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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades vol.14  Rio de Janeiro Mar. 2017

 

ESPAÇO ABERTO

 

A violência entre adolescentes no contexto escolar

 

Violencia entre adolescentes en el contexto escolar

 

 

 

Entrevista de Ilana Lemos de PaivaI com Juana María Guadalupe Mejía-HernándezII

I Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Caicó/RN, Brasil.

II Centro Universitário ORT, México.

 


RESUMO

A violência entre adolescentes deve ser compreendida como parte de suas relações, como expressão da sociabilidade e dos processos de socialização e subjetivação, por meio dos quais se constroem a identidade social e de gênero. Os atos de violência praticados entre eles vão muito além da mera violência física. Ao buscar seu lugar no espaço social, muitas meninas também têm enveredado pela senda das interações sociais baseadas em crueldade e abuso, assim como os meninos. Os adolescentes desafiam a escola e os professores, que pouco conseguem fazer para efetivamente transformar o contexto de violências da cultura escolar contemporânea.

Palavras-chave: violência, adolescentes, relações sociais, subjetividade, identidade.

RESUMEN

La violencia entre adolescentes debe ser comprendida como parte de sus relaciones, como expresión de la sociabilidad y de los procesos de socialización y subjetivación a través de los que se construyen la identidad social y de género. Os actos de violencia practicados entre ellos van mucho más allá de la violencia física. Al buscar su lugar en el espacio social, muchas niñas también han tomado la senda de las interacciones sociales basadas en la crueldad y el abuso, como los niños. Los adolescentes retan a las escuelas y a los profesores que poco pueden hacer para transformar efectivamente el contexto de violencias propio de la cultura escolar contemporánea.

Palabras clave: violencia, adolescentes, relaciones sociales, subjetividad, identidad.

 


Ilana Lemos de Paiva –  Gostaria que nos falasse sobre sua carreira acadêmica e seus trabalhos de investigação. Em particular, que tipo de projetos tem desenvolvido em termos de violência entre os adolescentes?

Juana María Guadalupe Mejía-Hernández – Comecei a minha carreira acadêmica estudando Psicologia em uma universidade estadual, no Norte, no estado de Coahuila-México. Lá trabalhei em um projeto da comunidade com mulheres e, depois da formatura, fui trabalhar formalmente na educação, como conselheira em escolas secundárias rurais. Nesse contexto, o conselheiro tem a função de ouvir os garotos, mediar entre eles. Então, vi o que, em primeiro lugar, relato na tese e, em seguida, no meu livro: uma série de conflitos, problemas de convivência, competições, violência física entre meninas por causa de um menino. Assim, como conselheira, estive nesta posição por quase seis anos.

Mas as frustrações que sentia pela falta de conhecimentos técnicos para mediar de melhor modo me levaram a buscar melhor formação como terapeuta. Assim, com base em minhas preocupações quanto às questões terapêuticas, fiz mestrado e fui treinada em terapia familiar. Ao mesmo tempo, abri um espaço de grupo, tinha muita experiência em trabalho com grupos, porque recebi treinamento desde muito jovem, então era uma das poucas psicólogas na região que podia trabalhar com grupos. Comecei a trabalhar com grupos, casais, famílias e individualmente. Fiz um modelo de trabalho. Minha tese de mestrado informa este modelo e analisa a história de vida de mulheres.

Quando passo a viver na Cidade do México com minha família, me envolvo diretamente com a questão da violência. Retomei o trabalho que já estava fazendo como educadora e o integrei ao trabalho como terapeuta. Atualmente trabalho em uma universidade privada da organização “ORT-MÉXICO”.

Ilana Lemos de Paiva –  Com base no seu trabalho sobre a violência entre as crianças, bem como na construção da sociabilidade de adolescentes, fale sobre a relação entre as duas questões. Segundo seu critério, qual a relação entre a violência e a construção da sociabilidade em adolescentes de hoje?

Juana María Guadalupe Mejía-HernándezQuando minha tese começou a ganhar corpo, eu disse: “Vamos trabalhar a violência”. Mas é muito difícil ser chamado para o reconhecimento de um ato violento. Além disso, os atos mais violentos, fisicamente violentos, quero esclarecer, muitas vezes acontecem fora do espaço escolar. Estamos falando de meninos de escolas públicas, mas também em escolas privadas acontecem fenômenos semelhantes, mediados de outras maneiras, talvez com outros recursos. Eu ouvi mães de uma escola privada, por exemplo, contar que as crianças às vezes pedem a seus guarda-costas para brigar entre eles.

Você não pode encontrar um caso de violência no momento em que acontece. Então, a partir da posição que eu tinha no serviço de orientação, começo a ver o relacionamento e o desenvolvimento das interações, em geral, entre meninos e meninas: em primeiro lugar, relacionamentos de amizade, fraternidade, convivência, a vivência de “serem parceiros”. Então, percebo que entre meninos e meninas pode existir atração ou recusa, aprendizagens de ambos os sexos sobre a forma de encontrar-se, para saber como ler os sinais. Muitas vezes isso produz uma alta tensão e a relação se torna ofensiva, brusca. Disparadores de violência são gerados nas interações entre os sexos. Além disso, as áreas onde fiz este trabalho de campo são áreas rurais já urbanizadas, povos absorvidos pela cidade. Há nessas cidades formas tradicionais de exercício dos papéis de gênero que as crianças reproduzem, monitoram-se uns aos outros: elas têm que ser decentes, eles, muito masculinos.

No entanto, nas interações na escola influem também outros modelos, a partir do uso de dispositivos eletrônicos, do comportamento dos professores, que não consegui analisar, porque não é permitido. Não nos permitem analisar a forma como o professor responde ou ausenta-se diante da interação violenta. Se você olhar de perto, o que eu relato e analiso acontece na ausência de professores. Não só porque eles não permitem que você trabalhe e observe como o professor pode intervir na sociabilidade do grupo, mas porque, de fato, em escolas públicas existe um elevado nível de absentismo dos professores. E isso diz respeito à falta de adultos que contenham, apoiem, estabeleçam limites a serem respeitados pelos meninos. Portanto, este é um elemento que chamo “abandono” ou “ausência”, que está incentivando e facilitando a ocorrência destes eventos violentos na vida íntima do grupo.

Antes de ocupar-me no campo da orientação, trabalhei em outras áreas de observação na escola e comecei a fazer parte da paisagem. Eles se acostumaram a mim, a ver-me lá. Como sabiam que era psicóloga, me pediam para intervir em determinadas situações. Então, eu podia ver que todos estavam saturados, o número de pessoas disponíveis era insuficiente diante das demandas de atenção. Não havia realmente uma função de atenção, escuta, diálogo, encontro. Tive a oportunidade de observar porque estive em escolas rurais, mas o Distrito Federal é denso, com coexistência pesada, traslados demorados, interações violentas.

Então, de volta à escola, percebi que a relação entre garotos e garotas se caracteriza por atrações e rejeições, em meio a um ambiente carregado de violência por múltiplas situações sociais. O grupo também está envolvido, porque quando existem relações de atração, que ocorrem naturalmente, devido aos hormônios implicados nesta etapa de experimentação (ou como se deseje justificar), o grupo também se apropria dessas interações, as discute, as controla, toma partido. Então, não é só a relação entre um menino e uma menina, mas também o que os dois lados, a parte feminina e a parte masculina do grupo, estão demandando de cada um deles.

Os parceiros não interagem em solidão. Estão presentes os amigos, os rivais, estão todos lá para intervir e, facilmente, uma situação da atração torna-se um conflito. Agora, quando as meninas no estudo falam, se você observar, confrontam-se mais, destacando rivalidades, competições pela busca de centralidade no grupo. A questão da popularidade e a posição de influência no grupo tornam-se relevantes na adolescência, para as mulheres. Neste sentido, encontro nuances quanto à construção de identidades masculinas e femininas. As meninas estão tomando formas violentas, não só com os meninos, mas entre elas também.

Ilana Lemos de Paiva –  Também temos visto uma mudança no comportamento das meninas no contexto brasileiro. Acho que as meninas estão se tornando mais protagonistas da violência, são mais agressivas quando se envolvem em atos criminosos. Como você avalia essas diferenças de gênero com relação aos atos de violência em que meninos e meninas estão envolvidos, e as maneiras de expressar essa violência?

Juana María Guadalupe Mejía-HernándezOs meninos parecem mais estáveis. Como parte do trabalho, escrevi um diário - estilo Malinowski – a fim de discriminar o que me movia, registrando observações, o trabalho, e também escrevi a ex-colegas da escola para ponderar minhas percepções. Baseada nisso, posso dizer-lhe que observo mais estabilidade nos meninos, que, embora continuem em busca de afirmar sua masculinidade e joguem pesado, também têm a capacidade de resolver as diferenças de forma, ainda que superficial, mais equânime. É como dizer: “Afinal de contas, todos nós somos homens, somos cupinchas, estamos aqui, não gosto de você, mas a briga não tem que ir além”.

Mas as meninas mantêm rancores, não esquecem a posição competitiva. Elas estão também na busca da equidade com base no discurso que temos lhes transmitido nestes últimos trinta anos: as mulheres podem, elas conseguem seu objetivo. Esses discursos estão resultando em posições mais duras nesta busca da equidade. Há predisposição das meninas a comportamentos de desrespeito entre elas e, com relação aos meninos, notei que eles tentam respeitar a expressão “a mulher não pode ser machucada, à mulher não se lhe pega, você não pode ferir a mulher”. Eles se sentem confusos diante delas. No meu livro narro como as meninas tocavam os meninos e eles queriam evitar o conflito, ao mesmo tempo que não queriam perder a atenção que despertavam enquanto homens, porque estão interessados nestas questões, como as meninas.

Acho que é necessário um trabalho mais claro com os adolescentes, dada a necessidade de ajudá-los a fazer as coisas reflexivamente, relacionar-se com contenção. Se bem que o grupo ofereça certa contenção – há uma regulação do grupo e individual –, é preciso pensar o que vamos fazer nessas instituições, porque os garotos estão dizendo que os adultos estão ausentes.

Ilana Lemos de Paiva –  Nas escolas brasileiras, percebemos que a indisciplina é frequentemente considerada pelos professores como violência escolar. Isso interfere nas estratégias de resolução de conflitos nas escolas. Você poderia me dizer um pouco, nesse contexto de ausência de educadores, como eles lidam com os problemas de indisciplina e violência? Ou seja, segundo seu critério, qual a diferença entre indisciplina e violência e qual a posição dos educadores mexicanos diante deste problema?

Juana María Guadalupe Mejía-HernándezVou responder a partir de registros que não estão no livro, nem na tese, pois há muitos mais registros do que puderam ser trabalhados na tese. Estamos falando de escolas públicas. Professores de escolas públicas, no México, têm condições muito pobres, sofrem uma grande instabilidade no emprego, uma vez que os contratos iniciais são apenas de três meses. Por sua vez, o setor sindical, que é o maior, faz manobras antidemocráticas, bem como o grupo de oposição, e os líderes locais dos grupos sindicais pedem relações sexuais em troca da concessão de uma vaga ou vendem vagas, por exemplo. Então, o início na vida laboral para os professores marca a entrada no trabalho precário. Já estabelecidos no contexto do emprego, ainda persistem os conflitos. Também percebemos que se estabelecem vínculos afetivos entre os professores que, muitas vezes, geram confusão e as crianças estão assistindo absolutamente tudo. Se você toma medicação psiquiátrica, se você tem problemas com o seu marido, se você tem rivalidade com um professor, os alunos sabem tudo. Na minha prática, tenho encontrado professores que, em vez de dar a aula, falam sobre suas vidas, contando seus problemas, desabafando-se com os meninos, usando a sala de aula como um espaço de alívio. Descobri também professores com plena consciência e lutando contra toda a adversidade das condições de trabalho. Após uma avaliação, cheguei à conclusão de que em quatro ou cinco anos de trabalho docente, em quatro escolas observadas, os professores começam a ficar doentes ou abandonar a atividade.

Fisicamente, eles se esgotam muito rápido, docentes muito jovens, com formação universitária. Os professores sofrem burn out, estão cansados, estão saturados. Eles têm que dar conta de múltiplas tarefas e exigências administrativas que os saturam, com métodos que levam a uma convivência tensa. Eles competem, atacam-se uns aos outros, formam grupos e os grupos colidem. Então, eles vêm para a sala de aula cansados.

Posso relatar o caso de uma segunda série que teve apenas 50% das horas de aulas durante o ano letivo, porque no restante do tempo os professores faltaram. As causas são várias: por conta do comitê sindical, de doenças, de licenças. Alguns dos estudantes os ultrapassam na altura. Vi um professor de espanhol com altura inferior a 1,50 m. As crianças não queriam ouvi-lo, o acossavam. A maioria dos professores que vi perdeu o controle do grupo, a noção de como controlar o grupo. Eles estão saturados com muitos cursos. O treinamento que recebem aqui é chamado “multiplicação” e consiste que um representante de cada escola seja treinado e repasse o curso aos companheiros. Esta não é uma transmissão confiável e falta experiência por parte dos professores, que estão sozinhos. O professor está isolado.

Por sua vez, os pais cada vez vigiam mais, demandam mais, ameaçam os professores com a perda do emprego: “se você não fizer isso, se não faz o outro, eu sou do partido, eu sou um amigo de tal autoridade municipal, tal autoridade do governo, ou tal autoridade educativa”, e ameaçam sua fonte de trabalho, sua classe. Portanto, há uma perda de confiança das figuras de autoridade.

O pai pede à escola para fazer o que ele não pode fazer. A escola demanda das mães que estejam presentes na sala de aula para regular a conduta indisciplinada de seu filho ou filha. Em um contexto como este, tenho gravado entrevistas em que meninos – aqui chamados de “filhos de chave” – também estão sozinhos: “De manhã vou levá-lo para a escola e quando você sair, você vai para casa, pega a sua chave, entra, sua comida está pronta. Se não estiver pronta, prepare o que você puder e eu venho à noite”. Em outro nível econômico, o problema se repete: “você vai ser atendido por outros, não por mim”. Então, existem experiências de isolamento, solidão, falta de convivência e isso afeta tanto aos professores quanto a uma grande parte dos alunos. Eu não digo que os pais têm a intenção de abandonar, eles trazem seus próprios fardos. Assim, tudo se converte em um processo de sobrecarga, diante do qual preferimos esconder a situação, em vez de integrar-nos, dialogar, buscar soluções e ajudar-nos mutuamente.

Então, é uma situação complexa. Se em vez de procurar o culpado, procurássemos entender como estamos falhando em nossa responsabilidade, como nós desempenhamos o papel que dizemos assumir, então poderíamos agir no lugar de simular. Mas neste país, neste momento, a base da mentalidade popular é a frase “salve-se quem puder”. Vivemos com muitas ameaças, há muitos riscos, então as pessoas preferem simular e “salve-se quem puder”. Tenho observado a deterioração da qualidade do ensino com a entrada da tecnologia, porque ela é utilizada para subtrair responsabilidade do docente, que não aprofunda, não assume conhecimentos e aprende para transmitir o que comunica o vídeo. Todos estes elementos estão agindo de forma complexa e ações que sejam mais globais são necessárias. Se estamos falando apenas de violência, sem assumir uma perspectiva de análise mais complexa, sem fazer um diagnóstico sócio-cultural e psicológico, sem revisar as práticas de ensino, voltaremos para o mesmo ponto: comprar um pacote educacional tecnológico, e dizer “esta é uma maravilha tecnológica que vai resolver todos os nossos problemas”. Não é assim!

Ilana Lemos de Paiva –  Mudando de tema, a partir de sua experiência, como a mídia tem tratado as manifestações de violência juvenil? No Brasil, temos um problema muito grande com isso, existem muitos estereótipos, muitos estigmas sobre os temas juventude e violência.

Juana María Guadalupe Mejía-HernándezNesse sentido, o Brasil e o México são muito semelhantes, não só em termos de biodiversidade, mas também culturalmente. Eu quero falar sobre duas questões. Sua pergunta refere-se à violência social. Mas vamos falar sobre a violência social e escolar. Os meios de comunicação divulgam mais a violência social quando há manifestações. Grupos de manifestações juvenis arruínam lojas, deixam sua marca nas cidades, violam monumentos nacionais, destroem prédios antigos. Em seguida, duas versões aparecem. Através dos meios de comunicação a mais transmitida é: “Estes jovens são anarquistas guiados por tal líder”. Mas as redes sociais, especialmente as contas do Facebook e do Twitter, geram um movimento que luta contra este estigma. Temos tido desde o início do ano, uma série de manifestações contra o aumento dos preços da gasolina – “gasolinazo” – ou contra a ascensão de Trump ao poder, fatos que estão criando uma crise comercial e migratória. Estes protestos, seguidos por pessoas através do Facebook e redes sociais, revelam como governos locais e estaduais disfarçam seus policiais como civis e os introduzem entre os manifestantes para desencadear, gerar e promover a violência. Muitas vezes não são os jovens, mas são classificados da mesma maneira. Sabemos também que existiram no passado, e acho que existem ainda, grupos de jovens de bairros pobres que estão sob o controle de líderes de partidos políticos e que também têm contribuído para gerar violência. Estes jovens – não sei se eles o fazem por convicções –, é sabido que o fazem por dinheiro, e estamos diante de outro tipo de violência social.

Outro elemento é o acesso dos jovens aos espaços de tráfico de drogas. Eles são captados desde muito jovens, 12 e 13 anos, abandonando o ensino básico e o secundário. Eles são captados não só para consumo, mas também para o tráfico, a venda. Há crianças do ensino médio que trabalham e ganham dinheiro da droga, porque recebem uma pequena motocicleta para observar e avisar no caso de riscos, como vigias. Então, em situações de pobreza este “emprego” significa uma mudança de status. Assim, eles melhoram suas condições de vida e vão até dizer: “posso viver pouco, mas quero viver bem”.

Agora, sobre a questão da violência escolar. Dentro da escola há drogas, consumo, tráfico. Mas os envolvidos não são apenas os meninos. Recentemente, a violência escolar está recebendo atenção e sendo preocupação dos governos. Não sei se vocês no Brasil souberam da notícia de que aqui já aconteceu o primeiro caso de um aluno de uma escola secundária privada que atirou nos seus colegas e no seu professor. Isso foi em Monterrey, há duas semanas e meia.

Não há mais dados, porque as autoridades têm sido muito cuidadosas na divulgação. Acho que é o governo do estado quem está dando ordens para investigar em detalhes e para que, em primeiro lugar, sejam protegidas as famílias e os pais do menino. Felizmente todos os feridos sobreviveram. Houve quem postou um vídeo do acontecimento nas redes sociais, que foi removido em seguida. Mas o fato é que este é um episódio sórdido, aparentemente abrupto. Então, seguindo o caso, grupos de pesquisadores com quem tenho relações expressam: “Bom, não bastam pesquisas, devemos intervir. Ouvi-los”. Minha coorientadora de tese, Dra. Claudia Saucedo, desenvolveu intervenções em escolas secundárias, a partir da Universidade Autônoma do México na Escola Nacional de Iztacala, ao longo de 20 anos. Mas é uma das poucas a defender que o acesso aos adolescentes precisa ser contínuo e, em um processo relacionado de intervenção e pesquisa.

Ilana Lemos de Paiva –  Você me diz que fez consultoria por vários anos. Então, como você acha que pesquisas feitas na universidade com relação às questões de juventude e violência podem contribuir para a construção de políticas públicas para a juventude?

Juana María Guadalupe Mejía-HernándezUma grande carga de responsabilidade está em nós. Nós não só podemos contribuir, mas devemos fazê-lo. Mas o que devemos fazer? Temos que encontrar formas para nos escutar. Vamos começar com a construção dos resultados de nossa pesquisa. Temos que torná-los acessíveis. Como é dito que a universidade deve estabelecer ligações com a indústria e a produção, a universidade também deve estabelecer ligações com os setores onde desenvolve suas pesquisas. Não podemos chegar à escola, observar e dizer adeus.

As escolas estão inquietas e precisam apoio, contribuições. Mas o problema é a falta de recursos. O pesquisador, por vezes, não pode fornecer este serviço porque não há recursos materiais e financeiros para oferecer. As escolas estão superlotadas. As autoridades querem – isto aqui no México é muito evidente – soluções rápidas. Eles querem que em doze sessões de terapia a mulher supere a violência, que em doze sessões de terapia o homem deixe de ser machista ou que em uma ou duas conversas com os alunos – a maioria das conversas são sobre drogas e violência e duram 45 minutos – efeitos sejam alcançados. Portanto, temos que avaliar as estratégias com que queremos entrar nas instituições. Precisamos elaborar conclusões mais claras, mais acessíveis, recomendações reais, não só para atender os requisitos acadêmicos.

Acho que o compromisso é com nós mesmos, com nossa profissão, com as entidades que nos permitem entrar, objetivamente. Construir instrumentos acessíveis à cultura escolar e à mentalidade do professor. Eu acho que se trata de intervir nas mentalidades. Tudo isso tem uma origem em nossas tendências, nas nossas formas de organizarmo-nos, de julgarmo-nos.

Uma das minhas leitoras de tese, Cecilia Fierro, argumentou que existem diferentes níveis de profundidade. Às vezes, as escolas querem intervenções superficiais para poder dizer que tiveram uma conversa, que fizeram algo. Às vezes, eles querem mudar uma coisa em especial e solicitam uma intervenção específica. Em outras ocasiões eles querem questionar a cultura escolar. Então, isso implica em um trabalho aprofundado, de mudança, conscientização e adoção de novas formas de relacionamento, atividades educacionais diferentes. É uma mudança cultural. Neste sentido, acho que podemos conseguir algo. Eu sou daquelas que dizem: “Se a escola quer, então, nós nos comprometemos”. Mas muitas escolas estão limitadas.

Ilana Lemos de Paiva –  Eu gostaria que você falasse um pouco sobre um assunto muito importante para nós, as políticas de encarceramento da juventude. Quais você acha que são as diferenças e semelhanças entre o México e o Brasil a respeito? Quais as consequências para a juventude da redução da idade penal e das políticas criminais e de encarceramento cada vez mais duras para os jovens?

Juana María Guadalupe Mejía-HernándezAqui no México a idade penal baixou para 16 anos há muito tempo. Um fator importante é que na grande maioria das prisões mexicanas não há nenhum programa de reabilitação real. Assim, a entrada na prisão é o ingresso à universidade do crime. Importantes lições são dadas a um garoto muito novo através do convívio com adultos já experientes, então, a entrada na prisão favorece a pertença às redes criminosas. Acho que a injustiça principal é que “o jovem pode ir para a cadeia, mas não pode votar”, uma vez que a idade para votar é 18. Então você pode ir para a cadeia, mas você não tem direitos como cidadão.

Ilana Lemos de Paiva –  No Brasil, é o contrário: o jovem pode votar aos 16 anos, mas só pode ser preso com 18 anos.

Juana María Guadalupe Mejía-HernándezExistem as chamadas comunidades para adolescentes, os antigos reformatórios, que também têm muitos problemas. Eles implementam modelos de reabilitação e ficam superlotados facilmente. São poucas, aqui perto de casa há uma em que houve motins e sempre há consumo de drogas. Em um desses motins vi que usaram bombas molotov. Existem, então, esses recursos. Aqui no México, quando o jovem entra no sistema penitenciário ou na comunidade para adolescentes, ele se vê confrontado com o fato de que não existem programas de reabilitação verdadeiros.

Há pequenas luzes provenientes da sociedade civil, que levou alguns pequenos programas a algumas prisões. Estes são sustidos com os  próprios recursos, programas de formação para o trabalho. Recentemente, como resultado da iniciativa privada de um ator e de uma organização da sociedade civil, foram construídos jardins verticais na periferia da cidade. As malhas destes jardins verticais foram feitas por mulheres da cadeia de Santa Marta. Estes programas envolvem uma análise abrangente de vários fatores. Estou falando de uma ação que interveio em um espaço da cidade de forma mais ecológica, olhou para os presos e focalizou o aspecto ecológico. Eu acredito que precisamos dessa visão. Agora, de volta à questão da idade penal, estamos diante de um problema de Direitos Humanos, porque muitas violações de direitos ocorrem, principalmente porque a reabilitação não acontece e não cumpre a sua função.

Ilana Lemos de Paiva –  Há uma questão que acho que seria interessante pensar: as redes de pesquisa na América Latina. Temos realidades muito próximas culturalmente, politicamente e, especialmente, em torno da juventude, que sofre o desemprego, a violência, etc. Como nós, pesquisadores da América Latina, podemos aprender juntos? Como trabalhar em conjunto na procura de soluções para estes problemas?

Juana María Guadalupe Mejía-HernándezO Sistema Nacional de Pesquisadores que existe aqui me parece injusto. Ele está mais centrado na quantidade de artigos que você produz em um ano do que se você escreveu um livro, por exemplo. Mas isso não é o problema. Você me pergunta o que fazermos. Bem, em primeiro lugar, estarmos comprometidos com o nosso papel. Formarmo-nos de forma efetiva para cumpri-lo, ter a capacidade de abertura, diálogo e humildade.

Muitas vezes nos formamos com modelos que não são nossos. Pesquisadores latino-americanos são formados como se fossem americanos, estadunidenses. Como se tivéssemos todos os recursos disponíveis nos Estados Unidos. Parece incoerente, inconsistente e incongruente. O mesmo acontece com a linguagem, a exigência é “Você tem que aprender inglês”, porque esta é a linguagem do conhecimento, não português, nem francês, mas apenas inglês. Assim, a busca do conhecimento não pode ser realizada em outro idioma, não podemos aspirar a um diálogo com outras culturas além. Bom, vamos encontrar uma verdadeira multidisciplinariedade e interdisciplinaridade, com base no compromisso, vamos compartilhar, questionarmo-nos com respeito. Por que não podemos também promover o diálogo entre as humanas e exatas? Como outras ciências podem contribuir? Um economista pode contribuir em torno da questão da violência? Você sabe que existem físicos que contribuem para a física social?

Então, temos que rever, recriar, sei lá. Mas espero que os nossos coordenadores não se sintam ameaçados. Como vamos colocar estas questões de forma amigável, com respeito, com cuidado? Não pode faltar impulso, entusiasmo e amor pelo nosso trabalho.

Ilana Lemos de Paiva –  Lembrei-me neste momento dos estudantes desaparecidos no México, um evento com impacto global. Então me pergunto, o que você acha que a juventude pode fazer para resistir? Quais os modos de resistência?

Juana María Guadalupe Mejía-HernándezConfio mais no impacto local das ações dos jovens. Acho que um grupo de uma minoria ativa em um ambiente local pode repercutir mais – sobre as crianças que percebem o que estão fazendo, sobre os adultos que julgam –, do que uma grande revolução da juventude. Eu não sei ao certo o que aconteceu com os jovens desaparecidos, é muito obscuro o que aconteceu. Posso dizer que não são os únicos desaparecidos. Neste país tem havido muitos desaparecimentos de jovens que estavam em lutas significativas. Um dos desaparecimentos mais crus foi o de 68 no México. Este evento foi maior do que Ayotzinapa, não foram 43, foram centenas. Então, você pode ir registrando eventos onde os jovens são atores, porque é uma fase da vida em que questionam tudo, têm que encontrar-se a si mesmos, definir sua identidade individual dentro de um contexto social e também assumir uma identidade coletiva. Este cruzamento entre identidade individual e coletiva tem que ser uma dobradiça muito saudável e bem oleada. Então, acho que o retorno aos espaços locais, com as minorias, grupos bem estabelecidos, que têm um propósito, pode contribuir para a sociedade e para a experiência pessoal dos indivíduos. Porque durante a adolescência e a juventude você pode se misturar com pessoas de outros grupos sociais e culturas e, depois, voltar ao seu mundo com outras aprendizagens, com a experiência de ouvir diferentes de você, o que faz com que você aprenda a ser tolerante e a compreender outras mentalidades, a ser mais aberto, refletir e ser crítico.

Então o que podemos fazer com esta juventude? Incentivá-la a participar. Qualquer forma de participação que permite uma colaboração coletiva é uma participação política, porque o poder é compartilhado, ele é exercido no contexto próximo. Duvido que, neste momento, a participação dos jovens em partidos políticos seja uma das melhores formas de participação política. O jovem pode participar na luta para ter alguma influência sobre um movimento ambiental local em defesa de uma área ou para criar instalações desportivas, por exemplo. Tudo o que o leve a procurar melhores condições de vida.

Por exemplo, conheci um rapaz de 29 anos, agrônomo, líder de sua comunidade, que conhece o trabalho no campo, trabalha no campo com suas próprias mãos, sabe dialogar com pessoas de sua idade e mais velhos, não se formou na idade esperada de 22 anos, mas tem trabalhado a terra, conhece seu povo, conversa com as pessoas. Ao longo de sua etapa de juventude, que agora termina, este jovem mestiço tem sido um exemplo de alguém que interpelou sua realidade, trabalhou e disse: “Eu preciso ser útil para a minha comunidade”, não por causa de status, mas pela busca do conhecimento verdadeiro para aplicá-lo em função do progresso da sua comunidade de origem. Ele propõe que o poder compartilhado seja útil na luta pela soberania alimentar, contra a poluição dos rios, do ar.

Empolga-me a ideia de que os movimentos da juventude nestes cenários locais consigam integrar-se com pessoas em outras fases da vida. Eles vão deixar de ser jovem, algum dia. Já foram crianças e agora são jovens que estão questionando tudo. Vamos aproveitar a energia da juventude, da adolescência, deste lugar social onde é questionado o status quo, ela pode servir para aprender sobre todas as fases da vida.

Recentemente, discutindo em sala de aula, uma estudante pergunta: “Bom, e o que é ser adulto?”. Eu disse: “Freud disse que é amar e trabalhar. Ser casado e ter um trabalho estável”. A estudante disse que sim, mas isso era antes, agora também tem que estar ciente. Não é suficiente trabalhar, ter parceiro. O parceiro pode mudar, também o emprego. Mas a consciência não, quando ela acordar você não a pode calar. Então, acho que iria neste sentido, fomentando a tomada de consciência através das experiências, das ações. Às vezes agir te leva a uma melhor tomada de consciência do que a teoria. Alguém conta para você uma questão teórica, você vai para casa e continua a viver a sua vida, você vai repetir a teoria como quem repete uma música ouvida no rádio, sem entender. É melhor abrir espaços de experiência, de trabalho coletivo, de trabalho conjunto em ambientes locais, solidário e realizado reflexivamente, ganhando poder, poder em conhecimento, em termos de relações, em termos de impacto social, na tomada de decisões.

Ilana Lemos de Paiva –  Agradeço muito sua contribuição tão especial para a Revista DESidades em nome de toda a equipe editorial.


Data de recebimento: 26/01/2017
Data de aceite: 14/02/2017


I Ilana Lemos de Paiva: Doutora em Psicologia Social, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Brasil. Coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH) e do Observatório da População infanto-juvenil em Contextos de Violência (OBIJUV) ambos na UFRN. E-mail: ilanapaiva@hotmail.com

II Juana María Guadalupe Mejía Hernández: Psicóloga e Doutora em Ciências com especialização em Investigações Educativas, professora do Mestrado em Educação e Psicologia da Universidad Tecnológica de México (UNITEC). Professora dos Mestrados de Educação Ambiental e Inovação Educacional do Centro Universitário ORT, México. E-mail: juanismh@gmail.com

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