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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.20 Rio de Janeiro jul./set. 2018

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Infância sob ameaça: processos de caducidade social em El Salvador

 

Niñez bajo asedio: procesos de caducidad social en El Salvador

 

 

Carlos Iván OrellanaI

I Universidad Don Bosco, El Salvador.

 

 


RESUMO

O artigo utiliza a metáfora da ameaça para aludir ao efeito combinado e persistente de processos que minam a vida e o bem-estar da infância em El Salvador. Esse conjunto de processos se identifica como processos de caducidade ao forçar a interrupção da funcionalidade existencial da infância. Identificam-se e oferecem-se indicadores de pelo menos três formas de caducidade: aniquilação, expulsão e exploração. A identificação destes processos sugere que a política que realmente se aplica nessas condições responde, simultaneamente, a uma biopolítica e a uma tanatopolítica. Conclui-se com reflexões que, considerando condições adversas de vida bastante inamovíveis como as que experimentam milhares de crianças em El Salvador, exigem considerar a anomalia como fonte de conhecimento e o supostamente provisório como permanente.

Palavras-chave: violência, infância, biopolítica, política, caducidade.


RESUMEN

El artículo recurre a la metáfora del asedio para aludir al efecto combinado y persistente de procesos que menoscaban la vida y el bienestar de la niñez en el Salvador. Este conjunto de procesos se identifican como procesos de caducidad al forzar la interrupción de la funcionalidad existencial de la niñez. Se identifica y ofrecen indicadores de al menos tres formas de caducidad: aniquilación, expulsión y explotación. La identificación de estos procesos sugiere que la política que realmente se aplica en condiciones así responde, simultáneamente, a una biopolítica y a una tanatopolítica. Se concluye con reflexiones que, considerando condiciones adversas de vida bastante inamovibles como las que experimentan miles de niños y niñas en El Salvador, conminan a considerar la anomalía como fuente de conocimiento y lo supuestamente provisional como permanente.

Palabras-clave: violencia, niñez, biopolítica, política, caducidad.


 

 

Enquanto é mais simples estabelecer a utilidade de uma coisa, mais complicado resulta especificar para que serve um ser humano. Para que servem os homens, as mulheres ou as crianças. Para que servem as crianças? Alba Rico (2007) afirma que uma criança responde frente a tal questão alegando que servem para serem cuidadas. Serviriam para existir e, com isso, constatar que existem corpos concretos que devem ser protegidos; corpos que requerem tempo para desenvolver-se; corpos frágeis que lembram como é sentido - no corpo próprio - a alegria ou a desgraça alheia; corpos que aprendem e que ensinam a dar atenção à magia do simples e do cotidiano; corpos que resguardam e reclamam a memória ao manter vivo o milenário amor do cuidado doméstico. As crianças serviriam, em suma, para antecipar a eventual e inevitável ausência do adulto, que deve interessar-se por transformar através da política o mundo hostil que ficará espreitando as crianças (e seus corpos).

Poderíamos dizer então que, em contrapartida, se uma criança sofre negligência e abandono; se seu corpo é maltratado ou sua vida arrebatada; se sua existência vê-se submetida a demandas impróprias para sua idade e suas capacidades; se seu sofrimento ou sua alegria suscitam indiferença nos adultos; se não contagiam com sua surpresa ante o mar ou a poderosa formiga que carrega uma folha; se deixam de ser ninados à noite e alimentados de dia; e, por último, se não levam os adultos - enquanto estes podem, enquanto vivem - à construção de regras e de uma estrutura institucional que as proteja dos perigos da natureza como de outros adultos e de outras crianças perigosas, então deve dizer-se que as crianças perdem sua funcionalidade. Em uma palavra, a vida de uma criança ou sua “essência” – sua infância –, caducam.

Muitas dessas condições inversas e perversas de esgotamento da eficácia existencial da infância são identificáveis atualmente em El Salvador. Para Dada (2013), devido à magnitude da violência que acontece no país, El Salvador figurativamente emularia o angustioso quadro do espanhol Francisco de Goya y Lucientes, “Saturno devorando um filho”: o menor país da América Central constituiria dessa maneira um monstro - faminto, insaciável, infanticida e demente - que engole sem cessar seus filhos e filhas. Não é uma metáfora grandiloquente em um país onde 53.6% da sua população não ultrapassa os 30 anos de idade (Dirección General de Estadística y Censos, DIGESTYC, 2017), além de exibir uma taxa de homicídio vertiginosa de 327.2 assassinatos por cada 100 mil habitantes para homens com idades entre os 15 e os 29 anos (Fundación Guillermo Manuel Ungo, FUNDAUNGO, 2016). A brutalidade e a desproporcionalidade epidêmica que atinge a violência e a criminalidade levam a que hoje o país seja considerado o mais perigoso do planeta na ausência de uma guerra formal declarada (Mc Evoy; Hideg, 2017). No entanto, constituiria uma visão apressada considerar que a violência é o único perigo que a infância salvadorenha enfrenta.

Save the Children (2017), em seu relatório mais recente sobre as condições de vida das crianças no mundo, coloca El Salvador na categoria de "muitas crianças estão perdendo a infância". Desta forma, o país é atribuído à penúltima categoria da classificação feita pela organização internacional e está classificado em 126º lugar dentre os 172 países analisados. Essa deplorável posição se explica, em grande medida, como confirmação vergonhosa dos altos níveis de violência, porque a taxa de homicídio infantil se classifica como “muito alta” (22.4/100,000 habitantes entre 0 e 19 anos) e situa o país no terceiro lugar em mortes violentas infantis no nível mundial. Contudo, outros indicadores, alguns de “baixo” nível (por exemplo, mortalidade infantil), mas sobretudo os de nível “moderado”, como a proporção de matrimônio de adolescentes (21% de meninas e adolescentes entre 15 e 19 anos) e a taxa de maternidade adolescente (64.9/1000 partos adolescentes), igualmente intensificam a mencionada perda da infância que acontece em El Salvador. Isso significa que a violência que a infância sofre não é autônoma. Para atingir níveis tão transbordantes, requer-se a ligação com outros fenômenos e processos que a instiguem e que igualmente prejudiquem o bem-estar na infância. É o caso, por exemplo, quando o matrimônio e a maternidade infantil coexistem com condições de maus-tratos e de abuso sexual das meninas. Isso, por sua vez, costuma fechar as possibilidades de ascensão social das meninas e jovens para confiná-las a condições precárias de vida desencadeantes de mais violência e de violação de direitos (Fondo de Población de las Naciones Unidas (UNFPA) et al., 2016).

Com base no pressuposto de que a violência cotidiana em El Salvador tende a ser o alvo principal da análise acadêmica devido a sua desproporção, este trabalho tem como objetivo problematizar e transcender a análise da relação entre infância e violência em El Salvador. Interessa propor a existência de processos simultâneos de perda da infância, entendendo essa última categoria como uma noção dual referida tanto a um período particular do ciclo vital, como as crianças concretas enquanto corpos vulneráveis. O caráter massivo de tais processos, aglutinados na categoria de caducidade social, tornará possível reafirmar que, em contextos onde as crianças e jovens veem-se constantemente ameaçados com “caducar” devido à grande precariedade de suas existências ou à persistente ameaça de morte violenta, a excepcionalidade não equivale à exceção e a anomalia deve constituir-se em fonte de produção de conhecimento.

 

A caducidade social da infância salvadorenha

Compreendo por “caducidade social” o conjunto de processos sistemáticos de obsolescência acelerada a que são submetidos crianças e jovens em contextos de desproteção generalizada, como ocorre em El Salvador de hoje. A caducidade da infância faria referência tanto ao possível prejuízo ou à eliminação do corpo como também à distorção do período do ciclo vital próprio da criança. Por outras palavras, a título de ilustração, uma criança sofreria caducidade ao ser assassinada, mas também se sua vida não necessariamente estivesse em perigo, mas se visse forçada a trabalhar, situação usualmente crônica que prematuramente a deixaria perto de comprometer - ou diretamente de renunciar - a vivência de sua infância, e de resolver exigências adultas.

A caducidade humana como ferramenta de análise reconheceria o peso da violência como condicionante fundamental da sociedade em foco, mas não se limitaria a ela. Antes, aquela construiria uma caraterística de sociedades violentas, mas, sobretudo, a caducidade emergiria devido a – e no seio de – sociedades inóspitas (Orellana, 2016), sociedades com dimensões estruturais simultaneamente disfuncionais, porém convergentes com as atuais democracias excludentes e as consumistas economias neoliberais contemporâneas que as condicionam. A caducidade, seguindo um processo de ratificação desumanizante, revestiria a existência de uma certa infância, especialmente a que se encontra na parte mais baixa da sociedade, com o caráter efêmero das mercadorias, o ritmo acelerado do consumo, a prática de “usar e joga fora”, ou a definiria como uma consumidora desleal ou uma empreendedora que, por ser informal, é defeituosa. A infância, dessa maneira, torna-se um objeto de gestão social, administrativa e securitária, o que não exclui infligir violência sobre ela (Alba Rico, 2016; Bauman, 2006; Yate Arévalo; Díaz Rodríguez, 2015).

A caducidade da infância salvadorenha se verificaria, ao menos, através de três processos mutuamente intrincados entre si e que, em muitas ocasiões, são sofridos de maneira crônica, alternada ou simultânea por uma mesma criança, estes são: aniquilação, expulsão e exploração. Os três processos cristalizam a ameaça a que se vê submetida grande parte da infância e da juventude salvadorenha. Uma circunstância generalizada de encurralamento e pressão constante que leva ao limite a capacidade de resistência ou de sobrevivência. No quadro 1, mostra-se uma síntese da relação entre processos de caducidade, suas expressões e alguns exemplos de suas manifestações

 

Quadro 1: Processos, formas e alguns indicadores da caducidade infantil em El Salvador

Processos

Formas

Indicadores

Aniquilação

Homicídio

- 52.4% dos homicídios correspondem a jovens com idades compreendidas entre os 15 e os 29 anos, faixa etária cuja taxa de homicídio atinge os 327.2/100,000 habitantes.

- Primeiro lugar a nível mundial - embora tenha ficado terceiro em 2017, segundo Save the Children - em homicídios infantis em 2014 (taxa de 27/100,000 habitantes).

- Em 2016, uma média de três adolescentes morrem a cada dois dias no país de forma violenta, em grande medida devido à sua ligação com gangues.

Expulsão

Exclusão social

- Mais de 80% das famílias salvadorenhas padecem exclusão (desemprego, trabalho precário, baixa escolaridade, baixo ou nula proteção social) ou somente inclusão laboral (a mesma coisa à exceção de contar com um emprego não precário). O 35% não superam o limiar da pobreza por ingressos. 

- 26.6% dos jovens entre 15 e 24 anos são “nem-nem”: nem estudam nem trabalham. A maioria dos nem-nem são mulheres (muitas trabalham no invisibilizado trabalho doméstico) e 56% de nem-nem estaria fora do sistema educativo.

Deslocamento forçado interno e externo (migração)

- Em 2017, o deslocamento forçado por violência afeta 5% da população, isto é, umas 273.036 pessoas.

- 56.5% dos casos de deslocamento forçado interno informados à Cristosal afetam crianças e jovens até os 25 anos. As idades mais frequentes se concentram em crianças de menos de 11 anos.

- Entre 2012-2017, 243.081 pessoas têm sido retornadas por autoridades mexicanas ou estado-unidenses. Destas, 8 de cada 10 são do sexo masculino e têm entre 0 e 40 anos (de infantes até adultos jovens).

- Entre 2011 e 2016, calcula-se que a detenção de crianças e adolescentes não acompanhados nos Estados Unidos aumentou em 272%, enquanto que sua deportação de México subiu até um 446%.

- A migração de meninas tem aumentado, assim como a das crianças e jovens LGBTI. Em ambos os casos, a violência sexual e de gênero constitui uma razão fundamental e crescente para abandonar o país.

Exploração

Abuso sexual e maternidade infantil

- A taxa nacional de estupros é epidêmica e atinge os 35 casos em cada 100.000 habitantes.

- Em 2013, 9 de cada 10 agressões sexuais foram sofridas por mulheres, proporção que se replica para as meninas e adolescentes em 2015 e 2016. Em 8 de cada 10 casos, a agressão foi perpetrada por um conhecido ou um familiar e entre as idades de 14 e 19 anos se evidencia o maior risco de vitimização.

- Os resultados de uma enquete aplicada a uma amostra de meninas mães em 2012 (N= 424) encontrou que, em 1 de cada 4 casos, a primeira relação sexual não foi consentida e que 7 de cada 10 meninas ou adolescentes conviveram antes de ser mães, mas a metade já tinha engravidado, num vinculo que pode ser considerado forçado.

- Do total de gravidezes de 2015, o 30% corresponderam a meninas e adolescentes, uma gravidez infantil a cada 21 minutos.

- 2.6% dos e das adolescentes entre 12 e 17 anos têm  tido uma relação matrimonial ou não matrimonial. 60.3% destes adolescentes se encontram na área rural e 39.7%, na área urbana.

Trabalho infantil

8.4% das crianças e adolescentes entre os 5 e os 17 anos de idade seriam trabalhadores infantis. Três de cada quatro são crianças trabalhadoras e 4 de cada 10 se encontram fora do sistema educativo.

Castigo físico

Em 2014, 52% das crianças entre o primeiro ano de vida e os 14 experienciaram disciplina violenta sob a forma de agressão física ou psicológica.

Fontes: Bolaños Cámbara; Rivera, 2016; Cristosal, 2017; DIGESTYC, 2017;  FUNDAUNGO, 2016; KIND; Centro de Derechos Humanos Fray Matías de Córdova, 2017; Fondo de las Naciones Unidas para la Infancia (UNICEF), 2014; La Prensa Gráfica (LPG), 2017; Ministerio de Salud/Instituto Nacional de Salud; Observatorio de Migración (OMI), 2018; Programa del Estado de la Nación (PEN), 2016; UNFPA et al., 2016.

 

A aniquilação seria a forma de caducidade mais descarnada. Implica a morte violenta de crianças e jovens. Os valores que se mostram no quadro 1 confirmam que, mesmo que El Salvador constitua um cenário singular de perigo generalizado para a integridade física e psicológica dos seus habitantes, a especial vulnerabilidade da infância e da juventude a expõe ainda mais à fome voraz do país – Saturno devorando seus filhos.

Utiliza-se a noção de expulsão para aludir a processos de remoção social ou existencial da infância e da juventude. Expulsar ou remover constituem mecanismos que conotam uma ação disruptiva que empurra, extrai ou isola. Suas variantes seriam pelo menos três: a exclusão social como forma de segregação de esferas de integração social (por exemplo, educação, saúde); o deslocamento forçado, ao interior ou para fora das fronteiras nacionais, e a evasão como forma alienante de “estar sem estar” no mundo, como ocorre com dimensões da socialização religiosa ou, para além dos inegáveis benefícios do mundo digital, o autismo induzido que fomentam as onipresentes telas.

No quadro 1, expõem-se indicadores de exclusão e de deslocamento forçado. Por enquanto, pouco se sabe no país sobre o impacto que tem a religião no desenvolvimento infantil enquanto âmbito que promove, entre outros, o pensamento não científico, o convencionalismo (de caráter autoritário, a propósito, ver Orellana, 2018) e o desentendimento político do mundo, em particular quando se trata das crescentes denominações pentecostais (Pew Research Center, 2014). Menos ainda, conhece-se adequadamente a magnitude do consumo de tempo e vida que implica para os jovens salvadorenhos permanecer conectados à internet frente a uma tela. No entanto, em nível mundial (UNICEF, 2017),  são reconhecidas implicações como a conexão excessiva ou o assédio pelas redes. Também pode considerar-se essa outra exclusão dentro da exclusão que supõe para muitas crianças e jovens a impossibilidade de se “conectar” para ser partícipes de oportunidades educativas com o uso das TIC (Tecnologia da Informação e Comunicação). Mas também para se ver seduzidos pelos cantos de sereia da eternidade lúdica das telas e sua pressão consumista, exibicionista e voyeurística, assim como as possibilidades de expressão e de pertença que oferecem.

A exploração não exclui a violência, mas não necessariamente implica a eliminação física de quem a sofre, como efetivamente ocorre com a aniquilação. De fato, o comum é que a exploração, enquanto instrumentalização do outro, costuma requerer a preservação da existência de quem a sofre para conveniência do explorador. É possível identificar pelo menos três formas de exploração: abuso sexual e maternidade infantil; trabalho infantil e castigo físico. O trabalho infantil indica precariedade sociomaterial e o castigo físico confirma práticas de criação autoritárias enraizadas culturalmente que, em princípio, podem afetar  meninos e meninas por igual (Orellana, 2018). Mas o abuso sexual e a maternidade infantil constituem formas de exploração que se ligam violenta e especialmente, de forma quase exclusiva, com as meninas que, sem rodeios, implicam na perda da infância ao deixá-las expostas, com tão poucos anos, a demandas e experiências adultas muito complexas e avassaladoras.

 

Fazer viver e fazer morrer como tensão política

As dinâmicas e processos que entram na categoria de caducidade constituem misturas biopolíticas e tanatopolíticas. Isto é, formas de poder que se exercem sobre a “população infância” que permutam constantemente entre a gestão e a produção da vida (registro de crianças deslocadas, criação de instâncias para a atenção de migrantes, a obrigatoriedade da maternidade em face da proibição do aborto em todas suas formas) e a produção, súbita ou latente, de morte (homicídios de jovens, a migração irregular com seus perigos, agressões sexuais e gravidez infantil que derivam em suicídio) (Foucault, 2009; Yate Arévalo; Díaz Rodríguez, 2015).

Embora tenha sido dito que a política - as instituições, o estado de direito, os tratados - era essencial para a proteção das crianças do mundo inóspito que as rodeia, os processos de caducidade demostram precisamente a vulnerabilidade de grande parte da infância salvadorenha e a vigência de tendências biopolíticas e tanatopoliticas.  Confirma-se assim a distorção, a impotência e até a desativação da política própria de um estado de direito democrático como instrumento de garantia de bem-estar e proteção da infância. A caducidade expõe contradições abertas como contar com leis que não se aplicam, com instituições reumáticas ou discursos para parar a migração que calam frente à persistência de condições que a provocam. A biopolítica e a tanatopolítica configuram um cenário de tensão simultânea entre a inclusão e a exclusão. Um estado de exceção que dilui os limites entre o jurídico e o não-jurídico (Gil, 2010), que se (des)aplica sobre corpos com vida, porém indefesos, ao se encontrar excluídos do sistema a partir de uma inclusão marcada pela caducidade.

 

Reflexões finais

A caducidade retrata um conjunto de práticas sociais deletérias que, na atualidade, afetam grande parte da infância e da juventude salvadorenha além da violência, mas sem desconsiderá-la nem subestimar seus desmedidos efeitos. A gravidade de arrancar a vida a tantas crianças não deve fazer perder de vista que, embora muitos sejam devorados pelo País-Saturno, muitos mais são os que observam - e resistem, às vezes indefesos, às vezes fugindo e às vezes devolvendo as mordidas a adultos e outras crianças por igual – enquanto, a partir da fragilidade das suas existências, assistem expectantes à sólida possibilidade de chegar a ser os seguintes em experimentar a caducidade.

A caducidade revela-se por seus efeitos mas, como foi exposto, esta constitui um indício inequívoco da vigência de certos arranjos sociais: sociedades violentas, evidentemente, mas também democracias e economias de mercado nas quais o cidadão existe e vale na medida em que tem e segundo mimetize sua vida com o ciclo interminável de uso e desuso das mercadorias. Mas a caducidade também atualiza práticas sociais patriarcais e autoritárias em que a instrumentalização, a possessividade masculina e o avassalamento da existência das crianças resultam evidentes. A infância se encontra sob ameaça devido a configurações sociais e institucionais que pulverizam os horizontes da vida, mas também devido ao funcionamento de uma política que assiste silenciosa e com impotência à dilapidação das supostas “gerações de revezamento” ao “futuro da nação”, ao “dividendo demográfico” que se supõe constituir hoje um capital humano para os países (é o caso pelo menos dos países de América Central; ver PEN, 2016).

Quando a ameaça existe em uma realidade dada e, por conseguinte, são identificáveis processos multifacetados e persistentes de caducidade, o olhar acadêmico dominante costuma olhar raridades. A academia dominante – falo, sobretudo, da Psicologia do Desenvolvimento -, costuma conceber o ciclo da vida de crianças e jovens como trajetórias vitais lineares e relativamente estáveis, consonantes a condições sociomateriais que propiciam tanto esse equilíbrio como essa hegemonia na produção de conhecimento. Mas, se a circunstância é adversa (existe desnutrição, maltrato, abandono), essa recebe tratamentos marginais, “re-enquadramentos” nos textos que abstraem ou cortam o feio da construção ideal desenvolvida para reafirmar sua excepcionalidade. Porém, onde o excepcional é norma, onde o restritivo resulta prescritivo, quando se pensa em, e a partir de, sociedades inóspitas, muitas teorias e categorias na hora de serem utilizadas revelam-se insuficientes e impelem a reinventar tanto as perspectivas de análise na prática, como no posicionamento do trabalho acadêmico (Orellana, 2016).

A constância e a desproporção da infância sem vida, perseguida ou coisificada, refutam qualquer atribuição de excepcionalidade. Mais ainda quando é somada à cifra obscura que evita os registros para terminar no esquecimento, em uma constatação de que, em países como El Salvador, a realidade costuma ser pior do que parece. Um país-Saturno constitui uma fábrica de infância anômala - crianças assassinadas e assassinas, crianças “não acompanhadas” que se acompanham entre si e migram de forma irregular, infância e juventude LGBTI forçada a fugir por ter identidades proscritas, meninas que parem meninas -, fruto da metástase própria da anomalia primeva de um mundo adulto infanticida e antropófago. Se a anomalia é generalizada, pelo mesmo motivo, deve ser assumida como uma fonte epistemológica, como matéria prima de desconstrução crítica, assim como de questionamento às análises que persistem em tratá-la como uma extravagância fenomenológica.

A noção dominante que sustenta que o ciclo vital de uma pessoa acontece em etapas e segundo o sucesso relativo que consiga em cada uma delas não parece se adequar a ciclos de vida massiva e predominantemente desvantajosos como os que capturam os processos de caducidade. Nessas condições, o mais provável é identificar processos de interrupção (por exemplo, morte) ou de colapso (por exemplo, adultização) e, portanto, de demarcação difusa entre etapas de desenvolvimento e suas supostas tarefas associadas. Quando a anomalia social é frequente e persistente, como ocorre em El Salvador, a reflexão acadêmica enfrenta o desafio de pensar o que se supõe que deveria ser transitório como permanente como objeto de estudo. Da mesma maneira que é comum em El Salvador o fato de nunca se obter documentos de propriedade, a escola ficar suspensa indefinidamente, ou o trabalho precário informal se perpetuar sem possibilidades de aposentadoria, também o é para muitas crianças o definitivo homicídio, o tortuoso deslocamento forçado que implica um prolongado limbo material e legal, assim como a prisão perpétua existencial das sequelas do abuso sexual, A faminta caducidade que consome a infância salvadorenha exige olhar além da violência, mais perto das visões progressivas e homeostáticas, e situadas na vida social que emerge, sucumbe e resiste sob ameaça.

 

 

Referências

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Data de recebimento: 30/05/2018
Data de aceite: 05/08/2018

 

 

I Carlos Iván Orellana : Doutor em Ciências Sociais, FLACSO-Programa centroamericano. Formação acadêmica e profissional em Psicologia social e política, Universidad Centroamericana (UCA), El Salvador. Pesquisador da Universidad Don Bosco, El Salvador (e-mail: ivan.orellana@udb.edu.sv). Email - psi.ciorellana@gmail.com

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