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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades vol.17  Rio de Janeiro out./Dec. 2017

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Ou caminha com Deus ou dança com o Diabo: igrejas neopentecostais e o dispositivo da sexualidade

 

O camina con Dios o baila con el Diablo: iglesias neopentecostales y el dispositivo de la sexualidad

 

 

Rodrigo KreherI e Neuza Maria de Fátima GuareschiII

I Núcleo E-polics – Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre/RS, Brasil.

II Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre/RS, Brasil.

 

 


RESUMO

Este artigo objetiva dar visibilidade aos modos como as igrejas neopentecostais concentram um olhar mais específico sobre a sexualidade de jovens empobrecidos. Através da realização de oficinas em Direitos Humanos do Projeto de Proteção de Jovens em Território Vulnerável (PROTEJO) do Território de Paz Guajuviras, no município de Canoas/RS, acompanhamos dois jovens brancos, do sexo masculino, moradores do bairro Guajuviras e frequentadores das igrejas neopentecostais locais. Esta experiência tornou possível analisar como tais instituições religiosas orientavam as questões relativas à sexualidade dos jovens. A partir da contribuição teórica foucaultiana sobre o dispositivo da sexualidade, mostramos como as igrejas neopentecostais estabelecem práticas de governo da sexualidade juvenil em direção a uma heteronormatividade. Por fim, o presente artigo conclui que tais igrejas neopentecostais articulam noções como protagonismo juvenil e heteronormatividade, promovendo estratégias de condução da vida dos jovens para a produção de um sujeito cristão e heterossexual.

Palavras-chave: juventude, igrejas neopentecostais, protagonismo juvenil, heteronormatividade.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo dar visibilidad a los modos como las Iglesias neopentecostales centran su mirada de forma más específica sobre la sexualidad de jóvenes empobrecidos. A través de la realización de talleres sobre Dereos Humanos del Proyecto de Protección de Jóvenes en Territorio Vulnerable (PROTEJO) del Territorio de Paz Guajuviras, en el municipio de Canoas/RS, acompañamos dos jóvenes blancos, del sexo masculino, moradores del barrio Guajuviras y frecuentadores de las Iglesias neopentecostales locales. En esta experiencia fue posible analizar cómo tales instituciones religiosas orientaban las cuestiones relativas a la sexualidad de los jóvenes. A partir de la contribución teórica foucaultiana sobre el dispositivo de la sexualidad, mostramos cómo las Iglesias neopentecostales establecen prácticas de gobierno de la sexualidad juvenil en dirección a una heteronormatividad. Por fin, el presente artículo concluye que tales Iglesias neopentecostales articulan nociones como protagonismo juvenil y heteronormatividad promoviendo estrategias de conducción de los jóvenes para la producción de un sujeto cristiano y heterosexual.

Palabras-clave: juventud, iglesias neopentecostales, protagonismo juvenil, heteronormatividad.


 

 

Introdução

Neste artigo, discutimos como as igrejas neopentecostais exercem práticas de governo da sexualidade na vida de seus jovens e fiéis. Para isso, partimos de um recorte das trajetórias de dois jovens brancos, do sexo masculino, moradores do bairro Guajuviras (Canoas/RS), frequentadores das igrejas neopentecostais locais e que participaram do Projeto de Proteção de Jovens em Território Vulnerável (PROTEJO/Casa das Juventudes), vinculado ao Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI)1.

O extinto Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) tinha por objetivo reduzir os altos índices de violência e criminalidade nas capitais e cidades de regiões metropolitanas brasileiras (BRASIL, 2007). Ao articular poder público e sociedade civil, este programa desenvolvia ações de inteligência, qualificação das forças policiais e execução de projetos sociais em regiões urbanas identificadas e entendidas como violentas e vulneráveis socialmente2. Nesse formato, o PRONASCI chega a Canoas/RS em 2009, tendo como principal foco de suas ações o bairro Guajuviras, localizado na região nordeste da cidade, possuindo aproximadamente 34 mil habitantes.

A partir do ano de 2010, uma série de projetos sociais passou a compor o cotidiano do bairro, dentre eles, o Núcleo de Justiça Comunitária Guajuviras, Mulheres da Paz, Comunicação Cidadã/Agência da Boa Notícia e o Projeto de Proteção de Jovens em Território Vulnerável (PROTEJO). De acordo com a lei n° 11.530/07, o PROTEJO visava formar e incluir socialmente jovens e adolescentes expostos à violência doméstica ou urbana, bem como os que se encontravam em situação de rua, naquelas regiões geográficas onde os Territórios de Paz/PRONASCI atuariam.

No Território de Paz Guajuviras, o PROTEJO foi implementado e desenvolvido no espaço que recebeu o nome de Casa das Juventudes. Durante os anos de 2010 e 2011, desenvolveram-se, nesse espaço, atividades de sensibilização e educação para os Direitos Humanos, Inclusão Digital, Música e Teatro. Com uma equipe composta por mais de 30 trabalhadores (técnicos e educadores sociais), a Casa das Juventudes atendeu mais de 400 jovens, com idades entre 15 e 24 anos “(...) egressos do sistema prisional, que estejam em cumprimento de medidas sócio-educativas; em situação de rua, expostos às violências domésticas e/ou urbana” (Canoas, 2009, p. 2).

Através da experiência enquanto educador social em Direitos Humanos, realizando grupos de discussão e acompanhamentos de demandas individuais, foi possível indagar quanto à presença das igrejas neopentecostais na vida de alguns dos jovens participantes do PROTEJO. A partir de suas falas e posicionamentos frente a determinadas situações de trabalho, constatou-se quão intensa era a relação desses jovens com as igrejas neopentecostais estabelecidas naquele bairro.

Desde suas opiniões sobre os temas mais cotidianos até o desenho de seus projetos mais pessoais para o futuro, quando discutidos nos grupos de Direitos Humanos, esses pensamentos apareciam atravessados pela experiência de frequentarem tais igrejas. Os elementos que compõem essa doutrina religiosa, as normas e condutas morais e os ditames em relação à elaboração de gostos, interesses e desejos, participavam em algum nível enquanto organizadores e moduladores das práticas e modos de vida exercidos por esses jovens.

Diante disso, este artigo objetiva dar visibilidade aos modos como as igrejas neopentecostais concentram um olhar mais específico sobre a sexualidade dos jovens. Para tal, tomamos os efeitos da presença das igrejas na vida de dois jovens, brancos, do sexo masculino, moradores do bairro Guajuviras e participantes do PROTEJO/Casa das Juventudes. Com isso, problematizamos a maneira como, em seus percursos, essas instituições orientam as questões relativas ao exercício da sexualidade. Deste modo, apontamos, através da orientação em atividades com esses jovens, como se estabelecia um governo da sexualidade em direção a uma heteronormatividade (Costa; Nardi, 2015).

 

No caminho do bem: o protagonismo juvenil como prática de governo das políticas públicas e das igrejas neopentecostais

Os grupos de Direitos Humanos no PROTEJO se subdividiam em três espaços: Oficinas Temáticas, Gestão Participativa e Projeto de Vida. O primeiro se caracterizava por ser um espaço de problematizações sobre temas tradicionalmente associados aos Direitos Humanos enquanto um sistema de garantia de direitos. Assim, partindo das histórias e experiências individuais e coletivas, discutia-se juventude, família, gênero e sexualidade, democracia, Estado e sociedade, meio ambiente, violência urbana e doméstica, tráfico de drogas, escola, trabalho e emprego, dentre outros. O segundo espaço se destinava a reuniões semanais de discussão sobre a gestão e organização da Casa das Juventudes, de modo que os jovens também participassem desse processo. O terceiro consistia em um espaço para que os jovens pudessem pensar a respeito de suas trajetórias de vida e projetar perspectivas de futuro.

A partir desses encontros, um pequeno grupo de jovens tomou a iniciativa de criar uma espécie de agremiação juvenil. Após a formação de chapas, levantamento de demandas e propostas para a Casa das Juventudes e da realização de debates com todos os participantes do projeto, um dos jovens foi eleito presidente. Surgia, assim, a Força Jovem do PROTEJO.

Esse movimento de participação dos jovens nos remete à noção de protagonismo juvenil, elemento constitutivo de grande parte das políticas públicas de juventude desde 2005, na medida em que opera como uma estratégia de produção de um sujeito jovem “envolvido por iniciativa própria na busca de solução de problemas e que, em decorrência desse envolvimento, venham a ser formuladas e construídas ações relevantes e significativas no campo social” (Gonzales; Guareschi, 2009, p. 50).

A expressão Força Jovem também apareceu, certa manhã, escrita em um panfleto entregue por uma senhora ao educador, quando este se deslocava para o trabalho. O panfleto com a inscrição Força Jovem Universal, em destaque, tinha por objetivo convidar jovens da cidade a participar desse espaço da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) destinado à juventude. Tal braço da IURD desenvolve diversas ações destinadas ao seu público jovem, desde atividades culturais, shows de música gospel, campeonatos esportivos e gincanas até projetos sociais e cursos em parceria com universidades.

Ainda que seja diferente da Força Jovem formulada pelos jovens do PROTEJO, a Força Jovem Universal também se aproxima da noção de protagonismo juvenil quando associa, aos jovens, características como autoestima, interesse, força de vontade, garra e capacidade, colocando-os como agentes fundamentais das ações e campanhas que realiza.

Da mesma forma, essa ideia de força formulada por algumas teorias enquanto latente e própria da juventude (Coimbra, 2003) também é tomada como possibilidade de resistência frente aos riscos, taras e vícios para os quais o mundo moderno supostamente conduziria nossos jovens, como as drogas, o crime, a bebida, a preguiça e a prática de relações afetivas e sexuais anteriores ao casamento e não heteronormativas. Integrar a Força Jovem, ao mesmo tempo, protegeria e encaminharia a juventude para projetos e modos de vida individuais e coletivos, econômica, política e socialmente bem-sucedidos, seguros e assegurados pelos caminhos de Deus:

O Força Jovem Universal (FJU) existe desde a fundação da Universal e conta com milhões de jovens em todo o Brasil. O objetivo é alcançar a juventude que se encontra perdida nas drogas, nos vícios, na criminalidade ou que sofre com um permanente vazio interior e sem perspectiva de vida. Para isso, como meio de chegar até essas pessoas, o grupo desenvolve diversas atividades culturais, sociais, esportivas e espirituais (Igreja Universal do Reino de Deus, 2015).

Com o próprio lema da Força Jovem Universal, ser jovem é ser visionário, é possível questionar em que medida o discurso que passa a circular por entre os jovens da IURD não visa a empreender escolhas de vida sustentáveis dentro de um determinado modelo e a longo prazo. Se o termo visionário é uma característica atribuída aos jovens, no sentido de que ser jovem é olhar para frente e além, confiante de que o futuro com Deus promete a felicidade e o sucesso, por mais tortuoso que possa ser o caminho – afinal de contas, o futuro a Deus pertence –, as escolhas pregressas e presentes devem ser boas o suficiente e, para isso, feitas de boa fé e desejo verdadeiro.

Assim também fizeram os marinheiros de Jack Kerouac em o Mar é meu irmão, ao abrirem suas Bíblias e rezar na medida em que o navio deixava o porto para trás rumo à distante Groenlândia. E assim também fazem os homens de negócios, para os quais o sucesso de suas empresas e empreitadas depende da sua vontade, esforço e empenho, dos cálculos meticulosos e das boas projeções.

A questão aqui não se trata de determinar se a Força Jovem do PROTEJO recebeu esse nome tendo como inspiração a Força Jovem Universal, quando o que permite realizar tal associação e trazê-la para a discussão é problematizar que tanto o modelo de subjetividade do jovem protagonista quanto aquele do homo oeconomicus não começam nem terminam nas políticas públicas juvenis ou no setor privado e empresarial, mas perpassam e performam todos os domínios, na medida em que remetem a um modo de tomar as coisas do mundo e nele se posicionar desde uma racionalidade neoliberal (Guareschi; Lara; Adegas, 2010).

 

A cereja do bolo: a sexualidade no centro das preocupações políticas e religiosas

Antes de problematizarmos os modos como as igrejas neopentecostais exercem práticas de governo das sexualidades juvenis, faz-se necessário contextualizar como a sexualidade passou a ser objeto de governo na sociedade moderna ocidental, encontrando-se no centro das preocupações políticas e estatais. Assim, em um segundo momento, poderemos demonstrar como essa mesma preocupação passa a ser operada pelas igrejas neopentecostais.

Para tanto, trazemos a contribuição de Michel Foucault a respeito daquilo que o autor denominou por dispositivo da sexualidade, como ferramenta para interrogar sobre as práticas de governo postas em funcionamento pelas igrejas neopentecostais. De acordo com Foucault (1988), o dispositivo da sexualidade se caracteriza pela maneira como a modernidade ocidental, a partir do século XVIII, passou a produzir saberes em torno do campo das sexualidades, suas relações com os mecanismos de poder e os efeitos dessas articulações na produção de subjetividades. Nesse sentido, o autor afirma que o sujeito da modernidade é convocado a se reconhecer enquanto sujeito da sexualidade:

...por volta do século XVIII nasce uma incitação política, econômica, técnica, a falar do sexo. E não tanto sob a forma de uma teoria geral da sexualidade, mas sob a forma de análise, de contabilidade, de classificação e de especificação, através de pesquisas quantitativas ou causais (Foucault, 1988, p. 30).

Com isso, Foucault (1988) explica o surgimento do policiamento das condutas sexuais por parte do Estado, ao tomar para si o direito de determiná-las em suas dimensões biológicas e econômicas. Este policiamento não objetivou a repressão, mas a regulação do sexo, embora a repressão possa ser tomada como um de seus efeitos. Como aponta o autor, é em meados do século XVIII que os governos se depararam com o conceito de “população”, problema econômico e político que possui características próprias: “natalidade, morbidade, esperança de vida, fecundidade, estado de saúde, incidência das doenças, forma de alimentação e de habitat” (Foucault, 1988, p. 31), e que essa população se multiplicaria de acordo com o contexto social no qual está inserida.

Interessou ao Estado saber como os seus cidadãos exercem a sexualidade, que usos fazem do sexo, instigando-os a desenvolverem modos de educar e controlar suas práticas. Nesse sentido, como conclui o estudioso francês: “o que é próprio das sociedades modernas não é o terem condenado, o sexo, a permanecer na obscuridade, mas sim o terem-se devotado a falar dele sempre, valorizando-o como o segredo” (Foucault, 1988, p. 42).

Tanto no Direito quanto em outros campos de saber, como na Medicina, Psicologia e Pedagogia, catalogaram-se e codificaram-se as condutas sexuais. O Direito passou a judicializar as perversões menores, transformando-as em matéria de lei, processo e sentença. A Medicina, por sua vez, começou a tratar das irregularidades sexuais enquanto anormalidades e o tempo de vida passou a ser dividido em etapas de desenvolvimento, atribuindo a cada uma delas aquilo que pode e não pode ser praticado, cuidando rigorosamente para que, primeiro, desvios não fossem perpetrados e, segundo, caso essa vigilância falhasse, tais condutas fossem reorientadas em direção à norma.

Em relação ao modo como as igrejas neopentecostais se aproximam do dispositivo da sexualidade, a escolha de persistir pelo caminho de Deus pressupõe a concretização de um projeto de vida nos moldes daquilo que a sociedade capitalista ocidental vem afirmando como moralmente correto, justo, limpo, normal, produtivo, seguro e sadio, desde o século XVIII. Dessa forma, a organização daquela vida individual capaz de corresponder às normas e aos acordos sociais sustentados pela comunidade à qual pertence deve buscar, como aquilo que se deseja, o modelo tradicional burguês e cristão de instituição familiar.

A prosperidade e a paz espiritual, o bom uso dos prazeres e das dádivas devidas por Deus aos fiéis não se restringem ao sucesso no mundo dos negócios. Estas também advêm como recompensa direta e imediata daquela vida dedicada à formação de uma família composta pelo homem heterossexual pai, a mulher heterossexual mãe e pelos filhos e filhas educadamente bem orientados à continuação desse mesmo projeto.

No universo neopentecostal, essas questões se tornam evidentes com a campanha destinada ao público juvenil “Eu Escolhi Esperar”. Além de realizar cultos e atividades em diversas cidades do país envolvendo diretamente os jovens com o objetivo de acolhê-los e orientá-los, dentro de sua perspectiva religiosa, em relação as mais variadas questões pertinentes à juventude, essa campanha também comercializa toda uma série de produtos com a mesma finalidade.

O livro que leva o nome da campanha argumenta a favor do sexo somente após o casamento. Os livros intitulados “E-namorados” e “Como escolher a pessoa certa?” se destinam a jovens e adultos solteiros, heterossexuais e de ambos os sexos que estejam à procura de um romance sério e duradouro. Abaixo, elencamos algumas perguntas para as quais essa literatura promete ter respostas:

Deus tem uma pessoa certa para mim? Qual a idade certa para casar? Qual deve ser o limite no namoro? Como deve ser a intimidade física antes do casamento? E o beijo na boca antes do casamento? Por que ficar é pecado? Quanto tempo deve demorar um namoro até o casamento? Como discernir quem é uma possível pessoa ideal? Quem deve abordar primeiro? Como a família pode revelar algo sobre alguém? O que fazer se a opinião dos meus pais se difere das minhas? E o beijo na boca na Bíblia antes do casamento é considerado pecado? (Junior, 2015, p.160).

Se por um lado, na sociedade ocidental moderna, o governo das populações vai se valer da mesma célula familiar como principal estratégia e campo de incidência para a sua realização, ainda que contemporaneamente esse arranjo possa assumir certa flexibilização, assim o faz por adequação, instinto de sobrevivência e possibilidade contínua de aplicação do seu próprio dispositivo de poder. Por outro lado, nas igrejas neopentecostais, esse modelo tradicional de instituição familiar encontra sua razão de ser porque esta é, em absoluto, a verdade e o caminho ensinado e esperado por Deus.

Motivo e explicação, nas religiões declaradas por meio da palavra escrita, em hipótese alguma precisam de aportes técnico-científicos, econômicos, políticos e sociais para se legitimarem. São desde sempre auto-referenciáveis. A Bíblia, assim como o Alcorão ou a Torá, enquanto principais documentos de veridição e verificação da palavra de Deus para o Cristianismo, Islamismo e Judaísmo, respectivamente, comportam toda a verdade, ao pé da letra, sem notas de rodapé e esforço interpretativo.

Dessa tradição ipsis litteris em relação a essas questões, também compartilham as igrejas neopentecostais. Assim, para aquelas vidas orientadas fora de um padrão heteronormativo, isto é, de um conjunto de princípios, normas e regras que instituem as práticas heterossexuais enquanto normalidade, a oferta inicial que se faz é “ou caminha com Deus, ou dança com o Diabo”. A homossexualidade, nesse contexto eclesiástico, contaminada e vigiada por concepções como anormalidade, perversão e promiscuidade, é percebida como um desvio da norma divina praticado por aquele sujeito que sucumbiu às frivolidades, truques e tentações do mal, mas que pode, a qualquer tempo, se deixar ser reconduzido, com a ajuda da sua comunidade religiosa, para o plano de Deus.

 

Os cidadãos de bem vão para o céu, os outros, para a festa

A partir dos efeitos da presença das igrejas neopentecostais na vida dos dois jovens anteriormente apresentados, ambos brancos, com idades entre 15 e 24 anos, moradores do bairro Guajuviras, estudantes da rede de ensino público e participantes do PROTEJO/Casa das Juventudes, passamos a interrogar qual seria o modelo de sujeito neopentecostal e por meio de quais estratégias estas igrejas o têm ofertado à juventude. Circunscrevemos nossa discussão às questões que emergiram nas oficinas de Direitos Humanos com os dois jovens referidos anteriormente. Sendo assim, a partir das narrativas desses jovens, indagamos acerca de como o exercício da sexualidade pôde ser acolhido e investido por parte de suas comunidades religiosas neopentecostais.

A trajetória daquele jovem que durante o seu percurso na Casa das Juventudes/PROTEJO exerceu a função de presidente da Força Jovem ajuda a questionar tanto qual é o plano traçado por Deus quanto como ele foi posto em operação pela igreja neopentecostal da qual participa. Assim, aparece mais uma vez aquela pergunta: tão imprescindível quanto caminhar com Deus, de que maneiras e sob quais condições seguir com Ele?

Sua história nos mostra que, durante o tempo em que esteve envolvido com o projeto, esse jovem foi gradativamente se afastando da igreja. Contudo, uma reaproximação se deu a partir de uma conversa com o seu pai, quando este, em seu leito de morte, pediu que o jovem retornasse e jamais viesse a se afastar da igreja novamente. O modo como esse pedido foi recebido e processado pelo jovem não é interessante para nossa pesquisa, nem mesmo tentaremos entender se o seu retorno está relacionado à forma que ele encontrou para vivenciar o sofrimento e o luto causados pela perda de seu familiar. É a partir dos efeitos que esse regresso teve em sua vida que gostaríamos de suscitar como essa noção de reorientação para uma vida trilhada pelo caminho de Deus acabou sendo posta em funcionamento por sua igreja.

A ideia de que ofertar e elaborar, em certa medida, junto com os jovens, esboços de projetos de vida, tanto em consonância com o ascetismo flexibilizado e praticado pelas igrejas neopentecostais (Mariano, 2005), quanto úteis e necessários à comunidade religiosa local, faz-se presente. As igrejas neopentecostais operam dentro de uma lógica congregacional, no sentido de absorver certas singularidades de seus fiéis com vistas à solidificação de noções e valores de união, solidariedade e vida em comunidade (Mariano, 2005).

Apresentar-se sensível e acolhedora a determinadas práticas e interesses, mostrando o quanto são desejados e importantes para o bem comum e, ao mesmo tempo, empregando algum tipo de ingerência, não está distante da compreensão de que criar condições para que certo protagonismo possa emergir e que participar concomitantemente do seu processo de construção produz possibilidades de vida. Identifica-se uma estratégia de governo também utilizada pelas políticas públicas destinadas à juventude.

Assim, se para um grupo juvenil organizado como a Força Jovem se elegeu um representante para a Casa das Juventudes que reúne características entendidas como engajamento, entusiasmo, facilidade de falar em público, liderança e certa desenvoltura na condução de reuniões e grupos de pessoas, estas também podem percorrer a composição de um sujeito pastor. O que não se pode esperar até o momento é que recursos humanos sejam geridos pelas igrejas neopentecostais de modo diferente do tradicional.

No entanto, as condicionalidades para esse investimento e aposta no sujeito, diferentemente daquelas que foram possibilitadas nas relações cotidianas daquele projeto social local e específico, colocam-se nesse contexto neopentecostal a partir de outros princípios. É possível indagar a respeito de certos efeitos micropolíticos da recondução dessa vida para próximo daquilo que as igrejas neopentecostais têm associado a um modelo social e público de homem, heterossexual, pai de família e pastor em formação.

Pouco a pouco, os movimentos e gestos mais espontâneos intentados pelo corpo foram sendo disciplinados. O cabelo, que em algum momento experimentou adereços como prendedores e presilhas, foi ficando mais curto, aparado e rente à pele, o rosto e as unhas já não recebem qualquer tipo de produtos cosméticos e as roupas cada vez mais sóbrias e bem alinhadas. O preto e o branco substituíram as cores alegres e vibrantes e a indumentária social, composta por sapatos, calça e camisa, entra em cena. Denota-se todo um esforço posto em prática na relação entre jovem e igreja de se fazer esconder, até minguar e esmorecer tudo aquilo que foi tomado como denúncia através do corpo de uma alma que outrora havia se perdido.

Contudo, se os modos de conduzir a juventude postos em circulação pelas igrejas neopentecostais ativam noções presentes no dispositivo da sexualidade, se dão no exercício das relações mais próximas e cotidianas com os jovens, não assumindo práticas de dominação, mas de produção de acordos, combinações e negociações possíveis e interessantes para ambos os lados, então se pode afirmar que a norma também produz desejo de normalização naqueles aos quais ela se dirige. Por outro lado, assim como este é um efeito possível e perceptível, também é previsível que a mesma norma convoque a transgressão.

É com essa ideia da transgressão como efeito da norma que gostaríamos de concluir nossa análise na medida em que também existem possibilidades de vida fora da instituição e da institucionalidade religiosa e neopentecostal, de modo que, invariavelmente, essa vida em toda sua potência e possibilidade acabe privilegiando sua condução por outros discursos e estratégias.

Do lugar de quem resistiu, ou então escolheu outras possibilidades para si, trazemos a trajetória do outro jovem, também participante da Casa das Juventudes/PROTEJO nos anos de 2010 e 2011 e fiel frequentador de uma das igrejas neopentecostais localizadas no Bairro Guajuviras. Este jovem declara para a família sua orientação sexual divergente da heterossexualidade, sendo esta relativamente bem acolhida até o momento em que a não correspondência com a norma dominante passa a se fazer incômoda.

Existe certa distribuição de naturalizações a respeito da juventude que se ocupa de abordar alguns processos de vida como se esses fossem próprios e, em algum nível, restritamente permitidos e suportados pelos demais quando estes sujeitos se encontram obrigatoriamente nessa condição social que se convencionou chamar de juventude. As experiências que têm lugar na juventude acabam sendo entendidas como permissões localizadas e passageiras no tempo e no espaço até a vida adulta. Isto é o que Margulis (1996) chama de moratória social e vital.

No entanto, indagamos se o que se faz incômodo não é a frustração quando aquilo que se mostra passageiro é a expectativa de que tais desejos e afetos assim fossem. É nesse momento que os projetos de vida do jovem são tomados como denúncia daquilo que o dispositivo da sexualidade e as igrejas neopentecostais buscam impedir. Não mais caminhar com Deus, mas sim dançar com o Diabo.

Aos poucos, os olhares lançados sobre a vida deste jovem passam a enxergar somente o seu distanciamento da norma heterossexual. Assim, em seu contexto familiar, participar do grupo de dança de funk proposto por um companheiro de projeto, trabalhar como atendente no comércio de roupas e até mesmo cursar uma faculdade de Psicologia são tomados como sinais de seu desencaminhamento. Nesse momento, entra em cena o pastor de sua igreja, convocado para, através de conversas e aconselhamentos, reconduzi-lo ao culto e, por consequência, à norma.

Quando as tentativas de reaproximá-lo da igreja neopentecostal da família se viram fracassadas, restou apostar na disciplina da prestação de serviço militar na base aérea de Canoas/RS. Um ano deveria ser o suficiente para endireitá-lo. Mas o Diabo é ardiloso e sua música sedutora convida o corpo a movimentos desregrados. Igreja e Aeronáutica falham e o Tinhoso faz aterrissar, nesta bastante normativa e sagrada pista, desde então, o seu par de dança.

 

Conclusão

A discussão realizada neste artigo problematiza a forma como as igrejas neopentecostais colocam em funcionamento a noção de heteronormatividade, articulando-a com a noção de protagonismo juvenil, também presente nas políticas públicas de juventude. Assim, aproximam-se do dispositivo da sexualidade desvelado por Michel Foucault (1988), passando a operá-lo, adaptando-o de acordo com os princípios religiosos. Com isso, investem na produção de um sujeito jovem neopentecostal orientado para uma vida trilhada dentro daquilo que é entendido como o caminho de Deus.

A partir dos efeitos da presença das igrejas neopentecostais na vida de dois jovens, tornou-se possível demonstrar que tal caminho diz respeito à elaboração de projetos de vida organizados em torno da heterossexualidade, do modelo tradicional de instituição familiar, da proximidade e permanência na comunidade religiosa, atravessados permanentemente por uma racionalidade neoliberal.

 

 

Referências Bibliográficas

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Data de recebimento: 04/05/2017
Data de aceite: 19/11/2017

 

 

1 A discussão do presente artigo emerge a partir da experiência de trabalho de um dos autores, que trabalhou neste projeto como educador social em Direitos Humanos nos anos de 2010-2012.
2 As regiões alvo das ações do PRONASCI eram denominadas Territórios de Paz.

 

 

I Rodrigo Kreher: Doutorando e mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Integrante do Núcleo E-polics – Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação. E-mail: guigo.roots@gmail.com

II Neuza Maria de Fátima Guareschi: Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenadora do Núcleo E-politcs – Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação. Bolsista Produtividade CNPQ nível 1. E-mail: nmguares@gmail.com

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