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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades vol.17  Rio de Janeiro out./Dec. 2017

 

INFORMAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

 

 

Entre reflexões e fazeres posicionados: buscando a transformação social a partir de uma pesquisa-intervenção com jovens

 

Entre reflexiones y prácticas situadas: buscando la transformación social a partir de una investigación-intervención con jóvenes

 

MENEZES, Jaileila; ADRIÃO, Karla Galvão e RIOS, Luis Felipe (Orgs.). Jovens, câmera, ação: Reflexões sobre os usos dos dispositivos móveis de mídia em um projeto de mobilização social. Recife: Editora UFPE, 2017. 273p.

 

 

Paloma SilveiraI

II Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco (PPGPsi/UFPE), Recife/PE, Brasil.

 

 


Palavras-chave: juventudes, epistemologias feministas, metodologias participativas, transformação social.


Palabras clave: juventudes, epistemologías feministas, metodologías participativas, transformación social.


 

 

Uma psicologia engajada com a construção de um projeto ético-político de transformação das desigualdades sociais é o que encontramos no livro “Jovens, câmera, ação: reflexões sobre os usos dos dispositivos móveis de mídia em um projeto de mobilização social”. Yamamoto (2012), em suas reflexões sobre os 50 anos de regulamentação da psicologia como profissão no Brasil, aponta que uma das questões mais polêmicas desse percurso tem sido o alcance social da profissão e sua possibilidade de colaborar com a mudança social. Problematiza os sentidos de compromisso social assumidos por diferentes estudos, assinalando os desafios para uma definição do que seja esse compromisso, quando se considera a história da profissão e sua heterogeneidade teórico-metodológica. Lança o questionamento acerca da possibilidade de se construir um projeto coletivo, na forma de um projeto ético-político1 crítico e progressista para a psicologia, que tenha como orientação a transformação estrutural da sociedade capitalista. Ouso afirmar que esse livro apresenta linhas para esse projeto ético-político. Encontramos um exercício vigoroso do tripé ensino, pesquisa e extensão, tão caro às universidades públicas, com análises que complexificam os fenômenos sociais e subjetivos, interpretando seus diferentes movimentos relacionais entre permanências, fissuras, rupturas e contradições.

O livro, organizado em três partes, apresenta todo o processo de construção da pesquisa-intervenção Ação Juvenil, que integra o programa Diálogos para o desenvolvimento em Suape, desenvolvido pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Tal programa, como nos explicam os/as organizadores/as do livro e coordenadores/as do projeto, Jaileila Menezes, Karla Galvão Adrião e Luis Felipe Rios2, teve como objetivo minimizar os impactos sociais negativos decorrentes do crescimento econômico iniciado com a construção do complexo portuário-industrial de Suape. Localizado na região metropolitana de Recife, especificamente nos municípios de Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca, o complexo portuário-industrial de Suape acarretou mudanças que agravaram problemas em uma região já marcada por desigualdades sociais e econômicas. Atingiu diretamente os modos de vida da população local, sobretudo crianças e jovens, aumentando situações de violências e problemas de saúde. Questionamentos sobre o real significado do binômio crescimento/desenvolvimento econômico, para que e a quem servem, tornaram-se inevitáveis e a universidade foi convidada para analisar-intervir na situação.

A pesquisa-intervenção parte da compreensão de que a pesquisa e a extensão andam juntas e que o pesquisar é realizado em conjunto com as pessoas, no caso, com os/as jovens de idades entre 16 a 19 anos, estudantes de escolas estaduais dos municípios de Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca. Com a pesquisa-intervenção, buscou-se o envolvimento dos/as jovens como participantes ativos e também responsáveis pelo processo, considerando-se os diferentes aspectos de classe, raça/etnia, território, gênero e geração, que conformam as experiências sócio-culturais e subjetivas. Assim, o ensinar e o aprender também caminharam juntos, criando aberturas para a formação de profissionais e pesquisadores(as) críticos e comprometidos(as) com as necessidades da população.

Na primeira parte do livro, “Cenários e Roteiros”, temos quatro capítulos. No primeiro, uma introdução geral ao livro, Karla Galvão Adrião e Jaileila Menezes apresentam os objetivos da Ação Juvenil, a perspectiva teórico-metodológica utilizada e descrevem, de forma sucinta, todas as etapas para a realização do curso de mídias móveis, principal estratégia para a viabilização da proposta. A Ação Juvenil teve dois objetivos centrais: pesquisar os significados sobre desenvolvimento na relação com as desigualdades vivenciadas pelos/as jovens em seus contextos, e formar/instrumentalizar jovens lideranças para a produção e disseminação de informações qualificadas sobre seis eixos temáticos: exploração sexual de crianças e adolescentes; uso abusivo de álcool e outras drogas; direitos da criança e do/a adolescente; doenças sexualmente transmissíveis (DST/AIDS); gravidez na adolescência; e enfretamento da violência contra a mulher.

Para tanto, o trabalho foi fundamentado na perspectiva teórico-metodológica feminista pós-estruturalista, refletindo a trajetória acadêmica e profissional dos/as coordenadores/as. Parte-se da compreensão de que não existe um sujeito universal, com uma identidade fixa e uma essência natural. As identidades são consideradas como parciais e estratégicas, construídas na relação dialética com o outro e com o mundo, demarcadas pelo contexto sócio-histórico e cultural vivido, sendo atravessadas por relações de poder. A relação pesquisadores/as e “objeto de estudo” pauta-se nos saberes localizados, como define Haraway (1995, p. 23), citada pelos autores/as ao longo do livro: “(...) saberes parciais, localizáveis, críticos, apoiados na possibilidade de redes de conexão, chamadas de solidariedade em política e de conversas compartilhadas em epistemologia”.

Não cabe o pressuposto da neutralidade científica, já que a produção de conhecimento e de práticas é posicionada politicamente, tendo um sentido evidente, na Ação Juvenil, de engajamento dos/as jovens. Este é entendido como um processo político, em que as pessoas e coletividades potencializam suas habilidades e recursos para ter agência sobre suas vidas. Bourdieu (2005), no texto “É possível um ato desinteressado?”, também coloca em questão o suposto desinteresse do conhecimento científico. Segundo ele, os agentes sociais não agem de maneira incoerente, sem sentido, sempre há um interesse em jogo. Argumenta que os jogos intelectuais têm alvos e que esses suscitam interesses, mesmo que escamoteados pelos próprios intelectuais. Na Ação Juvenil, encontramos uma ciência posicionada, cujo interesse explicitado é de transformação das desigualdades sociais.

No capítulo 2, “Os bastidores do curso de mídias móveis: oficinas de formação da equipe Ação Juvenil”, Fernanda Sardelich Nascimento e Leonardo Castro Gomes apresentam reflexões sobre as experiências vividas no processo de constituição da equipe interdisciplinar de intervenção do projeto, composta por estudantes de Psicologia e de Ciências Sociais da UFPE, e psicólogas. A partir de duas linhas principais, da perspectiva teórico-metodológica e do uso dos recursos audiovisuais, os autores nos levam aos caminhos trilhados para a preparação dos/as facilitadores/as. Encontramos as oficinas realizadas para viabilizar a formação que, usando as metodologias participativas inspiradas no trabalho de Mccarthy e Galvão (2001), nos mostram o quanto são potentes e atuais as ideias da Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, e do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal. Oficinas em que as pessoas foram convidadas a interagir de maneira ativa, dialógica e horizontal, buscando-se a construção de um espaço onde elas se sentissem constituídas por ele e, ao mesmo tempo, constituintes. É interessante ressaltar que essa maneira de organizar as oficinas e propor as atividades foi também a utilizada com os/as jovens participantes da Ação Juvenil, demostrando as conexões dos momentos da pesquisa-intervenção e o cuidado da coordenação com esse processo.

No capítulo 3, “Manual do curso de produção de vídeos em mídias móveis: roteiro, captação e edição de imagens”, os/as leitores/as encontrarão o manual distribuído para os/as participantes do curso de produção de vídeos em mídias móveis. Para os/as organizadores/as do livro, a reprodução do material elaborado por Leonardo Castro Gomes possibilita o uso deste por outras pessoas que se proponham a utilizar a produção audiovisual como recurso de mobilização de grupos e comunidades. No último capítulo, “Atores e atrizes do curso de mídias móveis: quem são, o que pensam e o que podem dizer sobre suas vivências sexuais”, Rocio Del Pilar Bravo Shuña, Laís Rodrigues e Vanessa Benevides apresentam as características sócio-demográficas dos/as jovens, suas opiniões e práticas sobre sexualidade. De modo geral, a vivência da sexualidade dos/as jovens está marcada por desigualdades de gênero, geração e princípios religiosos, refletindo, ainda, os ditames de uma sociedade patriarcal. Esses dados ratificam a importância de trabalhos como o da Ação Juvenil que, ao promover problematizações sobre temas relacionados à sexualidade, favorecem a construção de espaços onde os/as próprios/as jovens possam questionar e refletir suas ideias, abrindo possibilidades de mudanças.

A segunda parte do livro, “Câmera, Ação!”, está dividida também em três capítulos: “A dimensão política da produção de vídeos por jovens: sensibilização para temáticas ligadas à saúde e proteção”, “Trabalhando com jovens sobre drogas a partir do dispositivo das tecnologias das mídias móveis: o desafio em redimensionar olhares e práticas em torno da relação juventude e drogas” e “O trabalho com grupos como potencializador de transformações na experiência do curso de mídias móveis”. Nestes capítulos, as autoras Raissa Falcão, Dara Andrade Felipe, Lellyane Bezerra de Souza, Mayara Lacerda, Juliana Lucchesi, Ísis Maurício e o autor Ruan Paiva analisam os percursos de facilitação das oficinas: o processo grupal, as discussões sobre os temas, os exercícios para o manuseio dos recursos audiovisuais e a produção dos vídeos.

Diferentes atividades foram realizadas com os/as jovens, em que algumas temáticas como, por exemplo, gravidez na adolescência e uso de álcool e outras drogas, foram debatidas criticamente. A partir de um gatilho, exibição de partes de filmes, músicas, os/as jovens foram incentivados a falar acerca de suas percepções sobre as temáticas e os/as facilitadores/as interagiram, problematizando alguns conteúdos. O objetivo foi estimular reflexões críticas sobre si e sobre o mundo, buscando o engajamento e a autonomia das/os jovens, para posterior produção dos vídeos. Essa parte nos faz rememorar as provocações de Martin-Baró (1996) sobre o que fazer do/a psicólogo/a:

Ao afirmar que o horizonte primordial da psicologia deve ser a conscientização, se está propondo que o que fazer do psicólogo busque a desalienação das pessoas e grupos, que as ajude a chegar a um saber crítico sobre si próprias e sobre sua realidade (p. 17).

Além de analisarem de forma detalhada as etapas das oficinas, os/as autores/as apresentam um potente exercício de reflexividade, uma reflexão do sujeito-pesquisador(a) sobre si mesmo e seus posicionamentos no processo de investigação (Spink, 2000). Desestabilizando dicotomias entre pesquisador/facilitador/a e participantes e a noção de neutralidade do fazer científico, como proposto pelas epistemologias feministas, os/ autores/as trazem os afetos, nos levando ao aprender fazendo posicionado da pesquisa-intervenção com seus desafios, acertos, erros, frustrações e ajustes.

A terceira e última parte do livro, “A ação continua: desdobramentos”, possui dois capítulos que apresentam o depois, as possibilidades de continuidade construídas com a finalização da Ação Juvenil. No primeiro capítulo, “E a Ação Juvenil continua... Pesquisando, conhecendo e sentindo com as/os jovens”, Rocio Del Pilar Bravo Shuña, Karla Galvão Adrião, José Mario Gomes e Ruan Paiva focalizam as oficinas realizadas com um grupo de jovens voluntários, egressos da Ação Juvenil. Os objetivos dessas atividades foram a formação continuada das lideranças/agentes multiplicadores/as nas temáticas ligadas ao programa Diálogos em Suape e a organização da caravana para a cidadania: ação de mobilização social, em que os/as jovens, juntos com os/as facilitadores/as, realizaram atividades lúdicas e educativas em comunidades do Cabo de Santo Agostinho e de Ipojuca.

No último capítulo do livro, “Articulando materiais (áudio)visuais em contextos de práticas educativas de saúde e cidadania”, Luís Felipe Rios e Tacinara Nogueira de Queiroz continuam discutindo os desdobramentos do curso de mídias móveis, retomando alguns pressupostos teórico-metodológicos, adicionando outros, como o debate sobre a noção de vulnerabilidade, e apresentam alguns materiais utilizados com os/as jovens e os confeccionados por eles/as. O rico material produzido pelos/as jovens foi utilizado como subsídio para a construção de algumas tecnologias sociais do programa Diálogos Suape. Uma produção de cartilhas, vídeos e livros voltados para os/as profissionais das áreas de saúde, educação e assistência social, bem como para a população em geral, foi elaborada e utilizada em variadas ações, incluindo a caravana para a cidadania. Para os autores, a relevância da produção de materiais didáticos/informativos relaciona-se à concretização simbólica, no papel e nos vídeos, de uma onda de significação que vai circular pelas comunidades, disputando com os códigos hegemônicos que sustentam desigualdades no senso comum. Não se vincula a uma concepção de educação em saúde como transmissão verticalizada de informações técnicas, pelo contrário, “(...) é fomentar a consciência crítica, que também é politização; é criar condições para que os sujeitos se engajem e/ou constituam eles/as próprios/as ações de promoção da cidadania que garantam o bem estar na sociedade” (p. 260). A boa receptividade do material distribuído reforça as ideias trazidas acima pelos autores.

Torna-se mais uma vez evidente a implicação da Ação Juvenil com um fazer científico posicionado que almeje a transformação das desigualdades sociais e que dialogue com outros saberes, fortalecendo os vínculos da universidade com as comunidades e, assim, seu caráter público, democrático e de formação para a cidadania. Ademais, remete-nos à proposta de Santos (1995) de que o conhecimento científico só se realiza enquanto tal, na medida em que se reencontra com o senso comum, se “sensocomuniza”:

A ciência pós-moderna, ao sensocomunizar-se, não despreza o conhecimento que produz tecnologia, mas entende que, tal como o conhecimento se deve traduzir em auto-conhecimento, o desenvolvimento tecnológico deve traduzir-se em auto-conhecimento, em sabedoria de vida (p. 57).

Em tempos de obscurantismo e censura, é inspirador encontrar ações que promovam práticas transformadoras e contra-hegemônicas. A leitura do livro nos mobiliza a construir ações de resistência ao conservadorismo e às expressões antidemocráticas e de ódio predominantes na atualidade. Desse modo, nos convoca a continuar apostando, sobretudo, acreditando que outro mundo é possível. Fica o convite à leitura.

 

 

Referências Bibliográficas

BOURDIEU, P. É possível um ato desinteressado? In: BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 2005, p. 137 – 156.

HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, p. 7-41, 1995.         [ Links ]

MARTIN-BARÓ, I. O papel do psicólogo. Estudos de Psicologia, Natal, v. 2, n. 1, p. 7-27, 1996.         [ Links ]

MENEZES, Jaileila; ADRIÃO, Karla Galvão e RIOS, Luis Felipe (Orgs.). Jovens, câmera, ação: Reflexões sobre os usos dos dispositivos móveis de mídia em um projeto de mobilização social. Recife: Editora UFPE, 2017. 273p.         [ Links ]

MCCARTHY, J; GALVÃO, K.  Projeto Artpad: um recurso para teatro, participação e desenvolvimento. [S.1]: Centre for applied theatre research, 2001.         [ Links ]

SANTOS, B.S. Um discurso sobre as ciências. Lisboa: Afrontamento, 1995.         [ Links ]

SPINK, M. J. P. A ética na pesquisa social: da perspectiva prescritiva à interanimação dialógica. Revista Semestral da Faculdade de Psicologia da PUCRS. Porto Alegre, v. 31, n. 1, p. 7-22, jan./jul. 2000.         [ Links ]

YAMAMOTO, O.H. 50 Anos de profissão: responsabilidade social ou projeto ético-político? Psicologia: ciência e profissão, v. 32 (num. esp.), p. 6-17, 2012.         [ Links ]

 

 

Data de recebimento: 12/11/2017
Data de aceite: 15/11/2017

 

 

1 Para definir o que compreende por projeto ético-político, Yamamoto (2012) recorre a Iamamoto (2007), para quem um projeto ético-político implica duas dimensões articuladas: uma relacionada às condições macrossociais, que fundamentam o território sócio-histórico do exercício da profissão, estabelecendo limites e possibilidades, e outra relacionada às respostas sócio-históricas, ético-políticas e técnicas construídas pelos/as profissionais diante desse contexto, que demonstram como esses limites e possibilidades serão analisados pelos/as profissionais.

2 Professores/as vinculados/as ao Programa de Pós-graduação em Psicologia (PPGPsi) da UFPE.

 

 

I Paloma Silveira: Psicóloga, Pós-doutoranda do Programa de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (PPGPsi/UFPE), Brasil. Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), Brasil, e Mestre em Psicologia pelo PPGPsi/UFPE. E-mail: palomasilveira25@gmail.com

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