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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades vol.14  Rio de Janeiro Mar. 2017

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Pesquisando nas fronteiras: cartografia de circuitos culturais juvenis em Feira de Santana-BA/Brasil

 

Investigando en las fronteras: cartografía de los circuitos culturales juveniles en Feira de Santana-BA/Brasil

   

 

Mirela Figueiredo IriartI e Denise Helena Pereira LaranjeiraII

I Departamento de Educação, Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana/BA, Brasil.

II Departamento de Educação, Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana/BA, Brasil.

 

 


RESUMO

O artigo trata de uma pesquisa-intervenção que tem como foco os circuitos de consumo e produção cultural juvenil em Feira de Santana-BA. Discute-se a cartografia como dispositivo teórico-metodológico que privilegia a implicação do pesquisador no território pesquisado.  Acompanhar processos e capturar as expressões artísticas (hip hop, grafite, poesia, etc.) singulares, agenciadas pelos coletivos juvenis, é ir ao encontro de uma narrativa mais horizontal, que considera as intersubjetividades na relação pesquisador-pesquisado. Consideramos as dimensões éticas, estéticas e formativas que atravessam as experiências dos jovens no contexto urbano e em suas margens e o papel político por eles ocupado ao provocarem rupturas com a cultura hegemônica. Ao se apropriarem da cidade por meio de redes criativas e solidárias, sinalizam a busca por direitos e reconhecimento. A pesquisa colaborativa nos convocou a pensar na necessária abertura dos espaços canônicos ao transbordamento da vida e da arte.

Palavras-chave: culturas juvenis, cartografia, pesquisa colaborativa.


RESUMEN

El siguiente artículo se refiere a una investigación-intervención que tiene como objetivo mapear los circuitos de consumo y producción cultural juvenil en Feira de Santana-BA, adoptando la cartografía como dispositivo teórico y metodológico que favorece la conexión del investigador con el territorio y sujetos investigados. Acompañar procesos y capturar las expresiones artísticas (hip hop, grafiti, poesía, etc.) singulares realizadas por colectivos juveniles es ir al encuentro de narraciones más horizontales, que consideran la intersubjetividad en la relación investigador-investigado. Consideramos las dimensiones éticas, estéticas y formativas y el papel político realizado por ellos al provocar quiebres en la cultura hegemónica. Al apropiarse de la ciudad por medio de las redes creativas y solidarias, resaltan la búsqueda por derechos y por reconocimiento. La investigación nos invita a pensar en la necesaria apertura de los espacios canónicos al entorno de la vida y el arte.

Palabras-clave: culturas juveniles, cartografía, investigación colaborativa.


 

 

Neste artigo apresentaremos um estudo sobre os circuitos de consumo e de produção cultural juvenil realizados na cidade de Feira de Santana-BA, ancorado na metodologia cartográfica, buscando analisar seus dispositivos de pesquisa.

Partimos da compreensão das culturas juvenis como formas privilegiadas para se acessarem os sentidos que os jovens constroem e utilizam para ressignificar um mundo cada vez mais complexo. Especificamente na cidade de Feira de Santana, observamos as lacunas de estudos e pesquisas que evidenciem e discutam as expressões político-culturais juvenis e seu papel transformador.

O que nos motivou nesta direção foi a possibilidade de produzirmos conhecimentos que contribuíssem para uma maior visibilidade das culturas juvenis e suas formas de sociabilidade, em circuitos não hegemônicos, quase sempre associados a uma produção que vem das margens ou das camadas menos visíveis da cidade.

O campo investigativo incluiu os circuitos de produção e consumo culturais, composto por grupos de hip hop, grafite, poesia, incluindo eventos artísticos, cujas dimensões formativas, estética, ética e política são pouco conhecidas e gestadas à margem da cultura hegemônica.

A metodologia de inspiração cartográfica valeu-se das forças geradas em conjunto com os participantes, potencializando a emergência de suas visibilidades. Podemos pensar nos limites e potencialidades que pesquisas dessa natureza podem produzir na construção de redes colaborativas.

 

Reflexões sobre as culturas juvenis e suas sociabilidades na contemporaneidade

Segundo Clarke et al. (2006), a cultura é uma prática que realiza e objetiva os estilos e significados produzidos coletivamente, oferecendo um mapa de significação no compartilhamento, compreensão e interpretação de experiências singulares, que podem ser ressignificadas num campo simbólico. O deslocamento das formas tradicionais de identificação social, das relações de trabalho para o consumo cultural, oferece novas matrizes na configuração de identidades, como construções discursivas e reflexivas.

A heterogeneidade e as diferentes combinações na apropriação cultural desmonta a ideia de identificações fixas e demarcadas em contextos sociais específicos – seja por posições de classe ou diferenças geográficas – reconfigurando a relação entre local e global, periférico e hegemônico, consumo e produção. É preciso se considerar que as práticas culturais, incluindo-se aí as de consumo, oferecem sentidos de pertencimento, por meio dos quais os jovens compõem repertórios híbridos, forjando suas identidades (Canclini, 2009).

Segundo Canclini1 (2013), as grandes transformações ocorridas nas últimas décadas trouxeram reflexos nas sociabilidades juvenis. Duas principais mudanças e desafios aí se apresentam, conforme o autor. A primeira, relacionada às identidades, à indústria cultural, à geração de empregos, etc. A segunda, associada à construção de espaços de cooperação cultural no contexto das novas tecnologias e de organismos voltados para estimular a circulação de livros, discos, filmes, música, etc. A economia recessiva mundial e o desemprego são desafios para indivíduos e instituições. Nesse cenário, em seu ponto de vista, estão presentes os seguintes paradoxos: 1) Economia criativa em expansão, representada pela produção e consumo no campo artístico-cultural e tecnológico; 2) Precariedade social/laboral pela intermitência e descontinuidade na inserção profissional.

Os jovens, ao contrário de se deixarem subjugar a uma dada ordem, podem ser agenciadores frente às suas necessidades e circunstâncias (Cruces, 2012). É assim que interpretamos a atuação de alguns dos jovens em seus respectivos coletivos culturais na cidade de Feira de Santana, Bahia. A cultura que acontece à margem dos cânones instituídos vem proliferando nos centros e periferias das cidades e municípios circunvizinhos, demarcando o sentido de inclusão e de busca de reconhecimento. Nesse caso o pertencimento étnico pode ser “instrumentalizado como fonte de referência simbólica, ao assegurar um sentimento de reconhecimento e identidade” (Horowitz, apud Pais, 2010, p. 166).

Canclini (1997) chama atenção para as novas cartografias sociais que reorganizam as forças em constante tensão e contradição na dinâmica social. Embora sem negar as diferenças nas formas de apropriação e produção dos bens materiais e simbólicos em sociedades desiguais, o autor observa que as culturas de fronteira dão a tônica nas formas de intercâmbio. Tanto na fusão de gêneros (música, poesia, grafite, por exemplo), quebrando fronteiras geográficas antes rígidas (centro-periferia) quanto na apropriação sincrética que cada espectador/consumidor, realiza a partir dos seus gostos. A obliquidade, ou transversalidade com que os circuitos culturais recortam o espaço urbano, segundo o autor, permite repensar as relações entre cultura e poder, sobretudo quando as fronteiras entre o hegemônico e o contra-hegemônico, o popular e o erudito dissolvem-se na contemporaneidade.

Podemos ainda pensar que os circuitos culturais juvenis, em seus processos interativos, estabelecem “formas de estar com o outro e de ser para o outro” (Simmel, 2006, p. 60), por meio dos quais pretendemos compreender a apropriação cultural como resistência e existência criativa de indivíduos e grupos, em espaços muitas vezes marginais em relação aos centros do poder econômico.

Desde essa perspectiva, problematizaremos o sentido colaborativo da pesquisa cartográfica que se produz na tensão entre o universo acadêmico e os movimentos sociais que o extrapolam, buscando instituir espaços de escuta e de significação.

Da Etnografia Urbana à Cartografia Psicossocial: cartografar processos

Magnani (2005) propõe estudar os agrupamentos juvenis contemporâneos, empregando a noção de “circuitos jovens”, buscando articular as referências comportamentais dos sujeitos ao uso e à apropriação do espaço2. Nestes circuitos, muitas vezes, a arte (música, poesia, teatro, etc.) apresenta-se como um elemento fundamental de produção e agregação de sentido, além de demarcar identidades e fronteiras simbólicas. A etnografia urbana inaugurada por Magnani (2005) torna-se pertinente ao abarcar não só a diversidade das culturas, mas o seu entrelaçamento, a partir dos atores/agenciadores, em suas formas de organização e intervenção na cidade, o que não exclui compreender também os processos de fusão e rompimento (Canclini, 2009).

Ao propormos a cartografia3 como conjunto de dispositivos de pesquisa, pretendemos lançar luz sobre algumas pistas – como nos apresenta Kastrup (2010) – potencialmente relevantes, que consideram, entre outras coisas: a implicação do pesquisador no território pesquisado, a preocupação com os processos intersubjetivos e o campo social da pesquisa como um campo aberto de desejos e de forças, mais do que de formas e representações. Isso implica, ainda, em exercitar o olhar descentrado, levando em consideração os múltiplos centros e forças que engendram os sujeitos, seus comportamentos e estilos de vida.  A abertura do olhar do pesquisador, não na direção da captação de informação por meio de uma operação cognitiva – de reconhecimento da realidade – mas no movimento de atenção inventiva, que produz estranhamentos e nos forçar a pensar (Kastrup, 2010).

Assim, através de anotações de campo, entrevistas, observações participantes e de ensaios fotográficos fomos nos aproximando dos circuitos juvenis, seus cenários e atores, debatendo o papel articulador e mobilizador de suas ações, como uma forma de resistência cultural, ao produzirem arte nas margens – sejam geográficas, sociais ou simbólicas.


O cenário cultural e os seus protagonistas

O estudo foi realizado em Feira de Santana, cidade onde se situa a Universidade Estadual (UEFS). É o segundo município mais populoso do Estado da Bahia, com aproximadamente 600.000 habitantes e um dos mais importantes polos comerciais do nordeste brasileiro. Possui também um significativo parque industrial, que tem vivido um novo momento de desenvolvimento após um declínio acentuado nos anos 1990 e 2000. Como a maioria dos grandes centros urbanos brasileiros, apresenta problemas sociais significativos, como violência, desemprego, infraestrutura urbana precária e limitada oferta de serviços públicos em áreas essenciais, como a saúde, o transporte, a segurança, o lazer e a educação4. Apresenta, ainda, grandes limites na oferta de formação profissionalizante, gerando um extenso contingente de jovens, sobretudo negros, excluídos da possibilidade de inserção social e profissional mais efetiva.

Pela própria localidade geográfica (ligando as regiões norte-sul do país) mantém características de um importante entreposto comercial, que alimenta a economia e as representações sobre o seu território. Na dimensão cultural, existe pouco reconhecimento dos seus artistas e investimento público neste setor. Ademais, não havendo registro de estudos que mapeiem e discutam de forma mais ampla e consistente a vida cultural da cidade, a pesquisa em foco apresentou-nos como necessária.

Iniciamos a pesquisa cartográfica pelo mapeamento dos agrupamentos e coletivos culturais juvenis (música, dança, teatro, grafite, poesia, etc.), através da aplicação de questionários.  Procedemos, em concomitância, com o reconhecimento etnográfico do terreno, aproximando-nos dos jovens e de seus circuitos culturais, levando em conta os aspectos subjetivos, históricos e sociais. Utilizamos a internet como um recurso de acesso a um contingente maior de sujeitos e de construção de uma rede de interação virtual, para posterior identificação dos seus territórios. Com esse levantamento exploratório buscamos caracterizar e classificar estes grupos por origem, localização geográfica, atividades desenvolvidas, dentre outras.

Os bairros periféricos visitados pela equipe de pesquisa (Bairro da Fraternidade e Feira VII), onde residem alguns dos jovens colaboradores, são semelhantes a tantos outros bairros, característicos de uma urbanização excludente, tão comum à América Latina. A quase ausência de equipamentos de cultura e lazer, as ruas em sua maioria sem asfalto, o transporte precário (colaborando para o confinamento e segregação), o estigma da violência (reforçado pela mídia), diante da insegurança, do crime organizado e das drogas, que concorrem para a morte prematura de jovens. Por outo lado, rompendo os estigmas, as ações juvenis, espontâneas ou organizadas, suas linguagens múltiplas vão preenchendo de novos sentidos os espaços físicos e simbólicos.

Observamos a emergência de três fortes circuitos culturais na cidade. O Circuito de Arte Urbana, ou Circuito de Rua, cujo mote é a ocupação do espaço urbano e a reivindicação da arte produzida na periferia, investida de compromisso social e político e protagonizada por coletivos de grafiteiros, rappers, bi-boppers, streetdancers. Grupos com uma forte relação com a cidade e com o seu lugar de origem, associados aos bairros periféricos e a espaços marginalizados e esquecidos pelo poder público, tais como: o Coletivo H2F, liderado pelo MC Léo ÈZ; o NdF (Nós de Feira), representado pelo grafiteiro KBça Grafitti e o Coletivo Vozes, representado por Ivan Coelho.

Nas narrativas desses jovens, percebe-se um desejo de articular os projetos pessoais, como artistas urbanos, com uma atuação de cunho estético, político e educativo, pela descriminalização da periferia, valorizando a sua comunidade e resgatando o reconhecimento social dos seus moradores:

(...) você vê que a arte, ela tem esse poder de chamar: “Venha! Acorde!”. Entendeu? É por isso que a gente tem essa preocupação de estar formando através da arte, porque ela tem esse poder e é forte (Coelho, Coletivo Vozes).

Eu moro em bairro periférico, eu sei qual é a realidade. Na verdade, a gente não pode fugir disso, que quem são os salvadores da pátria são os traficantes que tão lá, ostentando e ganhando dinheiro no fácil. Então, eu procuro mostrar pra eles que tem outras soluções, que tem outras saídas. Que o fato de ele ser um morador periférico não faz ele menor, que ele pode ser o que ele quer e correr atrás da onda dele. Mas qual é o nosso papel? (…) É passar uma mensagem pra essa gurizada que tá passando ali e fala “porra velho, os caras poderiam tá enchendo a cara aí, poderiam tá fazendo a porra toda, mas os caras tão ali, pintando, sem ganhar nada”. É o guri que para e fala “porra, eu gosto de desenhar, como é que eu faço isso?”. Então, eu acho que o lance é a multiplicação (KBça Grafiti, Coletivo NdF)

Os jovens grafiteiros refletem sobre a importância da arte em sua potencialidade discursiva, como linguagem contestatória, de resistência cultural, que pode produzir transformação social pela porosidade das suas ideias, como sinalizado por Duncombe (2002); assim como atuar na educação de si e do outro.

Para Léo É Z, rapper e líder do coletivo H2F a “família da rua é o hip hop”, como núcleo afetivo e formativo, ao oferecer “conhecimento e educação”.

(...) pra mim, a mudança principal, o reconhecimento tem que ser dentro de onde você está, né? Dentro de onde você saiu mesmo, pra que hoje vocês estivessem aqui, eu tive toda uma história primeiramente aqui. Esse lugar aqui que praticamente é a base de tudo, a base familiar, a base de amigos (...).

O Circuito de Arte Alternativa desenha-se de várias formas na cidade, por meio de eventos de cultura pop coreana, nos encontros de geeks, nerds, cosplayers e bandas que recriam localmente referências globais e transnacionais, via mídias audiovisuais e digitais na produção, consumo e disseminação cultural. Neste circuito acompanhamos os/as jovens do KiKen-Sei, que demonstraram um envolvimento corporal e musical intenso por meio da dança. Notamos que frente ao público espectador, potencializam questões, a exemplo da sexualidade, a partir de suas performances e sensualidades em cena. Assim, colocam em xeque as demarcações típicas e tradicionais de gênero.

O Circuito de Arte Independente utiliza diferentes linguagens – a poesia, inclusive erótica, a música, as danças tribais, vídeo-arte e as artes plásticas –, fortalecendo artistas emergentes e independentes e produzindo eventos multiartísticos, a partir da necessidade de formação de plateia com novas sensibilidades.

Eu acho que o que tá acontecendo com essa geração, da qual eu faço parte, é a gente tomando posse, de fato, do nosso espaço e criando mais espaço, porque à medida que você deseja a formação desse público, você abre espaço pra que ele pise nesse território também (...) (Larissa Rodrigues, Coletivo DiaboA4).

A jovem poeta e também professora revela a necessidade de uma linguagem ou criação artística, pelo ativismo cultural, que amplie e desperte as possibilidades estéticas, para além das quais as pessoas vivenciam cotidianamente. Larissa e demais poetas, a exemplo de Will Fialho, do Coletivo Diabo A4, ao ocuparem a cidade pela palavra visam ressignificar territórios ainda estigmatizados. O espaço público deve ser dotado de um sentido educativo e formativo, portanto, também ético, cultural e político.

Acho que o principal desejo da gente, o desejo mais voraz é formar público. Juro. (...) Isso, eu acho que são passos que a gente faz pra chamar a atenção do público (...) (Larissa Rodrigues, Coletivo DiaboA4).

O problema da cidade é o nome “Feira”, tudo é loja! O referencial é comercial, as pessoas não saem de noite nas ruas, porque não há mobilidade na maioria dos lugares, durante a noite na cidade (Will Fialho, Coletivo Diabo A4).

O hibridismo dos circuitos observados revela uma característica de vivacidade e diversidade cultural, na qual despontam identidades múltiplas até então pouco visibilizadas. Tais formas de apropriação e recriação da cultura são elementos contemporâneos importantes para pensarmos na mobilidade, circularidade e porosidade das fronteiras urbanas e no direito à cidade e/ou do pertencimento a ela.


Estratégias e táticas: construindo uma rede colaborativa de pesquisa

A pesquisa valeu-se de alguns dispositivos comprometidos com a sua dimensão política e com a visibilidade dos atores sociais, ao desvelar as tramas que os jovens constroem em circuitos autônomos e não prescritivos e buscar potencializar redes colaborativas.

Alguns dos dispositivos desenvolvidos ao longo da experiência cartográfica foram: (a) realização de grupos de diálogo, buscando tematizar as práticas culturais e a identidade social dos grupos/sujeitos participantes, a política cultural do município e o papel da Universidade, além da relação dos jovens com a cidade; (b) realização de oficinas de vídeo-arte que problematizaram e potencializaram o olhar sobre os fluxos e percursos da cidade, resultando nos vídeos “TRACEjando por Feira de Santana: pulsões criativas” e “H2F e Kin KenSei: uma poética das margens”5; (c) organização de uma mostra cultural6 que envolveu a equipe de pesquisa junto com os jovens para a realização do Segundo Encontro Nacional de Grafitti em Feira de Santana (25 a 27 de setembro, 2014); (d) realização de Rodas de Conversa, por meio do intercâmbio entre os coletivos juvenis e pesquisadores convidados, dialogando com temas como: racismo, extermínio de jovens, apropriação criativa da cidade e a ressignificação do espaço urbano; (e) exposição fotográfica, com o acervo produzido pelos pesquisadores.

Fazendo um balanço, avaliamos tanto a dimensão estética quanto a dimensão política potencializadas pela pesquisa, assim como os seus limites. O mapeamento dos grupos possibilitou a identificação sócio-política e geográfica dos circuitos juvenis e a sua relação com os fluxos e dinâmicas da cidade, revelando as contradições entre a relação centro-periferia e as hierarquias de poder associadas à cultura hegemônica e cultura periférica. As oficinas criaram um tempo-espaço de trocas de experiências entre pesquisadores e pesquisados, num equilíbrio de poder que se constituiu como um saber-fazer compartilhado. Os grupos de diálogo revelaram momentos ricos para debater com os jovens o seu olhar sobre a cidade, a relação com a Universidade e as iniciativas gestadas por indivíduos ou grupos no cenário cultural da cidade.

As Rodas de Conversa7 foram experiências de trocas e dissolução de fronteiras sociais, espaciais e simbólicas. A partir do diálogo com jovens lideranças de movimentos sociais e coletivos culturais as distâncias foram gradativamente reduzidas, na medida em que o respeito e a escuta permearam as relações. Permanecem, porém, algumas tensões entre as demandas sociais, sobretudo de grupos mais vulneráveis – muitas vezes criminalizados pela pobreza – e os discursos e práticas institucionais (acadêmicos, governamentais, jurídicos), revelando as forças contraditórias em jogo. O papel da esfera pública (polícia, instituições de ensino, secretarias de governos), em suas especificidades e singularidades e a atuação dos movimentos sociais estão permanentemente confrontados um pelo o outro, por suas diferenças, sejam políticas ou metodológicas. Tal balanço nos coloca diante do papel que a Universidade deve protagonizar no fortalecimento de redes colaborativas de pesquisa, que promovam discursividades não hegemônicas.

Considerações Finais

A partir das produções no campo da pesquisa pudemos revelar que em Feira de Santana - BA diversos coletivos e grupos culturais juvenis vivenciam sua capacidade de expressão, potência criativa, sobretudo artística, e mobilizam formas de intervir, interpretar e construir sentidos sobre a cidade, sobre a cultura e o ser jovem. Essas questões acabam sendo o mote de boa parte dos grupos e coletivos juvenis que existem, em sua maioria, na periferia da cidade. Esses jovens passam a se envolver e tensionar o poder público em torno de questões como, por exemplo, a gestão dos espaços públicos ou a reivindicação por mais equipamentos culturais.

Afirmamos o sentido político da arte como uma “micropolítica das margens”, uma poética de luta e resistência numa sociedade fortemente desigual, e também o aflorar de identidades e sociabilidades juvenis construídas pelo afeto, pela liberdade, pelo respeito ao outro e pelo desejo de autorrealização. Uma juventude, enfim, que pela arte, singulariza-se, desafiando os modelos hegemônicos e prescritivos de existência (Ferreira, 2010, p. 118).

Assumimos o necessário compromisso ético com as diferentes vozes e a abertura para transversalizá-las, seja debatendo a criminalização do jovem de periferia e o racismo institucional, o genocídio do jovem negro, os territórios de exclusão ou a produção criativa que vem das margens.

Aprendemos com o movimento espontâneo, mas também organizado e criativo, de como os grupos promovem seus encontros nos espaços institucionais (a exemplo da escola, da universidade, dos centros de cultura, museus, etc.) ou não formais, compartilhando suas produções e saberes e nos revelando o papel de educadores sensíveis, ampliando as experiências estéticas e a emergência de novas sensibilidades na formação de plateia e no encontro com o outro, quando a arte convoca o espectador como autor/ator. E, por fim, aprendemos com as suas linguagens artísticas e com os seus discursos que é necessário abrirmos os espaços canônicos e trazermos os transbordamentos da vida, que muitas vezes não cabem em currículos acadêmicos e/ou escolares.

 

Referências

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Data de recebimento: 23/07/2016
Data de aceite: 30/01/2017

1 Conferência proferida no dia 25/10/2013 no Teatro do Instituto Social da Bahia, em Salvador, durante o Fórum do Pensamento Crítico.

2 Ao lado do conceito de circuitos, Magnani (2005) opera com categorias complementares (pedaço, mancha e trajeto) que permitem uma rica compreensão dos ritos e comportamentos dos jovens em sua apropriação do espaço da cidade.

3 Originalmente a cartografia foi formulada por Deleuze e Guattari. Nesta perspectiva não se pretende a representação de um objeto, mas sim o acompanhamento de um processo investigativo (Kastrup, 2010, p. 32).

4 O Censo demográfico de 2010 (IBGE, 2010) ilustra a debilidade na escolarização dos jovens residentes na zona urbana de Feira de Santana: não sabiam ler nem escrever, na faixa de 15 anos ou mais de idade, 38.371 pessoas (9,1%).

5 O primeiro, fruto de experimentações livres dos grupos participantes da oficina, sob a direção da Videomaker Ceci Alves e o segundo, resultado de um trabalho co-produzido pelo Diretor e Roteirista Diego Hasse e o grupo de pesquisa Trace, consistiu em um recorte de experiências e narrativas de dois grupos participantes da pesquisa (Apoio CNPq-MCTI/CNPq/MEC/CAPES Nº 18/2012).

6 O referido evento para sua organização contou com os seguintes atores: Grupo de Pesquisa Trajetórias Culturas e Educação (TRACE), Coletivo Juvenil H2F, Colégio Estadual José Ferreira Pinto e o Museu de Arte Contemporânea Raimundo de Oliveira. E com o apoio da Pró-Reitoria de Extensão da UEFS (PROEX), Departamento de Educação, CNPq, FAPESB e Prefeitura Municipal de Feira de Santana.

7 A primeira teve como tema o diálogo entre arte, cultura e política, realizada no bairro Fraternidade em março de 2015; a segunda Roda teve como tema a apropriação criativa da cidade, realizada na Universidade em agosto de 2015 e com a participação de alguns artistas (Charles, Coelho, Kbça Grafite, Léo EZ) e do professor Paulo Carrano (UFF) e a terceira Roda de Conversa ocorreu no espaço da Universidade, em maio de 2016, intitulada Juventude Plural em territórios de exclusão, com a participação de Movimentos Sociais (Levante da Juventude; Movimento Nacional de Moradores de Rua; Pastoral da Juventude), Coletivos Juvenis e operadores de políticas públicas (Conselho Estadual de Juventude).


I Mirela Figueiredo Iriart: Professora Titular do Departamento de Educação na Universidade Estadual de Feira de Santana-BA (UEFS), Brasil. Coordenadora do grupo de pesquisa Trace – Trajetórias, Culturas e Educação, atuando em pesquisas sobre culturais juvenis, trajetórias de vida e participação social. E-mail: mifis36@gmail.com

II Denise Helena Pereira Laranjeira: Professora Titular do Departamento de Educação na Universidade Estadual de Feira de Santana-BA (UEFS), Brasil. É membro do grupo de pesquisa Trace – Trajetórias, Culturas e Educação, atuando em pesquisas sobre culturais juvenis, escolarização e trabalho. E-mail: denise.laranjeira@gmail.com

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