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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.18 Rio de Janeiro jan./mar. 2018

 

INFORMAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

 

 

Escolarização na aldeia: diluindo especificidades da infância guarani ou guaranizando a escola?

 

Escolarización en la aldea: ¿diluyendo especificidades de la infancia guaraní o guaranizando la escuela?

 

NOBRE, D. Entre a escola e a casa de reza: infância, cultura e linguagem na formação de professores indígenas guarani. Niterói: Eduff, 2016. 116 p. ISBN 978-85-228-1061-1

 

 

Renata Silva BergoI e Renata Lopes Costa PradoII

I Universidade Federal Fluminense, Instituto de Educação de Angra dos Reis, Departamento de Educação, RJ, Brasil.

II Universidade Federal Fluminense, Instituto de Educação de Angra dos Reis, Departamento de Educação, RJ, Brasil.

 

 


Palavras-chave: infância indígena, escolarização, interculturalidade.


Palabras clave: infancia indígena, escolarización, interculturalidad.


 

 

O livro Entre a escola e a casa de reza: infância, cultura e linguagem na formação de professores indígenas guarani apresenta os resultados da pesquisa de Domingos Nobre sobre a escolarização do povo indígena Guarani Mbyá1, realizada primordialmente na aldeia Sapukai, localizada em Angra dos Reis, no Estado do Rio de Janeiro. Seu objetivo era buscar compreender os impactos da presença da escola e da chegada da energia elétrica naquele território sobre as concepções tradicionais de infância e refletir a respeito de como essas transformações culturais são ou devem ser incorporadas aos currículos dos cursos de formação de professores indígenas.

Assim, infância, cultura, linguagem e currículo da formação de professores – termos que, agora, dão subtítulo ao livro – foram os eixos transversais que permearam a realização da pesquisa e que se configuraram depois em categorias analíticas do material produzido. Retomando dados, conceitos e discussões oriundos de trabalhos anteriores, fruto de sua longa experiência como pesquisador indigenista, Nobre aborda neste livro o complexo processo de apropriação do aparelho escolar por uma cultura tradicionalmente nômade e ágrafa.

Conforme afirma o autor, ainda são escassas as informações sobre os modos de vida das crianças indígenas na bibliografia antropológica brasileira. Além disso, ao considerar a diversidade de etnias e de culturas indígenas que convivem, ou coexistem, no país, temos uma ideia do tamanho da empreitada que há pela frente na busca pela garantia do direito à educação diferenciada, intercultural e bilíngue, tal como prevê a Constituição de 1988. Afinal, uma política nessa direção requer que se conheça, tanto quanto possível, essas outras culturas, as suas línguas e em que suas demandas por uma educação escolar se diferenciam das demandas oriundas de sociedades não indígenas, ou como se diferenciam entre as diversas sociedades indígenas.

Em relação a alguns povos, como os Tupinambás pesquisados por Florestan Fernandes, encontramos estudos de maior envergadura capazes de prover mais subsídios para tais reflexões. No caso dos guaranis, por outro lado, como afirma Nobre, “há apenas fragmentos insuficientes para uma síntese” (p. 14).

Talvez, pudéssemos dizer que mesmo uma síntese seria insuficiente, pois a alteridade dos outros, apesar de esforços em contrário, não se deixa enquadrar ou homogeneizar. Como exemplifica Augè (1999), “nenhum aladiano [...] elaborou ou pronunciou o discurso que o etnólogo denomina ‘sistema de pensamento’ [...]: essa realidade sistemática reúne com mais frequência as respostas parciais dos informantes [...] e as interpretações dos etnólogos [...].” (p. 24). Ainda assim, é preciso se dispor a conhecer o outro e suas lógicas próprias, inclusive para com elas aprender, para a partir delas estranhar nossas lógicas e reconhecer que vivemos em um mundo comum e que, se as relações que estabelecemos entre os povos são injustas, devemos isso à construção social, não à natureza ou a qualquer outra justificativa que impossibilite a construção de outras relações menos desiguais.

Entre a escola e a casa de reza traz, nesse sentido, contribuições tanto no plano teórico, ao apresentar elementos que permitem melhor compreensão de desejos, impactos e conflitos relacionados à presença da escola na aldeia, quanto no plano político, ao levantar questões que iluminam reflexões acerca das relações de poder entre indígenas e não indígenas e entre culturas, por vezes, em confronto. Nobre assume, portanto, nas palavras de Oliveira (2004, p. 21), a “tarefa ética” que se configura enquanto “mediação no âmbito da comunicação interétnica”.

Em sua pesquisa, de caráter exploratório, o autor percorre diferentes caminhos: um levantamento da bibliografia sobre infância indígena e escolarização no Brasil e a análise do material produzido na pesquisa de campo realizada na aldeia Sapukai (Angra dos Reis/RJ), na qual, há mais de 18 anos, ele vem desenvolvendo estudos, projetos de extensão e trabalhos de assessoria pedagógica e de formação de professores. O livro traz também relatos de incursões etnográficas ocorridas em outros dois territórios Guarani Mbyá: Tenonde Porã (Barragem/SP) e Krucutu (São Paulo/SP). Em suas análises, o autor procura articular os referenciais da sociologia da infância e da antropologia da criança à etnologia indígena.

Utilizando metodologias de base etnográfica, Nobre registra os dados resultantes de sua investigação valendo-se de diferentes linguagens, como o vídeo e a fotografia, além do texto. Assim, soma-se ao livro um vídeo documentário de mesmo nome, que registra trechos de entrevistas realizadas com quatro professores guarani mbyá de diferentes estados brasileiros. Nobre traz para o texto as principais reflexões suscitadas pelas respostas dos professores a perguntas como “o que mudou na infância depois da escola?” e “como superar o conflito?”.

Buscando constituir um “estado da arte” sobre a temática, Nobre conta ter encontrado quase uma centena de textos publicados nas duas últimas décadas, entre teses, dissertações e artigos. O livro focaliza, no entanto, a bibliografia que trata especificamente dos Guarani Mbyá e apresenta, inclusive, um quadro com a identificação das principais informações e dos conceitos centrais abordados nos 14 textos que relatam pesquisas realizadas junto à população dessa etnia. Entre a escola e a casa de reza se constitui, assim, como uma boa entrada para aqueles que começam a se interessar pela infância indígena e os processos de escolarização.

Do ponto de vista teórico, é interessante lembrar que os estudos sobre gênero são reconhecidos como propulsores dos estudos sociais da infância, pois questionam visões de mundo e estruturas sociais que privilegiam grupos humanos específicos (James, 2009; Hendrick, 2005). As contribuições dos estudos indígenas para os estudos sociais da infância talvez não tenham recebido até agora o mesmo reconhecimento, mas não há dúvida de que a articulação entre esses dois campos se configura como um terreno extremamente fértil. As crianças indígenas nos mostram que a ideia de infância não existe em todos os tempos e espaços e que, além disso, ela pode ser formulada de diferentes modos. Elas nos mostram também que há espaços, como as aldeias, em que as crianças não encontram os mesmos obstáculos que as crianças das sociedades ocidentais contemporâneas encontram para exercer e desenvolver suas competências e sua autonomia.

Esses são alguns dos aspectos que mostram a relevância de estudos como o de Nobre. Apesar disso, não há em seu texto uma discussão mais prolongada sobre o modo de vida das crianças guarani mbyá. Há, apenas, algumas pistas ao longo de todo o livro (e há também uma promessa do lançamento, em breve, do filme Falas e brincadeiras infantis Mbyá, dirigido por Nobre).

Entre as pistas que o livro nos oferece para conhecer mais sobre as crianças guarani mbyá, podemos destacar que tais crianças são vistas como um ser sagrado e completo2, diferentemente do que se observa na imagem da criança como um vir a ser, um futuro adulto, um ser ainda incompleto. Esta última é a imagem mais comumente encontrada na psicologia do desenvolvimento, além de ser o que informam também outras ciências e, inclusive, o senso comum. Elas também são apresentadas como ativas e como solidárias no cuidado umas das outras. Em sua educação, não há espaço para castigos. As características de sua personalidade e de seu espírito, bem como suas predisposições aos rituais são determinadas por seu nome e este lhe é dado pelo opyguá (xamã) assim que a criança passa a se expressar por meio da língua materna.

A escolarização ali provoca conflitos de diferentes ordens, mas, sobretudo, coloca em questão os modos próprios de compreender a infância, o lugar e o papel das crianças naquela sociedade. Isso porque, até então, aprender a ser um Guarani Mbyá ocorria exclusivamente na convivência diária com os parentes e outros membros da comunidade, onde se (re)produzem os saberes, fazeres e pensares que dão forma e conteúdo à cosmovisão típica desse povo. Quando começam a frequentar a escola, as crianças têm a sua circulação social restringida e passam a ter que se submeter à autoridade de um professor e à necessidade de entrar em contato com conteúdos explícitos e implícitos (que fazem parte do “currículo oculto”) que, em muitos aspectos, entram em contradição com sua cultura de origem.

Nobre destaca outro aspecto de profunda transformação social que diz respeito às diferenças socioeconômicas que se instauram a partir dos novos postos de emprego e possibilidades de ganho financeiro advindos da escola e que acabam por modificar também os sentidos atribuídos à escolarização. Estudar passa a ser, então, um projeto de vida pessoal que visa à melhoria de suas próprias condições sociais e econômicas.

Não obstante, o autor defende que esses processos não são regulares ou lineares, no sentido de que não ocorre uma incorporação direta e acrítica dos padrões das escolas não indígenas. O que se observou, na verdade, foi que os professores guarani mbyá realizam uma “apropriação criativa” (p. 15) que envolve reprodução, mas também ressignificação de tais padrões, produzindo um fenômeno que ele conceituou como “guaranização”.

Nos currículos praticados nas escolas indígenas paulistas, foram identificados mais traços da escola não indígena do que ocorre em Sapukai. Não obstante, muitos estudiosos, diz Nobre, não veem nenhuma vantagem nisso. Pelo contrário, consideram a escolarização dos Guarani Mbyá do Rio de Janeiro como “atrasada” e apontam como causa disso justamente a demora que apresentaram em aceitar e a se adaptar à estadualização de suas escolas.

Outra questão abordada na pesquisa de Domingos Nobre é a chegada da luz elétrica na aldeia e, com ela, a introdução de aparelhos eletrônicos nas residências e também na escola. Esses novos meios de comunicação vão se configurar em fontes, se não de conhecimento, pelo menos de informação, que vão se chocar com as formas tradicionais indígenas de transmissão cultural.

No entanto, é interessante pensar que o mesmo processo complexo e contraditório que ocorre com a escolarização acaba ocorrendo também no tipo de relação que os Guarani vão estabelecer com as novas tecnologias, as quais vêm tendo cada vez mais acesso e que despertam grande curiosidade e interesse, principalmente entre os mais novos.

Ao ressignificarem os usos dos aparelhos tecnológicos, a partir da lógica de pensamento e ação guarani, os jovens podem desempenhar um importante papel de mediadores no processo de compreensão crítica das transformações culturais. É nessa perspectiva que Nobre ressalta a importância de que a produção de materiais audiovisuais sobre eles e para eles seja feita por eles (p. 88). O autor nomeia esses processos de ressignificação que vão sendo construídos de “complexo resistente-subordinado”, conceito-chave de suas pesquisas e que dá a exata dimensão do que ali ocorre.

Ele encerra o livro apontando a necessidade de todas essas reflexões estarem presentes na formulação de políticas públicas para educação indígena e na elaboração dos currículos de formação de professores, a fim de que a desejada educação diferenciada e intercultural de fato se efetive.

 

 

Referências Bibliográficas

AUGÉ, M. O sentido dos outros: atualidade na antropologia. Petrópolis: Vozes, 1999.         [ Links ]

HENDRICK, H. A criança como ator social em fontes históricas: problemas de identificação e de interpretação. In: CHRISTENSEN, P.; JAMES, A. (Org.). Investigação com crianças: perspectivas e práticas. Porto: ESEPF, 2005.         [ Links ]

JAMES, A. Agency. In: QVORTRUP, J.; CORSARO, W. A.; HONIG, M. The Palgrave handbook of childhood studies. Basingstoke, Hampshire [etc.]: PalgraveMacmillan, 2009, p. 34-45.         [ Links ]

NOBRE, D. Entre a escola e a casa de reza: infância, cultura e linguagem na formação de professores indígenas guarani. Niterói: Eduff, 2016. 116 p. ISBN 978-85-228-1061-1.         [ Links ]

OLIVEIRA, R. C. O mal-estar da ética na antropologia prática (21-32). In: VICTORA, C.et al. (Org.). Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Niterói: Eduff/ABA, 2004.         [ Links ]

 

 

Data de recebimento: 30/11/2017
Data de aceite: 08/12/2017

 

 

1 Assim como no livro resenhado, adota-se aqui a seguinte regra: quando a denominação de uma etnia é um adjetivo, ela é escrita com letra minúscula; quando é substantivo gentílico, com maiúscula.

2 A exceção são as crianças bem pequenas, pois tal completude é atribuída às crianças quando elas dominam a língua.

 

 

I Renata Silva Bergo: Professora do Departamento de Educação do Instituto de Educação de Angra dos Reis da Universidade Federal Fluminense (IEAR-UFF), Brasil. Pedagoga, mestre e doutora em educação pela UFMG, Brasil. E-mail: renatasilvabergo@gmail.com

II Renata Lopes Costa Prado: Professora do Departamento de Educação do Instituto de Educação de Angra dos Reis da Universidade Federal Fluminense (IEAR-UFF), Brasil. Psicóloga e mestre em psicologia social pela PUC-SP e doutora em psicologia escolar pela USP, Brasil. E-mail: renata.lopescp@gmail.com

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