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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades vol.10  Rio de Janeiro abr. 2016

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

A proibição legal de castigos físicos na infância: alguns contrastes entre Brasil, Uruguai e França

 

La prohibición legal de castigos físicos en la infancia: algunos contrastes entre Brasil, Uruguay y Francia

 

 

 

Fernanda Bittencourt RibeiroI

I Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.

 

 


RESUMO

Desde o início dos anos 2000, os países signatários da Convenção sobre os direitos da criança (1989) são convocados a explicitar em lei o direito das crianças a serem educadas ‘sem nenhuma forma de violência’. Para além da categoria “maus tratos”, preconiza-se a proibição de um repertório mais amplo de atos designados através da categoria “castigos físicos, tratamento cruel e degradante”. Neste artigo, abordarei algumas ressonâncias locais desta ação transnacional, tomando como referência desdobramentos desta proposta no Brasil, no Uruguai e na França. Atenta às conexões entre direitos humanos e os processos de mudança nas sensibilidades, abordo a intenção desta lei em sua dimensão produtiva. Ou seja, na sua capacidade de jogar luz sobre posições de poder e de provocar crítica cultural.

Palavras-chave: leis, castigos físicos, direitos da criança.


RESUMEN

Desde el inicio de los años 2000, los países signatarios de la Convención sobre los derechos del niño (1989) son convocados a explicitar en ley el derecho de los niños a ser educados ‘sin ninguna forma de violencia’. Más allá de la categoría “malos tratos”, se preconiza la prohibición de un repertorio más amplio de actos designados a través de la categoría “castigos físicos, tratamiento cruel y degradante”. En este artículo, abordaré algunas consecuencias locales de esta acción transnacional, tomando como referencia desdoblamientos de esta propuesta en Brasil, Uruguay y Francia. Atenta a las conexiones entre derechos humanos y los procesos de transformación de las sensibilidades, abordo la intención de esta ley en su dimensión productiva. O sea, en su capacidad de traer luz sobre posiciones de poder y provocar la crítica cultural.

Palabras-clave: leyes, castigos físicos, derechos del niño.


 

 

Introdução

Desde a Convenção sobre os direitos da criança (CDC, 1989), mas principalmente a partir do início dos anos 2000, os organismos multilaterais de promoção de direitos humanos defendem o direito das crianças a serem educadas ‘sem nenhuma forma de violência’. Para além da categoria “maus tratos”, já integrada às legislações alinhadas com a Convenção, os países signatários são convocados a especificar em lei a proibição de um repertório mais amplo de atos designados através da categoria “castigos físicos, tratamento cruel e degradante”.1 Neste artigo, abordarei algumas ressonâncias locais desta ação transnacional, tomando como referência desdobramentos desta proposta no Brasil, no Uruguai e na França, países onde, nos últimos anos, realizei pesquisas relacionadas ao sistema de proteção à infância (Ribeiro, 2009, 2010, 2012). Os dados que apresentarei a seguir foram obtidos mediante o acompanhamento do tema nos três países através da ‘web’, uma entrevista com o educador social que esteve à frente desta discussão no Uruguai e a genealogia da construção do projeto de lei pela interdição dos castigos físicos no Brasil (Ribeiro, 2013).

Inspirada em autores que, a partir de diferentes perspectivas, tratam de projetos de lei envolvendo temas morais controversos - a parceria civil entre pessoas do mesmo sexo, a criminalização da homofobia, a criminalização e descriminalização do aborto e da eutanásia (Duarte et al., 2009) ou a proposta conhecida como parto anônimo (Fonseca, 2009) - tomo a intenção desta lei em sua dimensão produtiva. Ou seja, na sua capacidade de jogar luz sobre posições de poder e de provocar crítica cultural. A ênfase nestes dois aspectos apoia-se numa perspectiva analítica interessada nos desdobramentos e efeitos particulares de políticas globalizadas fundadas na noção universalista de direitos humanos das crianças (Fonseca, Cardarello, 1999; Suremain, Bonnet, 2014). Nesta perspectiva, os direitos humanos, entendidos como um discurso, são inseparáveis das relações de poder que configuram hierarquias sociais, bem como dos processos de mudanças de sensibilidades culturais. Quanto a este tema específico da proibição universal de castigos físicos, a abordagem aqui proposta difere dos esforços empreendidos por autores cujos estudos, também situados nas ciências sociais (Delanoé, 2015; Barrágan Rosas, 2015), discutem o conteúdo desta categoria, assim como os fundamentos e os modos de erradicação das práticas por ela designadas. Distante deste objetivo, limito-me a situar este debate no longo processo de mudança nas sensibilidades relativas ao tratamento das crianças (Fassin, Bourdelais, 2005; Vigarello, 1998, 2005), no qual é possível observar um progressivo alargamento do campo semântico da noção de “violência contra a criança” como categoria de designação de violação de direitos (Schulteis et al., 2007). No entanto, não se trata, obviamente, de um processo unívoco. Até o presente, menos de um terço (ou 48) dos países signatários da CDC seguiram a recomendação de legislar sobre castigos físicos. Diferente do Uruguai e do Brasil, a França não proibiu legalmente castigos corporais. Por esta razão, em março de 2015, o país foi advertido pelo Conselho da Europa, que entende que a legislação francesa não prevê a interdição dos castigos corporais de forma clara, constrangedora e precisa.

 

Assimetrias e adestramentos

Como propõem diferentes analistas (Segalen, 2010; Damon, 2005, Vigarello, 2005, entre outros), entendo que os atuais debates em torno dos modos de tratamento das crianças ilustram mutações relativas à democratização das relações familiares. Conforme sintetiza Martine Segalen (2010), o desafio colocado aos pais (ou tutores), na fase atual dos direitos da criança, consistiria em conjugar a simetria preconizada por uma educação sem ‘qualquer forma de violência’ e a responsabilidade educativa que subjaz à relação tutelar.

Conforme pesquisas de opinião divulgadas pela imprensa, mais de 50% dos brasileiros e dos uruguaios (Veja, 2010; Información Sociale, 2007) e 80% dos franceses (TNS Sofres, 2009) manifestam-se contrários à proibição legal de castigos físicos. Este posicionamento indicaria a persistência histórica de uma lógica de adestramento que na tradição ocidental supõe uma natureza humana má que precisaria ser corrigida (Sahlins, 2009)? Ele confirmaria o argumento de Héritier (1996) segundo o qual o recurso à violência resulta de relações humanas de poder para as quais a relação pais-filhos (ou adultos-crianças) forneceria o modelo hierárquico primeiro? No presente, vemos que as controvérsias suscitadas pela proposta de interdição legal de castigos, os debates sobre quais práticas deveriam ser proibidas (o tapa? a palmada? até a palmadinha?), seus malefícios ou benefícios acionam teorias religiosas e profanas (Delanoë, 2015) que atribuem um valor educativo ao sofrimento. A partir de Héritier (1996), podemos dizer que elas põem em discussão a legitimidade do princípio de anterioridade segundo o qual os pais nascem antes dos filhos, devem nutri-los e conformá-los. Para esta tarefa, a violência (ou a não violência), sendo expressão de um estado determinado das relações de poder, poderia intervir com a finalidade de adestrar ou "tornar conforme". Em relação ao Brasil, Teresa Caldeira (2000) observa a naturalidade com que a punição física aparece nos discursos em geral e especialmente quando se trata de “dar exemplo”, “por limites”, disciplinar as crianças. Conforme o senso comum, as crianças não seriam suficientemente racionais para entender tudo o que os pais lhes dizem, mas podem entender pela dor: uma linguagem que qualquer um pode entender – que tem o poder de impor princípios morais e corrigir o comportamento social (Caldeira, 2000, p. 367). Conforme a autora, no Brasil, o corpo dos dominados – crianças, mulheres, negros, pobres ou supostos criminosos – seria concebido como um ‘locus’ de punição apropriado para que a autoridade se afirme através da inflição de dor. A naturalidade com que se concebe a dor como recurso corretivo revelaria uma noção de corpo incircunscrito, sem barreiras claras de separação, um corpo permeável, aberto a intervenções e, portanto, desprotegido por direitos individuais. Ora, é justamente a delimitação cada vez mais estrita de uma fronteira entre os corpos de adultos e crianças que as legislações promotoras dos direitos da criança operam desde o início dos anos 2000.

A distinção retomada por Geertz (Segato, 2006, apud Geertz, 1989) entre padrões ‘para’ (‘patterns for’) e padrões ‘de’ comportamento (‘patterns of behavior’) pode ser útil para entendermos que a adesão a esta proposta de proibição legal de castigos físicos pressupõe uma reflexividade que a própria lei visa promover. Conforme Geertz, os padrões ‘para’ o comportamento seriam inculcados pelo processo de socialização e responsáveis pela automatização das condutas. Já os padrões ‘de’ comportamento resultariam da reflexão sobre as condutas automatizadas e os moldes que nos fazem agir. Transpondo estas noções para a discussão sobre a proibição legal dos castigos físicos, identifico uma reivindicação segundo a qual eles serviriam a inculcar padrões ‘para’ o comportamento das novas gerações, enquanto a sua negação supõe a crítica a estes mesmos padrões. O grande incômodo causado por esta proposta de mudança legal estaria relacionado ao fato dela deslegitimar formas de punição (tal como a palmada) como prerrogativa simbólica da relação parental. A reivindicação deste recurso (utilizado ou não) parece destacar-se como o último bastião da autoridade parental diante do progressivo reconhecimento de crianças como cidadãos plenos.

Na França, as pesquisas de opinião mostraram que apesar da maioria ser contra a lei da palmada (ou lei supracitada), ela não é, no entanto, a favor de castigos físicos e apenas 5% dos entrevistados consideram “a palmada” como a melhor punição (Damon, 2005). Estes posicionamentos sugerem a possibilidade de adesão a padrões ‘de’ comportamento na relação com as crianças e, portanto, a ruptura com condutas automatizadas que autorizam o recurso a castigos físicos, sem que uma lei específica seja considerada necessária. Neste sentido, as controvérsias em torno do tema jogam luz não somente sobre relações de poder no âmbito familiar, mas também entre unidades domésticas e agentes estatais e supra nacionais. Para além da mera adesão a violências ditas educativas, o incômodo com esta proposta de lei relaciona-se talvez ao fato de que a condição de menoridade que posiciona as crianças como objetos de tutela supõe a existência de tutores legalmente constituídos que deverão demonstrar capacidade de educá-los. Em seu estudo sobre processos judiciais de guarda de crianças no Brasil, Adriana Vianna (2005) observa que os direitos da infância representam uma situação-limite dentro do ideário dos direitos humanos posto que explicitam um complexo jogo de valores em torno do que seja a proteção necessária a esses sujeitos especiais: “Ser responsável implica estar preso a um conjunto de obrigações morais não apenas de controle dos indivíduos durante sua menoridade, mas de formação desses mesmos indivíduos.” (Vianna, 2005, p. 28).

O que eu gostaria de sublinhar a partir desta observação é que a proibição legal dos castigos físicos, cobrada atualmente dos Estados signatários da CDC, situa-se nesta dinâmica como mais um aspecto definidor da boa gestão da infância e dos modos legítimos de exercer autoridade. Nesta nova definição, uma gama mais ampla de atos é formalmente definida como incoerente com a obrigação educativa. Entretanto, apesar de sua universalidade, estudos focados em práticas institucionais de promoção dos direitos das crianças sugerem que outra assimetria (para além daquela que distingue adultos de crianças) deva ser considerada em análises deste processo de ampliação do campo semântico da noção de “violência contra a criança”. A saber, a possibilidade de que uma mesma lei produza efeitos desiguais conforme a origem social das crianças e de suas famílias (Fourchard, 2012; Leblic, 2009; Sheriff, 2000) aponta para desigualdades no alcance das políticas de governo. Se por um lado a legislação sobre castigos físicos pode ser interpretada como sinal de um processo histórico de sensibilização e de civilização dos modos, por outro, alguns de seus desdobramentos indicam que a nova legislação tenderia a incidir diversamente conforme a posição social das famílias. Em relação ao Brasil, a análise dos discursos proferidos na Câmara de deputados durante a tramitação do projeto de lei colocou em evidência o fato de que são as famílias pobres e moradoras das favelas que se configuram como as principais destinatárias da lei (Ribeiro, 2013), ainda que o relatório da ONU sobre “violência contra a criança” afirme: “conforme estudos provenientes de diversos países de todas as regiões do mundo, 80% a 98% das crianças sofrem castigos físicos em casa” (ONU, 2006). Apesar deste caráter generalizado atribuído às práticas que a lei visa coibir, o educador social que entrevistei no Uruguai, e um dos principais ativistas pela aprovação da lei em 2007, lamenta o fato de que atualmente o único lugar onde ele observa a referência à lei com frequência é nos dossiês de ingresso de crianças e adolescentes no sistema de proteção à infância. Segundo ele, o Estado não teria assumido a promoção da lei e o silêncio que se instalou desde sua aprovação sinalizaria as tensões em torno do tema. 

Conforme Segato (2006), a possibilidade do discurso legal inaugurar novas moralidades e desenvolver sensibilidades éticas depende de sua divulgação ativa, da aliança entre a lei e a publicidade. Portanto, o silêncio em torno de seu conteúdo seria o pior destino para uma lei que segundo seus proponentes teria uma importância, sobretudo pedagógica. No entanto, a observação feita pelo educador social uruguaio indica que o esquecimento da lei aprovada em 2007 pode ser relativo e válido principalmente para famílias cujos filhos, historicamente, não passam pelo sistema de proteção à infância.

Assim, os desdobramentos da intenção de legislar sobre os modos de tratamento das crianças com intuito de proibir castigos físicos constitui-se num ‘locus’ de visibilidade para posições de poder que vão além da relação pais e filhos ou adultos e crianças. Estes debates e seus resultados permitem observar possíveis desigualdades relativas a posições ocupadas na hierarquia social, assim como diferenças nas relações entre os países signatários da Convenção sobre os direitos da criança e as instâncias supra nacionais de promoção de direitos humanos.

 

“A cultura” em questão

O contraste entre as discussões suscitadas pela proposta de lei nos três países aqui considerados põe também em evidência particularidades quanto à associação entre “violência” e “cultura”. Visto a partir do Brasil e do Uruguai, este debate enfatiza a necessidade de uma mudança cultural e situa a “violência contra a criança” como uma questão desta ordem. No Uruguai, isto é claramente explicitado através da publicação do “Manual para a erradicação cultural do castigo físico e humilhante” (Arcoiris, 2008), elaborado por uma ONG local com o apoio financeiro da ‘Save the children’ e destinada à capacitação de técnicos da área social vinculados a serviços públicos ou privados. No Brasil, a proposta de legislar sobre o tema dos castigos físicos baseia-se numa produção bibliográfica que afirma a existência de uma “mania de bater” arraigada nas práticas educativas desde o período colonial (Azevedo; Azevedo, 2001; 2005). A justificativa que consta no projeto de lei encaminhado à Câmara de deputados retoma as pesquisas realizadas desde o final dos anos 80 pelo Laboratório de estudos da criança (Lacri) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), cujo coletivo de pesquisadores aponta o recurso aos castigos físicos como uma prática cultural recorrente e legitimada no Brasil como método educativo (Ribeiro, 2013).

Na França, os argumentos a favor de uma lei contra castigos não põem em questão “a cultura” de modo totalizado, mas defendem a necessidade de mudar a maneira de educar e de exercer a parentalidade. As categorias “violência educativa” e “violência educativa ordinária”, bastante usuais neste país2, não são claramente formuladas no Brasil e no Uruguai. Assim, por exemplo, a associação “Eduquer sans frapper” (Educar sem bater), criada em 1997, mudou seu nome após uma pesquisa de opinião (TNS Sofres, 2009), na qual os pais afirmavam de forma recorrente: “nós não batemos em nossos filhos; só lhes damos pequenas palmadas”. A fim de desfazer qualquer ambiguidade, a associação passou a chamar-se “Ni claques, ni fessées” (Nem tapas, nem palmadas).

Nestes posicionamentos, fica claro o lugar da lei (e especialmente da expansão dos direitos humanos das crianças) como uma arena de tensas interlocuções em torno da modificação de padrões socioculturais. Nos termos de Segato (2006), nisto reside a importância pedagógica da lei: “sua simples circulação é capaz de inaugurar novos estilos de moralidade e desenvolver sensibilidades éticas desconhecidas” (Segato, 2006, p. 212). Pode-se dizer que o movimento mundializado pelo fim dos castigos físicos coloca-se em acordo com esta intenção. Na perspectiva proposta pela ONU, afirma-se que o principal objetivo da inscrição em lei da proibição dos castigos físicos é dizer aos pais (ou adultos) que eles não podem usar de violência sob o pretexto de educar as crianças (Organização das Nações Unidas, 2006). Afirma-se insistentemente o caráter educativo e não criminalizante da lei (Damon, 2005), e, portanto, a intenção de promover uma sensibilidade particular de acordo com a qual é inaceitável infligir sofrimento para educar ou afirmar autoridade.

No Uruguai, desde 2002, uma campanha de sensibilização contra maus tratos de crianças e adolescentes é realizada por ONGs e pelo governo federal. Sob o lema “Uruguai, país do bom trato”, anualmente, em torno de 3.000 adolescentes engajados por 140 organizações participam da campanha nacional “Un trato por el buen trato” no âmbito da qual realizam uma atividade de “vacinação simbólica” contra a violência. Visando promover uma “cultura do bom trato”, os adultos abordados recebem um “certificado de vacinação”, um adesivo e uma bala que simboliza uma “dose oral de doçura” (Claves, 2014). Em campanhas desta natureza, também realizadas em outros países da América Latina, busca-se mudar comportamentos, problematizar modos de agir e, portanto, incidir sobre as relações interpessoais. É, sobretudo, neste plano que “cultura” e “violência” estarão associadas.

Na França, os debates em torno da proposta de lei apresentam outra crítica cultural. Eles são a ocasião para que se discuta sobre a estrita separação entre as esferas pública e privada que caracterizaria esta sociedade. Em seguida, a advertência do Conselho da Europa à imprensa menciona a erupção quase vulcânica de reações irônicas em torno deste tema que, conforme observa Damon (2005), pode parecer anedótico. Para uns, legislar sobre o assunto seria percebido como uma intrusão insuportável na família, num país que permaneceria impregnado da cultura do ‘pater familias’. Para outros, o incômodo causado pela advertência recebida em 2015 deixaria entrever que a sociedade francesa atribui positividade ao direito de correção na esfera privada quando ela visa inculcar o respeito à autoridade. Nesta perspectiva, afirma-se que a sociedade francesa estaria pouco disposta a mudanças nas normas da vida privada (Dupont, 2015a, 2015b).

A partir desta leitura cruzada de desdobramentos locais da iniciativa globalizada de legislar sobre castigos físicos, foi possível observar a produção de reflexividade em relação a padrões socioculturais, tanto no sentido de contestá-los quanto para reforçá-los. Isto não é surpreendente quando se considera os direitos humanos (e os direitos da criança) como um campo de lutas simbólicas pela inscrição jurídica de uma determinada posição ética acerca da relação com o Outro (Segato, 2006). Historicamente, as mudanças de sensibilidade relativas à integridade corporal e ao que configura formas de invasão a este território (Héritier, 1996) estão estreitamente relacionadas às produções legislativas, a exemplo do que observa Vigarello (1998) em relação ao estupro.

No entanto, outra associação entre “cultura” e “violência” marca a defesa da proibição dos castigos físicos no Brasil e extrapola as intenções de transformação das sensibilidades. Neste país, onde as desigualdades sociais e os índices de violência são largamente superiores aos do Uruguai e da França, os defensores da proibição legal dos castigos físicos afirmaram que a violência na sociedade brasileira enraíza-se na violência familiar. Conforme a fórmula exaustivamente repetida durante a discussão do projeto de lei na Câmara de deputados: a sociedade brasileira é violenta porque a família é violenta. A partir desta leitura, a proibição dos castigos físicos seria um modo de pacificar a sociedade posto que a criança socializada sem violência não reproduziria este padrão de relação social. Colocada a serviço da proibição legal de castigos físicos, esta lógica, bastante simplista se considerarmos a complexidade do conflito e da violência na história do Brasil, tende a situar a violência em comportamentos herdados no âmbito doméstico. Na medida em que deixa em segundo plano fatores estruturais, econômicos e políticos da violência, da insegurança e da criminalidade no Brasil (condições de vida, acesso a serviços públicos, ao emprego, ilegalidades cometidas pela polícia etc.), pode-se afirmar que esta interpretação da violência social tende a contribuir para a manutenção do ‘status quo’.

 

Considerações finais

Para concluir cabe retomar alguns pontos que se destacam no contraste entre Brasil, Uruguai e França quanto à proibição de castigos físicos, a partir dos dois eixos escolhidos: o tema das relações de poder e as associações discursivas entre violência e cultura. Em primeiro lugar, de modo geral, a resistência à colocação em lei da interdição de castigos físicos sugere a persistência simbólica da noção de adestramento que, apesar de associada a “outro tempo”, permaneceria viva como prerrogativa capaz de resguardar a hierarquia e o dever de obediência das crianças aos adultos. As diferentes posições quanto à proibição de castigos físicos deixam perceber múltiplas lógicas atuando nas relações educativas e tutelares e o interesse de abordagens etnográficas que permitam sair da oposição contra ou a favor de uma lei com este conteúdo para a compreensão do que está em jogo contextualmente (ver, por exemplo, Medaets, 2013; Fernandes, 2015). Em segundo lugar, para além de uma condição de dominação da criança (Delanoë, 2015), evidenciada pelos posicionamentos contrários à lei, a genealogia da construção do projeto de lei no Brasil e observações quanto a sua implantação no Uruguai indicam a relevância de manter-se ativa a hipótese de que a lei produza efeitos desiguais conforme a posição social das crianças e de suas famílias. Finalmente, o enlace discursivo que pude identificar entre as diferentes posições quanto à proibição universal de castigos físicos e formas de crítica cultural apontam diversos agenciamentos da noção de cultura associada ao tema da “violência contra criança”. Por um lado, atribui-se à lei a função de mudar a cultura ou, ao menos, o modo de educar e de exercer a parentalidade. Nesta perspectiva, ela seria um instrumento para mudança de sensibilidades culturais relativas à integridade corporal e ao que se designa como violação de direitos da criança. Por outro lado, vimos que no Brasil, a defesa da interdição legal de castigos físicos buscou apoio também num raciocínio que explica a violência social pela violência familiar fazendo abstração dos múltiplos fatores relacionados às altíssimas taxas de violência neste país. Se associarmos a esta lógica, a tendência também observada de situar as famílias pobres como as principais destinatárias da lei, corre-se o risco de que, indiretamente, esta iniciativa possa contribuir para reforçar a ideia de que as famílias pobres são as principais responsáveis pela violência social que, no entanto, vitima principalmente os seus filhos. 


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Data de recebimento: 30/09/2015
Data de aceitação: 21/03/2016
 

 

1 A fim de não sobrecarregar a leitura, esta categoria será referida simplesmente como “proibição de castigos físicos”. No Brasil e na França, esta iniciativa popularizou-se como “lei da palmada” e no Uruguai como “ley del coscorrón”. Neste país, a lei aprovada denomina-se “lei da integridade pessoal de meninos, meninas e adolescentes” e modifica o Código da infância e da adolescência e o Código Civil. No Brasil, a lei foi aprovada como “lei menino Bernardo” e modifica o Estatuto da criança e do adolescente.

2 Ver por exemplo <www.oveo.org/la-violence-educative-ordinaire-quest-ce-que-cest/>

I Doutora em Antropologia pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS, Paris, França), professora da faculdade e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre, Brasil. Coordenadora do Idades – Grupo de Estudos e Pesquisas em Antropologia (CNPq). Coeditora da Civitas – Revista de Ciências Sociais. E-mail: feribeiro@pucrs.br

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