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Desidades

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Desidades vol.11  Rio de Janeiro jun. 2016

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

O desafio de uma cidadania crítica na infância chilena

 

El desafio de una ciudadanía crítica en la infancia chilena

   

 

Alejandra González CelisI

Faculdade de Psicologia, Universidad Diego Portales, Santiago, Chile.

 

 


RESUMO

A intenção deste artigo é problematizar a noção de cidadania na infância, observando as possibilidades e desafios da aplicabilidade de uma cidadania crítica no caso chileno. Declara-se que a cidadania é mais do que o direito ao voto e que implica pensar o modo de relação entre as crianças e as estruturas sociais, organizadas a partir do mundo adulto. Para fazer esta análise, tentamos caracterizar a oferta de cidadania que o Estado Chileno desenvolve para a partir daí reconhecer a importância da consideração de uma cidadania crítica para crianças.

Palavras-chave: infância, cidadania, Chile, Estado.


RESUMEN

La intención del siguiente artículo es problematizar la noción de ciudadanía en la infancia, observando las posibilidades y desafíos que tendría la aplicabilidad de una ciudadanía crítica en el caso Chileno. Se declara que la ciudadanía es más que el derecho a voto y que implica pensar el modo de relación entre niños y niñas y las estructuras sociales, organizadas desde el mundo adulto. Para hacer este análisis, intentamos caracterizar la oferta de ciudadanía que realiza el Estado Chileno para desde allí reconocer la importancia de la consideración de una ciudadanía crítica para niños y niñas.

Palabras-clave: infancia, ciudadanía, Chile, Estado.


 

 

Chile, a situação da infância em cifras e a Convenção

A situação das crianças no Chile é problemática. Segundo o relatório do Observatório da Infância (2014), 22,8% da população infantil do Chile se encontra abaixo da linha da pobreza e 71% dos lares com crianças não atinge a média da renda nacional. Além disso, o Chile foi caracterizado como um dos países mais desiguais do mundo, situação que gera a conformação de territórios segregados espacialmente (Rodríguez; Arriagada, 2004) que aprofundam estas diferenças. Por exemplo: em setores com alta presença de população indígena, como Araucanía e Biobío, a pobreza aumenta para 38,3% entre crianças de 6 a 13 anos.

Além disso, o Chile é um dos países com as cifras mais altas de maus-tratos infantis e isso sem importar o estrato socioeconômico das crianças. De acordo com cifras do UNICEF Chile (2012), 71% das crianças e adolescentes revela sofrer algum tipo de violência por parte dos pais, 25,9% declara sofrer violência física grave e 29,8% declara ter pais que se agridem.

As cifras expostas nos permitem afirmar que as crianças chilenas vivem cotidianamente uma situação de subordinação que representa para elas algum nível de vulnerabilidade, e isso somente por serem crianças. A esta subordinação por posição (Liebel, 2009) devemos somar aquelas vulnerabilidades de classe, gênero e etnia para compreender a forma como as crianças vivem a infância no Chile.

Se no capitalismo moderno nós todos vivemos algum nível de vulnerabilidade e/ou exclusão, as crianças concentram desigualdades e perdas somente por serem crianças, ao fazerem parte de uma relação social que os situa abaixo do mundo adulto, fato que tem consequências diretas nas suas dinâmicas de vida cotidiana. Estas formas de vinculação desigual foram denominadas práticas adultocêntricas e, tal como propõe Duarte (2012), implicam supor uma relação de subordinação na qual se espera que as crianças sejam obedientes e submissas, especialmente nas instituições fundadoras do ordenamento social, como a escola e a família.

Esta posição é atravessada por uma relação de subordinação em termos dos direitos políticos e sociais das crianças. Llobet (2013), parafraseando Bourdieu (1998) no seu estudo sobre a família, denomina a infância como uma categoria social institucionalizada, justamente porque contribui para a reprodução da ordem social, um certo tipo de ordem social, na qual as crianças experimentam uma relação de absoluta subordinação jurídica e cívica ao Estado nação onde nasceram.

Ante esta relação que expressa um diferencial de poder explícito sobre as crianças, o mundo adulto decidiu reconhecer uma série de direitos que atualmente são conhecidos como a Convenção sobre os Direitos da Criança (a partir de agora, CDC).

O Chile assinou esta declaração em 1990, como parte de una série de mudanças institucionais decididas após o fim da ditadura militar. Com essa assinatura, o Estado chileno se comprometia a garantir a participação das crianças em todos os âmbitos da vida, incluindo a dimensão política. A determinação da CDC indica que as crianças devem deixar de ser consideradas como um objeto de proteção para ser consideradas sujeitos de direito (Cillero, 1994), o que implica reformular abertamente a estrutura jurídica, social e cultural do país, fundada em um modelo tutelar no qual o Estado substitui os pais quando estes não podem ser responsáveis pelas “suas” crianças. Neste modelo os pais “possuem” as crianças, cuja agência é limitada1.

O cumprimento desta determinação no caso chileno tem sido especialmente problemático e só pode ser entendido em um processo de democratização incompleto, que tem caracterizado os anos pós-ditatoriais, nos quais os pilares do modelo neoliberal não foram tocados2 e nos quais as crianças continuam vivendo a maior das subordinações.

Um fato especialmente relevante é que um dos objetivos propostos pelo Chile em 2001, através do Ministério de Planejamento e Cooperação (Mideplan), consistia em “gerar espaços e mecanismos específicos de participação efetiva das crianças nas decisões que as afetam, o que seria um claro e rentável investimento na construção da cidadania e no fortalecimento da democracia”3. (Governo do Chile, 2000, p. 2). No entanto, não se conseguiu implementar esta política (Conselho Nacional da Infância, 2015) e o comitê de ministros constituído para monitorar a sua implementação deixou de funcionar.

É a partir desta experiência frustrada de política de infância que, durante o segundo governo de Michelle Bachelet, é criado o Conselho Nacional da Infância, que tem como tarefa gerar uma nova política nacional de infância 2015 – 2025, cujo objetivo é responder às observações realizadas pelo Comitê dos Direitos da Criança (organismo internacional que supervisiona a aplicação da CDC pelos seus Estados Partes), que no seu último relatório, emitido em 2007, posiciona o Chile como um dos países que menos avançou na região em relação à incorporação da infância em termos cidadãos e como o único país latino-americano que não conta com uma lei de proteção das crianças.

Tal como menciona Morlachetti (2013, p. 21), “o Chile não tem uma lei de proteção integral e, portanto, também não tem um sistema nacional de proteção integral.” Foi promulgada uma série de normas orientadas ao cumprimento das obrigações que o Chile contraiu ao ratificar a CDC, mas, de acordo com Morlachetti, a maioria destas disposições é abordada a partir de uma perspectiva que não permite un reconhecimento universal de direitos, uma vez que não abandona os aspectos clássicos que caracterizam um Estado tutelar. O Estado continua sendo, portanto, um “pai” diante de uma infância coisificada.

 

O governo da infância no Chile: que cidadania oferece o Estado Chileno?

Segundo Liebel (2009), ao conceituar a cidadania na infância não é possível se restringir ao direito ao voto. Ele afirma a este propósito que,

[…] implica o direito geral de influir de maneira efetiva e sustentável em todos os assuntos de interesse público. Neste contexto, devemos distinguir entre direitos políticos que formalmente se encontram estabelecidos e a pergunta sobre que ações de uma sociedade devem ser entendidas como manifestação de uma determinada vontade política e aceitas como legítimas. (Liebel, 2009, p. 81).

De fato, o Estado Chileno produz uma ação afirmativa ao assinar a Convenção e com isso reconhece os direitos das crianças. No entanto, é necessário observar neste gesto a efetiva vontade de incluir as crianças como sujeitos de direito. Estas ações realizadas podem ser entendidas como o governo da infância e, ao analisá-las, podemos refletir sobre que possibilidades as crianças teriam de serem consideradas como cidadãs ante uma oferta determinada. Tal como propõe Lister (2007), existe uma relação direta entre as concepções de cidadania atribuídas à infância e a possibilidade de as crianças participarem efetivamente na sociedade, isto é, o Estado contribui para a geração de um tipo de infância. Em Estados de grande investimento social como a Inglaterra, o Canadá e alguns países da União Europeia, é problemática a cidadania da infância, já que as crianças são compreendidas como cidadãos em formação que representariam “cidadãos trabalhadores do futuro”4 (Lister, 2007, p. 697), o que implica entender a sua cidadania como incompleta e para a qual o Estado deve fornecer as ferramentas e competências que permitam que eles alcancem um status completo, quando adultos. Esta situação é muito diferente do caso norueguês, no qual Kjorholt (2002) observa que as crianças são consideradas como cidadãos completos no presente, peças essenciais da conformação do Estado democrático.
 

O que acontece no caso Chileno? Qual é a oferta de cidadania que o Estado realiza?

No Chile, ninguém poderia dizer que as crianças não têm direitos ou que deveriam ser excluídas destes. De fato, uma das grandes preocupações é a vulnerabilidade destes direitos sociais e como gerar sistemas que os protejam5.

Assim, a preocupação por aumentar a provisão de serviços que garantam os direitos das crianças faz parte do discurso político do Estado chileno. Suas ações: aumento sistemático e crescente da cobertura da educação infantil, programas de alimentação escolar, garantia de um sistema de prestações de serviços que tenha como foco as crianças, como é o sistema Chile Cresce Contigo, atual lei da República, com garantias universais e focalizadas.

Os direitos sociais são providos por um Estado neoliberal que em conjunto com a participação da iniciativa privada6 assegura garantias mínimas para o desenvolvimento, em um discurso que, aliás, não deixa de observar as crianças como investimento para o futuro. De fato, a justificativa teórica que se observa no sistema Chile Cresce Contigo é tributária do desenvolvimento de certas neurociências e o possível impacto positivo no desenvolvimento dos seres humanos a partir de sistemas de estimulação e proteção da primeira infância (González, 2011). Oferece-se uma cidadania liberal, entendida como o produto de um conjunto de direitos reconhecidos pelo ordenamento político a determinados indivíduos. O cidadão é o indivíduo e os seus direitos pelo quais prima uma concepção instrumental e individualista da cidadania, a centralidade está colocada no status legal que inscreve e descreve os benefícios e as obrigações recíprocas entre cada indivíduo e o Estado.

Mas essa cidadania liberal aparece também matizada por elementos republicanos, que, pelo menos em termos discursivos, são enfatizados. A cidadania republicana destaca a participação social e política como parte componente da cidadania. Neste sentido, o pertencimento comunitário confere identidade cultural e sentido de responsabilidade aos indivíduos no cumprimento da lei que a comunidade se impõe, como forma de determinação de si mesma. Assim os indivíduos não podem escapar da obrigação de respeitar a lei, que é considerada por este pensamento como norma suprema (Pocock, 1998).

Se mencionamos os direitos políticos e sociais no Chile, o panorama parece mais difuso. Adverte-se que as crianças não têm direitos políticos garantidos pela nossa constituição, e esta carência não tem feito parte do debate nem dos movimentos conhecidos como progressistas, tais como o movimento Assembleia Constituinte7, que tenta mobilizar a cidadania para gerar uma nova constituição. As crianças não podem eleger e nem serem eleitas, nem em espaços diferenciados. E a demanda por estas ou outras formas de participação política fica restrita aos movimentos de ONGs vinculadas ao mundo da infância8, que dificilmente conseguem visibilidade pública.

E em relação à participação, esta é relegada ao arbítrio dos adultos e do sistema de participação que eles decidirem. São os adultos que estabelecem como, onde e até onde é possível participar. O atual “decreto de participação” (lei 20.500, Chile, 2011) somente regula a participação dos adultos. De fato, cria-se o paradoxo de que ao não se ter uma lei de proteção e sim uma lei de responsabilidade penal adolescente, as crianças e os adolescentes em conflito com a lei se tornam os únicos a terem este direito garantido em termos jurídicos. O resto das políticas pode declarar o princípio de participação como um horizonte, mas não deve garantir mecanismos que permitam monitorar o tipo de participação conseguido. É o que propõe a última observación do Comitê (2007) para o Estado chileno, esperando que o Chile possa dar resposta a isso no próximo relatório.

Partindo do enfoque republicano, a participação e a voz das crianças e dos adolescentes deveriam ser principais na hora da resolução e do intercâmbio dos assuntos em que estão incluídos. Os movimentos de defesa dos direitos da criança tem enfatizado a importância de as crianças desenvolverem a sua capacidade reflexiva para deliberarem sobre o que consideram bom para elas mesmas e para os seus pares. Como propõe Cockburn (2013, p. 221), é necessário “reconhecer as suas vozes, para apoiá-las e assim poderem se expressar e terem um diálogo significativo com outros, tal como permitirem as capacidades da criança”9, questão que o autor toma diretamente da teoria do reconhecimento de Honneth (1995, apud Cockburn, 2013). No entanto, em 2015 o Estado Chileno decidiu fechar a totalidade dos Programas de Prevenção Comunitária (PPC) que continham este elemento de coletivização e geração de cidadania participativa com crianças em seus respectivos territórios.

Cidadania liberal com declarações republicanas, onde se carece de mecanismos. De fato, na rodada de perguntas que o Comitê fez ao Estado Chileno em setembro de 2015 se afirma que “tudo ainda está em processo no Chile, sendo as frases mais utilizadas "estamos trabalhando" ou “existe ou existirá um projeto"”10, motivo pelo qual o comitê instou o Estado a concretizar essas intenções.

A teoría política sobre a cidadania incluiu também a proposta de uma cidadania multicultural na qual se destacam os valores e o sentimento coletivo como componentes da cidadania, o que implica o reconhecimento das diferenças étnicas e culturais (Young, 2000; Mehmoona Moosa, 2005; Taylor, 1993; Fraser, 1997).

No caso Chileno, pode-se observar a quase nula consideração e abertura a este tipo de cidadania, ao analisar o conflito permanente entre o Estado Chileno e o povo Mapuche, no qual as crianças pertencentes às comunidades em conflito tem sido especialmente vítimas da violência. As torturas e outros vexames são parte substancial do Relatório de Direitos Humanos que a Universidad Diego Portales (2013) realizou e o próprio Instituto de Direitos Humanos (2015) também denunciou esta situação. Poderíamos afirmar que na situação da infância mapuche, existe uma demanda por uma cidadania multicultural que é invisibilizada e reprimida pela resposta institucional.

 

Discursos críticos de cidadania: Una possibilidade de contraoferta

Uma contribuição muito prolífera vem dos enfoques plurais que encontram na cidadania uma das mediações destacadas entre o Estado e a Sociedade (Fleury, 1997), baseada na integração social. No entanto, o ponto nodal destes enfoques é analisar as lutas heterogêneas que permitiram determinar as formas de laço social em sociedades particulares. Nesta linha reconhecem que o status de cidadania universal e abstrata tende a neutralizar as diferenças próprias dos distintos atores sociais coletivos. Neste sentido, o critério de inclusão na cidadania é aquele que ao mesmo tempo determina as normas de exclusão. Para este pensamento, a formulação da universalidade abstrata e racional da cidadania neutralizou o reconhecimento do antagonismo e da divisão, deslocando as disputas e as diferenças para o âmbito privado (Mouffe, 1999).

O que se tenta ressaltar é o componente conflitivo e o pluralismo das sociedades modernas. Portanto, nem a política procedimental nem as ações comunicativas construtoras de consensos podem dar respostas aos conflitos atuais, já que os mesmos tendem a opacar e apagar os antagonismos, problema que advertem na cidadania republicana.

Segundo Rancière (2006), a democracia consiste na ampliação da esfera pública, isto é, estender a igualdade do homem público para outros domínios da vida comum. A igualdade não é um dado que a política aplica ou uma essência que encarna a lei, nem uma meta que se propõe a atingir. Ela não é mais do que uma presuposição que devemos discernir nas práticas que a colocam em ação. Portanto, a política é a única atividade que possibilita, partindo desta presunção, romper as configurações sensíveis da ordem vigente nas quais se definem as partes e as suas partes ou ausências por um suposto que por definição não tem lugar nela: “a de uma parte dos que não tem parte” (Rancière, 2006, p. 45).

A atividade política desvela a distorção entre a distribuição desigual dos corpos sociais e a suposição da igualdade. A universalidade dos direitos, especialmente dos Direitos Humanos, não implica que estes devam ser considerados pré-políticos, muito pelo contrário: é este traço que designa o espaço da politização propriamente dita (Rancière, 2004, p. 13).

Assim, longe de ser uma garantia formal vazia, o reconhecimento de direitos legitima o protesto e a ação daqueles que os defendem por formarem parte dessa comunidade de iguais. É necesario, então, não só reconhecer estes direitos como também, a partir destes direitos, assumir e promover a agência de quem os detém.

Estes discursos críticos, especialmente o pensamento de Rancière, constituem o lugar de onde parece haver maior oportunidade de análise da cidadania infantil como uma forma de reconhecer a capacidade de disputa das crianças, para daí deslocar o lugar dado tanto a elas quanto a nós (os adultos) nesta relação, já que a cidadania é concebida como um processo que requer uma análise histórica das lutas e dos conflitos cujos objetos de disputa se condensam nos direitos resultantes, dando conta de que as mudanças nos ordenamentos jurídicos não mostram as mutações complexas e as relações de poder nas dinâmicas sociais particulares.

Este é um ponto especialmente relevante de discutir não só no caso chileno. É evidente que a CDC opera uma mudança profunda na forma em que os Estados Partes entendem a infância, no entanto a ênfase dada aos direitos sobre outros elementos que compõem a cidadania, tais como a inclusão das crianças na sociedade, a igualdade ante os outros atores sociais e a necessidade de respeito e de reconocimiento (Lister, 2007), podem gerar distorções que aprofundam o diferencial de poder entre as crianças e o mundo adulto justamente porque diminuem a sua capacidade de resistir e de conflitar esta esfera.

Assim, cidadania e direitos se modificam e devem se modificar concomitantemente com as condições mutáveis, com as expectativas e critérios necessários para exercitar a condição de cidadãos (Procacci, 1999). O governo da infância pode e deve ser repensado.

Este olhar parece especialmente útil para permitir escutar e ver as práticas cidadãs realizadas por crianças no Chile. De fato, o Chile tem um cenário político de institucionalidade deficiente e pendências em termos jurídicos para crianças e adolescentes, mas isso não significa que eles não estejam manifestando a sua própria cidadania. O movimento social chileno pela educação, que teve a sua máxima expressão em 2011, teve nos estudantes secundaristas atores protagonistas que mobilizaram outros atores sociais, como os estudantes universitários. A cidadania não pode ser pensada então como uma oferta, como um convite dos adultos à participação, e sim, muito pelo contrário, como um modo de relação entre os diferentes atores sociais, na qual a infância aparece com a sua própria capacidade de agência capaz de mobilizar o mundo adulto.

Pensar formas críticas de cidadania constituiria uma ferramenta de grande utilidade para a operacionalização das novas cidadanias, já que se baseia no “reconhecimento da cidadania de todas as pessoas” (Güendel, 2000, p. 174) e supera os edifícios jurídicos atuais, centrados em “um enfoque excludente e em uma noção de cidadania tão abstrata quanto padronizada” (Güendel, 2000, p. 174).

Em termos práticos, Abramovich (2006) considera que isto implica entregar poder aos setores excluídos, reconhecendo que todos eles são titulares de direitos que implicam tanto o Estado quanto o resto da sociedade. Por isso é necessário trabalhar no nível cultural, instalando novas formas de se relacionar nas quais se reconheçam as diferenças sociais, por exemplo intergeracionalmente, de modo a permitir o intercâmbio entre as crianças e o mundo adulto.

Só que essa incorporação deve superar algumas complexidades e tomar para si certos desafios. Em primeiro lugar, é preciso ter vontade para desenvolver um processo de reflexão profunda sobre “o que implica a Convenção e a sua operacionalização; as formas de relação que se estabelecem, com crianças e jovens (em diferentes espaços); e a necessidade de gerar propostas que incidam nas políticas públicas e no papel dos garantidores” (Valverde, 2004, p.3).

A observação da cidadania implica entendê-la como uma prática social que as crianças estabelecem entre elas e com o mundo adulto, onde o reconhecimento do caráter jurídico dos seus direitos é uma condição necessária, mas não suficiente. Pensar assim a cidadania nos permitirá observar o caráter político das relações entre as crianças e as relações delas com o mundo adulto, o caráter móvel e de disputa de forma a observar o modo como participam do seu próprio autogoverno.


 

Referências

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Data de recebimento: 02/02/2016
Data de aceite: 26/04/2016

 

1 Utilizo aspas para destacar a relação de propriedade que aparece em certo discurso adulto ao se referir às crianças.

2 Para maior aprofundamento, sugiro o texto “La Revolución Capitalista de Chile (1973-2003)” de Manuel Gárate Chateau, Ediciones Universidad Alberto Hurtado, Santiago, 2012.

3 Todas as citações do texto foram traduzidas para o português. (N.T.)

4 Lister (2007) faz uma clara referência aos fundamentos expostos nas políticas de atenção precoce inglesas, que poderíamos comparar com os discursos presentes em programas chilenos como o Chile Cresce Contigo. Para maior informação ver GONZÁLEZ, A. Chile Crece Contigo: la búsqueda de la igualdad desde la infancia temprana. In: CASTILLO, M.; BASTÍAS, M.; DURAND, A. Desigualdad, Legitimidad y Conflicto: Dimensiones políticas y culturales de la desigualdad en América Latina. Santiago, Chile: Ediciones Universidad Alberto Hurtado, 2011, p. 271-290.

5 Ver a missão do Serviço Nacional de Menores (SENAME) Chileno: “Contribuir para a promoção, proteção e restituição de direitos de crianças e adolescentes vulneráveis, assim como para a responsabilização e reinserção social dos adolescentes infratores/as da lei, através de programas executados diretamente ou por organismos colaboradores do serviço.” (página web institucional)

6 O Estado chileno funciona subsidiando a prestação privada destes direitos. Um exemplo é a educação subvencionada na qual uma entidade privada oferece o serviço que é financiado pelo Estado. A política social da infância está totalmente privatizada nestes termos a partir de uma lei de subvenções, na qual prestadores privados oferecem serviços como residências, programas de reparação, proteção e outros.

7 Ver http://constituyentechile.cl/

8 Ver https://movilizandonos.wordpress.com/

9 Tradução da autora.

10 http://www.focosocial.cl/ver_noticias.php?cod=444&cat=12

I Mestre em Trabalho Social, Pontificia Universidad Católica de Chile; Doutora em Ciências Sociais, Universidad do Chile; Pesquisadora Adjunta do Programa de Protagonismo Infantil, Faculdade de Psicologia, Universidad Diego Portales, Santiago, Chile. E-mail: asgonzac@gmail.com

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