porque, em muitas situações de depoimento especial, a criança é chamada para esclarecer todos os fatos. Esclarecer como? Muitas vezes, ela não percebe que houve o abuso. Porque o abuso não quer dizer que ela sentiu o ato como uma violência. O abuso pode se dar por meio de carícias e carinho, e a criança não estar significando isto como abuso. Os outros é que vão nomear o ato, para ela, como um abuso.

Um exemplo de interpretação equivocada ocorreu em uma casa em que uma criança gritava todos os dias, em um mesmo horário. Vizinhos denunciaram aquela família por cometer violência. No final foi constado que a gritaria, sempre no mesmo horário, se devia ao fato de a criança reclamar de ter que tomar determinado remédio, sendo que o motivo dos gritos foi interpretado pelos vizinhos como violência. Não estou dizendo que todos os casos sejam assim, mas deve-se ficar atento. Muitas vezes o denunciado acaba tornando-se rapidamente um abusador e condenado. Mesmo antes de qualquer processo, já é considerado abusador. Alguns profissionais justificam não ouvir o acusado por se tratar de um abusador. Mas temos que entender todo o caso.

Há situações em que a contextualização no surgimento da denúncia é importante porque esta é feita no meio de um processo de separação conjugal, por exemplo. O que acabamos percebendo hoje é uma banalização deste ato da denúncia. Todas as denúncias são conduzidas como um caso de violência em que a criança é posta como vítima e o acusado já é tratado como agressor e tudo fica dividido: serviço de atendimento às vítimas e serviços para agressores. Assim percebemos a importância de uma escuta apurada, principalmente pelo psicólogo, e não somente no caso do depoimento especial, mas no atendimento do caso como um todo.

Tatiana Fernandes – Estes casos dizem da importância de se pensar os desdobramentos das denúncias e processos jurídicos na vida familiar. Porque o denunciado pode, muitas vezes, pertencer à família da criança.

Leila Torraca – Muitas vezes, o que se observa nestes casos é que a criança ama e odeia o acusado. Ama e odeia ao mesmo tempo, justamente porque é alguém da família. Ela quer que o abuso cesse, mas não quer que a pessoa seja presa nem todos os desdobramentos que o caso trará. Quando a criança fica sabendo das consequências de seu depoimento, que ela foi responsável pela prisão – porque a família mostra isso – ela pode ficar mal. Então, por que essa promessa para a criança, argumentando que nada irá acontecer e que se sentirá melhor após o depoimento se no fim pode não ser assim? É claro que não estamos defendendo ninguém, muito menos negando os abusos. Apenas precisamos tomar cuidado e pensar na banalização das denúncias de abusos em que rapidamente a criança é vista como vítima, e tudo fica dividido entre acusadores e acusado.

Tatiana Fernandes – E como fica o trabalho da equipe interdisciplinar nesses casos da escuta da criança que supostamente sofreu abuso sexual?

Leila Torraca – Existem equipes que fazem o atendimento visando uma avaliação psicológica, enquanto outras optam pelo depoimento especial. São práticas distintas. Mas há casos, em alguns tribunais, no mesmo estado, em que as duas formas são feitas no mesmo processo. Temos que tomar cuidado, porque o termo “avaliação psicológica” é um termo que não pode ser desmembrado. Digo isso porque encontro profissionais que dizem entender a avaliação como uma inquirição. Então fazem algo como uma inquirição no depoimento especial, mas a avaliação psicológica é um instrumento específico que está a serviço do psicólogo, que é um profissional portador de certos conhecimentos e uma determinada ética. Não é uma avaliação simples, é uma avaliação psicológica que muitas vezes se dá no contexto de Justiça, ou que é encaminhada para a Justiça, e que deve seguir os princípios determinados pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), como a resolução que institui o manual de documentos escritos (007/2003) e, certamente, o Código de Ética profissional.

O depoimento especial é um momento na audiência em que o psicólogo se coloca como um intérprete para o juiz. Esse é um momento alheio aos da prática da Psicologia, em condições também alheias. Quando entrevistei psicólogos que trabalhavam com depoimentos especiais, perguntei sobre o referencial teórico utilizado. Muitos diziam que era a psicanálise. Isto me surpreendeu, pois no depoimento especial o que se busca é o conhecimento sobre o acontecido, uma verdade jurídica, enquanto na psicanálise se pensa na verdade do sujeito.

Podemos lembrar, por exemplo, que Freud, em 1906, publicou texto intitulado “A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos”, no qual abordou o cuidado e o perigo do emprego de técnicas da psicanálise no contexto da Justiça. Ele diz que o cliente no consultório, com seu analista, está ali porque quer descobrir algo que lhe está incomodando, é um sujeito que junto com o seu terapeuta faz um trabalho no sentido da descoberta desse incômodo. Já o sujeito que está depondo no Judiciário tem algo oculto, mas oculto apenas dos outros, dos operadores do Direito. O sujeito que está sendo ouvido no Judiciário, muitas vezes, tem consciência de por que está ali, não é algo que esteja no inconsciente, mas pode ser algo que ele esconda do outro. Então, Freud alerta sobre a diferença de utilização de um mesmo referencial teórico para o campo clínico, com determinado enquadre, e para o contexto da Justiça. Porque já nessa época, em 1906, se buscava fazer essa transposição de uma técnica da psicanálise para o âmbito jurídico, tentando obter o testemunho das pessoas. Algo muito similar à tentativa feita nos dias de hoje com o depoimento especial. Chama a atenção o fato de muitos psicólogos dizerem que utilizam a psicanálise nestes trabalhos.

Tatiana Fernandes – Na sua pesquisa, você ouviu outros profissionais envolvidos na equipe interdisciplinar, como assistentes sociais?

Leila Torraca – Sim, ouvimos assistentes sociais, mas a prioridade eram os psicólogos, pois queríamos pensar a partir de nossos referenciais teóricos, éticos, de nossas resoluções. O que nós, na Psicologia, temos como norte para orientar esses trabalhos de avaliação psicológica? Queríamos entender quais ferramentas eram utilizadas e como eram usadas. Alguns profissionais dizem que aquele que avalia não atende, ou que não pode fazer entrevista de devolução por ser uma intervenção. O nosso código de ética dispõe sobre a necessidade de devolução, temos que pensar que esta já é uma intervenção.

Tatiana Fernandes – Muitas vezes percebe-se uma importância maior para o contexto jurídico e menor para quem é atendido.

Leila Torraca – Tempos atrás, diante da discussão após um concurso público na área da Psicologia Jurídica, ficou claro que o cliente de todos que estão trabalhando na Justiça é o jurisdicionado. O cliente do juiz e do psicólogo é o jurisdicionado. O nosso código de ética nos diz que a entrevista de devolução precisa ser feita com nosso cliente, foi dele que extraímos todos os dados. Tudo isso tem que ficar claro para o profissional de Psicologia. Qual o objetivo do trabalho? Para quem vou encaminhar o material resultante da avaliação? O que devo esclarecer?

Tatiana Fernandes – A criança é informada das consequências de seu depoimento? Do porquê de estar ali? Que o depoimento será filmado?

Leila Torraca – Eu tive contato com casos de depoimentos de crianças de três anos, será que elas eram informadas? O que sei é que o procedimento diz que sim, que elas devem ser informadas. Devem saber que a câmera está ali, que serão filmadas. Mas também encontrei profissionais que diziam que muitos detalhes não precisavam ser esclarecidos para a criança. Mas será que as crianças têm ideia da dimensão do que está acontecendo com as filmagens? É uma pergunta difícil porque as filmagens estão banalizadas em nossa sociedade, em todo lugar encontramos placas “sorria, você está sendo filmado”!

Já observei casos de crianças com nove anos que apresentaram resistência ao fato de serem filmadas, e não queriam prestar depoimento. Então, os profissionais insistiam, dizendo que seria melhor o depoimento, que muita coisa no processo dependia disso. Existe uma relação desigual entre as crianças e os profissionais, adultos. A criança se sente pressionada com o argumento de que muitas pessoas estão na sala com o juiz por causa dela, esperando o depoimento. Então, existe uma certa pressão, porque ela sabe das filmagens e que existe uma transmissão, mas não sabe quem são as pessoas que estão lá. Quais são as fantasias que envolvem essa pressão?

Tatiana Fernandes – Qual é o argumento das pessoas que buscam manter essas práticas do depoimento especial?

Leila Torraca – É a proteção da criança. Não é que as pessoas e os profissionais sejam mal-intencionados, de forma alguma. Precisamos refletir sobre o fato de que essas práticas têm como justificativa a defesa dos direitos da criança, mas o que seria essa defesa? A justificativa é de que os depoimentos estão aumentando o número de condenações e que são mais práticos, mais rápidos e eficientes, ou mesmo o fato de que isto também é feito em outros países. Temos que pensar quais são as técnicas utilizadas, quem são os profissionais que realizam estas práticas em outros países. Pois sabemos de países em que o depoimento é feito por policiais preparados para realizar a tomada do depoimento. Então, se é uma inquirição, ela deve ser feita por um outro profissional que não o psicólogo! Temos que analisar isso: quem são os profissionais envolvidos? Quais são os procedimentos?

Sabemos de países em que o depoimento requer uma espera, como ocorre também em alguns estados aqui no Brasil. Enquanto isso, a criança continua residindo na mesma casa que o acusado. Então perguntamos: se é uma política de proteção à criança, como isso acontece? Casos em que há demora de quatro a sete anos para uma conclusão do processo. Há ainda trabalhos publicados que mostram que, em certos países, a criança não pode ser atendida por psicólogos se ainda não prestou o depoimento especial. Isso porque se pensa que um atendimento anterior ao depoimento prejudicaria o trabalho. Pergunta-se, então, qual é a prioridade? A criança?

Tatiana Fernandes – E quais seriam os argumentos dos que contestam os depoimentos especiais?

Leila Torraca – Existe toda uma contra-argumentação deste trabalho, questionando, principalmente, se é atribuição do psicólogo realizar este depoimento e se isto implicaria realmente em proteção da criança. No primeiro item, busca-se verificar o que fugiria da ética profissional, dos instrumentos da Psicologia. Isso porque o manual de elaboração de documentos vai dizer que os instrumentos precisam ser próprios da Psicologia, o que não acontece nesses depoimentos. Essa contra-argumentação vai no sentido de questionar se essa seria uma das atribuições do psicólogo e se seria uma prática de proteção à criança. O que seria esta proteção? Não estaríamos atribuindo uma maioridade jurídica à criança, no sentido de que a palavra dela, prioritariamente, será a prova definitiva dos processos? Qual seria o lugar em que estamos colocando a criança no contexto Judiciário? O de alguém que vai trazer a principal prova que será levada em consideração?

Em nosso levantamento, observamos casos na jurisprudência em que a criança passava por exame médico-legal, havia a prova médica, mas essas provas eram as últimas levadas em consideração, pois mais importante era a palavra da criança. Percebemos então uma certa inversão, pois entendemos que a prova que vinha do Instituto Médico Legal (IML) deveria ser considerada nos termos do processo. Muitas vezes, a prova do IML era a última a ser mencionada.

Essas contra-argumentações caminham nesse sentido. O que seria isso para a criança: seria colocá-la em proteção? Seria considerá-la como sujeito de direitos? Estaríamos, na verdade, valorizando a fala da criança, ou obrigando-a a verbalizar algo? Pois uma coisa é a criança querer falar sobre o assunto, ser ouvida; outra é ela ser pressionada a se pronunciar diante de determinadas expectativas. Além do que, ser ouvida, em termos psicológicos, é totalmente diferente de ela ter que verbalizar sobre situações específicas. Porque quando se escuta em termos psicológicos sua escuta é ampliada, se escuta o silêncio, os gestos, o que não é dito. Não são perguntas diretivas e objetivas sobre a verdade do fato, é bem distinto.

Tatiana Fernandes – Qual a sua opinião sobre o depoimento especial?

Leila Torraca – O trabalho nos depoimentos especiais não é uma atribuição dos psicólogos e dos assistentes sociais. Os Conselhos Federais de Psicologia e Serviço Social emitiram resoluções, normatizando, mas foram suspensas pela Justiça. Os órgãos de representação de classe das duas profissões reconheceram que não eram atribuições desses profissionais. Na sociedade judicializada em que vivemos, somos convocados o tempo todo a fazer denúncias. Nós saímos à rua e ouvimos: denuncie isto, denuncie aquilo; podemos perceber que o Estado penal é crescente.

Também temos, atualmente, a denominada escuta móvel. Trata-se de um ônibus que vai até os municípios e a criança faz o depoimento especial neste veículo. Temos que pensar esse movimento itinerante de um ônibus, dentro das discussões atuais sobre as sociedades pós-modernas, do efêmero, de uma sociedade que, como diz Bauman, está sempre em mutação. Como fica a criança neste movimento de ouvi-la e depois ir embora? Um ônibus que é chamativo, porque parece um ônibus de pessoas famosas, de uma banda em turnê, convocando as crianças a prestar depoimentos. Fazendo isso em cidades que, muitas vezes, não têm atrativo algum, esse ônibus torna-se uma sedução, uma atração para ir, falar no microfone, ser filmado.

Isso nos faz pensar também na importância dos brinquedos nos depoimentos. Qual é o sentido do brinquedo para cada criança? Talvez a criança que possua muitos brinquedos não ligue para aquele brinquedo que está ali, na sala do depoimento especial. Agora, uma criança que não teve oportunidade de ter brinquedos, vai responder de uma forma completamente diferente àquele estímulo. Qual o sentido desta experiência para cada criança? Esse brinquedo pode nem ser percebido, ou atuar como uma sedução. Qual o sentido dos brinquedos? Qual o sentido deste ônibus itinerante, colhendo os depoimentos das crianças?

Tatiana Fernandes – Fala-se muito do objetivo de não revitimizar a criança. O que você acha desse intuito?

Leila Torraca – Chama-se de revitimização o fato de a criança falar diversas vezes sobre o ocorrido. Talvez a revitimização possa ser pensada como decorrente da formulação de perguntas inadequadas e do fato de se colocar a criança como produtora de provas. Nós temos que lutar é para que a criança não seja vitimizada! Temos que tomar cuidado para não vincularmos o fato de ela falar do acontecido como uma produção da revitimização. Porque, muitas vezes, ela quer falar sobre o ocorrido. E sabemos muito bem que quando a criança fala, ela também está elaborando os acontecimentos. Dificilmente a criança será ouvida uma única vez. Então, como quantificar quantas vezes a repetição geraria uma revitimização? Isso não é possível, é muito singular, de cada criança, de cada caso. Acredito também que perguntas inadequadas podem revitimizar.

Tatiana Fernandes – E como fica a criança diante da exigência da verdade?

Leila Torraca – Se para o adulto a verdade já é a verdade de cada um, imagina para a criança. Muitos dizem: as crianças não mentem. Não é que ela esteja necessariamente mentindo, mas ela pode estar interpretando daquela maneira. Para ela, pode não ser mentira, pode estar criando aquela história. Por exemplo, uma criança na praia que vê o pai de sunga e diz que ele está pelado. Ela está mentindo? Não. O uso que ela faz da palavra pelado quando vê o pai sem camisa é que seria equivocado. Então, vem um adulto, a ajuda a ressignificar essa palavra e diz a ela: “o papai não está pelado, ele está de sunga e sem camisa”.

Hoje, há vários filmes que mostram como a criança pode interpretar de forma diferente um acontecimento, então temos que tomar muito cuidado com essas situações. Não se pode interpretar qualquer sinal como significado de um abuso.

Tatiana Fernandes – Existem cartilhas que ensinam como reparar nos sinais em uma criança que pode ter sofrido abuso?

Leila Torraca – Existem documentos que visam enumerar comportamentos apresentados por crianças que sofreram abuso. Acredito não ser possível chegar a uma conclusão imediata: se a criança apresentou tal comportamento, foi abusada. Temos que tomar cuidado com essas cartilhas, estamos quase chegando ao ponto em que buscamos cartilhas para aprender quais seriam esses sinais e chegar a uma conclusão. Mesmo as escolas, por vezes, produzem ou divulgam esse material e pedem para que a família fique atenta. Quando a criança apresenta alguns sinais mencionados na cartilha, seja pelo fato de estar quieta em sala, não conversar com os coleguinhas ou qualquer outro comportamento, já passa a ser vista como suposta vítima, antes mesmo de qualquer trabalho de avaliação.

Tatiana Fernandes – Muitas vezes, as crianças são entendidas como vítimas e depois se verifica que não houve nada, e se esquece o que a criança passou. Como ficam essas crianças?

Leila Torraca – Não só a criança, mas toda a família envolvida. Muitas vezes, o suposto abusador é detido e depois se chega à conclusão de que não houve abuso. Temos que pensar o que isso significa na vida de uma pessoa. Nos casos das falsas denúncias, acontecem por vários motivos, até mesmo uma falsa compreensão da mãe. Se a mídia passa a cobrir determinado acontecimento, aumentando a preocupação da mãe, conteúdos e vivências da própria genitora podem interferir no seu julgamento, na sua interpretação do ocorrido.

Não se pode afirmar que a falsa denúncia seja necessariamente proposital. Como estamos em um contexto de grande judicialização, falsas denúncias acabam se tornando mais fáceis de acontecer, as pessoas acabam ficando mais preocupadas, mais assustadas. Como dizem alguns autores, acabamos dividindo a sociedade entre vítimas e algozes. Temos que pensar o que é colocar a criança o tempo todo no lugar de vítima. Esse discurso de proteção da criança e dos seus direitos pode acabar conduzindo-a ao lugar de vítima: vítima de abuso, de bullying, maus-tratos, negligência e todas essas temáticas mais recentes. Vemos a criança ocupando sempre o lugar de vítima. Será que isso é proteger a criança? Será que isso é ver a criança como criança? Esse lugar de vítima paralisa. A criança pensa: vou precisar de atendimento, vou precisar de tratamento, de médico. Aí temos dois campos: o da medicalização e o da judicialização. Então, o que estamos produzindo? Era isso que pensávamos sobre proteção e direitos da criança? Estamos deixando a criança ser criança, ou cada uma será vítima de alguma coisa?

Tatiana Fernandes – O Sistema Judiciário acaba focando na criança e toda a família e o contexto são deixados de lado?

Leila Torraca – Em nome de um direito de proteção, resulta o direito de ser ouvido. Mas o que é ser ouvido? É ser ouvido de forma mais ampla, de um outro lugar, no silêncio, no não-dito. Não é no imperativo de ter que falar sobre isso ou aquilo, é muito diferente. A criança encontra-se entre esses pólos da medicalização e da judicialização. Se está quietinha, vamos ver o que aconteceu; se está muito agitada, deve ser um distúrbio de comportamento. Sempre na vitimização. Parece até que daqui a pouco vamos começar a eleger: você foi vítima de quê?

Tatiana Fernandes – O que você vê como possibilidades e entraves na escuta da criança no Sistema Judiciário?

Leila Torraca – Depois dessa pesquisa, participei de muitos debates e discussões sobre o tema. Infelizmente, o que pude observar é que dentro da categoria (dos profissionais de Psicologia) nós vivemos a mesma divisão: dos chamados algozes das crianças, aqueles que são vistos como os que não querem a proteção da criança e, por isso, não querem o depoimento especial; e, de outro lado, os defensores das crianças, que são favoráveis ao depoimento. O resultado é que não podemos conversar e dialogar. Ficamos presos em antagonismos em que, se você é do time que concorda e é contrário à minha ideia, então não tem conversa e não tem escuta. Infelizmente, observamos sérios embates nos eventos e nas discussões, sempre tendendo para polarizações que dificultam pensar o tema.

Podemos perceber que o Conselho Federal de Psicologia e os Conselhos Regionais vêm tentando orquestrar esse debate, não houve desistência da empreitada. Vemos que, mesmo diante desta polarização, existe uma tentativa e uma pressão para se instalar um serviço de depoimento especial nos Fóruns de diversos estados e municípios e também para o uso de protocolos. Atualmente, a discussão se encaminha para o uso desses protocolos que apresentam perguntas e orientações. Para que exista uma uniformidade nas perguntas formuladas nestes depoimentos, discute-se qual protocolo deveria ser seguido e utilizado. Temos que acompanhar esses desdobramentos das discussões e das práticas em uso porque o número de salas para o depoimento especial só vem aumentando em todo o país.

Tatiana Fernandes – Professora Leila, muito obrigada por sua disponibilidade em conceder esta entrevista, um tema complexo e ao mesmo tempo tão instigante.

Leila Torraca – Eu que agradeço a oportunidade da entrevista para a Revista DESidades.


1 Vide Projeto de Lei N° 35/2007. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=39687&tp=1

 

I Mestranda em Psicologia no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Psicóloga e Especialista/Residência em Saúde Mental. Trabalha na Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos de Magé/Rio de Janeiro. E-mail: tatipsijf@hotmail.com
II Doutora em Psicologia. Professora do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Desenvolve trabalhos e pesquisas sobre Psicologia Jurídica, guarda de filhos, adolescentes em conflito com a lei, adoção, autoridade parental, direitos infanto-juvenis, medidas socioeducativas. E-mail: torraca@uerj.br

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