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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades vol.11  Rio de Janeiro jun. 2016

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

As crianças e suas relações com as tecnologias da informação e comunicação:
um estudo em escolas peruanas

 

Los niños y sus relaciones con las tecnologías de información y comunicación:
un estudio en escuelas peruanas

   

 

Patricia AmesI

Departamento de Ciências Sociais, Pontifica Universidad Católica del Perú, Lima, Perú.

 

 


RESUMO

Este artigo propõe a necessidade de revisar categorias conceituais enraizadas no senso comum de pais e professores, que desconhecem as formas desiguais de impacto da cultura digital na vida de crianças e jovens. São revisadas as noções de nativos digitais e imigrantes digitais, as quais associam o primeiro conceito ao mundo infantil e juvenil, e o segundo ao mundo adulto, o que implica em correr o risco de essencializar e descontextualizar experiências sociais e pessoais, ao considerá-las como geracionais. Essa visão dicotômica tem consequências e, em certos casos, pode acarretar, no âmbito educacional, em decisões errôneas com relação ao quê e a como ensinar (ou não ensinar). Dessa maneira, as desigualdades sociais que as crianças e os jovens trazem ao espaço educativo são fortalecidas, e esse espaço deixa de compensar o acesso desigual a certos recursos e conhecimentos.

Palavras-chave: acesso às TIC, condições socioeconômicas, educação e TIC, imigrantes digitais, nativos digitais.


RESUMEN

Este artículo plantea la necesidad de revisar categorías conceptuales arraigadas en el sentido común de padres y docentes, que desconocen las formas desiguales como la cultura digital impacta en las vidas de niños y jóvenes. Se revisan las nociones de nativos digitales e inmigrantes digitales, que asocian lo primero al mundo infantil y juvenil, y lo segundo al mundo adulto, lo que presupone el riesgo de esencializar y descontextualizar experiencias sociales y personales que se toman como generacionales. Las consecuencias que esta visión dicotómica tiene en el ámbito educativo pueden generar en ciertos casos decisiones erróneas con respecto a qué y cómo enseñar (o no hacerlo). De esta manera, se fortalecen las desigualdades sociales que niños y jóvenes traen al espacio educativo, en lugar de compensar el desigual acceso a ciertos recursos y conocimientos.

Palabras-clave: acceso a las TIC, condiciones socioeconómicas, educación y TIC, inmigrantes digitales, nativos digitales.


 

 

Introdução

Há 15 anos começou a circular um termo, que hoje está amplamente popularizado, esse termo foi proposto por Mark Prensky (2001): “nativos digitais”. Como assinala Pedró, o termo surgiu

[...] para referir-se às gerações de estudantes que, desde que nasceram, tiveram acesso a aparelhos digitais, e que portanto, desde sempre viveram num meio em que o acesso à tecnologia estava praticamente generalizado em todos os espaços da vida cotidiana (PEDRÓ, 2015, p.13).

O termo “nativos digitais” faz alusão a uma experiência social e geracional de alcance global e foi usado para chamar a atenção sobre as novas características e necessidades das crianças e dos jovens contemporâneos. Para os adultos o termo empregado é o seu antônimo: “imigrantes digitais”. Esta oposição gera uma dicotomia rígida que aparentemente não poderia ser superada nem mesmo com anos de prática e imersão nos ambientes digitais. Prensky nos diz que os imigrantes sempre conservarão um certo “sotaque”.

Neste artigo, eu discuto esta dicotomia, ressaltando as experiências infantis com relação às tecnologias da informação e comunicação (TIC), a desigualdade que as atravessa e as consequências negativas ao ignorá-las; particularmente no âmbito da educação; pois leva ao desempoderamento de certos atores (pais e professores) sem que necessariamente outros sejam empoderados (estudantes, crianças e adolescentes).

A dicotomia nativos digitais versus imigrantes digitais supõe que as crianças, por serem crianças e por terem nascido nestes tempos, já estão equipadas com o conhecimento da tecnologia digital. Tal pressuposto parece reforçar a concepção essencialista e biologicista da infância, apesar do longo caminho teórico já trilhado que permitiu estabelecer que a infância é uma construção social e histórica (Gaitán, 2006).

Este artigo está baseado em dois projetos de pesquisa realizados em diversos locais e escolas peruanas, em 2014 e 20151, que oferecem exemplos concretos das consequências do uso e popularização acrítica do conceito “nativos digitais”, contraposto ao conceito de “imigrantes digitais”. Nesses projetos participaram 93 estudantes (metade homens e metade mulheres), entre 9 e 15 anos de idade, 16 docentes (10 homens e 6 mulheres), 12 diretores e vice-diretores (5 mulheres e 7 homens), pertencentes a 8 escolas, 5 funcionários (2 mulheres e 3 homens) e 10 representantes locais (todos homens) das 8 comunidades estudadas. A informação foi recolhida mediante entrevistas, observação de aulas e do tempo livre, bem como através de diversas dinâmicas participativas com o uso de desenhos, fotografias e vídeos.

 

As TIC e a educação

Nos últimos anos, diferentes disciplinas têm contribuído para questionar a visão linear de aprendizagem que atribuía o papel de ensino ao adulto, quem tinha o conhecimento e a experiência, e o papel de aprendiz à criança, que devia, por sua vez, receber os ensinamentos dos mais velhos. Entretanto, temos por um lado, campos tão diversos como os das neurociências que revelaram a flexibilidade e a complexidade (decrescente) do cérebro humano ao longo da vida e a intensa atividade neuronal das crianças pequenas. E por outro lado, os campos das ciências sociais que nos mostraram o papel ativo das crianças na produção e reprodução da cultura, pelo que se descartou a imagem de uma socialização unidirecional na qual a criança era aculturada passivamente. Esses achados contribuíram para dar forma a novas pedagogias que reconhecem a participação ativa de crianças e jovens como sujeitos (e não objetos) da atividade educativa.

A presença crescente das TIC insere-se neste contexto adquirindo uma dimensão concreta na prática cotidiana: agora são as crianças e os adolescentes os que sabem mais, não os adultos, o que inverte uma hierarquia de saberes bem estabelecidos. Assim o assinala um dos professores entrevistados.

Porque as crianças realizam algumas ações que nossa… nem eu sei fazer. Ou seja, eu pergunto: “O que é que você fez?” (…) porque agora a curiosidade da criança faz que ela avance por outros lugares então (…) Mas de qualquer forma isso é importante porque serve para aprender também, a gente mesmo aprende. Por exemplo, elas conseguiam colocar tudo na mesma unidade, colocavam música (…). Eu não sabia colocar. Traziam música num pen drive e colocavam então (…) descobriam mais coisas que eu não sabia (...) a criança mesma te ensina porque ela não tem medo de entrar, de conhecer mais. (Professor Marco, de Trujillo, Escola de Ensino Fundamental)2.

Para professores como Marco, esta nova situação é uma oportunidade de aprender. Para outros educadores, essa nova situação significou fazer-se uma pergunta crucial e perturbadora a respeito do que sabem os alunos sobre as TIC e o que os professores desconhecem: isso significa que nós já não temos mais nada pra ensinar? Eu sustento uma resposta negativa para tal pergunta, pois a habilidade das crianças e jovens para usar as TIC não está necessariamente distribuída de maneira uniforme, e mesmo que estivesse, essa habilidade não pode prescindir das orientações que os adultos ou os pares mais apropriados possam vir a propor para aproveitá-la melhor.

Marco assinala que as crianças sabem coisas que nem ele sabe e isso reflete uma extensa percepção entre os professores: a de que as crianças, esses nativos digitais, já vêm com o chip que lhes permite dominar facilmente as TIC. Entretanto, esta noção acarreta o risco de essencializar a própria infância e esquecer a importância dos processos históricos, políticos, sociais e culturais que a constituem.

Finalmente, sem negar a importância das TIC em suas diversas modalidades e seu potencial para renovar e melhorar a aprendizagem e o ensino tradicional (Gee, 2004), é importante lembrar que as tecnologias não operam num vazio social. Atribuir à tecnologia um poder de transformação por si mesma apaga o fato de que as TIC são incorporadas a contextos sociais particulares por atores sociais específicos. Para examinar o que acontece atualmente com as TIC e os estudantes, eu me fundamento nos novos estudos sobre letramento (NEL) (Street, 1995; Barton; Hamilton, 1998). Os NEL consideram que a escrita (como tecnologia da palavra) não é só um conhecimento técnico, uma habilidade discreta que produz mudanças nas pessoas independentemente do contexto, ao contrário, afirmam que a escrita, assim como as TIC (Warschauer; Niiya, 2014), constituem uma prática social, ou seja, estão imersas em contextos sociais e por isso envolvem comportamentos, valores e significados associados a elas, e estão inscritas nas relações de poder e desigualdade que atravessam a sociedade. Por tal razão, não é possível perder de vista o contexto social no qual moram e crescem esses nativos digitais.

 

Recursos e experiências desiguais entre os nativos digitais

Apesar das imagens recorrentes de sentido comum que atribuem às crianças um chip incorporado, a habilidade tecnológica da geração mais jovem não é inata. Ao contrário, ela se alimenta do seu entorno imediato, das tecnologias usadas cotidianamente no lar e na escola, do uso que fazem delas seus pares e sua família, da difusão através da mídia etc. Ao ver e participar destas práticas, as crianças aprendem, desenvolvem e incorporam habilidades, sejam eles meninos ou meninas. Mas o que acontece quando essas práticas estão ausentes, quando os aparelhos estão fora do alcance do poder de compra de suas famílias? Ou estão ao alcance, mas o conhecimento para operá-los não faz parte do capital cultural familiar ao que estão expostas essas crianças3.

A pesquisa que realizamos engloba 5 regiões do Peru e nos mostrou uma grande diversidade de situações sociais e de acesso à tecnologia. Em cidades como Lima ou Trujillo, localizadas na costa, sendo a região com maior poder aquisitivo do país, as crianças e adolescentes de classe média e média-baixa tinham acesso bastante amplo a diversos aparelhos em casa, alguns de última geração, o que lhes permitia uma conexão constante e um consumo frequente, tanto para os que estudavam em escolas públicas (Trujillo) como os que estudavam em escolas privadas (Lima). Algo similar acontecia em Cusco, uma próspera cidade andina, onde o grupo estudado provém de uma escola privada para a classe alta e média-alta. Em Puno, outra cidade andina, os alunos dessa escola pública, numa região de expansão de classe média-baixa, não mostravam um nível tão marcado de acesso às tecnologias, nem dentro nem fora da escola. Entretanto, em Puno, entre uma abastada comunidade rural relacionada à economia de gado, fomos surpreendidos pelo fato de encontrar um acesso similar ou superior aos dispositivos tecnológicos que tinham os seus pares urbanos da mesma região. Não acontecia o mesmo em Trujillo na sua área rural, onde as diferenças eram notáveis e as crianças e jovens rurais, filhos de trabalhadores agrícolas diaristas, tinham menos acesso a dispositivos e serviços do que as crianças e jovens urbanos. Na região peruana da Amazônia, encontramos um acesso ainda mais restrito a dispositivos e práticas digitais, tanto nas áreas urbanas marginais quanto nas rurais, dedicadas ao cultivo da palma, provavelmente por tratar-se de uma área de maior pobreza.

As experiências de crianças e adolescentes urbanos de Lima, Trujillo e Cusco, dedicados exclusivamente ao estudo e possuindo dispositivos de última geração, pertencentes a famílias que podem adquiri-los, são muito diferentes às experiências dos filhos de trabalhadores agrícolas diaristas das agro-insdústrias costeiras, a dos camponeses de gado no altiplano de Puno ou dos agricultores colonos da Amazônia peruana.

As diferenças se encontram também no interior das comunidades. Não só os tipos de aparelhos de cada família são diferentes, também os serviços que usam, a disponibilidade e a velocidade da internet e o que é possível fazer com a conexão disponível. As meninas são as mais prejudicadas quando a família não dispõe dos recursos digitais em casa, pois os lugares públicos de acesso à internet são considerados espaços masculinos e perigosos, motivo pelo qual não são frequentados por meninas tanto quanto o são por meninos, que, sim, estão autorizados ao consumo de jogos e da internet.

O contexto socioeconômico não apenas marca o tipo e a qualidade dos dispositivos digitais da família, mas também acarreta a presença ou a ausência de práticas em torno da tecnologia, facilitando ou dificultando o seu uso pelas crianças e jovens. Benítez Largui e Lemus (2012) encontraram como resultado de suas pesquisas que os estudantes argentinos de classe média têm maior acesso às TIC que os de setores populares, e têm também um trajeto de uso mais longo, maior naturalidade na sua relação com elas e maior variedade de usos e aplicações, influenciados pelos usos que observam no seu contexto imediato. Assim mesmo, o estudo de Trinidad e Zlachesvsky (2013) na Argentina, Paraguai e Peru achou diferenças no tipo de jogos que as crianças selecionam e mostrou que setores mais altos (A e B) escolhem jogos que requerem maior experiência como internautas.

Em nossas observações de aula foi fácil identificar os alunos com maior domínio dos computadores, os quais, com frequência, eram aqueles que tinham um computador em casa e estavam familiarizados com os programas e serviços existentes. Assim, era mais fácil para eles seguir as instruções do professor e realizar as atividades propostas nos cursos que requeriam o uso de computadores. Entretanto, aqueles que não dispunham desses recursos em casa e tinham pouca prática no uso dos aparelhos, acompanhavam mais lentamente a aula ficando para trás e como em muitos casos eles compartilhavam o computador, quem sabia mais se encarregava de mexer no computador para realizar a atividade.

Nós nos encontramos então diante de uma situação paradoxal: os que têm maiores necessidades de aprender as habilidades digitais (pois não têm um computador em casa) não conseguem fazê-lo. Ao contrário, quem sabe alguma coisa graças aos recursos e conhecimentos que já tem, reforça suas habilidades e é reconhecido pela escola.

Essa escola que deveria compensar as carências dos primeiros e levá-los a alcançar o mesmo nível dos segundos acaba, entretanto, como assinalam Bourdieu e Passeron (2003), reproduzindo a desigualdade inicial com a que os alunos chegam à aula. E isso se deve, em parte, à falsa ideia de que estamos diante de um grupo homogêneo de nativos digitais que já sabem o que têm que fazer e ignoramos o que precisam aprender. Poucos são os professores que identificam a diversidade de habilidades e procuram ajustar o ensino a essa diversidade; predomina, como em outros campos, a ideia de um ensino dirigido a uma média imaginária, que é mais aproveitada por uns do que por outros, e quem fica para trás não encontra apoio, pois, no imaginário docente, esses estudantes, no que se refere às TIC, “já sabem mais do que a gente”, como expressou o professor Marco.

A visão dicotômica entre nativos e imigrantes digitais não contribui para visibilizar estas diferenças entre os estudantes e permite que o capital cultural e econômico de cada família continue tendo, ainda, um papel central na aquisição e no desenvolvimento das habilidades relativas às novas tecnologias, inclusive no marco de políticas sociais que têm procurado expandir o seu acesso4.

 

A aprendizagem nas aulas: encontros entre imigrantes e nativos digitais

As consequências dessa visão dicotómica entre nativos e adultos imigrantes digitais no âmbito educativo são preocupantes, já que podem gerar decisões errôneas com relação ao quê e como ensinar (ou não). Isso fortalece as desigualdades sociais que as crianças e os jovens trazem ao espaço educativo, em vez de compensar o acesso desigual a certos recursos e conhecimentos.

Alguns professores se mostram bastante impressionados pelas habilidades com computadores, celulares e internet que as crianças e os jovens demonstram. “Que eles têm habilidade têm”, nos disse Marta, professora de uma escola de ensino fundamental em Pucallpa; um colega de ensino médio assinala a força e o grau de adesão dos seus alunos ao Facebook; e Jorge, professor de ensino médio numa escola rural da mesma região (Ucayali), nos conta o seguinte caso.

Um dia um aluno me disse: “Professor, agora vamos tirar umas fotos nossas e se a gente quiser ser mais jovem, a gente pode graças ao PhotoShop (…)” então é isso né? Você sabe tem programas que tem vezes que (eu não conheço)... tem muita criança que já tem aqui seu laptop, seu computador, porque tudo isso eles sabem mexer.

Entretanto, o fato de que crianças e jovens se movam com facilidade pela internet, baixem música, joguem on line e procurem informação não quer dizer que estejam prontos para aproveitar ao máximo as TIC nem que saibam manipulá-las inteiramente de forma adequada para propósitos de acesso e produção de conhecimentos. Autores como Dussel (2014), que reconhecem a importância transformadora das TIC, assinalam também os riscos de empobrecimento cultural, desorganização e superficialidade, bem como os riscos frequentes de que os jovens se deixem conduzir pela indústria cultural e suas tendências.

No estudo realizado, encontramos que entre as crianças e os jovens que utilizam com certa fluência as tecnologias, o copiar-colar da primeira busca é a prática dominante para a resolução de suas tarefas escolares, como o exemplifica o relato a seguir.

Jackie está fazendo a sua tarefa da aula de religião. As duas perguntas que deve responder são: “O que entendemos por Semana Santa?” e “O que é o Domingo de Ramos?” Ela utiliza o Google, colocando a pergunta tal e qual como está. Ela espera até que apareça tudo o que se refere à Semana Santa. Depois, ela vai abrindo cada página até que encontra algum texto curto e que tenha as palavras da pergunta introduzida. Algumas páginas demoram para abrir e outras são muito longas. Essas são descartadas ou não são consideradas por Jackie. Ela procura conteúdos curtos e que tenham em sua redação as palavras introduzidas para a busca. Se encontra essas duas características, fica com esse texto e o copia no seu caderno tal e qual como aparece (…) (Observação de tempo livre, em sala pública de internet, Jackie, 9 anos, Virú, área rural)

A habilidade que muitas crianças e jovens têm com as TIC não necessariamente os prepara para um melhor aproveitamento no processamento da informação que é requerido como parte de seu processo educativo e de seu desenvolvimento cognitivo. Pelo contrario, o caso de Jackie, como muitos outros, mostra que o uso das TIC para fins educativos ainda é bastante limitado; são procuras simples, sem contraste nem validação da informação, simplesmente copiam e colam, sem processar, verificar ou resumir. Longe de ser um empoderamento, essa forma de usar a tecnologia parece mais criar uma alienação do conhecimento e de sua produção, pois reproduz um padrão tradicional (o de copiar) numa velocidade maior e com efeitos limitados para a suas aprendizagens reais. Por essa razão, uma orientação pedagógica adequada é fundamental para aproveitar as vantagens das TIC.

Entretanto, muitos professores parecem não ter consciência do seu papel nesse sentido e dão por certo que as crianças e os jovens sabem como proceder, como o exemplifica o seguinte relato.

Você planeja uma aula e você diz para eles: “Vamos ver agora, jovens, vamos começar uma aula e vamos entrar na internet para procurar tal informação”. Eles vão procurando por aí e dessa maneira está despertando talvez (a) resolução de problemas pra que eles possam buscar a informação, a busca da informação para que eles possam analisar a informação que eles encontram na internet. (Carla, professora de ensino médio de Trujillo).

A indicação de Carla é bastante geral e pressupõe um domínio de técnicas e critérios de busca, mas não observamos em nenhuma aula que eles tenham sido oferecidos. Então, a pergunta inevitável é se os docentes estão plenamente convencidos de que são imigrantes digitais e que têm pouco a oferecer aos nativos digitais. Por isso, afirmo que essa dicotomia entre uns e outros desempodera pais e professores, que se sentem diminuídos em sua capacidade para orientar crianças e jovens e na sua própria habilidade de aprender e apropriar-se da tecnologia. A atitude com relação às TIC está diretamente relacionada com as habilidades que são desenvolvidas. A esse respeito, Dussel (2014, p. 21) assinala que “quanto menor for o medo, maior será a descoberta de outras possibilidades de uso (das tecnologias) e portanto maior será a habilidade para adquirir mais competências”. Por isso, mais do que como uma dicotomia, a relação com a tecnologia deveria ser vista como um continuum, onde não há uniformidade geracional num extremo ou em outro, pois estamos diante de uma grande diversidade de experiências sociais. Muitos adultos foram incorporando mais e mais as TIC às suas vidas e dificilmente um professor não tem hoje no seu bolso um dispositivo digital. Muitas crianças que crescem hoje em áreas marginais e de extrema pobreza não terão acesso à variedade de aparelhos e dispositivos que têm os seus pares com melhores condições socioeconômicas. Nesses casos, quem está mais próximo ao nativo e ao imigrante digital?

Somente em três escolas encontramos docentes que promovem entre seus alunos práticas mais especializadas e que os orientam na busca da informação na internet, como mostra o relato de Alexis.

E: E quando você procura informação na internet, como é que você faz? (para fazer a tarefa).
Alexis: Entro na internet e começo a procurar, por exemplo, sobre a reprodução humana e olho muitas páginas e dessas páginas para escolher.
E: E tem algumas que você acha mais interessantes que outra por uma razão qualquer? Ou seja, por que você escolhe uma página e não outra?
Alexis: Algumas não são confiáveis, ou seja, não dizem a verdade, mas outras sim, por exemplo, tem certas páginas nas que universitários escrevem e escrevem sobre esse tema. Mas tem outras nas que qualquer pessoa entra e escreve… então, primeiro você tem que olhar as páginas e... primeiro te ensinam um pouco sobre isso para que você saiba o que você tem que procurar e depois você vê se é como o que te ensinaram e então você lê e tira a informação. (Entrevista, Alexis, 9 anos, 5.º ano, Cusco, área urbana).

Alexis demonstra um uso diferente da internet para fazer sua tarefa, graças a uma orientação que lhe permite outro tipo de práticas com as TIC. Ele não escolhe o caminho mais curto nem fica com a informação da primeira página que encontra, fala do critério de confiabilidade da informação, o que é uma preocupação ausente no caso de Jackie, e é notória sua preocupação com a validez e a veracidade dos conteúdos que utilizará. Os critérios de autoridade estão delimitados (para ele não é o mesmo o que escrevem os universitários para o tema e o que escreve qualquer pessoa na rede)5. A informação prévia adquirida nas aulas serve para elucidar qual a informação nova que ele vai usar e qual não. Todas essas estratégias possibilitam que Alexis tenha uma forma de abordar o conhecimento mais próxima à da pesquisa e menos próxima ao de copiar e colar, como vimos na maioria dos casos.

Outros estudos confirmam que os estudantes que recebem instruções de como julgar as fontes (sites e páginas web) e seus conteúdos, mostram um comportamento mais avançado na sua navegação e avaliação das páginas web do que aqueles que não receberam tal instrução. Um trabalho com estudantes italianos de ensino médio (14-15 anos) mostra que aqueles que recebem instruções fazem menos visitas a páginas pouco confiáveis e passam mais tempo nas páginas confiáveis na hora de buscar informação; sendo capazes de usar critérios mais sofisticados para determinar quais são os sites mais confiáveis; observando, por exemplo, as credenciais dos autores para determinar o valor da informação, bem como a evidência científica; corroboram informação comparando diferentes sites e demonstrando uma melhor compreensão da informação obtida nas diferentes páginas web, bem como melhor capacidade para relacioná-las (Mason et al, 2014, p. 154-155). E ainda, os estudantes que já têm um conhecimento de base sobre o tema têm um desempenho melhor na qualidade de suas buscas, algo ao que fazia referência Alexis ao comentar que eles “primeiro te ensinam”.

A partir dessa evidência é possível afirmar que os educadores têm um importante papel a cumprir na formação de habilidades que permitam não só o manejo da tecnologia, mas também o seu maior aproveitamento, tanto para a aprendizagem de habilidades digitais como para o desenvolvimento de competências acadêmicas.

Por último, é preciso lembrar que nós adultos também aprendemos, e que isso nos faz apreciar melhor as enormes oportunidades que existem para aprender o uso das TIC com os estudantes e deles, sem deixar de lado as outras habilidades que nós podemos ensinar-lhes. A dicotomia entre imigrantes e nativos digitais apaga este fato. Pode ser que tenha contribuído para visibilizar novas características de crianças e jovens, mas nos impede de ver a grande diversidade de experiências infantis e juvenis que devemos enfrentar nas aulas, e nos transmite um ar colonial com esta distinção entre nativo/imigrante, que inibe o reconhecimento da capacidade permanente de aprendizagem e adaptação dos adultos, crianças e jovens a novas realidades sociais.

 

Conclusões

Ao longo deste artigo vimos como as crianças e os jovens apresentam uma grande diversidade no uso e na manipulação das TIC, produto das variadas condições socioeconômicas nas quais crescem e se socializam. O acesso a bens culturais tais como computadores, celulares, tablets, aparelhos portáteis para armazenamento e reprodução de música está muito estendido, mas de modo desigual, nem todos acessam a tudo e nem todos os tipos de aparelhos são similares em capacidade e potência.

As escolas da região estão tentando contribuir para sanar a defasagem digital no acesso às TIC mediante políticas públicas. Para isso contribui o fato de que os equipamentos estão cada vez mais baratos, o que os torna mais acessíveis a diversos grupos sociais. Mas a defasagem mais difícil de remediar é a que vai se configurando como o uso das TIC. O papel da escola para oferecer oportunidades de desenvolvimento de habilidades, conhecimentos e competências ligados ao uso das TIC é fundamental. A inflexível dicotomia entre nativos e imigrantes digitais constitui uma dificuldade para que os professores identifiquem as habilidades desiguais de seus alunos e como fazer para superá-las. A sugestão dada é que se procure aproveitar as possibilidades mesmas que oferecem as TIC para o trabalho conjunto e a aprendizagem mútua entre professores e alunos.

As crianças e os jovens com os quais trabalhamos nas pesquisas aqui citadas se revelaram não como sujeitos homogêneos e passivos, mas sim como agentes sociais diversos, afetados pelas realidades sociais nas quais crescem e pelas desigualdades que as caracterizam, mas também ativos na descoberta das TIC que abrem oportunidades de participação e aprendizagem. Para ampliar e aproveitar essas oportunidades é necessário superar o risco de essencializar estas crianças e jovens com etiquetas como as que examinamos neste trabalho, facilitando-lhes o acesso às habilidades e competências que estão procurando.

 

Referências

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Data de recebimento: 25/02/2016
Data de aceite: 28/04/2016

 

1 Refiro-me ao estudo “Acceso, uso, apropiación y sostenibilidad de tecnologías educativas en I.E. del nivel primaria y secundaria: las perspectivas de los estudiantes” [Acesso, uso, apropriação e sustentabilidade de tecnologias educativas no Instituto de Educação de nível primário e secundário: as perspectivas dos estudantes], financiado pelo Ministério de Educação do Peru e realizado entre 2013 e 2014; e também ao estudo “Educación y tecnología en las escuelas peruanas” [Educação e tecnologia nas escolas peruanas], realizado com o apoio da Pontíficia Universidade Católica do Peru, bem como da Oficina de Antropologia da Escola [Taller de Antropología de la Escuela] realizada entre janeiro e julho de 2015.

2 Todos os nomes foram trocados para proteger a identidade dos participantes.

3 Segundo Bourdieu (1986), o capital cultural pode ser definido como as formas de conhecimento e as competências, mas também como a familiaridade com bens culturais e seu consumo (neste caso, refiro-me aos aparelhos e serviços digitais).

4 No Peru, foram distribuídos mais de 850.000 XO, como parte do programa “Una Laptop por Niño” [Um Laptop para cada Criança] (OLPC) e em outros países da América Latina a tendência de distribuir aparelhos e dispositivos aumentou nos últimos anos (Organização de Estados Ibero-americanos, 2011).

5 Esta pode ser uma referência à Wikipedia, que está explicitamente proibida como referência para a realização das tarefas na sua escola. Dussel (2014) assinala que a Wikipedia pode ser vista como um “trabalho em construção progressiva”, e que por isso mesmo oferece informação incompleta aos estudantes, razão pela qual a escola evita que este seja o caminho da procura.

I Doutora em Antropologia da Educação pela Universidade de Londres. Professora e Pesquisadora de Antropologia no Departamento de Ciências Sociais da Pontifica Universidad Católica del Perú (PUCP) e pesquisadora principal do Instituto de Estudios Peruanos. Coordenadora do grupo EVE – Edades de la Vida y Educación, da PUCP. E-mail: pames@pucp.edu.pe

II Tradução: Oficina de formação de tradutores, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro (FL/UFRJ), Brasil (Larissa Ribas, Leandro Lacerda, Desiree Cardoso e Giovanna França) – Orientadora: Leticia Rebollo Couto 

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