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Desidades

versión On-line ISSN 2318-9282

Desidades vol.16  Rio de Janeiro jul./set. 2017

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Moralidade e a exploração do trabalho infantil doméstico: as visões de ex-trabalhadoras infantis e patroas

 

Moralidad y explotación del trabajo infantil doméstico: las visiones de extrabajadoras infantiles y patronas

   

 

Danila Gentil Rodriguez CalI

I Faculdade de Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia, Universidade Federal do Pará, Belém/PA, Brasil.

 

 


RESUMO

Busca-se desvelar e analisar elementos que compõem o pano de fundo moral que alimenta o trabalho infantil. Como referencial teórico, parte-se da concepção de moralidade de Charles Taylor e das proposições de Jessé de Souza sobre pobreza e desigualdade no Brasil. Utilizou-se grupo focal como procedimento de coleta de dados. Foram realizados cinco grupos com patroas e ex-trabalhadoras infantis domésticas. Os resultados apontam para posicionamentos a respeito do que seria o “bom” e o “justo” para meninas trabalhadoras infantis domésticas e apresentam fissuras no ideal contemporâneo de dignidade universal, em especial ao consenso de que criança tem que estudar e brincar.

Palavras-chave: trabalho infantil doméstico, grupo focal, exploração.


RESUMEN

Se busca revelar y analizar los elementos que componen el trasfondo moral que sustenta el trabajo infantil. Como referencial teórico, se parte de la concepción de moralidad de Charles Taylor y de las proposiciones de Jessé de Souza sobre pobreza y desigualdad en Brasil. Se utilizó el grupo focal como procedimiento de recogida de datos. Fueron realizados cinco grupos con patronas y extrabajadoras infantiles domésticas. Los resultados apuntan para posicionamientos en relación con lo que sería lo “bueno” y “lo justo” para las niñas trabajadoras infantiles domésticas y presentan las fisuras del ideal contemporáneo de dignidad universal, en especial, respecto al consenso de que el niño tiene que estudiar y jugar.

Palabras-clave: trabajo infantil doméstico, grupo focal, explotación.


 

 

Introdução

O trabalho infantil doméstico (TID), apesar de enfrentado por diversas organizações sociais nacionais e internacionais há mais de 17 anos (Cal, 2016; Vivarta, 2003; OIT, 2006), ainda é aceito por boa parte da sociedade brasileira como um caminho natural para crianças e adolescentes pobres. É possível encontrar anúncios em jornais e em redes sociais da internet solicitando meninas para atividades domésticas. Diário do Pará, Belém, 2 de maio de 2015: Casal evangélico "precisa adotar uma menina de 12 a 18 anos que resida, para cuidar de uma bebê de 1 ano que possa morar e estudar, ele empresário e ela também empresária” (SIC). Facebook, São José do Rio Preto, grupo de anúncios, agosto de 2017: “Eu tenho dois netos ando meio cansada e minha filha mãe deles trabalha das 14 as 23 horas eu procura uma mocinha bem humilde para me ajudar em troca dou estudo ajuda em tudo como se fosse filha” (SIC)1.

A partir desse contexto, buscamos neste artigo desvelar e analisar as bases morais que alimentam o trabalho infantil doméstico, fundamentadas em concepções do que seria o bom para crianças e adolescentes pobres. Dessa proposta decorrem importantes desafios teóricos e metodológicos que norteiam nossas preocupações: como definir o que seria o bom para crianças e adolescentes envolvidos com o trabalho infantil doméstico? Como ouvir pessoas em situação de vulnerabilidade social sobre a própria realidade, de modo a não reforçar a opressão? E, ainda, como analisar essas falas?

Não pretendemos dar conta dessas questões por completo neste trabalho2. Nosso movimento analítico é distinto. A partir da observação das conversas entre ex-trabalhadoras infantis domésticas, por um lado, e patroas, do outro, pretendemos aprimorar esses questionamentos.

Como horizonte teórico, abordaremos inicialmente as discussões sobre moralidade, de Charles Taylor (2000; 2005), e sobre a naturalização social da desigualdade brasileira, tal como apresentada por Jessé de Souza (2009). Partirmos da ideia de que existe um pano de fundo moral ao qual recorremos para expressar nossos posicionamentos e respostas na interação com outros sujeitos (Taylor, 2005). Esse ponto de partida nos permite afirmar que há consensos compartilhados intersubjetivamente e atualizados na relação entre os indivíduos (Taylor, 2005; Souza, 2009).

Ao analisarmos, neste estudo, as falas de mulheres diretamente envolvidas com esse tipo de trabalho infantil, esperamos ser capazes de revelar alguns dos pontos que tecem esses entendimentos partilhados, para compreender o processo pelo qual o trabalho infantil doméstico, embora questionado por organizações sociais, governos e mídia, reproduz-se diariamente (Cal, 2016).

Focaremos nossa investigação no contexto paraense, onde diversas organizações sociais atuaram no enfrentamento dessa prática. Para isso, desenvolveram, entre 2001 e 2009, o Programa de Enfrentamento do Trabalho Infantil Doméstico (Petid), executado pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca-Emaús)3. Entre os objetivos do Petid estavam: sensibilizar organizações governamentais e não governamentais, operadores de políticas públicas, conselheiros de direitos e tutelares e a comunidade em geral para a problemática do trabalho doméstico de crianças e adolescentes e intervir junto aos meios de comunicação para atuarem no enfrentamento do TID (Cedeca-Emaús, 2002).

Notas sobre moralidade, desigualdade e trabalho infantil doméstico

Partimos da ideia mais alargada de moralidade, como defendida por Charles Taylor (2005), que abarca não apenas questões sobre o dever, o correto e o justo, mas também a respeito do bem viver e de tudo aquilo que faz nossa vida ser significativa, ou, nos termos do autor, “digna de ser vivida”. Segundo Taylor, existe um pano de fundo onde residem nossas intuições morais. É parte dele que mobilizamos para defender nossas respostas como corretas. Nesse sentido, haveria, portanto, padrões morais largamente aceitos e não questionados publicamente. Taylor cita, por exemplo, o imperativo da preocupação com a vida e com o bem-estar de todos e a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos (Taylor, 2005). Nesses casos, destaca o autor, é preciso se questionar como essas normas são vividas pelas pessoas, como se encarnam nas suas experiências.

Fortemente inspirado em Taylor, Souza (2009) defende que há “consensos inarticulados” que atuariam na reprodução das diferenças sociais e funcionariam como ligações invisíveis que orientam nosso comportamento e que dizem dos papéis e das possibilidades de cada indivíduo. A partir dessa ideia, o autor argumenta que as causas da desigualdade social no Brasil, normalmente questionada apenas pelo viés econômico, são difíceis de serem observadas a “olho nu”. Uma das razões apontadas pelo autor é que a noção de justiça social estaria vinculada à meritocracia, o que nos faz considerar privilégios como sendo justos e legítimos (Souza, 2009).

De acordo com Souza (2009), existe uma crença generalizada na igualdade de oportunidades, de tal sorte que os bens ou a situação adquirida seriam resultado do mérito e do esforço de cada um. Por consequência, o modo naturalizado pelo qual a desigualdade é percebida no país acabaria por produzir, de um lado, sujeitos que gozam de capitais econômicos e/ou culturais, e, de outro, “indivíduos sem nenhum valor”, abandonados social e politicamente, que constituiriam a “ralé” (Souza, 2009). Nesse grupo estariam incluídas as trabalhadoras domésticas.

Souza defende a tese de que a constituição e reprodução de uma classe social não dizem respeito apenas a aspectos econômicos, mas, sobretudo, a uma herança afetiva familiar e a “valores imateriais” (aquilo que aprendemos no dia a dia com pais e/ou responsáveis e também no cotidiano de instituições como a escola). Argumenta ainda que há uma dimensão afetiva na cultura de classe e que o mérito “supostamente individual” é fruto de pré-condições sociais. Assim, a “ralé” seria uma classe de despossuídos que aprenderam tacitamente que seu lugar e suas possibilidades eram distintos de sujeitos de outras classes. Haveria, então, um “consenso inarticulado” segundo o qual seria normal a divisão da sociedade “em gente e subgente”.

Ele é obviamente um consenso “não admitido”, que nenhum brasileiro de classe média jamais confessaria partilhar, e é isso que permite sua eficácia como consenso real, que produz cotidianamente a vida social e política brasileira como ela é, sem que ninguém se sinta responsabilizado por isso (Souza, 2009, p. 422).

É uma formulação dessa natureza que nos permite pensar em uma “moralidade da exploração”, tal como esboçado no título deste artigo. No entanto, apesar de concordarmos com a maior parte das proposições de Souza, a tese que ele apresenta nos parece até certo ponto sufocante e limitante em relação à capacidade de agência e percepção dos sujeitos4. Consideramos válido destacar que entendemos moralidade como base para atuação dos sujeitos no mundo (Taylor, 2005; Mattos, 2006) e também como objeto de construção e modificações empreitadas por esses próprios sujeitos. Destarte, as lutas sociais são também espaço para o desenvolvimento social e moral, desde que, alerta Mattos (2006), haja o desvelamento dos preconceitos “camuflados por um código de boas maneiras”. Assim como Mattos, consideramos que o aprendizado moral é possível e necessário, porém não ocorrerá se as bases morais que sustentam processos de exploração não forem questionadas.

Essas noções nos parecem bastante pertinentes para análise do caso do trabalho infantil doméstico. Consideramos legítimo afirmar que existe certo consenso na sociedade brasileira de que lugar de criança é na escola e que meninos e meninas devem brincar ao invés de trabalhar. Essa é uma conquista, em grande parte, dos movimentos sociais em favor da infância nas últimas décadas e da divulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, lei 8.069/90, que determina prioridade absoluta a crianças e adolescentes. No entanto, quando especificamos “quem” é a criança sobre a qual se fala, essa noção tende a ficar problemática porque os entendimentos divergem sobre o que é “melhor” ou “possível” para ela. E, normalmente, uma das saídas apontadas é o trabalho infantil doméstico, apesar de ser considerado uma das piores formas de trabalho infantil e estar formalmente proibido no país para menores de 18 anos de idade (Brasil, 2008).

Torna-se necessário esclarecer que existem duas situações em relação ao TID: (a) quando ele acontece dentro da própria casa da família da criança e do adolescente trabalhador e (b) quando o trabalho é exercido na casa de outra família. As duas possibilidades, de acordo com as organizações que lutam pelos direitos das crianças, são problemáticas já que “o trabalho para a família pode exigir muito da criança, obrigando-a a trabalhar muitas horas e impedindo-a de frequentar a escola, dificultando o exercício pleno de seus direitos” (Sabóia, 2000, p. 5). De modo geral, existe um esforço das organizações que enfrentam o TID de diferenciar a tarefa doméstica, vista como educativa e considerada como colaboração ao trabalho doméstico realizado por um adulto, e o TID propriamente quando são as crianças as únicas responsáveis por serviços da casa, situação em que a criança fica encarregada de cuidar dos irmãos, lavar e limpar a casa, por exemplo, enquanto os pais saem para trabalhar.

Procedimentos metodológicos

Realizamos cinco grupos focais5, com uma média de cinco participantes, num total de 24 mulheres entrevistadas. Segundo Barbour e Kitzinger (2001), esses são números adequados para pesquisas na área social porque permitem um aprofundamento dos pontos de vista dos participantes. As mulheres ouvidas tinham entre 20 e 59 anos e os grupos foram organizados a partir da escolha por bairros com diferentes perfis socioeconômicos da cidade de Belém, capital do Pará (foram selecionados os bairros do Umarizal, de nível alto; Castanheira, nível médio; e Guamá, Tapanã e Benguí, nível baixo). Escolhemos convidar apenas mulheres, por entender que o TID é considerado, em geral, uma atividade feminina e que envolve as meninas trabalhadoras, as mães delas, que normalmente são quem incentiva o trabalho, e as patroas que as contratam. Nessa fase da pesquisa, ouvimos mulheres adultas com experiências relacionadas ao TID como patroas, como trabalhadoras infantis e ainda mulheres que foram trabalhadoras domésticas na infância e que na idade adulta tornaram-se patroas de meninas. Foram formados exclusivamente por patroas os grupos Castanheira, Umarizal e Guamá. Do grupo Benguí e do Tapanã, participaram ex-trabalhadoras e patroas.

Em relação à apresentação e ao tratamento das informações obtidas nos grupos, optamos por estabelecer as seguintes disposições: o nome das participantes foi substituído por pseudônimos, escolhidos por elas próprias e, ao final de cada trecho da discussão apresentado, indicaremos o nome/bairro do grupo, o tipo de público (patroas e mistos) e a data de sua realização.


O TID segundo patroas e trabalhadoras

Boa parte das discussões apresentadas nos grupos focais teve como foco o cuidado das patroas em relação à menina doméstica, principalmente nos momentos iniciais de conversa. Desde preocupações em tirá-las da pobreza – o trabalho, então, seria uma oportunidade de conquistar uma vida melhor – até em evitar que a adolescente estivesse sujeita a outros riscos como violência e prostituição.

De modo geral, as discussões geradas nos grupos focais reforçaram nossa ideia de que existe um consenso relativamente superficial na sociedade segundo o qual criança deve brincar e estudar e não trabalhar. Todas as participantes concordaram com esse tipo de afirmação, apesar de algumas usarem a mão de obra de meninas para os serviços domésticos. No entanto, esse consenso superficial é desestabilizado quando as participantes especificam os trabalhos que essas crianças e adolescentes desenvolviam nas suas casas.

Eva: Na minha casa eu só peguei criança para brincar com a minha filha, pra ser babá. Mas a babá na minha casa não lava roupa, não lava louça, não varria, nada. Me ajudava assim, brincava com a menina, sabe, tinha um turno que estudava e arrumava os brinquedos porque a criança era menor que ela. Tipo assim, a minha filha tinha uns 2 anos e a babá uns 11, 12. Aí arrumava o quarto, os brinquedos. “Fulana, pega lá aquela roupinha, sabe aquela que tá lá no armário? Pega lá pra gente dar banho e vestir ela”. Aí a gente ia, ela dava banho, me ajudava. Eu nunca peguei criança pra fazer trabalho pesado.

Dina: Eu também não.

Eva: A criança que foi lá pra casa era pra eu botar no jeito...

Virgínia: Brincar com as crianças...

(...)

Virgínia: Como eu já tive essas duas meninas nessa faixa de 12, 13 anos... Era pra brincar, pra me acompanhar, é... Tá entendendo?

Dina: Eu tive várias. Eu tive cinco filhos, aí tu já viste. Eu usei muito [o trabalho de meninas], mas era assim, pra brincar, sem lavar roupa, sem nada. (Grupo Umarizal, patroas, 7 de agosto de 2006).

Nesse caso, atuar como babá não é considerado uma atividade que exige esforço e responsabilidade (“eu nunca peguei criança para pra fazer trabalho pesado”). Assim, as patroas não se reconhecem como alvo das campanhas contrárias ao TID promovidas pelo Petid6 na medida em que elas “não exploram” as crianças e adolescentes, apenas usam esse tipo de mão de obra para ajudar a “brincar” com os filhos. No entanto, são as meninas domésticas que precisam arrumar o quarto, os brinquedos, dar banho. Uma das participantes, a Eva, afirma também que as meninas que iam para a casa dela é para serem “botadas no jeito”. Isso quer dizer, “endireitadas”, preparadas de acordo com o gosto e o costume daquela família. As patroas, mesmo estando de acordo com a ideia de que criança deve brincar e estudar, quando se especifica sobre qual criança estamos falando (babás, domésticas), esse entendimento se desloca para a diferença entre “fazer uso” desse tipo de mão de obra e “explorar”.

No grupo Castanheira, uma das participantes questionou a respeito de qual alternativa é melhor para as crianças e adolescentes: o trabalho doméstico ou a prostituição.

Nara: (...) Eu já tive várias experiências, acho que mais de três, de trazer meninas do interior novas, como a Fabiana que tu conheceste [e faz referência à outra participante], coloquei pra estudar porque vivia assim numa miséria total (...)

Thaís: Era como uma filha, né?

Nara: Infelizmente, o que me entristeceu muito a ida dela, é que houve insistência da mãe do retorno dela, e ela acabou indo. E hoje, a Fabiana está na prostituição, mas hoje se ela tivesse ficado comigo aqui a possibilidade de ela vir a terminar o segundo grau e até mesmo vir a fazer uma faculdade, uma menina superinteligente (...) A Fabiana hoje é prostituta em posto de gasolina. Entendeu, então? (Grupo Castanheira, patroas, 19 de julho de 2006).

Em relação à exploração sexual, o TID é apresentado pela participante como um bom caminho, no qual ela teria alguma probabilidade de continuar a estudar. No entanto, a menina precisou voltar para a casa da família com objetivo de ajudar aos pais. Apesar de a patroa admitir a existência de problemas entre as duas, disse que a adolescente era considerada parte da família, opinião compartilhada, inclusive, com a outra participante (Thaís). Desse modo, o fato de a mãe ter mandado a menina voltar para casa é apresentado como uma injustiça, tanto com a patroa, que dedicou carinho, atenção e a colocou para estudar (“a gente tinha uma relação de carinho, de amizade...” - Nara), quanto com a própria menina que teve, na opinião das participantes do grupo, sua oportunidade de ter uma vida mais digna prejudicada.

Sobre esse assunto, mulheres que já foram trabalhadoras domésticas infantis apresentaram um ponto de vista semelhante ao das patroas.

Graça: (...) Olha, no caso eu vou pôr uma situação: se eu tivesse uma filha, que eu não tivesse condição de manter ela dentro da minha casa, dar tudo que ela precisa e tivesse outra família com mais condição do que eu, viesse na minha casa pedir a minha filha, pra mim não vê ela, porque quando uma menina começa a desabrochar, ser adolescente, ela precisa de um modess, né, ela precisa de vestir, ela precisa de calçar, ela precisa do luxo dela, e eu não tenho condição pra dá, e não vou botar ela pra trabalhar, o que é que ela vai fazer né, ela vai nas esquinas se prostituir pra ela arrumar o dinheiro dela né, então eu acho assim, se eu tivesse uma filha que eu não tivesse condição de manter ela, e tivesse uma amiga, ou então uma conhecida minha, de boa condição, pra manter a minha filha lá, eu mesma pegaria a minha filha “toma conta dela pra mim”, como isso já aconteceu comigo (...). (Grupo Benguí, misto, 25 de julho de 2006).

A partir de suas experiências de vida e de seus modos de ver o mundo, as participantes desse grupo concordam que existe a possibilidade da falsa promessa em casos de trabalho infantil doméstico, inclusive com o risco das crianças e dos adolescentes envolvidos sofrerem exploração e maus-tratos. Entretanto, Graça afirma que se a mãe confiar na futura patroa (“uma amiga ou então conhecida minha”), o trabalho doméstico pode ser um meio para que a adolescente possa comprar suas coisas, sem se envolver com a prostituição. Essa ponderação refere-se ainda a um discurso constante nos grupos focais: a diferença entre o TID e a exploração do trabalho de crianças e adolescentes.

A saída de casa para realizar serviços domésticos na residência de outra família é considerada ainda como uma alternativa não só à situação de pobreza, mas também à situação de maus-tratos e indiferença na qual crianças e adolescentes se encontravam nas casas de suas famílias. De acordo com Lamarão, Menezes e Ferreira (2000), o trabalho doméstico é considerado uma possibilidade mais concreta dessas meninas fugirem desse espaço familiar que não corresponde a suas expectativas idealizadas de afetividade, segurança e convivência pacífica.

Frente à possibilidade de intervenção do Estado e de organizações sociais para erradicar o TID, as patroas chegam a afirmar que seria uma calamidade, que traria muitos prejuízos a crianças e adolescentes pobres.

Ayla: Eu acho até que numa situação dessa onde vem a organização internacional do trabalho interferir, eu acho até que tira a oportunidade dela, da família delas. Parece que eles estão dizendo “nós vamos agora castigar aqueles que fazem isso. Vamos puni-los. Devem ser punidos”, né?

Nara: É, é isso que a gente tá entendendo “não faça porque senão tu agora vai ser punido”.

Ayla: Mas existe um outro lado que ninguém vê, é uma oportunidade que elas têm. É uma força que elas nos dão.

Marta: (...) se houver realmente uma lei que proíba essas meninas de até 16 anos trabalharem, vai ser muito ruim.

Nara: Eu acho que vai ser uma calamidade...

Elzira: Vai... Muitas delas não vão estudar, né?

Marta: Muitas delas vão perder a oportunidade de ter estudo... Agora, que tem que ter fiscalização, tem.

Ayla: É, pra combater a exploração (Grupo Castanheira, patroas, 19 de julho de 2006).

Consideramos que, com o ideal de igualdade e de dignidade universais, tal como preconiza a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e com a atuação dos movimentos sociais dos direitos da infância, há certa pressão moral que limita posicionamentos em público contrários aos direitos da criança. Isso é percebido pelas próprias participantes, quando elas afirmam que “estão dizendo ‘nós vamos agora castigar aqueles que fazem isso [TID]’” (Ayla) e ainda “a gente tá entendendo ‘não faça porque senão tu agora vai ser punido’” (Nara). No entanto, isso não é suficiente para que as participantes se manifestem contra o trabalho infantil doméstico. Ou ainda, pensem em não o incentivar, tanto que, durante a realização do grupo focal do bairro Castanheira, surgiu uma situação de negociação de uma menina doméstica.

Nara: Chegou agora uma menina do interior, ela tem 14 anos, do Maranhão, e eu gosto demais dela, e eu gostaria de levar pra cá, porque ela está no interior sem estudar, os pais dela trabalham na roça, me disseram que ela está magra... E eu gostaria de trazer ela pra cá, colocar no colégio, tudo... (...)

Marta: Tu vais trazer pra ti, é?

Nara: Não, eu tô pensando...

Marta: Minha nora tá doida atrás de uma pessoa pra ficar com uma menina dela... (Grupo Castanheira, patroas, 19 de julho de 2006).

Mesmo durante essa negociação é possível destacarmos o discurso do trabalho doméstico como uma oportunidade para estudar, para se alimentar melhor (“me disseram que ela está magra”). O fato de negociarem naquela circunstância quem ficaria com a adolescente evidencia o pano de fundo moral que naturaliza a prática de “contratar” meninas para os serviços domésticos.

As mulheres do grupo Tapanã trabalham como domésticas desde crianças, quando vieram do interior do Maranhão. Há, inclusive, uma delas que afirma arranjar emprego para as meninas que vêm do interior em busca de trabalho em Belém. Ela (Vera) tem conhecimento da legislação que proíbe o trabalho de adolescentes, mas acredita que a lei está se tornando uma violência para a própria menina. Isso porque, segundo a participante, o trabalho doméstico “protege” a criança ou a adolescente dos vícios da rua. Além disso, Vera destaca um argumento importante: “Os humildes nunca têm com quem deixar suas crianças”. Essa observação está de acordo com a atual tendência do trabalho doméstico de meninas, segundo a qual pessoas de baixo poder aquisitivo estão, cada vez mais, “empregando” crianças e adolescentes como babás. Muitas dessas patroas são empregadas domésticas que precisam de alguém para ficar com os filhos enquanto estão no trabalho (Sabóia, 2000; Rizzini; Fonseca, 2002). Daí resulta a importância de haver lugares onde as mulheres “humildes” possam deixar seus filhos para poderem ir ao trabalho e sustentar suas famílias. Esse argumento, apesar da sua relevância para o enfrentamento do trabalho infantil doméstico, não foi discutido em nenhum outro contexto comunicativo, nem nas campanhas de publicidade do Petid, nem no espaço de visibilidade da mídia (Cal, 2016).

Embora patroas e empregadas concordem sobre possibilidades de vantagem proporcionadas pela inserção de crianças e adolescentes no serviço doméstico, é nítida a diferença feita entre os filhos da patroa e a menina agregada. A desigualdade é claramente revelada e mostra a aceitação dessa prática de diferenciação.

Lurdes: Pois é, mas se esse casal7 pegasse essa criança e colocasse mesmo que não fosse na mesma escola, mas que fosse numa escola pública, já digamos que aí a escola fosse particular [dos filhos], mas fosse numa escola pública, olha tá aqui o teu material se arrume vá pra escola junto com os meninos segue o caminho deles, você segue o seu, eu tenho certeza que no futuro mais próximo essa criança veria essa família com outros olhos e ela teria um futuro melhor né?! (Grupo Guamá, patroas, 18 de agosto de 2006, grifos nossos).

O “bom” para a menina doméstica seria encontrar patrões solidários e que deem assistência a ela, ainda que seja distinta das outras crianças da casa, como podemos observar na fala acima em relação ao tipo de escola.

Em outro grupo, fica mais clara ainda a fissura no consenso superficial e politicamente correto de que o futuro de crianças e adolescentes é responsabilidade de todos quando elas discutem como se sentem quando encontram uma boa empregada.

Virgínia: Aí quando vai chega [a trabalhadora infantil doméstica] na faculdade (...) a gente é boazinha trata como pessoa da família, mas a gente inconscientemente com medo de perder... (...) a gente tolhe às vezes um passo maior daquela pessoa de ser mais alguma coisa.

Dina: Por egoísmo nosso.

(As outras participantes concordam).

Eva: Até inconscientemente.

Dina: Mas a gente começa a travar.

Virgínia: Não é nem prejudicar, você para, estanca, você...

Eva: Eu já fiz a minha parte. Por isso é que eu acho, filho é filho, e isso aí já faz parte da família, eu acho aí que é uma coisa muito forte porque filho é uma coisa e essas pessoas que chegam na casa da gente e que se dão bem é outra coisa, e as pessoas confundem (...). (Grupo Umarizal, patroas, 07 de agosto de 2006).

No início da discussão, a fala de Virgínia causou estranhamento nas outras participantes, que afirmaram que isso estava errado e o que a patroa deveria buscar era o crescimento social da empregada (“ajudá-la a vencer na vida”). Dessa forma, Virgínia assumiu o risco de se posicionar perante as demais e foi obrigada a justificar seu ponto de vista. Se em um primeiro momento as outras manifestantes se mostraram contrárias à sua fala, depois da discussão elas admitiram seu próprio egoísmo “até inconsciente” quando surge uma oportunidade melhor para uma “boa empregada”. Porém, Eva faz questão de se manifestar para diferenciar filho de “essas pessoas que chegam na casa da gente e que se dão bem”. O motivo disso é que uma mãe sempre torce pelo sucesso de seu filho e, no caso, elas estão admitindo que quando encontram uma menina boa de serviço preferem até, por vezes, que ela não busque outros tipos de trabalho ou de ascensão profissional.


Considerações Finais

Nosso objetivo com esse trabalho foi identificar e discutir elementos morais que sustentam o TID, a partir da análise de grupos focais com patroas e com ex-trabalhadoras infantis domésticas.

Nos grupos focais realizados, ficou bastante evidente a distinção que as patroas e ex-trabalhadoras infantis domésticas estabelecem entre o trabalho e a exploração desse trabalho, que corresponde aos maus-tratos, a longas jornadas ou ainda a serviços pesados. As participantes ressaltam que existem patroas boas, que tratam bem as adolescentes trabalhadoras domésticas e patroas que as maltratam. Então, o problema não está no trabalho propriamente, mas sim no abuso de poder da patroa (“o trabalho não sou contra, sim, sou contra pela exploração” – Vera), que humilha a menina e não a trata com dignidade.

Em situações extremas de violência e maus-tratos, como as apresentadas pelos jornais, é difícil para as patroas se reconhecerem como exploradoras ou como violadoras de direitos da criança e do adolescente. Ainda que tenham admitido, em outro diálogo, um egoísmo “até inconsciente” quando encontram uma boa empregada. As patroas de padrão econômico mais alto apresentaram também, o argumento de que “trazer menina” para o trabalho doméstico atualmente é desvantajoso porque elas não seriam mais tão “moldáveis” quanto antigamente.

Desse modo, os motivos que levaram essas pessoas a não contratarem mais crianças ou adolescentes, depois de muitos anos fazendo uso de meninas para os serviços domésticos, nada tem a ver com uma percepção mais ampla de direitos, apesar de todo o esforço das organizações sociais pelos direitos da criança e do adolescente em provocar essa reflexão. As ex-trabalhadoras, por sua vez, problematizaram elementos políticos e sociais que corroboram com o TID: a falta de uma política pública abrangente de creches e as precárias condições das famílias. Elas apresentam o TID como uma forma de resistência e de enfrentamento a situações de opressão estrutural. Ainda que mencionem o TID como causador de prejuízos e violências, elas individualizam a questão para afirmar que depende da conduta dos patrões e do interesse das meninas trabalhadoras. Quando se trata de enfrentar as violações de direitos de crianças e adolescentes, não podemos apenas considerar o que dizem as pessoas afetadas como resultantes de processos ideológicos de dominação, mas como chaves para compreensão do contexto social e simbólico no qual estão inseridas.

Em relação aos diálogos entre patroas e entre ex-trabalhadoras infantis domésticas, acreditamos que eles lançaram luz sobre as bases morais que mantêm a prática do TID e também mostraram fissuras no ideal contemporâneo de dignidade universal, em especial ao consenso de que criança tem que estudar e brincar.

Portanto, ainda que Taylor (2005) afirme que nem sempre os próprios sujeitos sejam as melhores fontes para percebermos as bases morais que fundamentam nossos posicionamentos, acreditamos que, nesse caso, a partir da metodologia dos grupos focais foi possível vislumbrar algo além dos “axiomas relacionados ao respeito universal”.


 

Referências

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Data de recebimento: 09/05/2017
Data de aceite: 14/08/2017

1 Em ambos os anúncios a grafia original foi preservada e, por isso, os erros de português.

2 Essa discussão está desenvolvida em Cal (2016).

3 Em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), com a Save The Children (Reino Unido) e outras instituições governamentais e não governamentais.

4 Essa é uma questão que discutimos em trabalhos anteriores (Ver Cal, 2016; Maia; Cal, 2012).

5 Tal como Morgan (1997), Barbour e Kitzinger (2001) e Marques e Rocha (2006), entendemos que os grupos focais são um espaço de interação, de conversação informal, onde há produção discursiva, e não como espaço de checagem de resultados de sondagens de opinião, como eles são normalmente vistos pela pesquisa mercadológica.

6 Os cartazes das campanhas do Petid foram exibidos durante a condução dos grupos, assim como matérias jornalísticas que discutiam o trabalho infantil doméstico.

7 Lurdes responde à discussão espontânea no grupo focal sobre o caso de Marielma de Jesus, menina de 11 anos que era babá e foi assassinada pelos patrões em 2005. Marielma havia sido levada com autorização da família, composta por trabalhadores rurais, do município de Vigia (PA) para a capital paraense. A promessa do casal de empregadores era a de que a menina iria estudar e ajudar a cuidar de uma criança. Nada disso se cumpriu. Marielma foi torturada e brutalmente assassinada. Os patrões foram condenados a mais de 30 anos de prisão. Conheça mais sobre o caso em: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-36433363.


I Danila Gentil Rodriguez Cal, Doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. Possui pós-doutorado em Mídia e Esfera Pública (EME-UFMG). É professora adjunta da Faculdade de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil. É autora do livro "Comunicação e Trabalho Infantil Doméstico: política, poder, resistências" (EDUFBA/Compós, 2016). E-mail: danilagentilcal@gmail.com

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