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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades vol.15  Rio de Janeiro Apr./June 2017

 

ESPAÇO ABERTO

 

A escola precisa conversar com a cidade

 

La escuela necesita conversar con la ciudad

 

 

 

Entrevista de Paula UglioneI com Giselle Azevedo ArteiroII

I Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil.

II Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, PROARQ, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil.

 


RESUMO

A arquitetura escolar deve ser compreendida como elemento auxiliar na formação da aprendizagem e do conhecimento, pois a escola não é apenas o prédio que abriga os sujeitos envolvidos na ação educativa, mas é, por si, um espaço com funcionalidades educativas. A ressignificação da escola, um tema tão discutido no atual contexto educacional, ganha outra dimensão quando incorpora outras dimensões de análise e solução dos conflitos. Um outro olhar sobre o equipamento arquitetônico, o prédio, o pátio, a circulação de ar, os espaços de convivência, dimensões que podem nos ajudar a pensar a escola e, principalmente, a integração da escola com o espaço e as pessoas em seu redor, com a cidade e seus múltiplos territórios.

Palavras-chave: arquitetura escolar, território educativo, pátio escolar, qualidade da educação.

RESUMEN

La arquitectura escolar debe ser comprendida como elemento auxiliar en la formación del aprendizaje y del conocimiento, pues la escuela no es apenas el edificio que abriga a los sujetos implicados en la acción educativa, sino es, de por sí, un espacio con funcionalidades educativas. La resignificación de la escuela, un tema tan discutido en el actual contexto educacional, gana otra dimensión cuando incorpora otras dimensiones de análisis y solución de conflictos. Una mirada diferente sobre el equipamiento arquitectónico, el edificio, el patio, la circulación del aire, los espacios, la convivencia, dimensiones que nos pueden ayudar a pensar la escuela y, principalmente, la integración de la escuela con el espacio y las personas alrededor, con la ciudad y sus múltiples territorios.

Palabras clave: arquitectura escolar, territorio educativo, patio escolar, calidad de la educación.

 


Giselle Arteiro - Na verdade, iniciei este tema no mestrado, aqui no PROARQ (Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro). Antigamente, no mestrado, você não entrava com um tema específico. Você fazia a prova e começava a cursar a pós-graduação e só depois fazia o projeto. Eu não possuía nenhuma bagagem relacionada à temática da arquitetura escolar, educação. Da mesma forma, nunca tinha feito projetos de escolas. Assim, se você me perguntar se essa influência foi por uma atividade profissional, eu diria que não, porque, até então, eu não tinha nenhuma experiência nessa área de infância e ambientes educacionais.

Mas acho que sou impregnada por esse tema. Sou de uma família de professores. Minha mãe era professora primária. Meu irmão é professor e agora está se aposentando. Então, de certa maneira esse tema sempre esteve presente, me influenciando. Estudei em escola pública, quando criança. Tenho a marca dessa imagem de escola: aquela escola muito bacana, muito grande, muito antiga, com ambientes amplos e grande pé-direito. Ela era adaptada. Mas a imagem da precariedade também marcou. Era uma escola muito boa em termos de conforto ambiental, muito arborizada, com um terreno enorme, no qual a gente brincava bastante. Mas, ao mesmo tempo, era uma escola com um banheiro horroroso, depredado, todo quebrado, sem manutenção. Essas imagens fazem parte da minha memória afetiva. Fui afetada pela vivência da minha família como educadores e por esses espaços na escola pública.

No mestrado, decidi pensar a escola. Pensar o ambiente escolar. Pensar como a criança se relaciona com esse espaço. No PROARQ só existiam duas áreas de concentração. Fui para a área do conforto ambiental. Na minha dissertação de mestrado, tracei um panorama do ambiente escolar e da arquitetura. Peguei alguns exemplos tipológicos mais importantes da arquitetura escolar do Rio de Janeiro desde o império, as escolas do Imperador, passei pelo ecletismo, pelo neocolonial até chegar às escolas padronizadas das últimas décadas. Fiz uma varredura destes exemplos e avaliei o conforto térmico neste panorama. Naquela época, eu ainda não trabalhava com a Avaliação Pós-Ocupação (APO)1; mas, intuitivamente, acabei fazendo uma APO. Neste processo, visitei minha antiga escola, que virou Centro Integrado de Educação Pública (CIEP). Enfim, no mestrado, a pesquisa girou em torno desta perspectiva do conforto.

Nos tempos de doutorado, esta pós também não existia no PROARQ. Então, fui para o Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE), que é uma unidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fui para Engenharia de Produção. Mesmo com essas mudanças, eu queria continuar trabalhando com a escola. O Leopoldo Bastos, que foi meu orientador, abraçou o tema. Desta forma, continuei trabalhando com escola, mas passei a pensar a escola como um artefato sociocultural e sua relação com a proposta pedagógica. Meu foco no doutorado foi a materialização da proposta pedagógica na arquitetura. Como o espaço dava conta de representar essa proposta pedagógica? Primeiramente, fiquei muito frustrada, porque percebi que as escolas não tinham clareza na proposta pedagógica. Tudo era uma grande mistura. Quando se pedia o projeto político-pedagógico da escola, dava para perceber que eles misturavam muitas tendências, várias linhas pedagógicas juntas. Enfim, como produto final, cheguei num modelo conceitual de abordagem interacionista relacionando o ambiente com o desenvolvimento da criança.

No doutorado, conheci a professora Vera Vasconcellos, uma psicóloga que trabalha com educação infantil, e a gente começou a ver que tinha muita coisa em comum, muitas afinidades temáticas. Assim, iniciamos o Grupo Ambiente e Educação (GAE). Isso aconteceu mais ou menos em 2003. Defendi a tese em 2002, e o GAE foi fundado em 2003. Qual era a ideia do Grupo Ambiente e Educação? A ideia era que fosse um grupo interdisciplinar, porque ele agregava pesquisadores de áreas distintas. Éramos eu e o prof. Paulo Afonso Rheingantz, arquitetos; Leopoldo Bastos, da sustentabilidade; Vera Vasconcellos, psicóloga, e Lígia Aquino, pedagoga. Essas duas, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), faziam parte de um grupo muito forte que discutia a educação infantil. Tempos depois, em 2004,  fomos chamados para fazer a consultoria daquele documento de referência do MEC para as escolas públicas de todo o brasil.

Paula Uglione - O que caracteriza esse campo que aproxima a arquitetura da educação?

Giselle Arteiro - O mais importante sobre esse assunto é a transdisciplinaridade. É muito importante se pensar que são diversas áreas que precisam conversar, tendo um objetivo em comum. Elas não são fechadas em si mesmas. São áreas que precisam transbordar o limite de cada campo disciplinar, para que possam ter uma interlocução. Nós não podemos pensar na escola sem pensar na educação. O que acontece lá dentro? Muitas vezes o que a gente percebe, quando falamos de arquitetura escolar, é que os arquitetos e planejadores não sabem o que acontece dentro do ambiente escolar. Eles têm um modelo de escola, mas é aquele modelo impregnado em nosso imaginário, um modelo de 100 anos atrás. Esse modelo obsoleto é composto por sala de aula, quadro negro, carteiras em fila. Mas o que acontece ali dentro? Qual é a dinâmica em jogo?

Para mim, o que caracteriza a importância dessa área e desse tema é justamente a possibilidade de uma interlocução dos saberes. Uma conversa entre esses campos disciplinares, para pensar a complexidade entre arquitetura e educação. A grande questão que eu percebo hoje é que a escola não dá mais conta de lidar com suas demandas. Esse modelo tradicional de escola não está dando conta desses jovens e crianças de hoje. O perfil dos jovens e crianças mudou muito. Então, a escola precisa se ressignificar. A escola precisa ser reinventada!

Como fazer isso? Que conversa é essa entre arquitetura e educação? Como isso de fato acontece? O que a gente percebe é que não acontece! Os campos disciplinares continuam muito distantes e estanques nessa problemática. Na prática, os arquitetos continuam atendendo a demanda - principalmente na escola pública de apenas produzir escolas para atender a um número crescente de crianças. Paralelamente, os educadores não percebem a dimensão da arquitetura como tendo um valor pedagógico. Essa é uma questão importante. Por isso, acredito que uma interlocução entre esses campos do saber com certeza vai enriquecer as duas áreas, tanto a arquitetura quanto a docência e a pedagogia. Essa conversa tem que existir para que a gente possa pensar o espaço, o ambiente, para que a escola possa realmente ser apropriada pelos usuários, pelas crianças. Que escola é essa? Qual é a cara da escola que a gente quer no século 21?

Paula Uglione - Como esse campo da arquitetura-educação tem pensado as inquietações atuais sobre educação das crianças e sobre o funcionamento das escolas?

Giselle Arteiro - Tem pensado muito pouco. Nós sabemos que tem muita pesquisa acadêmica na área. Muita gente bacana fazendo pesquisa. Esse tema está realmente sendo refletido por muitos grupos como o nosso: um grupo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), o grupo da Dóris Kowaltowski, em Campinas, o grupo da Gleice Elali, no Rio Grande do Norte. Tem muita gente pensando o campo da arquitetura-educação sobre a educação e as crianças. Mas o que acontece na prática é que os modelos continuam padronizados. As escolas são “escolas-padrão”. Sai gestão, entra a gestão, sai governo e entra governo e continuo falando de escola pública. Essa escola é padronizada e normalizada. É só ver o último exemplo que temos no nosso cotidiano: as “Escolas do Amanhã”, na gestão do prefeito Eduardo Paes. Qual é a conversa que essa escola tem com aquele lugar em que ela está inserida? Qual a conversa com aquele contexto? Não tem! A escola continua fechada em si mesma. Na maioria esmagadora das vezes, a escola funciona muito como bandeira eleitoreira e os principais atores, que são as crianças e adolescentes, não são contemplados.

O que os jovens e crianças querem? Qual é a escola que eles querem? Em todas as visitas que a gente faz, percebemos que a escola não é deles. A escola é controlada. Os banheiros são trancados. O pátio não é usado em sua plenitude e é muito cerceado. Então, vemos que a escola ainda hoje é como Foucault descreve: é vigiar e punir. A escola é feita e pensada com aquele controle e disciplina típicos dos séculos passados. Isso tem muito a ver com a gestão. É claro que o espaço contribui, mas tem muito a ver com a gestão. As cabeças precisam ser ampliadas. Esse olhar sobre a vinculação entre arquitetura e educação precisa ser ampliado.

Na pergunta anterior, você falou sobre a relação entre arquitetura e educação. Uma das funções dessa união é ampliar esse olhar. A escola não está dando mais conta das demandas dos estudantes. O jovem e as crianças de hoje estão mexendo o tempo todo na internet, os dispositivos tecnológicos estão aí, acontecendo ininterruptamente. Então, ficar com uma criança o tempo todo dentro da sala de aula está anacrônico. Eu, sinceramente, não acredito mais nisso!

Nós percebemos que a escola continua conteudista. Para meu filho adolescente, por exemplo, a escola só fala em ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio). É um massacre: conteúdo, conteúdo, conteúdo! Dentro de sala, o tempo todo, o garoto não sai para nada. Podemos perceber que as escolas continuam fechadas, se cercando, muradas, não conversam com nada do que acontece em volta. Então, é um modelo padronizado, que serve para cá, que serve para lá: ao mesmo tempo que serve para o subúrbio, serve para zona oeste. Mas de quem é essa escola? Que contexto é esse presente nos arredores da escola? Tudo se perde, porque a construção das escolas se transforma numa enorme propaganda. Ao invés de se pensar a função, a relação e a complexidade entre escola-ambiente-cidade, essa temática torna-se uma grande bandeira eleitoreira. O foco que se dá na construção das escolas refere-se a uma incessante produção em massa. Eles dizem: nessa gestão se fizeram muitas escolas, as “Escolas do Amanhã”. Então vem o prefeito fazer propaganda numa clara exaltação de caráter assistencialista. Soma-se a isso um esvaziamento da temática, dizendo que a criança na escola está bem alimentada, que passa o dia inteiro ali dentro.

Paula Uglione - Também tem a questão da educação integral?

Giselle Arteiro - Sim! Eu acho a ideia de educação integral sensacional. O grande problema que eu vejo é que, se você for olhar os documentos do “Mais Educação”, a coisa se complica. O que está no papel é muito bacana: a formação integral do ser humano. O que interessa, de fato, não é o contraturno escolar, em que a criança fica o dia inteiro na escola. O que supostamente interessa é a formação integral, pensar no ser humano holístico, que tem a vivência de contexto, com uma bagagem sócio-histórica. Mas na prática não acontece isso! Os jovens e crianças que estão na escola vivem uma realidade fragmentada, porque não têm vivência da cidade, eles quase não saem. O formato é sempre o mesmo, a escola é a mesma, é igual.

Paula Uglione - Na sua experiência como pesquisadora nas escolas brasileiras, de que maneira o espaço físico das escolas é visto como um espaço pedagógico importante?

Giselle Arteiro - Quando fazemos perguntas para as professoras, para as educadoras, percebemos que o espaço ainda é entendido meramente como abrigo.  Então o que seria uma sala de aula boa? Para elas seriam aquelas mesmas salas com formatos de 100 anos atrás: lousa, quadro-negro, crianças em fila. Ela vai dizer que uma boa sala de aula é aquela bem espaçosa, bem iluminada, arejada. Ok! Mas isso seria bom para qualquer espaço arquitetônico cumprir a sua função de bem-estar. Um espaço que tenha condições de habitabilidade. O que elas não percebem ainda é o quanto a configuração e as características dos espaços da escola podem ser ainda mais pedagógicos. Por exemplo, o pátio.

A escola não está dando conta de pensar outras funções para o pátio. Como a integração do interior com o exterior pode ser feita? De que maneira esses espaços podem educar também? Não é simplesmente dar o conforto básico para o usuário. Esse espaço não pode ser pedagógico também? As crianças não podem sair e ter aula no pátio? A vegetação que existe no pátio não pode educar também? As formas geométricas da escola não podem educar também? As cores não podem educar? Os arranjos espaciais não podem ser educativos? É necessário pensar todo espaço como um espaço educador. Não vejo que seja culpa das educadoras! Mas também vejo que é importante acontecer um despertar do olhar sobre a qualidade ambiental na escola. Por isso eu comentei que a interlocução entre os saberes é tão importante. Os projetos participativos são muito importantes. Fazer as pessoas falarem. O nosso papel como arquiteto é ser um mediador, conhecer os educadores, as crianças, as atividades e fazer o despertar desse olhar acontecer. É necessário ser intermediário nessas relações e criar espaços melhores.

Paula Uglione - Na sua avaliação, qual a qualidade ambiental das escolas, de modo geral no Brasil?

Giselle Arteiro - É muito ruim, justamente por conta dessa padronização dos ambientes. Vou te dar um exemplo. Recentemente surgiram as creches do Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil (Proinfância). São creches públicas financiadas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do governo federal. São cinco modelos de creches que estão sendo implantadas em regiões de todo Brasil. Nós fizemos uma experiência em uma creche de Erechim, Rio Grande do Sul, um lugar bem frio. Essa creche tem o mesmo padrão construtivo da creche construída no Rio de Janeiro: piso frio, as circulações não são cobertas, as crianças quando precisam fazer o percurso da creche sentem frio. Então, a questão do projeto padronizado interfere muito no cotidiano das crianças, nas condições ambientais. Quando eu falo em condições ambientais não estou falando apenas do conforto em si, mas também da caracterização técnica-construtiva, a relação com toda a população. Que lugar é aquele? Que comunidade é aquela que está circundando a escola? Qual é a conversa que existe entre o modelo proposto e a comunidade? Geralmente não existe nenhuma inter-relação. Assim, a população não se apropria do espaço porque muitas vezes o espaço não conversa com eles. Então, essa qualidade ambiental padronizada precisa ser questionada.

Aqui no Rio de Janeiro existe um projeto de climatização das escolas. Em termos de conforto, as coisas acontecem. Mas, enfim, é suficiente? E a luz? Será que o ar condicionado precisará ficar o tempo todo ligado? Às vezes bastaria uma implantação um pouquinho diferente e você teria condições melhores de iluminação, de ventilação cruzada, de insolação. Então, de maneira geral, a qualidade ambiental é bem precária. Sem falar na falta de manutenção desses projetos. Muitas vezes se utilizam materiais mais frágeis, em que a manutenção não é adequada. As coisas vão se deteriorando e o improviso vai ganhando espaço. Frequentemente, acontece a troca de materiais originais por materiais alternativos e não se leva em consideração o fato de que a escola tem uma intensidade de uso muito alta. Isso acaba atrapalhando a durabilidade dos espaços.

Paula Uglione - Quais seriam os efeitos da qualidade ambiental sobre os jovens e crianças?

Giselle Arteiro - Seriam muitos. Ela vai influenciar na atenção, na irritabilidade, em diversos fatores surpreendentes. Até porque muitas vezes uma sala foi dimensionada para 30 alunos e a gente sabe que a demanda é muito maior. Numa sala com 40 alunos, projetada para 30, é claro que a circulação de ar é afetada. Já vi situações inacreditáveis em que a professora não tinha espaço para circular entre as carteiras. Alunos e professores sem espaço para guardar material, sem espaço para armazenamento. Muitas crianças dentro de uma sala de aula com a qualidade acústica defasada.

Muitas vezes as professoras e alguns arquitetos acham que a janela precisa ser alta porque criança não pode olhar o lado de fora. Pensam assim por acreditarem que esse estímulo tiraria sua atenção na aula. Mas é um grande equívoco! Não é o poder ou não olhar para fora que vai manter a criança atenta na sala de aula. Uma boa relação entre interior e exterior promove o aumento da qualidade ambiental. Uma sala de aula em que você tem a possibilidade de abrir as portas e janelas e ampliar o contato com o mundo externo é sensacional. Torna-se sensacional porque fica muito melhor do que uma sala de aula fechada.  Nós precisamos desmistificar o modelo da criança fechada dentro da sala de aula.  Se a escola é pequena, se não tem espaço suficiente para dar conta daquela demanda de atendimento que ela está pensando em proporcionar, vamos desenclausurar! Por que não há espaço? Por que não usar o pátio? Por que não usar a sala multiuso? Por que não sair da escola? Por que não abrir os portões da escola e fazer esse contato com o exterior? Por que não fazer da cidade um espaço também educativo?

Paula Uglione - Naquele documento em que vocês foram chamados para estabelecer padrões sobre a qualidade ambiental, houve a participação de diversos atores sociais?

Giselle Arteiro - Isso. Nós fomos chamados para fazer uma consultoria na viabilização do documento “Padrões de Infra-Estrutura para Instituições de Educação Infantil e Parâmetros de Qualidade para a Educação Infantil”. A ideia era oferecer padrões de infraestrutura para as escolas de educação infantil do Brasil inteiro. Esse documento era de nível nacional.

Nós fizemos uma primeira versão desse documento, muito focada nos conceitos em que o GAE acreditava. Nesses conceitos entendemos que o espaço é pedagógico, inclusivo, um espaço ecológico. Então, as questões do meio ambiente, da acessibilidade, da inclusão e da própria educação foram levadas em consideração na caracterização desses lugares. O espaço tem que educar! Isso era muito forte para a gente. Esse documento preliminar foi divulgado e foi entregue em secretarias das várias regiões do Brasil. Por isso ele contempla o Brasil todo. Dessa forma, professores, gestores, secretários de educação, todos leram os documentos e opinaram. É claro que nós sabemos que essas informações muitas vezes não chegam a todos os níveis. Mas, enfim, no modelo ideal pensamos que ele chegaria a todas as pessoas. Então esse documento foi discutido e pensado em vários seminários para discutir a educação infantil. Foram feitos seminários regionais em Belém, Belo Horizonte etc. Nós fomos de Norte a Sul, Porto Alegre, São Paulo, Goiânia. No grupo, éramos cinco ou seis e nos dividimos para cumprir essa tarefa. O documento era discutido na parte da manhã e em seguida fazíamos as correções de acordo com o que foi pensado e com as contribuições que foram discutidas em cada grupo de trabalho. Depois disso tudo nós fizemos a versão final.

Assim, o documento foi criado, distribuído e disponibilizado no portal do MEC.  Inicialmente, era sobre padrões e depois tornou-se parâmetros. Por isso não tem o caráter de um documento de legislação, é um documento de recomendações e parâmetros. É um trabalho de longo alcance e continua disponível. Agora, nessas discussões a gente percebeu que a grande dificuldade disso tudo era como colocar em prática. Quem vai fiscalizar? Eram muitas questões levantadas nos grupos de trabalho que se direcionavam a esse problema. Principalmente nas escolas situadas mais no interior do Brasil. Se você me perguntar se esse documento foi implementado de uma forma abrangente, não vou saber te responder. Provavelmente, não! Por questões financeiras ou por questões de logística. Quem vai fiscalizar? Quem vai garantir que isso seja implementado?

Mas foi uma experiência riquíssima. Até mesmo em questões de terminologia tivemos que refinar o nosso “arquitetês”, para que tudo se fizesse compreendido e esclarecido. Isso porque muitos não eram da área da arquitetura. O diálogo dos campos do saber foi muito rico.

Paula Uglione - Você considera que os espaços e equipamentos urbanos da cidade podem ser integrados e participantes no cotidiano escolar?

Giselle Arteiro - Meu projeto de pesquisa atual trabalha com o território educativo2, ficando, assim, muito em cima da proposta do “Mais Educação”. Nessa perspectiva, pensa-se que, a partir do momento que se tem educação integral, é também necessário se pensar que essa escola pode ter uma conversa com a cidade. Abrir a porta da escola para que as crianças possam ter experiência da cidade. Se a escola não está dando conta mais, com seus próprios espaços, de educar as crianças, por que não fazer com que a cidade seja educadora, por meio não só de visitas a lugares que seriam interessantes, como museus e parques, mas também a própria cidade ser educadora. Porque não ter aula numa praça? Qual é o percurso que a criança faz? Porque esse percurso não pode ser interessante para auxiliar na sua aprendizagem? Isso é difícil de fazer porque dá trabalho, depende muito da força de vontade. Da vontade política, vontade dos gestores.

É necessário que exista uma intersetorialidade para que essa relação entre escola e cidade aconteça. Não tem como fazer esse trabalho se não tiver o auxílio de outros setores, além da Secretaria de Educação. Esse trabalho precisa de parcerias para funcionar muito bem e por isso precisa do diálogo entre os diversos setores (esportes, cultura). Como fazer essa intersetorialidade? Pode-se fazer, por exemplo, oficinas em que as crianças divulguem suas experiências para todos os atores e setores da sociedade. Assim se constrói uma via de mão dupla entre a escola e o bairro. É a escola na cidade e a cidade na escola! É necessário que exista esse contato com a cidade para que as crianças possam enriquecer o seu desenvolvimento, a sua formação, entender o seu papel como cidadãos. A proposta exige que se veja a criança não como um cidadão em formação, mas como um cidadão pleno! O cidadão que tem direito de falar. A criança não é uma pessoinha em desenvolvimento que não tem fala. Vamos fazer a criança falar. Qual é o papel dela? Como ela vê a cidade? Como a cidade pode melhorar? Como a criança se apropria dos espaços? Entender os espaços de que ela tem medo, os espaços em que ela não se sente segura.

Um grande passo nessa proposta é reconhecer que existem os “territórios do medo”. Como você trabalha com uma escola que está situada em um lugar de guerra? Esse tipo de intenção funciona bem em cidades menores. Agora, como fazer esse projeto ganhar potencialidade numa cidade como o Rio de Janeiro? Por isso não adianta a escola sozinha tentar dar conta. Ela não pode brigar com aquele contexto, com aquele entorno. A escola precisa ser reconhecida como equipamento social. Nós precisamos tentar entender quais são as lideranças de cada lugar. Quais são os jogos de força em questão. Não adianta só os professores terem vontade, os diretores gostarem da ideia, porque os pais não vão aceitar tirar os filhos da escola. Eles vão dizer: “Deus me livre! Eu coloco meus filhos na escola para eles ficarem protegidos!” Aí a gente fica pensando: será que eles estão protegidos? Aqui no Rio, recentemente, teve uma menina que morreu dentro da escola! Que proteção é essa? A gente pode tomar uma bala perdida em qualquer lugar! Será que a solução seria blindar as escolas, como queria o prefeito? Eu acredito que não é por aí! Nós precisamos pensar que de alguma maneira impõe-se uma questão social fortee o fato de que a arquitetura sozinha não dá conta. Não é a arquitetura que vai responder a tudo. É um diálogo que precisa envolver todos os atores.

Será que adianta cercar a escola e fazer um muro alto? Isso é muito complicado. Eu já vi situações de escola pública em que nós fazíamos avaliação e encontramos esse estado de coisas. Escola com o muro alto, uma escola toda cercada. Mas basta ficarmos atentos para ver um menino subir no muro e ficar pegando coisas lá de fora. Quando eles querem pegar, quando eles querem fazer alguma coisa, isso vai acontecer! De fato, não adianta o muro alto. O muro acaba sendo simbólico, na verdade. Esse território do medo está em toda parte e não adianta se proteger colocando grades, cadeados e muros altos. Não é assim que a escola vai dar conta de manter a violência fora dela. O que é o equipamento escola dentro do bairro? Os moradores e as lideranças reconhecem esse equipamento com o social? Não adianta a escola se fechar totalmente e dar as costas para comunidade. Ela faz parte daquela comunidade. É necessário que exista conversa da escola com o bairro.

Paula Uglione - Como você avalia a significância que o pátio tem nas escolas brasileiras?

Giselle Arteiro - Total. É muito grande. Eu acho que o pátio é tão emblemático... se você pede para as crianças desenharem sua escola, elas vão desenhar o pátio. Isso acontece em quase 100% dos casos. São muito poucos os que falam e desenham a biblioteca, a sala de aula. A maioria esmagadora desenha o pátio! O pátio tem tudo. O pátio é um ambiente restaurador. A criança sai e experimenta a maior alegria. Quando a criança sai para o recreio, o intervalo, é uma explosão de alegria. O pátio representa a liberdade. No pátio não tem controle. As crianças, dentro da sala, estão com seus corpos controlados. Quando saem para o pátio, experimentam uma liberdade total. Acredito que o pátio tem toda essa poesia, essa significação da liberdade. Mas por que ele é utilizado só na hora do recreio e nas aulas de educação física? É muito difícil você ver alguma questão pedagógica, alguma aula acontecendo no pátio3. Os professores não utilizam ele porque acreditam que as crianças vão ficar dispersas do lado de fora ou não vão prestar atenção.

Paula Uglione - O que os professores dizem do pátio?

Giselle Arteiro - O pátio está vinculado ao lazer e não ao lado educador. Claro que há pesquisas sobre isso, já trabalhamos com professores que dão aulas na educação fundamental. Podemos ver algo diferente quando se trata de outros profissionais e lugares, principalmente da área de pós-graduação, tentando alguma coisa diferente. Mas quando nós vamos para o ensino fundamental, a gente percebe que os professores não utilizam o pátio. Assim, o pátio fica associado ao recreio e acaba tornando-se o momento de as crianças exercitarem a sua liberdade, seu momento de paz e tranquilidade. O pátio acontece somente na hora do recreio, nas aulas de educação física, e só. Uma vez  eu visitei uma escola em que as salas de aula eram pequenas, mas algumas tinham portas que davam para uma área livre, e uma vez eu vi um professor abrir a porta da sala, levar os alunos para fora e ensinar matemática utilizando a brincadeira da amarelinha. Ele estava ensinando as crianças a fazer contas enquanto elas brincavam. Eu achei isso bárbaro! O espaço livre funcionando como espaço pedagógico.

Pois bem, o MEC parece que listou algumas escolas tidas como inovadoras. São escolas públicas inovadoras e não porque tenham o espaço diferente, com formato diferente, mas porque tem iniciativas que fazem a educação ser inovadora. Provavelmente, se você der uma olhada nessas experiências, vai encontrar coisas nesse sentido de ter um uso pedagógico dos espaços livres. Provavelmente elas estarão utilizando mais a cidade, fazendo percursos pelo bairro. Mas, de maneira geral, o que a gente percebe em nossas pesquisas com o pátio e os professores é que eles não veem o pátio como pedagógico. O pátio é visto como o momento da brincadeira, do lazer e ponto final.

Paula Uglione - Queria que você falasse sobre a importância da arquitetura e a contribuição dela para pesquisas sobre os espaços das crianças e dos jovens na atualidade.

Giselle Arteiro - Para as crianças e os jovens de hoje essa escola padronizada não basta. Quando pensamos na arquitetura precisamos pensar em alguma forma de relacionar esse espaço entre escola e a cidade. Precisamos viabilizar essa interlocução de uma forma mais efetiva para que a escola possa se reinventar. A escola precisa ser ressignificada! A arquitetura é fundamental para isso, para fazer valer o seu caráter educador e funcionar não apenas como um abrigo. Assim, a arquitetura precisa ir além de dar apenas as condições básicas e dignas de proteção, ir além e educar. É esse olhar que eu busco despertar nas minhas pesquisas, com os professores, os alunos, os gestores etc. Mostrar como é que a arquitetura também educa. Mas de que maneira ela pode educar?

Outro dia eu vi no Facebook uma publicação muito interessante, mostrando alguns detalhes de um espaço e discutindo como ele poderia ser usado como elemento de educação. A arquitetura é o lugar que pode atuar como um elemento auxiliar na formação da aprendizagem e do conhecimento. Por exemplo, uma porta abrindo na sala de aula, acaba por formar um ângulo matemático. Isso pode ser usado para ensinar matemática, trigonometria. Pode existir uma tabela periódica nas escadas. Assim, trazer essa funcionalidade do espaço de uma forma educadora. Fazer com que o espaço eduque, utilizar o espaço como ferramenta educadora. Pensando fora da escola, uma praça pode ser educadora. Você pode usar, por exemplo, uma construção, pensando no aprendizado da sustentabilidade. Podemos pensar na eficiência energética, na energia solar, a questão da coleta de água e outras  questões ecológicas. Será que esse espaço foi pensado de uma forma sustentável? Isso tudo pode trazer o enriquecimento da formação dessa criança e desse jovem.

Paula Uglione - E no sentido mais amplo? Você acha que a arquitetura tem contribuído para os estudos de modo geral sobre a infância e a juventude?

Giselle Arteiro - Eu acho que sim. Mas a conversa ainda é muito pouco integrada. As pesquisas ainda estão muito dentro da academia. Como é que você divulga todas as nossas pesquisas sobre arquitetura, sobre o espaço escolar, sobre adequação do espaço à educação? Como é que isso está sendo divulgado? Como é que isso vai para a vida prática? Fica muito dentro da vida acadêmica, dentro dos programas de pós-graduação, isso de maneira geral. Agora, é claro que se você pensar na arquitetura de maneira geral, ela educa.

Quando você vai falar de história, falando sobre o Teatro Municipal, que tem uma arquitetura eclética, você dá exemplo sobre os grandes monumentos, exemplos de boa arquitetura. É claro que isso educa. Ajuda a aprender história, por meio desses monumentos. Arquitetura é testemunho da história. Ela faz parte da formação na história da humanidade. Ela contribui porque são testemunhos fortes, tem um caráter de permanência que certamente educa. Ela desperta o olhar, sensibiliza o olhar. Quando saímos pelo Rio Antigo, por exemplo, podemos ver que ele representa determinados momentos históricos, marcados na sua arquitetura. Hoje em dia podemos citar o Museu do Amanhã. Como eram esses espaços antes? O que foi feito nesses locais que antes eram degradados? E hoje, como ele é? Olha a intervenção que aconteceu! Olha como ganhamos espaço, como ganhamos imagens, uma nova vista! Como o usuário agora se apropria daqueles espaços? Eles são melhores utilizados agora ou antes? Então, a arquitetura educa através do seu próprio testemunho, da sua própria permanência espaço-temporal.

Paula Uglione - Obrigada por nossa conversa, é um tema fascinante e muito importante no atual contexto da educação no Brasil.

Giselle Arteiro - Obrigada!

Data de recebimento: 14/03/2017
Data de aceite: 15/05/2017


1 APO é uma metodologia multidisciplinar de avaliação da qualidade ambiental dos espaços, após determinado tempo de uso, focalizando tanto o olhar do pesquisador quanto a opinião dos usuários, suas necessidades e expectativas relacionadas ao espaço vivenciado por eles.

2 Pesquisa integrada, intitulada “Do espaço escolar ao território educativo: a conversa da escolar de educação integral com a cidade do Rio de Janeiro”. Projeto desenvolvido em parceria com o grupo SEL-RJ, coordenado pela professora Vera Tângari e com o ProLUGAR, coordenado pelo professor Paulo Afonso Reingantz, grupos de pesquisa vinculados ao PROARQ-FAU-UFRJ.

3 “O lugar do pátio no sistema de espaços livres: uso, forma, apropriação”. Pesquisa integrada desenvolvida em parceria com os grupos SEL-RJ e ProLugar (PROARQ-FAU-UFRJ)


I Paula Uglione, Psicóloga. Doutora em Arquitetura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia dessa universidade. Pesquisadora nas áreas de Psicologia e Estudos Urbanos. E-mail: desvioambiental@gmail.com

II Giselle Azevedo Arteiro, Doutora em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Professora Associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do PROARQ da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do Grupo Ambiente-Educação (GAE), registrado no Diretório Nacional dos Grupos de Pesquisa CNPq. E-mail: gisellearteiro@globo.com

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