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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades  no.19 Rio de Janeiro Apr./June 2018

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Maternidade adolescente no contexto das ruas

 

Maternidad adolescente en el contexto de las calles

 

 

Irene RizziniI, Renata Mena Brasil do CoutoII

I Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CIESPI/PUC-Rio), Brasil.

II Centro Internacional de Estudos sobre a Infância (CIESPI/PUC-Rio), Brasil.

 

 


RESUMO

A gravidez e a maternidade na adolescência acarretam profundos impactos nas vidas de jovens mulheres. Quando ocorrem em contextos de alta vulnerabilidade, como nas ruas, essa realidade torna-se ainda mais desafiadora e uma questão importante para o campo das políticas públicas. Entretanto, é restrita a produção de conhecimento sobre essa temática e, como resultado, são poucas as pesquisas que podem subsidiar os desenhos institucionais de assistência e atenção a jovens mães em situação de rua. Este artigo visa a contribuir para o debate atual, revisitando a literatura acadêmica e discutindo práticas em curso destinadas às adolescentes grávidas e/ou mães em situação de rua. Identificamos que a maior parte dos estudos analisados considera aspectos positivos da maternidade, a partir dos discursos das jovens mães, ainda que sejam reconhecidas a complexidade do cotidiano de vida dessas adolescentes, a escassez de serviços específicos voltados para seu atendimento e a permanência de práticas punitivas e repressivas voltadas para essa população.

Palavras-chave: gravidez, maternidade, jovens em situação de rua.


RESUMEN

El embarazo y la maternidad en la adolescencia conllevan profundos impactos en la vida de jóvenes mujeres. Cuando se dan en contextos de alta vulnerabilidad, como en las calles, esta realidad se vuelve aún más desafiante y se convierte en una cuestión importante para el campo de las políticas públicas. Con todo, la producción de conocimiento sobre esta temática es restringida y, como resultado, son pocas las investigaciones que pueden subsidiar los diseños institucionales de asistencia y atención a jóvenes madres en situación de calle. Este artículo pretende contribuir al debate actual, revisando la literatura académica y discutiendo prácticas en curso destinadas a las adolescentes embarazadas y/o madres en situación de calle. Identificamos que la mayor parte de los estudios analizados considera aspectos positivos de la maternidad, a partir de los discursos de las jóvenes madres, aún cuando se reconocen las complejidades del cotidiano de vida de estas adolescentes, la escasez de servicios específicos dirigidos a su atención y la permanencia de prácticas punitivas y represivas dirigidas a esa población.

Palabras-clave: embarazo, maternidad, jóvenes en situación de calle.


 

 

Introdução

Episódios flagrantes de violações de direitos humanos envolvendo crianças e adolescentes em situação de rua são comuns nos grandes centros urbanos. O enfraquecimento dos vínculos familiares e comunitários, a proteção inadequada do Estado, a ausência da escola, o trabalho infantil, o envolvimento com o tráfico de drogas e a violência, entre outros elementos, tornam crianças e adolescentes em situação de rua um grupo particularmente suscetível a violações estruturais. Consideramos que, a despeito do avanço nos debates acerca da garantia dos direitos humanos, temos acompanhado o crescimento de práticas punitivas e repressivas que incidem prioritariamente sobre grupos populacionais em contextos de vulnerabilidade, particularmente em situação de rua (CRC, 2015). Nesse contexto, um segmento específico enfrenta desafios ainda mais complexos e interseccionais. É o caso de adolescentes que vivem a maternidade nas ruas.

Este estudo teve como motivação uma experiência recente das autoras junto a um grupo de jovens mães com trajetória de vida nas ruas, experiência na qual tivemos a oportunidade de escutar múltiplos aspectos de suas trajetórias de vida1. Também nos influenciou uma série de denúncias e recomendações relacionadas ao afastamento de mães em situação de rua e/ou usuárias de crack/outras drogas de seus filhos recém-nascidos pelo sistema judiciário brasileiro (CRP/MG, 2015; MS, 2015; DP/RJ, 2015). Apesar desse cenário extremo, registramos um limitado número de pesquisas dedicadas a essa questão. A insuficiência de estudos que pudessem fornecer elementos teóricos e subsidiar as análises da referida experiência motivou o presente artigo, no qual reunimos e analisamos os principais aspectos da literatura recente sobre crianças e adolescentes em situação de rua e, mais especificamente, sobre o tema da gravidez e da maternidade nesse contexto2.

O levantamento da produção acadêmico-científica acerca das tendências teóricas e metodológicas relativas ao tema em questão incorporou artigos, teses e dissertações publicados entre os anos de 2000 e 2015 no Brasil. Foram selecionados 116 títulos no total, sendo que 10 abordavam o tema da maternidade e da gravidez adolescente e jovem em situação de rua. As análises realizadas acerca desse material serão apresentadas neste artigo.

Além disso, como parte da proposta de desenvolver uma pesquisa exploratória sobre o tema, analisamos práticas recentes voltadas para adolescentes grávidas e/ou mães em situação de rua. Com isso, esperamos traçar um panorama sobre o tema, potencializar o conhecimento coletivo construído e estabelecer uma base para a construção de novos estudos, abordagens e metodologias de análise sobre o tema proposto.

 

Teorizando sobre a questão da vida nas ruas

A pobreza urbana e diversos fatores a ela interligados, como a violência, os maus tratos e a negligência no contexto familiar, seguem ocupando lugar de destaque no rol dos motivos que levam crianças e adolescentes a buscar, nas ruas, uma alternativa de vida (Ribeiro, 2001; Yunes et al., 2001; Paludo; Koller, 2008). Estudos apontam que condições socioeconômicas precárias e uma multiplicidade de fatores relacionados a essas condições acarretam problemas de natureza psicossocial, afetando a saúde física e mental dos indivíduos (Couto, 2012). Esses fatores podem gerar, inclusive, o afastamento de crianças e adolescentes de sua família e de sua comunidade, como já apontava Winnicott (1996), há décadas atrás.

Embora as relações familiares destes sujeitos sejam permeadas por conflitos, vulnerabilidades e dificuldades, inclusive no campo psicossocial e afetivo, os vínculos familiares resistem, ainda que fragmentados (Tfouni; Moraes, 2003; Barros et al., 2009). A ida de crianças e adolescentes para as ruas frequentemente representa um sinal extremo e um pedido de socorro que antes não foi ouvido ou efetivamente reconhecido. Dessa forma, essa ação pode ser entendida como uma busca por outras possibilidades de vida e, em alguns casos, como uma estratégia de autoproteção. Uma relação complexa de fatores gera processos graduais de afastamento, fragilização e rompimento dos vínculos familiares e comunitários (Rizzini et al., 2003). Nessas circunstâncias, a circulação, o ir e vir entre a casa, a rua e as instituições de acolhimento constitui uma das principais características da vida de crianças e adolescentes em situação de rua (Frangella, 2000; Rizzini; Neumann; Cisneros, 2009). Nas ruas, afastados de suas famílias e de suas comunidades, crianças, adolescentes e jovens seguem expostos a toda sorte de violações de direitos.

No que se refere à questão da gravidez e da maternidade na adolescência, foco central deste artigo, destaca-se que a adolescência é um momento delicado do ciclo de vida e do desenvolvimento humano. É um período no qual se processam significativas mudanças físicas, biológicas, psicológicas e sociais, fundamentais para a consolidação da identidade dos sujeitos. A gravidez e a maternidade neste período acarretam profundos impactos sobre esses indivíduos, muito embora, como todo fenômeno complexo, possua causas e consequências diversas. Nas ruas, o acesso aos serviços públicos e às oportunidades de apoio e melhoria de vida é limitado, o que torna essa realidade ainda mais desafiadora. Nesses casos, a gravidez na adolescência é frequentemente associada a baixos índices de escolaridade, baixos rendimentos no mercado de trabalho e à perpetuação de ciclos intergeracionais de pobreza, o que a torna uma questão de grande relevância do ponto de vista humano e social.

 

Gravidez e maternidade adolescentes no contexto das ruas

A falta de informação sobre o tema em questão, a exposição à violência e à exploração sexual, o uso abusivo de drogas e o limitado acesso a serviços de saúde e planejamento familiar fazem com que crianças e adolescentes em situação de rua se tornem um grupo particularmente suscetível à gravidez e às doenças sexualmente transmissíveis. Embora, em muitos casos, seja resultado de trajetórias de exclusão, a gravidez na adolescência nem sempre é indesejada e pode conformar uma busca pela ampliação de autonomia, autoridade e reconhecimento social. A opção por ser mãe na adolescência, especialmente entre meninas que vivem em contextos de alta vulnerabilidade, pode estar relacionada a um projeto de vida pessoal. As dificuldades de acesso ao mercado de trabalho e a ausência de um projeto profissional acabam, muitas vezes, cedendo lugar ao desejo de construir uma família. Além disso, o fato de ter um filho pode também reforçar o plano de seguir estudando e buscar melhorias em suas condições de vida (UNICEF, 2011).

Estudos indicam que, uma vez grávidas, grande parte das jovens opta por sair das ruas e buscar diferentes formas de apoio, inclusive em instituições de acolhimento. Nesses casos, os filhos passam a representar uma oportunidade de transformação. Dessa forma, a gestação e a maternidade podem se tornar estratégias de romper com a invisibilidade para meninas, que passam a ocupar papéis socialmente reconhecidos, tornando-se mães e mulheres e estabelecendo relações de amor e afeto muitas vezes, até então, inexistentes (Gontijo, 2007; Calaf, 2007; Fernandes, 2012; Penna et al, 2012a e 2012b; Santos; Motta, 2014).

Ao discutir o significado dos filhos para as mães adolescentes acolhidas, Fernandes (2012) destaca que as jovens mães consideraram mais os aspectos positivos da maternidade do que os negativos. Elas acreditam que passaram a ter atitudes menos prejudiciais a si mesmas e se sentem incentivadas a retomar os estudos, abandonar as ruas e a controlar seus comportamentos agressivos. A ideia de suprir as necessidades dos filhos e garantir seu sustento passa a ocupar a mente dessas jovens, que encontram força e coragem para enfrentar diversos problemas. Outro aspecto positivo considerado por elas é a possibilidade de criarem laços familiares e afetivos. Ainda assim, essas jovens mães reconhecem existir aspectos negativos na maternidade, como a dependência dos filhos por cuidados constantes, embora isso não revele ausência de cuidado, amor ou carinho.

A maioria das mães adolescentes em acolhimento institucional entrevistadas por Penna et al (2012a) tinha passagem pelas ruas e histórico de abuso de drogas, de violência e de laços familiares fragilizados. Como aspecto negativo, diante do reconhecimento de sua imaturidade, elas ressaltam as responsabilidades que precisam assumir e as restrições impostas à vida social. Elas revelam, ainda, certo despreparo para o nascimento dos filhos, temem as críticas que sofrem por terem sido mães tão cedo e demonstram preocupação em relação a sua situação financeira. Todavia, assim como na pesquisa citada anteriormente, essas mães ressaltaram as formas como a maternidade transformou suas vidas de modo positivo. As adolescentes tornaram-se mais preocupadas com o futuro e passaram a se dedicar a construir laços familiares a partir de seus filhos. Afeto, cuidado e educação parecem ser a base dessa nova relação onde a confiança e o diálogo passam a nortear a postura assumida pelas jovens mães.

Santos e Motta (2014) também concluem que a maternidade tem um significado especial e revela-se como um sinal de esperança, de reencontrar uma experiência de afeto significativa por meio da qual seria construído um sentimento genuíno de preocupação e comprometimento com o outro. Alinhados a pesquisas que buscam compreender a gravidez durante a adolescência de maneira menos estigmatizante, esses autores sugerem que a experiência da maternidade estimula as jovens mães a reorganizar suas vidas e encontrar verdadeira satisfação no vínculo de afeto com seus filhos.

Todavia, cabe destacar que os desafios da realidade social enfrentados por essas jovens mães também ocupam lugar de destaque nos estudos analisados. Gontijo e Medeiros (2008), por exemplo, ao mesmo tempo em que questionam a caracterização da gravidez na adolescência como um “problema” ou um “risco” no campo da saúde pública, reconhecem que muitas adolescentes em situação de rua têm suas trajetórias de vida marcadas pela exclusão social e são introduzidas na vida sexual de forma violenta e precoce, arriscando-se a contrair doenças sexualmente transmissíveis. Os autores afirmam que não defendem a ocorrência da gravidez na adolescência, mas buscam entendê-la do ponto de vista das adolescentes que a vivenciam e que, muitas vezes, não interpretam esse momento como um evento de risco, mas como uma experiência, senão desejada, satisfatória e transformadora.

A realidade de vida de muitas dessas adolescentes é marcada por baixos níveis de escolaridade, dificuldades de leitura e escrita e, consequentemente, uma série de obstáculos para seguirem trajetórias profissionais que lhes possibilitem maior autonomia. Famílias chefiadas por mulheres e com pais ausentes, assim como a pobreza, a vida nômade, o uso abusivo de drogas e a violência fazem parte da vida dessas adolescentes.

Em sua tese, Scappaticci (2006) revela que a maior parte das 21 entrevistadas em sua pesquisa afirmou ter crescido em contextos de extrema instabilidade, com vivências de rupturas e abandonos. Foram relatadas expulsões de casa, separações, irmãos desconhecidos, origens incertas, relações abusivas, episódios violentos, abuso sexual, abuso de drogas e decepções sobre o que esperavam de suas famílias. A maior parte delas revelou ter engravidado casualmente e apenas uma afirmou que o parceiro assumiu o filho, sendo que as demais citaram que os parceiros desapareceram, questionaram a paternidade, tornaram-se violentos ou foram presos. Depois do nascimento do filho, elas relataram ter encontrado dificuldades de permanecer nas ruas, pois não tinham condição de comprar comida e fraldas, nem como dar banho na criança ou protegê-la do frio. Elas acabaram recorrendo aos abrigos em busca de suporte. Seus relatos são ambivalentes sobre a experiência: elas reconhecem que são acolhidas, bem tratadas e têm oportunidade de cuidar melhor de seus filhos, mas são acometidas por sensações de medo, invasão e paranoia, pois se sentem ameaçadas, têm medo de perder o filho, não têm privacidade e se sentem estigmatizadas.

Em parte dos estudos analisados, é reforçada, pelas adolescentes entrevistadas, a cultura de que a responsabilidade pela contracepção e pelos cuidados com o filho, quando o nascimento ocorre, é das mulheres (Gontijo, 2007; Gontijo; Medeiros, 2008). Fernandes (2008), em seu estudo sobre a abordagem de mulheres mães em situação de rua, cita o caso de uma adolescente de 17 anos e seu filho de 23 dias. Essa adolescente encontrava-se extremamente fragilizada e dizia-se ciente de não ser uma “boa mãe”. A autora destaca que, embora desejasse uma melhoria na sua condição de vida e de seu filho, a adolescente, ex-moradora de abrigo, morando com uma tia, usuária de crack, com baixa escolaridade e sem emprego e renda, tinha negada qualquer possibilidade de mudança. Neste caso, mais uma vez, a mulher se tornou a única responsável pelo cuidado com o filho, o que, para a autora, ampara o “sistema matrifocal” das políticas públicas e contribui para a permanência de relações desiguais de gênero.

Calaf (2007), ao refletir sobre a infância e a sexualidade a partir de um grupo de crianças e adolescentes em situação de rua, também revela que, nos seis casos de gravidez ocorridos nos três anos de realização da pesquisa, a responsabilidade pela gravidez foi atribuída às meninas. Todas se consideravam responsáveis pela prevenção e, por isso, tinham que lidar com as consequências dela. As meninas relataram dificuldades de marcar consultas com ginecologistas e, quando perguntadas sobre as campanhas de saúde dirigidas a elas, afirmaram que tais campanhas não existiam. O grupo informou ainda ter dificuldades de acessar programas de saúde devido às exigências de comprovantes de residência e de consentimento de pais e responsáveis, por exemplo.

 

Desafios para o acolhimento institucional de mães e bebês

De modo geral, os estudos aqui analisados questionam a escassez de políticas específicas voltadas para o atendimento de adolescentes grávidas e/ou mães em situação de rua. A construção de abrigos especializados voltados para esse grupo é considerada indispensável para que se possa promover a interação e se estimule o vínculo afetivo entre as jovens mães e seus filhos. Parte significativa desses estudos foi realizada em instituições de acolhimento, consideradas espaços de cuidado fundamentais, com potencial de reinserção social e a consolidação de uma rede de apoio social e afetivo indispensáveis para as mães adolescentes, muito embora esses locais contem com rotinas e regras muitas vezes difíceis de seguir pelas jovens acostumadas com a “liberdade” das ruas (Gontijo; Medeiros, 2008; Fernandes, 2012; Penna et al, 2012a e 2012b; Santos; Mota, 2014).

Na pesquisa realizada por Fernandes (2012) em uma instituição de referência para jovens que se encontram em situação de risco ou nas ruas, as jovens entrevistadas destacaram como aspectos negativos da maternidade no abrigo a falta de autonomia diante das constantes interferências dos profissionais que orientam e ditam regras “excessivas”. Outro aspecto negativo mencionado diz respeito ao fato de que essas jovens consideram difícil criar seus filhos no ambiente do abrigo devido aos conflitos que vivenciam diariamente, seja pela interferência que sofrem dos profissionais, seja pela nem sempre amistosa convivência com as demais mães acolhidas. Por outro lado, parte das jovens relatou ter ótima relação com os funcionários do abrigo e atribuiu a eles um papel importante em suas vidas, sobretudo, no que diz respeito à reinserção social.

Em Penna et al (2012a), o suporte oferecido pelos funcionários do abrigo também é valorizado. As entrevistadas revelaram ser positivo, na maternidade acolhida, o relacionamento que desenvolvem com seus filhos, o apoio que recebem dos profissionais e as regras que estabelecem que é proibido bater ou gritar com os filhos. Por outro lado, mais uma vez, as normas institucionais são apontadas como aspectos desfavoráveis, pois as adolescentes sentem-se ameaçadas pela perda da guarda dos filhos, caso descumpram as regras estabelecidas, e isso ameaça a construção dos vínculos entre mães e filhos. Preocupações relativas à falta de estrutura dos abrigos e à precariedade dos serviços oferecidos também são sinalizadas.

Costa et al (2015), em seu artigo, não se restringem às crianças e aos adolescentes ao analisar o cotidiano de gestantes em situação de rua e sua relação com as políticas públicas. Porém, cabe destacar que, assim como nos demais estudos analisados, neste caso, foi constatado que as mulheres passaram a desejar um futuro melhor a partir da possibilidade de ter um filho, embora suas condições sociais precárias e, em alguns casos, a dependência química dificultem o planejamento e a realização de estratégias capazes de alterar seus cursos e projetos de vida. Os autores relatam que, na maioria das vezes, essas mulheres acabam perdendo seus filhos, o que materializa os medos das jovens mães relatados em estudos como o de Fernandes (2012) e Penna (2012a) e reafirma a importância de se oferecer o suporte necessário para que elas tenham condição de exercer a maternidade de modo adequado.

Dessa forma, embora consideremos importante desmistificar a questão da gravidez na adolescência apenas como um problema, é importante não subestimar os contextos socioeconômicos precários, a ausência de oportunidades e as experiências dolorosas por que passam as adolescentes em situação de rua. Experiências essas que, como elas próprias destacam em seus depoimentos, muito se intensificam com a vinda de um filho.  Além do sofrimento resultante de trajetórias de vida marcadas por experiências traumáticas que, com frequência, vêm desde a primeira infância, elas sofrem constante discriminação e toda sorte de violações de direitos. Elas são, frequentemente, alvos de várias formas de violência, criminalização e práticas higienistas, como as de recolhimento compulsório e institucionalização em estabelecimentos que não as protegem de fato (Coimbra, 2001; Coimbra; Nascimento, 2008).

 

Práticas e desafios do atendimento às mães adolescentes em situação de rua

Uma das questões relacionadas à experiência de vida nas ruas que vem se apresentando como um imenso desafio no campo da saúde pública é o uso abusivo de drogas. Ainda pouco compreendido, esse fenômeno acaba sendo usado como justificativa para a realização de ações de limpeza social com práticas desumanas, arbitrárias e violentas, sem que sejam apresentadas efetivas alternativas de prevenção, cuidado e promoção de direitos para os sujeitos comprometidos com essa realidade social (Lima; Tavares, 2013; Rodrigues, 2013).

Relacionado a esse fenômeno, nos últimos anos, despontaram em várias partes do país denúncias sobre práticas violadoras de direitos em relação à população de rua, como a institucionalização de bebês logo após o parto, sem o consentimento dos pais. O assunto provocou indignação e discussões em diversos espaços, sobretudo a partir das polêmicas recomendações do Ministério Público do Espírito Santo, publicadas em 2012, e de Minas Gerais, publicadas em 2014, sobre o fluxo de atendimento e os procedimentos adotados para garantir os direitos dos nascituros e recém-nascidos, especialmente nos casos que envolvem mães usuárias de drogas e nos casos de abandono.

Essas recomendações informam que os profissionais envolvidos deveriam comunicar imediatamente ao Poder Judiciário o nascimento de crianças de mulheres em situação de rua e/ou usuária de crack/outras drogas ou que se recusarem a realizar o pré-natal, ocasionando, por vezes, decisões para o afastamento das crianças recém-nascidas de suas mães, logo após o nascimento. Essas recomendações sofreram duras críticas dos profissionais da saúde e dos defensores dos direitos das crianças de forma geral, por serem consideradas estratégias que opunham os direitos de mães e filhos, provocando a punição das mães, a separação forçada de seus filhos e a institucionalização precoce de bebês. Essas práticas foram consideradas reflexos de uma violência sistêmica contra aquelas mulheres que exercem a maternidade fora dos modelos sociais pré-estabelecidos (CRP/MG, 2015).

Adolescentes grávidas e/ou mães em situação de rua vêm sendo profundamente impactadas por essas recomendações, pois passaram a ter seu direito de escolha e de convivência familiar e comunitária ameaçados. Quando implementadas práticas como as acima descritas, de maneira arbitrária e homogênea, são renunciados os princípios de construção de propostas individuais de atendimento, segundo orientação explícita das políticas públicas nacionais. Práticas efetivas de cuidado às mães e seus filhos são direitos que precisam ser reafirmados, assim como deve ser oferecido apoio estatal para seu exercício.

Embora esteja prevista em uma série de planos governamentais, dentre os quais podemos citar o Plano Plurianual 2016-2019, Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes e o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito à Convivência Familiar e Comunitária, a atenção especial aos grupos que vivem em contextos de vulnerabilidade extrema ainda enfrenta desafios relacionados, por exemplo, à falta de documentação necessária para acessar os serviços e programas sociais. O desconhecimento sobre essa população, desde sua localização até aspectos singulares do seu viver e o reconhecimento de suas necessidades, acaba limitando as possibilidades do fazer estatal.

As unidades de acolhimento institucional, que poderiam tornar-se espaço prioritário de proteção e reinserção social e comunitária para as adolescentes grávidas e/ou mães em situação de rua, encontram desafios para se alinhar às prerrogativas do Estatuto da Criança e do Adolescente e das diretrizes, normativas e orientações técnicas que entraram em vigor na última década, como o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (CONANDA e CNAS, 2006); as Orientações Técnicas para Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (CONANDA e CNAS, 2009) e a Lei Nº 12010/2009. É possível identificar uma série de problemas relacionados a estes espaços, dentre eles: as dificuldades de integração com a rede de atendimento; as constantes mudanças nas propostas de trabalho e a intensa rotatividade de educadores sociais; as regras que parecem arbitrárias e inadequadas para parte dos adolescentes; o afastamento dos amigos e da família; a ociosidade, que descumpre um requisito básico das crianças em idade escolar; e a ausência de um atendimento personalizado e afetuoso (Ribeiro; Ciampone, 2002; Moura; Silva; Noto, 2009).

As vagas em equipamentos especializados que acolhem mulheres e adolescentes com seus filhos recém-nascidos são escassas e os fluxos de atendimento a essa população carecem de orientação humanizada. Depoimentos por parte dessas mães, referindo-se a abusos e formas desrespeitosas de atendimento em equipamentos da assistência e da saúde, são comuns (Passos, 2016). Quanto às demais iniciativas da gestão pública destinadas às pessoas em situação de rua, tais como os Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), Centros Especializados de Atendimento à População em Situação de Rua (CentroPop), os Consultórios na Rua e os Centros de Atenção Psicossocial, essas ainda são muito limitadas, sobretudo no que se refere à especificidade do atendimento às adolescentes e jovens grávidas e/ou mães.

 

Concluindo

O enfrentamento da questão da gravidez e da maternidade adolescente e jovem no contexto das ruas tornou-se mais premente nos últimos anos por dois motivos: o avanço das políticas públicas e práticas voltadas aos direitos humanos, que demandam ações que assegurem os direitos de crianças, adolescentes e jovens; e a presença crescente de práticas punitivas e repressivas, que incidem prioritariamente sobre grupos populacionais em contextos de vulnerabilidade.

A maior parte dos estudos analisados busca explorar as contradições entre os aspectos positivos e negativos da gravidez e da maternidade na adolescência. Os primeiros são comumente relacionados ao discurso das entrevistadas e suas formas de vivenciar a questão. As adolescentes parecem interpretar essas contradições como etapas naturais de amadurecimento que podem transformar-se em plataforma de mudança para suas vidas. Já os aspectos negativos costumam relacionar-se à realidade social dessas mães e ao fato de que, muitas vezes, mais do que uma opção, a gravidez e a maternidade na adolescência podem ser fruto da ausência de oportunidades para que essas jovens visualizem um futuro diferente para si. Também podemos destacar que cuidar dos filhos na rua é considerado bastante desafiador pelas adolescentes que, de modo geral, recorrem às instituições de acolhimento, buscando apoio para o exercício da maternagem. Além disso, destacamos a ausência de estudos que tenham como foco a questão da paternidade adolescente, o que reforça sua invisibilidade.

Embora sejam necessárias mais pesquisas sobre o tema e o aprofundamento deste debate, alguns caminhos vêm sendo apontados visando à implementação de políticas públicas intersetoriais capazes de melhor responder às necessidades desse grupo. Recomenda-se, prioritariamente, a criação de programas e serviços que visem a: (a) assegurar condições para o exercício responsável da maternidade e da paternidade; e (b) apoiar jovens mães e pais para que eles possam alçar condições favoráveis de inserção social, educacional e laboral, visando a uma maior autonomia. Além disso, é fundamental aprimorar a qualificação da rede de atendimento para que ela seja capaz de assegurar a proteção e o acesso de jovens mães, pais e seus filhos a múltiplos serviços e direitos. Deve ainda ser considerada prioridade a construção de equipamentos seguros capazes de efetivamente acolher mães e bebês conjuntamente, garantindo, sobretudo, seu direito à convivência familiar e comunitária.

 

 

Referências

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Data de recebimento: 06/11/2017
Data de aceite: 12/01/2018

 

 

1 Ao longo dos últimos dois anos, temos desenvolvido um trabalho em parceria com uma organização não-governamental que atende crianças e adolescentes em situação de rua na cidade do Rio de Janeiro/RJ e temos acompanhado, através de rodas de conversa e oficinas, grupos de adolescentes e jovens grávidas e/ou mães com trajetória de vida nas ruas. Este trabalho vem sendo analisado e seus resultados serão divulgados oportunamente.

2 O levantamento da produção acadêmico-científica nacional foi realizado no âmbito do projeto “Políticas públicas e os desafios da implementação - Análise do caso da Política de Atendimento a Crianças e Adolescentes em Situação de Rua no Rio de Janeiro” (apoio: FAPERJ, CNE, Ref. N° E-26/201.274/2014).

 

 

I Irene Rizzini: Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e diretora do Centro Internacional de Estudos sobre a Infância (CIESPI/PUC-Rio), Brasil. Email: irizzini.pucrio.ciespi@gmail.com

II Renata Mena Brasil do Couto: Pesquisadora do Centro Internacional de Estudos sobre a Infância (CIESPI/PUC-Rio) e doutora em serviço social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Email: renatabrasilciespi@gmail.com

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