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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades vol.16  Rio de Janeiro jul./set. 2017

 

ESPAÇO ABERTO

 

Os primeiros passos na intervenção com bebês em risco de sofrimento psíquico

 

Los primeros pasos en la intervención con bebés en riesgo de sufrimiento psíquico

 

 

 

Entrevista de Raquel OliveiraI com Érika Parlato-OliveiraII

II Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/MG, Brasil.

II Université Paris Diderot, Paris, França.

 


RESUMO

O diagnóstico de autismo e de outras modalidades de sofrimento psíquico tem forte impacto tanto sobre dinâmicas familiares quanto sobre os modos de atenção e acolhimento possíveis. Profissionais capacitados, especialmente aqueles que trabalham nas unidades de atendimento básico, são fundamentais para o diagnóstico ainda nos primeiros dias de vida da criança e as decisões para a intervenção imediata. O atendimento primário deve privilegiar a escuta dos cuidadores, para as tomadas de decisão e acolhimento e, em especial, sobre o lugar das políticas de saúde na atenção ao sofrimento psíquico de crianças.

Palavras-chave: autismo, bebês, sofrimento psíquico, capacitação profissional, atenção básica.

RESUMEN

El diagnóstico de autismo y de otras modalidades de sufrimiento psíquico tiene un fuerte impacto, tanto sobre las dinámicas familiares, como sobre los posibles modos de atención y acogida. Profesionales capacitados, especialmente aquellos que trabajan en las unidades de atención primaria, son fundamentales para el diagnóstico, inclusive, en los primeros días de vida del niño, así como, para las decisiones respecto a la intervención inmediata. La atención primaria debe privilegiar la escucha de los cuidadores para la toma de decisiones, para la acogida y, en especial, en lo concerniente al lugar de las políticas de salud en la atención al sufrimiento psíquico de los niños.

Palabras clave: autismo, bebés, sufrimiento psíquico, capacitación profesional, atención primaria.

 


Raquel Oliveira - Antes de tudo quero agradecer a sua disponibilidade para conversar sobre uma questão tão importante para a clínica da infância e da adolescência. A partir da sua experiência, o que você considera autismo?

Érika Parlato - Em primeiro lugar, muito obrigada pelo interesse de vocês. Inicialmente, o meu percurso com autismo dentro da Psicanálise me fez entender que, na verdade, esse diagnóstico é um diagnóstico médico, psiquiátrico. Não é uma abordagem que compartilho nos grupos de pesquisa que integro, tanto na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) quanto em Paris VII. Atualmente, trabalhando com identificação de risco de autismo no bebê, temos pensado cada vez mais que se trata de algo que acontece de forma multifatorial. Por isso focamos na questão da identificação de risco lá no bebezinho, para tentar identificar se lá no início há uma predisposição. Nós devemos estar atentos para identificar se o bebê tem algum sofrimento ou não. Estou pensando em sofrimento psíquico, já que geralmente a gente pensa mais em sofrimentos do corpo. Estou levantando a questão de pensarmos mais em outros sofrimentos, psíquicos, que podem estar acontecendo na constituição desse sujeito lá no primeiro ano de vida. Então, nós precisamos saber que, no autismo, é importante avaliar se já teria algum risco nesse bebezinho que faria com que ele se constituísse de forma autística. E lá na frente, muito tempo depois, é que se pode pensar num diagnóstico de autismo numa perspectiva psiquiátrica. Quem vai trabalhar com diagnóstico, nessa fase mais avançada, é a Psiquiatria.

Raquel Oliveira - Nessa primeira avaliação dos riscos quanto ao desenvolvimento do autismo, quais seriam os primeiros passos de acolhimento ao bebê e à família? O que seria importante, já tendo identificado esse risco, como intervenção?

Érika Parlato - Faço parte do Programme de Recherche et Évaluation de Autisme (PREAUT). O PREAUT é uma associação francesa que existe no Brasil também há mais de dez anos. Então, temos trabalhado muito na capacitação de profissionais que estão na linha de frente, lá onde passa o bebê. Não apenas o pediatra. A gente tem um Sistema Único de Saúde, o SUS, com toda uma linha de frente que trabalha com o modelo do Programa Saúde da Família (PSF), que tem uma porta de entrada pela qual passam todos os bebês. O Brasil tem uma cobertura de vacina que é excelente e, no meu ponto de vista, podemos associar a este momento em que o bebê passa pela rede pública a capacitação do profissional que está na linha de frente. Por exemplo, neste momento da vacina, quando o bebê frequenta a sua Unidade Básica de Saúde, o profissional tem que ser capacitado para saber identificar se o bebê apresenta um sofrimento psíquico ou não. Temos trabalhado muito assim na UFMG. Nós já capacitamos muitos profissionais da rede pública, não só de Belo Horizonte, mas em todo o estado de Minas. Em São Paulo também tive a oportunidade de participar de uma capacitação em Guarulhos e mais dez cidades no seu entorno, com o objetivo de capacitar profissionais de toda aquela região, pensando não só no pediatra.

Raquel Oliveira - Você poderia detalhar um pouco mais como é feita essa capacitação? Que profissionais devem ser capacitados?

Érika Parlato - O PREAUT constatou que, na realidade brasileira, o pediatra vê o bebê quando tem uma queixa orgânica levada pela família, seja otite, diarreia. São momentos específicos em que tem uma consulta com o pediatra. A puericultura, o acompanhamento do desenvolvimento e do crescimento do bebê não é feito necessariamente pelo pediatra na realidade brasileira. Ele é feito pela equipe que faz esse acompanhamento de puericultura. Então, pra nós, o essencial é que essa equipe, formada por enfermeiros, psicólogos, pediatras, entre outros profissionais, tenha uma capacitação para ver se o bebê está em sofrimento. Se o bebê passa na Unidade Básica de Saúde, então é nessa linha de frente que precisamos ter profissionais capacitados para ver se o bebê está em risco. Falamos do bebê, mas é claro que a gente sempre pensa o bebê com o seu cuidador principal, geralmente a mãe, mas que é, de fato, um cuidador de referência contínua. Vemos que pode ser a mãe, a vizinha, a madrinha, a babá. Quer dizer, isso varia, mas o bebê tem um cuidador contínuo. É este cuidador contínuo que vai levar o bebê para tomar vacina, por exemplo. Então, os dois, nesse momento, podem ser observados, e o profissional pode ficar em alerta se o bebê está em sofrimento. É importante deixar claro que nós estamos falando de dois profissionais: o que está capacitado somente para identificar o risco, o sofrimento, e aquele que está capacitado também para fazer a intervenção. Além disto, é preciso que exista a rede formada em cada território, que possa dar conta de fazer a intervenção junto à mãe com o bebê, tudo muito rapidamente, pois o bebê não pode esperar. Não pode ficar numa fila de espera. Uma semana para um bebê de dois meses é um oitavo da vida dele. É muito diferente da nossa noção de tempo.

Quando trabalhamos com bebês em sofrimento - estou pensando o primeiro ano de vida, antes do aniversário de um ano - é preciso fazer uma intervenção imediata com o bebê e esse cuidador principal, que pode ser a mãe. Às vezes eu falo muito “o bebê e a mãe”, mas é importante notar aí “o bebê e seu cuidador principal contínuo”, aquele que é responsável por ele no dia a dia. Então essa intervenção deve ser feita por profissionais que precisam investir numa formação profissional para lidar com essa faixa etária, numa clínica que tenha uma abordagem psicanalítica. São questões bem complicadas. O pediatra, que pode ser aquele que vai identificar os sinais, não necessariamente é um profissional que se interessou por clínica, pela Psicanálise, e que vai ter tempo na agenda para fazer intervenção semanal. Por isto nós precisamos falar de um atendimento mais amplo, com outros profissionais. Então, tem uma preocupação inicial que é identificar um bebê com risco de autismo e outros sofrimentos psíquicos, porque nem só o autismo existe na vida do bebê; outros sofrimentos também existem. Identificando, a gente tem que colocar na cena um profissional capacitado para fazer a intervenção do bebê com seu cuidador principal.

Raquel Oliveira - Nessa ideia de acolhimento em dois tempos, é preciso identificar o risco, e, posteriormente, encaminhar para uma intervenção, para um atendimento propriamente dito. O que seria importante perceber no primeiro momento, até para depois fazer esse segundo trabalho de encaminhamento?

Érika Parlato - O primeiro e mais importante passo é escutar a mãe, ou esse cuidador contínuo. As informações que temos depois, a partir dos relatos das mães, são sempre no sentido de que ela sentia que tinha algo ali que não estava bem, seja porque é o segundo filho ou porque ela compara com outros bebês mais ou menos da mesma idade. Mas a mãe percebe algo que a incomoda. E muitas vezes, como é algo sutil, na consulta (dado o ritmo com que é feita, com as condições que temos hoje) acaba acontecendo de o profissional da saúde não ter tempo de escutar a mãe. Por exemplo: é um bebê que pode crescer bem, se alimentar bem, dormir bem. Às vezes dorme até demais, o que pode ser um sinal de alerta. Não estou dizendo que dormir muito é um problema. Mas que, frequentemente, alguns bebês usam esse recurso de dormir além da conta para não estar na relação com o outro. E como é que uma mãe vai reclamar de um bebê que dorme muito? Vão falar o que dessa mãe? Vão falar: “Como assim, minha senhora? Ele é ótimo! Ele dorme, deixa a senhora fazer tudo em casa. Como é que ela reclama de um bebê que dorme muito?” É difícil reclamar disso. Então o que observamos é essencial.

Raquel Oliveira - Qual deveria ser a postura do profissional que está acolhendo o bebê e sua mãe ou seu cuidador principal?

Érika Parlato - O primeiro passo é o profissional da saúde escutar e permitir à mãe que ela diga se tem alguma inquietação, independente de julgamento. Porque as mães relatam muito: “Como é que eu ia reclamar que o meu bebê era sério demais? Ou dormia demais? Ou não sorri quando eu falo?” Parece que ela reclama de um luxo, porque é um bebê que está bem, que cresce bem, que se desenvolve bem… Ela estaria reclamando do quê? Então, o primeiro passo para ficar em alerta é: escutar a mãe. Muitas vezes os pediatras me fazem a pergunta contrária: “Como eu digo para mãe que o bebê tem um problema?” Eu nunca precisei dizer para uma mãe que o bebê tem um problema. Ela sempre me disse que o bebê tem um problema. E ela se sente aliviada de encontrar um profissional que acredita no que ela está falando. Que vai, junto com ela, investigar o que está acontecendo com esse bebê. Que dá crédito à fala dela. Porque ela fala: “Olha, eu vejo bebês, eu conheço bebês… Tem algo que não está bom”. Mesmo que ela não saiba o que é, tem algo ali que ela, que passa 24 horas por dia cuidando desse bebê, sabe que não está bem. Você senta, espera e oferece tempo. Permite ao outro que tenha a chance de te falar o que está acontecendo. E aí, então, você vai ver o que a mãe fala do seu bebê, que não está bem. Então concordamos com ela e propomos: “Vamos tentar resolver juntos isso?” Nessa época, é raro ver mães que fogem do tratamento. É muito diferente de quando você encontra famílias de crianças autistas de quatro, cinco anos de idade. Aí é um outro momento. Vários profissionais relatam: “Ah, a família tem negação, não aceita o diagnóstico”. É outro momento da história. Eles já passaram por muitas outras experiências. Quando você está frente a um bebê e seu cuidador, essa mãe está sofrendo com a dificuldade do bebê desde o início. Então o fato de ela encontrar alguém que lhe permita dizer desse desconforto alivia: “Ufa, achei alguém que entende o que é isso que eu estou sentindo.” Aí nós propomos tentar melhorar o dia a dia. Não é distante o que a gente propõe para a mãe. Assim: “O que está difícil?” Ela vai dizer: “Olha, ele dorme demais, eu não consigo brincar com ele, ele não se interessa.” Nós falamos: “Vamos tentar melhorar esse dia a dia”. Isso não tem mãe que não queira. Muda muito. É muito diferente de quando a gente trabalha com outra faixa etária. As questões são outras, os percalços são outros. No bebezinho, o fato de nos colocarmos abertos à escuta do desconforto da mãe faz com que ela encontre apoio para poder dizer e para poder trabalhar junto.

Raquel Oliveira - Por isto é tão importante profissionais capacitados.

Érika Parlato - Esse profissional da linha de frente precisa saber escutar. Ele precisa realmente acreditar que aquela mãe sabe o que diz do bebê. O bebê é dela, ela o conhece. Eu estou falando mãe, mas me refiro ao adulto responsável por essa criança. Eu publiquei um trabalho, na década de 90, envolvendo uma população de Centro de Saúde-Escola, no qual comparamos, a partir da aplicação de um questionário, a coincidência entre o que era observado no bebê e o que a mãe dizia. O resultado foi 94% de concordância. Na época eu usava como recurso para dar aula na pediatria a seguinte observação: “Olha, ao invés de ir imediatamente apalpar o bebê, se você perguntar para mãe ‘Onde a senhora acha que dói?’, ela sabe.” 94% das mães sabiam identificar primariamente o problema. Não dá para dizer que é meio a meio. Não é 50%, é 94% das vezes que aquilo que a mãe diz confere com aquilo que o pediatra encontra no bebê. Então, esse dado permite dar credibilidade ao que a mãe está dizendo.

O segundo passo, que é muito importante, é ver se o bebê reage ao que lhe é oferecido. Se eu converso e ele responde para mim, tudo bem. Quase todos os bebês fazem isso. Qual é o diferencial? Tempo é uma palavra chave. Eu preciso saber se o bebê toma a iniciativa, se tem interesse, mais do que ver se ele é capaz de responder. Eu gosto muito do verbo “provocar”. É preciso ver se o bebê é capaz de provocar o adulto a interagir com ele. Então, além de saber se o bebê interage com o adulto, mudamos o foco, mudamos a ordem dos elementos. Se eu falo e o bebê responde, ele interagiu comigo. Agora eu quero saber o contrário. Quando eu não falo com ele, ele me provoca para falar com ele? Isso muda tudo! Porque o que a gente sabe em termos de pesquisa é que os bebês que têm risco para serem autistas não são capazes de iniciar a interação. Por vezes eles até respondem. Hora ou outra você consegue uma resposta. O que você nunca consegue com eles, o que eles não são capazes de fazerem sozinhos é provocar, tomar a iniciativa. Então esse é o grande diferencial, e é difícil, às vezes, para o profissional da saúde, perceber a diferença. Porque a mãe pode até falar: “Ele é meio triste, é um bebê difícil.” Aí você conversa com ele numa prosódia que convoca sua atenção. Quem está acostumado a trabalhar com bebê geralmente usa uma prosódia específica de forma espontânea, que é nomeada como “manhês”. Frente ao bebê você fala com outra musicalidade, e o bebê reage. E aí pode acontecer de o profissional pensar que o bebê está bem, porque o profissional provoca e a criança aceita. Passamos para o passo seguinte. Você conversa, ele responde. Agora queremos saber o contrário. Quando você não conversa, ele te provoca? Então muda. Precisamos entender que cada um tem a sua vez num diálogo: eu falo e você responde. Agora é a vez do outro. Será que ele provoca, inicia para que eu participe desse diálogo com ele? Então muda o lado da história. Passamos a ver não apenas o adulto em direção à criança e a criança respondendo, mas agora observamos o bebê em direção ao adulto, o bebê provocando para o adulto responder. Isso mostra como vemos o bebê. O bebê é capaz de fazer isso desde os primórdios.

Raquel Oliveira - Você está nos dizendo que desde os primeiros dias de vida os bebês são capazes de tomar a iniciativa de interagir com os adultos, com o mundo à sua volta?

Érika Parlato - Bebês de dois dias de vida são capazes de provocar. Não sabemos com um dia de vida porque, geralmente, pós-parto o bebê passa por um período de repouso de aproximadamente 24 horas. Ele precisa se reorganizar depois do que aconteceu na situação de parto. Então, no primeiro dia de vida não se faz pesquisa com bebê. A partir do segundo dia de vida fazemos pesquisa com o bebê. Eu sou uma psicanalista que gosta muito de pesquisa e de transmissão, então eu faço as três coisas. Na UFMG, coordeno um laboratório de pesquisas de bebês. Se chama Baby Lab - UFMG. Aqui em Paris, faço trabalho em cooperação com Maya Gratier, do laboratório de bebês da Universidade de Paris Nanterre. Quanto mais soubermos das competências do bebê, mais poderemos transpor esse conhecimento para a clínica e entender o que o bebê é ou não capaz de fazer. Então, sabemos, a partir das pesquisas com informações do bebê, das competências do bebê, que ele é capaz de interagir com o outro e de tomar a iniciativa, de provocar o adulto cuidador a partir de seu segundo dia de vida. Não tem porque esperar mais. Antes não sabíamos disso, então falávamos: “Não, vamos esperar, ele é pequenininho, mal está enxergando. Vamos esperar que com o tempo ele vai fazer isso.” Hoje temos dados de pesquisa que mostram que não precisamos esperar. Desde seu início, desde a chegada em casa, saindo da maternidade, o bebê é capaz de provocar o outro. Não tem porque ele não fazer isso. Esse é um dado essencial.

Raquel Oliveira - Você falou um pouco do seu trabalho na UFMG. Como foi a sua formação? Você é psicanalista de origem? E como é a sua prática? Como é que vocês trabalham?

Érika Parlato - Eu venho da Linguística, então foi a linguagem que me formou. Venho de uma base linguística e fonoaudiológica e, a partir daí, entendo que a linguagem tem que ser vista de muitos ângulos. Tenho uma especialização na psiquiatria infantil do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), onde tive contato com crianças autistas e psicóticas. Mas isso foi no século passado. Antes do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) ainda existiam autistas e psicóticos. O que hoje, pós DSM-V, é um outro problema. Meu Mestrado foi na Linguística, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um setor de referência no Brasil para estudar a questão da linguagem. Comecei a estudar em Paris em 1995 e desde então mantenho parcerias de pesquisa com esse grupo. Fiz o Doutorado em Ciências Cognitivas e Psicolinguística, pensando as questões da linguagem do ponto de vista mental, de ciência dura. Um conhecimento também necessário para pensar a linguagem. Junto com isso tenho um Doutorado em Comunicação e Semiótica, com o grupo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-São Paulo), coordenado por Lucia Santaella, que é uma grande referência na área, não apenas no Brasil. E depois, o meu Pós-Doutorado foi na psiquiatria infantil no serviço do professor David Cohen, no Hospital Pitié-Salpêtrière, pensando nessa questão do “manhês”, da prosódia, dos sinais de risco no bebê. No meio disso, tenho uma parceria com a Universidade de Pisa, com o professor Fillippo Muratori. Há uma pesquisadora, com quem trabalho muito aqui em Paris, que se chama Marie Claire Busnel. Foi a primeira a trabalhar com sensorialidade fetal, sobre como as entradas sensoriais estão favorecendo a comunicação do bebê intraútero. No Pós-Doutorado fui para a maternidade e lá trabalhei com as gestantes no último trimestre de gestação. Por pensar que o bebê de dois dias já é muito competente, passamos a pensar o bebê antes do parto. Em paralelo a isso, eu e Marie Christine Laznik nos conhecemos em 1998, e desde então trabalhamos juntas, em torno da clínica psicanalítica com bebês.

Junto com a equipe do PREAUT nós temos construído um pouco dessa clínica, que é nova. Não é um projeto acabado. A partir do momento que sabemos que tem o sinal de risco, temos como capacitar o pessoal da saúde e da educação, porque temos realidades em que bebês muito pequenos ficam na creche das sete às sete. É preciso que o profissional da educação que está lá na creche saiba sobre o bebê, sobre o que o bebê é capaz de fazer. Porque às vezes a realidade do bebê é essa, ele está lá sendo cuidado por um profissional da creche, não é pela mãe e pelo pai. Neste caso não estou pensando na escola, mas nesse período de creche, onde o bebê, às vezes, passa a maior parte do seu dia. Estamos cada vez mais empenhados em formar pessoas para fazer a intervenção. Claro que precisamos de muita gente para identificar o risco, que ainda é raro. Sabemos que um bebê com risco de autismo não vai aparecer toda semana. É importante esclarecer que não existe nenhuma epidemia de autismo, não existe essa ideia de que há autistas em todo lugar! A realidade não é essa. Eu gosto muito de um texto do professor François Ansermet que discute de forma crítica esse acréscimo generalizado de diagnósticos de autismo. Ele mostra que não é bem assim. Esses números estão superestimados.

Raquel Oliveira - Você fala então do cuidado que é preciso ter em relação aos diagnósticos de autismo e dos outros tipos de sofrimento psíquico que podem acometer os bebês?

Érika Parlato - No dia em que o profissional for capacitado para identificar os sofrimentos de um bebê, precisaremos ter na rede, também, profissionais formados para dar conta do acompanhamento desse bebê. Nos empenhamos muito em formar pessoas para isso. Na UFMG tivemos a oportunidade de fazer parceria com um grande centro de diagnóstico de autismo de crianças. O que propusemos foi oferecer uma avaliação às famílias que têm um filho mais velho autista e estão com um bebê em casa, ou cuja mãe está grávida novamente. Fazemos uma consulta, apoiamos a mãe e o bebê que, no caso, tem um irmão autista mais velho. A literatura diz que o risco de ter uma segunda criança autista na mesma família é muito grande. Então isso já nos favorece a poder ver esse bebê, que teria um risco em potencial, muito novo. Um dado importante, que em determinado momento se discutiu, é se não estaríamos criando mais um problema para a mãe. Oferecer atendimento para a mãe grávida que tem outra criança autista em casa poderia causar algum problema? Poderia causar, na mãe, um desconforto? Hoje sabemos, depois de mais de 50 famílias acolhidas, que as mães se sentem muito bem e mais seguras com esta possibilidade. Tudo isso é público, isso é pelo SUS, em parceria com a UFMG.

Raquel Oliveira - Ao identificar algum risco, como vocês procedem?

Érika Parlato - São poucos os que vão precisar de um acompanhamento mais cuidadoso, mais próximo. Mas a qualquer bebê que seja identificado em sofrimento é oferecido, naquele momento, para ele e para sua família, a oportunidade de superar essa dificuldade através de atendimentos gratuitos semanais. Isto é muito importante.

A capacitação para o atendimento de bebês e seus pais é muito valiosa. Em São Paulo, colaboro com o Instituto Langage (uma ONG), onde temos um grupo em formação contínua e supervisão semanal. Acolhemos em uma clínica social os bebês e suas famílias que precisam de atendimento. Em Belo Horizonte, participo de uma formação junto com Rosely Grazire Melgaço e Thereza Bruzzi, na Escola Freudiana de Belo Horizonte (IEPSI), onde temos também como acolher os bebês. O PREAUT existe em diversas cidades, de norte a sul do Brasil. Então cada coordenador do PREAUT, em cada um dos polos, tem as suas equipes em formação contínua. Marie Christine Laznik tem um curso de formação quinzenal no centro Alfred Binet, em Paris. Há também os congressos, os colóquios e a transmissão de conhecimento via publicações. Eu coordeno uma coleção que se chama “Começos e Tropeços na Linguagem”, do Instituto Langage. Temos conseguido publicar livros com relatos dessas experiências da clínica e sobre as competências do bebê. É claro que a formação é diferente de capacitar para identificar o risco. Por exemplo, na capacitação para identificar risco geralmente temos um número de horas que deve ser cumprido, mas o profissional que vai trabalhar na intervenção com essas crianças precisa de uma formação mais cuidadosa e contínua.

Raquel Oliveira - Em relação aos pontos de trabalho do PREAUT, no Brasil, como tem sido realizado o trabalho de prevenção ao autismo?

Érika Parlato - Não usamos mais o termo prevenção. Porque teve um momento no qual a sigla “PREAUT” foi Prevenção de Autismo. Mas isso foi em 1998. Em 2002, definimos que não se tratava mais de prevenção. Porque consideramos que o bebê já nasce com uma predisposição para se constituir de forma autística. Quando identificamos um sinal de risco, mesmo que o bebê tenha um mês de vida, ele já tem o sinal de risco. Eu não estou prevenindo, no sentido clássico do termo, de evitar que aconteça, como vacina. Você toma a vacina da rubéola para não ter rubéola. Não é essa prevenção que estamos fazendo no PREAUT. Na verdade, estamos vendo que já há um sinal de risco, que algo ali já não vai bem e, nesse momento, o que se oferece é uma intervenção para que essa predisposição ao autismo não se concretize. Uma predisposição não é algo fechado e definido. Você nasce com uma predisposição a se constituir de forma autística, mas o que acontece no entorno é que favorecerá que essa predisposição se torne realidade ou não.

Raquel Oliveira - Recentemente foi aprovada, aqui no Brasil, a Lei 13.438 que institui a obrigatoriedade de um protocolo de avaliação do risco psíquico em bebês. Você acredita que esta Lei pode favorecer o trabalho de avaliação de sofrimento psíquico em bebês?

Érika Parlato - Na verdade, é um parágrafo que acrescenta um olhar em relação ao psiquismo no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Algo bem pontual. Historicamente, o ECA já tinha a obrigatoriedade de ter avaliação dentária, avaliação do crescimento, mas desconsiderava o aspecto psíquico. Então, na verdade, esse parágrafo a ser acrescentado no ECA faz com que o psiquismo passe a existir numa faixa etária na qual, realmente, ele é bastante esquecido. Dificilmente o profissional que trabalha de 0-18 meses teve, na sua formação, um olhar para pensar o psiquismo. Na UFMG, os alunos da pediatria têm aulas sobre linguagem e sobre as competências do bebê. Quando eles passam no Ambulatório de Pediatria, têm acesso a essa informação. Infelizmente, isto não ocorre em todas as formações de medicina, principalmente na especialização em pediatria.

Algo que era então desconsiderado, que era o psiquismo, a partir da lei que acrescenta um parágrafo ao ECA, passa a fazê-lo aparecer numa faixa etária de 0 a 18 meses, em que isso não era muito evidente. O que aconteceu a partir dali é importante, pois começaram a chegar demandas via Facebook do PREAUT, no meu e-mail pessoal. Associações de pediatras dizendo: “Ah! Tem algo agora que eu sou obrigado a saber e que eu não sei. Como é que eu faço pra aprender”? Então eu vi um movimento muito positivo por parte do profissional da saúde, não apenas do pediatra (porque o texto diz “em consulta pediátrica”). Quem conhece o funcionamento do SUS sabe que “em consulta pediátrica” não quer dizer que o profissional é exclusivamente o pediatra, porque o SUS trabalha hoje na proposta do PSF. A criança é acompanhada no seu crescimento por profissionais da saúde responsáveis por aquele território, não necessariamente por pediatras sozinhos. Essa equipe é multiprofissional, pode ter psicólogo, enfermeiro. A partir do momento em que existe uma lei que implementa a realização de uma avaliação psíquica, eu vejo que os profissionais começam a ter um movimento muito interessante de se questionar: “Tem algo aí que eu não sei. Como é que eu aprendo”? Acho este movimento muito válido, porque o profissional começou a reconhecer que tem algo que ele não sabe e a demonstrar que ele tem interesse em aprender. É a chance que temos deste profissional ficar alerta para aquilo que a gente dizia no começo da entrevista: “Quais são esses sinais que eu preciso ver no bebê”? Claro que a lei não diz qual é o protocolo.

Raquel Oliveira - Não definir o protocolo é importante?

Érika Parlato - Uma lei não pode definir o protocolo a ser usado. A lei diz que a avaliação deve ser feita com o uso de um protocolo ou outro instrumento para esse fim. Inclusive a palavra “protocolo” é acompanhada por “ou outro instrumento criado para esse fim”. Com a publicação da lei, nós recebemos muitas demandas de prefeituras com dificuldade de escolher o protocolo e com algumas leituras equivocadas da faixa etária. É importante frisar que a lei diz “entre 0-18 meses”. A partir de 18 meses não é entre 0-18 meses. Claro que só o fato de isso ser discutido é muito importante, pois na saúde mental o bebê era sempre colocado de lado e agora estamos falando de psiquismo em bebês. Pelo menos estamos tendo algo que há anos batalhamos para ser compreendido. Assim, mesmo o lado contrário, por parte dos profissionais da saúde mental e talvez de alguns psicanalistas, pode ter uma reverberação interessante. Por exemplo, uma crítica feita é em relação ao aumento do número de diagnósticos de autismo, mas isto já faz parte do debate e da construção do campo de pesquisa e clínica.

Raquel Oliveira - E a crítica em relação a provocar uma supermedicalização? Todo esse problema que conhecemos na clínica da infância sobre patologização abusiva, como você está vendo isto?

Érika Parlato - A lei não fala em autismo, não tem a palavra “autismo” na lei. Além disso, um acréscimo ou um exagero no diagnóstico de autismo não vai acontecer com a lei. Já está acontecendo não é de hoje. O número de diagnósticos de crianças autistas tem aumentado no decorrer do tempo. Não é a lei que está estimulando, isso já é fato. Acredito que temos que pensar que a lei não fala em diagnóstico e não fala em autismo. Fala em ter uma avaliação sobre o psiquismo do bebê. Há aí uma distorção de compreensão do texto. O movimento que percebemos dos profissionais da saúde, dos profissionais que avaliam bebês, foi em busca de conhecimento sobre o psiquismo do bebê. Isso tem que ser valorizado.

Raquel Oliveira - A nossa responsabilidade principal seria então capacitar os diversos profissionais que atendem essa faixa etária?

Érika Parlato - Como temos feito há muitos anos. Agora os profissionais da saúde é que estão buscando, pois descobriram que não têm esta formação, querem aprender, querem entender sobre avaliação de risco e sofrimento psíquico nessa faixa etária de 0 a 18 meses. O movimento é muito positivo.

Raquel Oliveira - Qual seria a sua indicação para os profissionais interessados em conhecer e se dedicar a esse trabalho clínico de avaliação e mesmo de intervenção precoce com bebês? No campo da saúde mental, temos visto cada vez mais pessoas interessadas em se aproximar dessa clínica.

Érika Parlato - Acredito que há duas questões. A primeira é que essa clínica deve ser vista de forma transdisciplinar. Eu faço uma clínica psicanalítica em um formato no qual ela não se fecha em si mesma. Assim como era para Freud, assim como era para Lacan, é sempre na busca de interlocuções com outras áreas. Acho que com o bebê, realmente, essa interlocução é essencial. Penso em uma clínica que é psicanalítica, mas que tem uma característica transdisciplinar. O que é isso? Se eu tenho que trabalhar com o bebê, eu preciso dos conhecimentos sobre crescimento, desenvolvimento, desenvolvimento orgânico. Eu preciso saber muito do quanto o bebê é competente, e quem investiga isso é o campo das Neurociências. O raciocínio clínico é uma mistura de fatores que envolvem as Neurociências, a própria Medicina (pensando no desenvolvimento e no crescimento do bebê), a Linguística (em que há todo um aparato para discutir a questão da linguagem), a Semiótica (pois é uma clínica na qual não é a fala que impera). Estamos muito mais acostumados a trabalhar com fala oralizada. E quando temos uma clínica do bebê, muito do que acontece ali passa por outras modalidades de comunicação que não é a verbal. A Semiótica dá suporte para entender outras formas de comunicação para além da língua, pois a ausência da fala não significa ausência de linguagem. Só que essa linguagem está sendo expressa de outras formas. Penso que este conjunto de conhecimentos tem por base a Psicanálise (a minha clínica se inscreve na psicanálise lacaniana, mas não é isolada do resto do mundo). É uma clínica psicanalítica que conversa com a Semiótica, com a Linguística e com as Neurociências. Considero que, para quem tiver interesse em trabalhar com bebês, esse é o caminho. Pensar essa clínica psicanalítica em interlocução, pelo menos com as Neurociências e a Medicina, com a Semiótica e a Linguística.

Raquel Oliveira - A prática transdisciplinar seria, então, a melhor forma de lidar com o autismo. Você acredita que os pesquisadores e profissionais do Brasil estão tendo acesso a boas publicações sobre o tema?

Érika Parlato - Sim, estamos tendo acesso a uma literatura muito boa. Por exemplo, a coleção “Começos e Tropeços na Linguagem” está muito interessante para quem se interessa por bebês. Agora em julho lançamos um livro intitulado “O Bebê e o Outro”, que organizei junto com o David Cohen, da Pitié Salpêtrière, com trabalhos de Maya Gratier, François Ansermet, Myriam Szejer, Marie Christine Laznik. Este livro fala justamente do bebê e de como ele está interagindo com todo o seu entorno. É um ponto que favorece quem quiser estudar hoje no Brasil. O acesso à publicação em língua portuguesa está crescendo significativamente. Existem cursos, existem grupos de trabalho. Quem desejar pode entrar em contato com o PREAUT (PREAUT Brasil) pelas redes sociais.

Raquel Oliveira - Muito obrigada! Em nome da Revista DESidades eu agradeço a sua disponibilidade em ter conversado conosco.


Data de recebimento: 20/01/2017
Data de aceite: 19/09/2017


I Raquel Correa de Oliveira, Psicanalista. Doutoranda do Programa de Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: raquel.correa@terra.com.br

II Érika Parlato-Oliveira, Psicanalista. Doutora em Ciências Cognitivas e em Comunicação e Semiótica. Pós-Doutora em Psiquiatria Infantil na Université Pierre Marie Curie, França. Maître de Conference em Psicologia. Professora da Pós-Graduação da Faculdade de Medicina (UFMG) e da Université Paris Diderot. Co-Coordenadora do Diplôme Universitaire “Le Psychique face à la naissance” da Université Paris Descartes. Co-Coordenadora regional do PREAUT Brasil. E-mail: eparlato@hotmail.com

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