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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades vol.11  Rio de Janeiro jun. 2016

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Além do patriarcado: a infância e a maternidade em Nietzsche

 

Más allá del patriarcado: la niñez y la maternalidad en Nietzsche

 

 

 

Leandro DrivetI

I Faculdade de Ciências da Educação, Universidad Nacional de Entre Ríos, Argentina.

 

 


RESUMO

Principalmente em Assim Falou Zaratustra, Nietzsche focaliza a infância e faz aportes significativos para o desenvolvimento de uma perspectiva que tenha, como objeto de estudo específico, o mundo da infância. Confrontado com a redução da infância (ou de parte dela) à “minoria de idade”, e com as exigências utilitárias ou ascéticas da moralidade convencional, Nietzsche postula o “país dos filhos" e sonha com uma “segunda inocência”. Ela é equivalente à consumação dos ideais estéticos e éticos do super-homem. Suas contribuições para uma reflexão sobre a infância destacam a violência social específica contra as crianças, e estão intrinsecamente ligadas à redefinição do “materialismo” que concebeu contra a exageração religiosa do pudor e a idealização romântica da infância.

Palavras-chave: materialismo, infância, Nietzsche, patriarcado.


RESUMEN

Fundamentalmente en Así habló Zaratustra, Nietzsche concentra su atención en la niñez y brinda aportes significativos para el desarrollo de una perspectiva que tenga, como objeto de estudio específico, el mundo de la infancia y la niñez. Frente a la reducción de la niñez (o de parte de ella) a la “minoría de edad”, pero también a despecho de las exigencias utilitaristas o ascéticas de la moral convencional, Nietzsche postula el “país de los hijos” y sueña con una “segunda inocencia”. Ésta equivale a la consumación de los ideales éticos y estéticos del superhombre. Sus aportes para una consideración de la infancia y la niñez ponen de relieve la violencia social específica contra los niños, y están indisolublemente ligados a la redefinición del “materialismo” que concibió contra la pudibundez religiosa y la idealización romántica de la infancia.

Palabras-clave: materialismo, niñez, Nietzsche, patriarcado.


 

 

“No homem autêntico se esconde uma criança: ela quer jogar”1 (Nietzsche, 1883-1885/2007, p. 106)

Introdução

Nosso intuito com este trabalho é, em primeiro lugar, rastrear alguns traços salientes das concepções tradicionais da infância, especialmente dos mitos que conformam as subjetividades ocidentais. Para isso, recorremos à Bíblia e à história do cristianismo. Depois, contrastamos a valoração patriarcal e mercantil da infância com a figura da criança no pensamento transvalorador2 de Nietzsche. Desde seus escritos juvenis, Nietzsche (1872/1994) percebeu o risco do esgotamento da experiência estética (trágica) que alberga desmedida, arrebatamento, êxtase, dança, canto e jogo, sob o despotismo do socratismo estético, uma forma cinza e desapaixonada da maturidade anestesiada, adaptada à mediocridade do normal e do esperável. Mas é principalmente em Assim Falou Zaratustra que Nietzsche destaca a singularidade criadora da infância (cf. Niemeyer, 2012). Acreditamos que esse texto oferece contribuições significativas para o desenvolvimento de uma perspectiva que tenha, como objeto de estudo específico, o mundo da infância. Concluímos que tal perspectiva, que sublinha a violência contra as crianças, está intimamente ligada ao conceito nietzschiano do “materialismo”.

 

Aspectos salientes da infância em nossos mitos fundantes

Para os gregos, paidós3 é ao mesmo tempo criança, filho e escravo, e sua raiz etimológica enfatiza especialmente o vínculo da criança com o pai. Distingue-se da palavra téknon, que, derivada de um verbo que significa dar à luz, parir, engendrar, sublinha, sobretudo, o vínculo filial com a mãe. Enquanto téknon é uma categoria doméstica, paidós, desde o seu início, abrange o âmbito político. É significativo que a raiz indo-europeia de que deriva paidós esteja associada ao pequeno, breve, escasso, pouco, insignificante e humilde (Dumé, 2015).

O termo “chico4 deriva do latim ciccum, que o Oxford Latin Dictionary define como “um objeto proverbialmente sem valor” [“A proverbially worthless object”]. A Real Academia Española afirma que a “puerilidade” é própria da criança enquanto uma “coisa de pouca ou insignificante entidade”. A infância não existiu como um objeto de atenção intelectual até Rousseau. No entanto, não sem razão, mas com alguma injustiça, para a modernidade a menoridade é unilateralmente sinônimo de incapacidade5. Portanto, é importante recuperar uma perspectiva analítica que contribua para destacar um tipo de violência que não é redutível às desigualdades de classes. Não inteiramente desconhecida, a violência dos adultos sobre as crianças de ambos os sexos se encontra, no que diz respeito à crítica do patriarcado, num segundo plano em relação à contribuição inestimável das abordagens feministas6. Não obstante, não é no trabalho adulto (alienado) nem na relação sexual adulta, mas na relação entre adultos e crianças que pode se encontrar o princípio da reprodução da ordem social existente. Como observado pela língua (mesmo por trás da consciência dos falantes), e soube perceber Rozitchner (2011), o ‘mater-ialismo’ começa com a relação da criança com a mãe. Ele se extravia, portanto, com a repressão desse vínculo.

Para contextualizar a importância atual do nosso assunto, é suficiente dar uma olhada na agenda da mídia para perceber a relevância e a atualidade da reivindicação de uma crítica do patriarcado que não se reduza à perspectiva de gênero – que é indispensável: a violência contra as crianças e, especialmente, a violência sexual que continuam a sofrer, sem exclusão de classes, ocupa periodicamente as capas da imprensa internacional, evidenciando a cumplicidade de diferentes setores (assim como da hierarquia) da Igreja Católica e do poder político e financeiro ligado a ela.

Além da ininterrupta exploração das crianças como força de trabalho, como simples objetos prontos para a satisfação de impulsos sádicos, como mercadorias, bem como a sua utilização como objetos sexuais, a Argentina acrescenta que encontramos a expropriação da sua identidade por razões ideológicas. Compreende-se rapidamente porque é necessário atentar para um ângulo descuidado da crítica do patriarcado que tem seu centro na necessidade de submeter ao tribunal da razão a violência que não cessa de atualizar-se na relação social específica entre adultos e crianças7.

A perspectiva que enfatiza a centralidade dos direitos das crianças é contígua e solidária daquela que defende os direitos dos animais / ambientais / naturais enquanto se ocupa dos direitos dos (ainda) sem voz; ou, como assinala Derrida (2010), daqueles que são supostamente incapazes de dar respostas: os seres vivos não humanos e as gerações futuras. O “esquecimento” ou diferimento dos “corpos menores” é um sintoma de longa data vigente em nossa época. Isto pode ser entendido como uma consequência do desrespeito à natureza não humana (Schaeffer, 2009), neste caso, a natureza que (ainda) não se conforma a si mesma, nem é reconhecida pelos outros como sujeito.

O desprezo pelas crianças é uma constante que precede e vai além da moral cristã, mas que esta exerceu exemplarmente. De acordo com Freud (1900/1991, p. 271, grifos nossos), o destino de Édipo nos comove porque poderia ter sido o nosso (...)”. León Rozitchner (2001) argumenta convincentemente que a figura dramática que hoje nos comove desde a infância, sejamos crentes ou não, é Cristo. Cristo sugere desde a cruz que seu destino poderia ser o nosso. Ele representa o filho que morre, segundo dizem-nos, em nome do pai, por rebeldia.

As regras de civilidade começam, como evidenciado por Norbert Elias (1939/1993), tornando os filhos objeto do controle adulto. Eles abrigam simultaneamente espontaneidade e excesso, incapacidade de dissimular, descaramento, “perversão” e irreverência inocente. O aguçado olhar psicológico indica que é na “terna infância” que devem começar os controles, as coerções, o ensino das regras sociais: o pecado, como diz Agostinho (1999), começa lá. Esse corpo – metade mãe e metade animal –, infinito, imprevisível e sedutor pelo que é e pelo que nos faz lembrar, devia ser moldado.

O Cristianismo, digamos com ambiguidade freudiana, lidou com isso. Nas Confissões, Agostinho (1999, p. 23) usa uma pergunta retórica para afirmar que são as crianças que nos mostram “o pecado da infância” que nós não “lembramos”: ter ansiosamente desejado o peito da mãe. O bispo de Hipona sente-se morto de vergonha na frente deste espelho que mal se atreve a olhar para esquecer imediatamente. Rozitchner (2001) supõe, analisando as Confissões de Agostinho, que o desprezo cristão pelas crianças é um deslocamento, talvez parte inseparável do mesmo ódio/horror pelo conceito de “mater-ialidade”, o qual condensa mãe e matéria. Este caráter ‘anti-mater-ialista’ do mito explicaria por que a mãe, no cristianismo, é Virgem, por que concebe “sem pecado”, ou seja, sem prazer, sem gozo carnal, não com um homem (carnal), mas com o seu próprio Pai, e por que essa mãe sensual é deslocada da Trindade do Pai, Filho e Espírito Santo. Foucault (1987), sem destacá-la especificamente, observa que a definição de “corrupção de menores” desaparece na transformação da hierarquia judaica do pecado carnal sobre a qual escreve Casiano. Esta falta também não é mencionada por São Paulo, que, ainda que a conheça, a esconde, e, portanto, parece ser uma repressão cristã, não judaica. O “impuro” da infância poderia ser sua proximidade com a sensualidade mater-ial. A interação primária com a mãe, que inunda de sexualidade a mera preservação da vida no sentido adulto-criança (Laplanche, 1987/2001), revela as fantasias inconscientes que o adulto considera como superadas e – sem razão – exclusivas da criança.

Os mitos que organizam a experiência primária da cultura e que lhe dão suas formas autonarrativas e autoteorizantes elementares oferecem modelos, lugares comuns, traços tendenciais de seus membros. Para os gregos antigos, Eros teve um aspecto pueril, caprichoso, lúdico e terno, e foi muitas vezes descrito como uma criança. No que diz respeito a nossa tradição de maior sucesso, a Bíblia não é um livro que mostra amor exemplar, respeito ou compreensão particular pelas crianças. “O Sacrifício de Isaque” (Gênesis, 22. 1-19), a famosa passagem que narra o momento em que Deus põe à prova a Abraão exigindo o sacrifício de seu único filho (é verdade que sem a sua consumação), ensina que o corpo da criança pertence ao pai, ou, em todo caso, ao Senhor; numa palavra: ao Pater. Mas o simbolismo se enriquece: Le Goff e Truong (2005) apontam que a palavra “Isaac” significa “riso”, o qual, como vindo de baixo, foi associado com o diabo, e, consequentemente, afogado, entre os séculos IV a X. Por que ter medo de uma criança rindo? No entanto, o amor (Eros, Cupido), questiona Bataille (2007), não é muito mais angustiante precisamente porque faz você rir? Tomás de Aquino lhe atribuirá ao riso um estatuto positivo só por volta do século XII. Nietzsche apontará que Jesus/Cristo nunca ri, e assinalará o poder corrosivo do riso em Zaratustra, quando “o mais feio dos homens” mata a Deus rindo (Nietzsche, 1883-1885/2007). Deus é o nome da angústia da criança interior: habita as solenidades, os silêncios, as proibições, as faltas, e não tolera jamais a ridicularização aniquiladora a que pode submetê-lo a inocente curiosidade de uma criança.

No Novo Testamento, Herodes dá outro exemplo desse longo fio de sangue que conecta a humanidade (pelo menos o seu ramo cristão) através do “sacrifício das primícias”, suspeitosamente ubíquo. Não podem nos satisfazer, pelo contrário, as seguintes palavras de Jesus: “Asseguro-lhe que quem não recebe o reino de Deus como uma criança de maneira nenhuma entrará nele” (Lucas, 18:17). Nietzsche (1883-1885/2007, IV, “A festa do burro”, p. 419) ensinou a ler nelas a exigência de subordinação, mediocridade ("tornar-se pequeno", Mateus, 18:4) e renúncia da terra. Arnold Zweig sintetizou este tema doloroso de nossa história antiga numa carta a Freud de 1934: “Parece que as pessoas precisam de tempos em tempos de um símbolo do filho sacrificado" (Freud; Zweig, 2000, p. 134).

Pode-se objetar que aqui conferimos uma prioridade quase exclusiva aos “elementos negativos” sobre a infância presentes nos relatos cristãos. Segundo essa crítica, estaríamos excluindo, ou não valorizando justamente, um Menino-Deus. Embora se possa argumentar que, ao contrário do judaísmo como religião do Pai, o cristianismo é a religião do Filho, e inclusive Deus torna-se criança neste filho, na verdade ele é um filho destinado a morrer em nome do Pai (e/ou da Virgem Mãe). Além do fato de que é possível encontrar elementos do mito que levam em consideração a infância e se encaminham a cuidar dela, a hipótese de leitura que propomos é a de que as linhas dominantes da doutrina cristã, aparentemente (de forma consciente) purgadas de toda agressão, e mesmo de toda crueldade, apontam explicitamente para uma sacralização do Filho em sentido estrito: fazê-lo sagrado, sacrificando-o. Basta tomar ao pé da letra a palavra sagrada: a criança é o “cordeiro de Deus” (Agnus Dei), vítima sacrificial que, com a sua morte, “tira o pecado do mundo”.

Por outro lado, não é lícito reduzir a história à mitologia, mas é notável como os nossos mitos nos lembram que não é conveniente desconhecer os desejos inconscientes dos “pais” (adultos) por seus “filhos”. Nesse sentido, é fundamental lembrar que, para a mitologia grega, o destino mortal de Laio foi determinado a partir do dia em que, como preceptor, agrediu sexualmente a Crísipo, filho do rei Pélope (Monzón, 2009). Essa história – que, de acordo com as palavras de Freud, estremece-nos desde pequenos e invade nossos sentidos sob um halo de mistério e de secreta admiração adulta – tem como antecedente – menos conhecido – um caso de violência sexual infantil (que culmina no suicídio da vítima). Somos tão herdeiros dessa dissimulação como da descoberta a que se permite Édipo e de que Freud faz conceito.

Tendo em conta estes elementos de análise, espera-se que o autoproclamado “Anticristo” possa dar origem a uma transvaloração da paidofobia8 das religiões pré-modernas, e um questionamento do conceito de infância na primeira modernidade.

Transvaloração nietzschiana da infância

Na paródia do cristianismo intitulada Assim Falou Zaratustra, a criança é um dos protagonistas. Isto é significativo no contexto do programa nietzschiano de transvaloração de todos os valores. Longe de ser apenas a representação do ainda-não-adulto, do ainda-não-maior-de-idade, de acordo com Nietzsche (1883-1885/2007, p. 51) “a criança é inocência, e esquecimento, um novo começo, um jogo, uma roda que se move sozinha, um primeiro movimento, um sagrado dizer sim”. No discurso “Das três transformações” (Ibid., p. 49-51), o espírito deve transformar-se em camelo para aprender a suportar as cargas; em seguida em leão, para romper com a obrigação imposta de fora e contra si mesmo; finalmente, é necessário que o leão se torne criança, pois ela é capaz de fazer algo que o feroz leão não pode: criar o novo. A criança é o verdadeiro ateu, a encarnação de uma nova inocência. Em “A hora mais silenciosa” (Nietzsche, 1883-1885/2007, p. 214), Zaratustra diz:

Então, algo me falou novamente sem voz: “Você tem que tornar-se ainda uma criança e não ter vergonha. [...] O orgulho da juventude ainda está em você, você se tornou jovem tarde, mas aquele que quer se tornar uma criança deve superar até mesmo a sua juventude ".

O profeta do super-homem chama a abandonar o infantilismo (psíquico) que nos mantém atados aos tutores que procuram substituir a nossa consciência moral, mas isso não significa abandonar a infância absolutamente. A liberdade está associada com a superação da dívida/culpa e da vergonha. A criança é o criador rindo (Eros), por isso não é aconselhável associá-lo com a vítima do desrespeito sacerdotal denunciado mais tarde, quando Zaratustra fala “Das velhas e novas tábuas”: “O criador é o mais odiado” (Nietzsche, 1883-1885/2007, p. 293). O ódio ao criador é o ápice do desprezo daqueles que acham que são os bons e os justos. A criação não admite mesquinhez: apenas na medida em que se é capaz de dar, ou seja, de dar a si próprio sem esperar um retorno, que Zaratustra considera admissível ter uma criança. Acontece que, como toda a criação, é difícil pro-criar. Zaratustra parece nos dizer que a maioria das pessoas apenas se re-produzem, no sentido de que buscam produzir a si mesmas novamente: seus gostos, seus hábitos e seus pensamentos. E assim, em vez depro- criar, repete-se. Moldar as crianças à imagem e semelhança do guia é a tentação a que Deus não pode resistir, e a que só dificilmente resistem os pais, professores, líderes e analistas. A tentação secreta do educador é brincar de ser Deus (esse Deus que pouco tem de “jogo”, no sentido nietzschiano), impondo um ideal próprio em detrimento do desejo do outro.

Num mundo onde o deserto cresce, Zaratustra se sente um nômade em todas as cidades e uma despedida em cada porta:

Fui banido do país dos meus pais [Vaterland] e das minhas mães [Mutterland] (...). Devido a isso, eu simplesmente amo o país dos meus filhos [Kinderland], o não descoberto, no mar remoto: ordeno a minhas velas que o procurem incessantemente. Quero nos meus filhos reparar o fato de eu ser filho de meus pais e, em qualquer futuro – este presente! (Nietzsche, 1883-1885/2007, p. 180).

A utopia deste transvalorador é presente e futuro reais e exultantes contra as promessas de um futuro ilusório. O presente é o momento das crianças e das paixões. O país da cultura é o mundo em que as crianças são prioridade. Nem Patria nem Matria: Kinderland. Neologismo, conceito impossível de traduzir num contexto em que a “puerilidade” refere-se a questões “menores” por associação desagradável com o insignificante. Zaratustra proclama, contradizendo a tradição dos patriarcas: “Que importa o país dos pais?" (Nietzsche, 1883-1885/2007, p. 294).

Que a partir de agora a honra não seja o lugar de onde você vem, mas o lugar onde você vá! (...) O país de seus filhos é que você deve amar: seja esse amor a sua nobreza – o país não descoberto, localizado no mar mais remoto! Ordeno a vossas velas que partam uma e outra vez na sua busca! Em seus filhos você deve reparar o fato de serem filhos de seus pais: assim deve redimir todo o passado!

Essa nova tábua eu coloco em cima de você! (Ibid. p. 281-282)

Essas declarações de Nietzsche-Zaratustra imunizam contra as manifestações de uma metafísica purgada de matéria. Voltaremos ao específico materialismo nietzschiano depois. Antes, queremos acrescentar que, além do testemunho de um mundo outro, leve e elevado, a criança aparece no grande livro de Nietzsche servindo a outra função: mostrar de modo transparente a deformação do ensino de Zaratustra. No discurso intitulado “A criança do espelho” (Nietzsche, 1883-1885/ 2007, p. 127-130), uma criança se apresenta a Zaratustra em sonhos, e pede-lhe para se olhar no espelho que ela traz em suas mãos. Zaratustra – assim conta seu pesadelo – grita apavorado ao ver que seu reflexo na superfície do espelho é a careta e o riso zombeteiro de um demônio. Ainda perturbado pela experiência enquanto a narra, o profeta do super-homem interpreta o anúncio da criança no sonho dizendo que sua doutrina está sendo distorcida. Assim, deverá se misturar de novo com os que o veneram.

Ao longo do protagonismo reflexivo, explícito e reiterativo da figura da criança em Zaratustra, há outra figura associada com a criação que aparece de forma menos óbvia, mas igualmente importante. E talvez já não tenhamos que pensar então a transvaloração associada a uma determinada figura individualizada, mas a uma relação particular, seja reprimida ou inovadora. Se a criança é a figura que condensa a força da criação e da inocência, Nietzsche também associa mais de uma vez na mesma obra a experiência criativa (estética) com a maternidade.

Nós tínhamos escrito que os autoproclamados “bons” e “justos”, que estão associados no pensamento nietzschiano ao cristianismo triunfante como religião imperial, odeiam ao quebrantador, que quebra velhas tábuas, que inventa a sua própria virtude. A criação está associada com as crianças no primeiro discurso de Zaratustra já analisado, mas está associada, em seguida, também à maternidade:

Vocês, criadores, vocês homens superiores! Quem tem que dar à luz está doente; e quem já deu à luz é impuro.

Perguntem para as mulheres: não se dá à luz por diversão. A dor faz cacarejar a galinhas e poetas.

Vocês criadores, em vocês há muitas coisas impuras. E isso é porque teriam que ser mães (Nietzsche, [1883-1885] 2007, p. 388).

O campo semântico que define as novas “virtudes”, neste trabalho nietzschiano, desconstrói, pelo menos em certos fragmentos, a tentação frequente de associar, pela inércia patriarcal, força, violência e poder. A maternidade é a ligação que se torna a sede das virtudes do transvalorador, já não exclusivamente viris, mas onde está iminente uma espécie de horizonte inédito do super-homem. Não é a pessoa-Mãe que quer ao filho para si mesma, mas na ‘mater-ialidad’ (inclusive na aleitação, Rozitchner dirá), onde o germe desses valores está presente. Na verdade, quando se trata de quem considerava virtuosos, Zaratustra associa os novos valores à maternidade: “Oh, meus amigos! Que o si mesmo de vocês esteja na ação como a mãe está na criança: e que seja essa a sua palavra sobre a virtude!” (Nietzsche, 1883-1885/2007, p. 146). O significado desta frase é melhor compreendido em relação à outra que lemos mais para frente: “Radicalmente você ama apenas o seu próprio filho e a sua própria obra; e onde há um grande amor por si mesmo, há sinal de gravidez: isso é o que eu encontrei” (Nietzsche, 1883-1885/2007, p. 230). E embora tenha rejeitado antes a Matria e de todo mundo ‘pan-adulto’ em defesa de um país de crianças, a ética do super-homem, em Zaratustra, parece contar, dentro de seus aspectos inevitáveis, com os valores maternais. Esta não é uma questão marginal: Zaratustra termina explicando a ética do texto em torno desse ideal não des-mater-ializado da gravidez e do amor materno. A sua não é uma ética da beleza, nem uma ética da felicidade pessoal. Ao apontar para sua “estrela polar” Zaratustra fala como a mãe antes imaginada: “Meu sofrimento e minha compaixão – o que importam? Por acaso eu aspiro à felicidade? Aspiro à minha obra!" (Nietzsche, 1883-1885/2007, p. 433).

Nietzsche torna complexa assim, como em um parêntese de sua obra, a ênfase mais unilateralmente viril, mais inclinada às virtudes primitivas – por definição, varonis, uma vez que o conceito de “virtude” é derivado da palavra “vir”, ou seja, “varón”, em espanhol, “homem” – que caracterizarão ao super-homem temerário destas obras, para compor um belo e necessário elogio dos valores maternais, criativos, sensíveis, receptivos, generosos e de proteção do novo9. Recupera e dá uma dimensão estética e política à tradição de olhar a criança a partir da perspectiva que a liga com a mãe (téknon) e as isola na esfera doméstica. O materialismo nietzschiano, que poderia ser definido, em princípio, como a elaboração consumada da morte de Deus, mostra, em Assim Falou Zaratustra, uma consequência menos óbvia e menos reconhecida: o cultivo transvalorador de valores mater-iais.

  

Conclusão

O materialismo de Nietzsche, que começa com a morte da ideia que argumenta a possibilidade de imaginar uma existência totalmente desengajada da mater-ialidade, continua neste tipo de sonho que é Zaratustra, com a reavaliação de um materialismo cheio de sentidos e história, não redutível à mecânica, ou a uma concepção idealista de “matéria”. Freud avançará nesse caminho. A passagem de uma hierarquia patriarcal de valores à lembrança permanente da mater-nalidade a que convida Nietzsche ajudaria a quebrar o rígido ideal de uma vida adulta que, sob a forma de qualquer figura de autoridade, reproduz os seus mecanismos de controle e exercício da dominação.



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Data de recebimento: 27/02/2016
Data de aceitação: 30/04/2016
 

 

1 Tradução nossa.

2 Nota da tradutora: trata-se de um termo nietzschiano que se refere à transformação sofrida pelo significado dos conceitos “bom” e “mau”, como resultado da morte de Deus e da chegada do super-homem anunciada pelo autor em seu famoso texto Assim Falou Zaratustra.

3 Termo de origem grega que significa criança.

4 Neste contexto, equivalente a menino.

5 Frigerio (2008) tem reconhecido, entre outros filtros ideológicos, o preconceito de classe que nos obriga a falar em plural de “infâncias” e em diferentes formas de ser criança. Na esfera pública contemporânea, “criança” parece ser somente o que pertence a uma classe privilegiada: os pobres são simplesmente “menores”.

6 O corpo das crianças não está usualmente como prioridade entre os corpos que importam (cf. Butler, 2008), ainda que seja justo reconhecer que, nas teorias referidas, se encontram ferramentas para tematizar o domínio de que estamos falando.

7 Referente a isso, cf. Autor, 2010.

8 Nota da tradutora: Medo de crianças.

9 Não se trata de valores próprios do essencialismo a-histórico, mas de traços distintivos de funções associadas milenariamente às mulheres, presentes em mitos, sonhos e representações primárias em culturas diversas.

I Doutor em Ciências Sociais (Universidad de Buenos Aires) e pesquisador do CONICET. Professor na Faculdade de Ciências da Educação da Universidad Nacional de Entre Ríos (Argentina), onde integra o CIFPE e o CISPO. Publicou recentemente “Freud como leitor de Nietzsche” (Civilizar, Ciências Sociais e Humanas, 2015). E-mail: leandrodrivet@yahoo.com.ar

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