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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.22 Rio de Janeiro jan./mar. 2019

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Morte e vida na adolescência: da dor e da delícia de ser jovem

 

Muerte y vida en la adolescencia: del dolor y la delicia de ser joven

 

 

Fátima Flórido CesarI

I Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Brasil.

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo refletir sobre o sofrimento na adolescência, que vem se apresentando sob a forma de comportamentos de risco: depressão, ideias e tentativas de suicídio e ataques corporais. Destaco que esse breve estudo partiu da incidência numerosa de suicídios e auto-mutilações que vêm ocorrendo nos últimos anos. A articulação entre algo de caráter epidêmico e a singularidade do adoecimento desses jovens que chegam aos consultórios conduziu-me a recorrer ao relato da história de Ana com seu desamparo e busca de identificação com grupos que se organizam em torno do mortífero. Por outro lado, a atenção aos movimentos de vida e anseio por pertencimento faz-se necessária, reconhecendo aí uma busca por um encontro vitalizador com a analista e uma inserção na vida através dos laços com os pares que comungam de ideais e idiomas subjetivos comuns. O desejo de vida por parte da analista se aliança assim aos recursos de saúde da paciente.

Palavras-chave: adolescência, suicídio, cutting, desamparo, busca de pertencimento.


ABSTRACT

This article intends to reflect upon the subject of suffering during adolescence that has been presenting itself through risk-taking behaviors: depression, suicidal thoughts and attempts, and attacks on the body. It is worth to mention that this brief study stems from the high incidence of suicide and self-harm in the last years. The articulation between the epidemic characteristics and the singularity of these young patients’ mental illnesses has led me to resort to Ana’s story, her helplessness and identification with groups organized around death. On the other hand, it is necessary to recognize the  signs of life and the longing for a sense of belonging in the search for a revitalizing meeting with the analyst and a place in life through ties with peers who share ideas and a subjective language. Thus, the analyst’s desire for life and the patient’s coping resources become allies.

Keywords: adolescence, suicide, cutting, helplessness, search for a sense of belonging.


RESUMEN

El presente artículo tiene como objetivo reflexionar sobre el sufrimiento en la adolescencia, que se presenta bajo la forma de comportamiento de riesgo: depresión, ideas y tentativas de suicídio y ataques corporales. Destaco que este breve estudio partió de la incidencia numerosa de suicidios y automutilaciones que vienen ocurriendo en los últimos años. La articulación entre algo de carácter epidémico y la singularidad de la enfermedad de esos jóvenes que llegan a los consultorios me condujo a recurrir al relato de la historia de Ana con su desampara y la búsqueda de identificación con grupos que se organizan en torno de lo mortífero. Por otro lado, la atención a los movimientos de vida y deseo de pertenecer se hace necesario, reconociendo en eso una búsqueda por un encuentro revitalizante con la analista y una inserción en la vida a través de lazos con los pares que comulgan ideales e idiomas subjetivos comunes. El deseo de vida por parte de la analista se alía así con los recursos de salud de la paciente.

Palabras-clave: adolescencia, suicidio, cutting, desamparo, búsqueda de pertenencia.


 

 

Era com a frase repetida incontáveis vezes: “Fico aqui só até o fim do ano”, que Ana, 14 anos, alertava-me sobre seu flerte com a morte, convocando-me a estar atenta, solicitando-me uma vigília preocupada e um estado de devoção ante a ameaça de que, a partir de um inesperado/esperado anunciado inscrito nos cortes incessantes no braço jovem, irremediavelmente jovem, viesse a deslizar para fora da vida. Também a mensagem repetida tinha múltiplos sentidos: era a chance que me dava até o fim do ano, era o prazo que me dava.

Antes de vê-la, encontro com a mãe, que me relata sobre a tristeza da filha e isolamento na escola, sobre um período há dois anos, ocasião em que já se cortava, quando então tivera indicação psiquiátrica para antidepressivo, e iniciara uma psicoterapia. Na entrevista, espantam-me as risadas sem propósito da mesma em meio a falas tão sérias. Por maior que fosse a negação que me era apresentada, o riso estranho me alertava de que algo também não ia bem com essa, quiçá com a família, algo da ordem da cisão. E as cisões me assustam, distintas do recalcamento1, são fendas ocultas que repentina e silenciosamente podem vir a lançar os corpos vivos para um nunca mais (da morte psíquica ou da morte morrida – aquela que todos tememos, a morte do perder de vista, do deixar de existir). Mas dei-lhe tempo, ofereci-lhe a hora necessária para que um broto de confiança se tecesse. Assim, o sério fez sua aparição: a mãe me relata que, aos 15 anos, tentara suicídio, não era para valer, tenta nos tranquilizar (a ela e a mim), fora por ingestão de remédios psiquiátricos e, embora não “tivesse sido pra valer”, fora o suficiente (penso eu) para sofrer uma parada cardíaca. O avô, ele também com depressão, fora internado e morrera. Avisa-me, assim, entredentes, nas entrelinhas, que pesadas nuvens de morte e desalento pairam sobre a história familiar.

Recebo Ana e é só de morte e tristeza que me fala, queixas dos pais que não levam a sério sua dor, que empurraram florais que para nada serviram. Pais que ama, mas com quem não quer contato e nenhuma conversa. Nenhuma palavra mensageira de promessa de compreensão pode advir deles e, sobretudo, nada, nada faz sentido. Está no limite de algum penhasco que me assombra e me chama a um cuidado mais que atento. Estou ao seu lado, desde o primeiro encontro, levando-a a sério, pois é isso, entre outras necessidades, que precisa, além de, fundamentalmente, ser compreendida. Estou ao seu lado, na beira desse penhasco que seduz para a morte, Shererazade contando histórias, para que sobrevivamos, vivamos, lançando uma corda que a salve do poço profundo. Chora muito e o que me lembro desses primeiros contatos é o anúncio da morte planejada, do repúdio em relação aos pais, do lamento de que a vida nada significa. Flerta com a morte, essa atração que a morte exerce nessa passagem de quase púbere à recém-adolescência. Não sabe dizer o porquê do cutting2, apenas que são incessantes, “quer ver?” Digo que sim, sou mesmo tomada por grande preocupação, repito o entendimento do quão difícil deve ser viver-não viver assim. Logo, estamos juntas e seu braço exposto ao meu olhar: com alicate, são inúmeros os cortes feitos, sangra na pele, na roupa, esconde o moletom de manga comprida. O ritual se repete: “Continuo me cortando. Quer ver?” Demonstro preocupação, sinto que é isso que necessita, entre outros tantos pedidos em véus envoltos, esperando que brisas de esperança descubram o que se mantém oculto. Brisas, não ventanias, porque é preciso delicadeza suficiente para não desmascará-la e, ao mesmo tempo, força e tônus para ajudar a mantê-la do lado da vida, protegida por um contorno que talvez os pais tenham falhado em propiciar.

Ana repete inúmeras vezes que os pais fazem todas as suas vontades, se orgulha de já ter conhecido 14 países e conta que, desde os 10 anos, vai sozinha aos médicos, nutricionista e, quando agora vai ao psiquiatra, este, ao se espantar de vê-la sozinha, liga na casa, onde o pai estava, chamando-o para a consulta. Pedidos nunca negados de serem satisfeitos: quer de tudo o melhor, roupas estrangeiras, bolsa de 4000 reais, tudo top, cabeleireiro de estrelas em Nova York, o céu é o limite para sua avidez raramente detida pelos pais. Ri, risadas que mesclam dor e ironia, além de uma estranha satisfação: “eu sou mimada”, me diz em quase todas as sessões, me comunicando dessa forma que um tudo tóxico/intoxicante proveniente dessa profusão de mimos materiais a lança ao nada. Começo então a compreender suas queixas de vazio, vazio-horror, “vazio estranho”, me diz, pois é um “vazio barulhento”.

 

Primeiro ato: “Fico aqui só até o fim do ano”

É repetindo: “Fico aqui só até o fim do ano”, que Ana, insistentemente, inocula em mim um sentido de urgência e de temor por sua sobrevivência. Urge, é verdade, que se costurem desde sempre e, assim continua no decorrer de nossa história, esses retalhos esgarçados do tecido vital, estilhaçados e espalhados: que dor escolher, entre tantas herdadas ou próprias, nessa espécie de inventário de imprecisões e quedas? Urge, é verdade, que se recolham do solo abismal, pedaços dessa existência desmantelada. Mas, devo sublinhar que, nesse primeiro movimento na minha direção, o que arde em eloquência é o suicídio anunciado. Um primeiro momento em que acredito que sua vida está em risco para além da morte psíquica, pois temo que seu corpo adolescente ceda à tentação de não-viver. Lança-me de mares gelados e entre risos insensatos, desses difíceis de entender, mensagens em garrafas de náufraga que é, com pedidos de cura e salvação. Recolho nas areias de nossos primeiros encontros essas cartas endereçadas a alguém que devesse reconhecer, nos anos recentes de sua puberdade e adolescência nascente, as dores enunciadas em altos brados de tristeza e reclusão. Garrafas ao mar para que alguém avisasse aos pais de seus riscos, de seu não-viver, da gangorra enlouquecedora entre tanto-sentir e nada-sentir.

 

Como resgatar a menina dos braços da morte: dos ataques corporais às ideias de suicídio

...Moro no ventre da noite:
Sou a jamais nascida.
E a cada instante aguardo a vida.
Profunda é a noite onde moro.
Dá no que tanto se procura.
Mas intransitável e escura
Cecília Meireles

O cutting nos intriga – como diz Bollas (1998, p. 107), a “própria palavra nos dando uma facada em nossa paz mental”: esse cortar que, num acordo silencioso, mais comum em mulheres, leva-as quase em uníssono a tentativas de dar sentido: “é melhor doer aqui, diminui a dor na alma, alivia”. Vai nesse caminho-despenhadeiro de explicações, cujo maior desespero é a enorme dificuldade de transpor o vivido sensorial para uma dimensão simbólica. Não é apenas epidêmico: se cabe, por um lado, à Ana, algo apenas seu nos movimentos de automutilação; por outro lado, também outras tantas inúmeras adolescentes se lançam ao cortar-se; sendo assim, se apresenta realmente como quase epidêmico; o que me intriga deveras. Olho, de um lado, a dor intransferível de Ana e, de outro, seu pertencimento a um grupo que se identifica pelos mesmos rituais em torno da morte. No dizer de Bollas (1998, p. 108):

Parece que sempre somos capazes de lidar com um simples mutilador, mas agora uma nova preocupação surge: as mulheres entram em competição, desafiando-se umas às outras, cortando-se mais profundamente, ampliando o ferimento para o “corpo político”, pois todos nos preocupamos que uma de nossas mulheres - estou falando, naturalmente de nossas pacientes - poderá ferir-se e marcar nossa cumplicidade, união com este ato de... Ato de quê?

Sim! Ato de quê? O que se libera junto ao sangue: como destrinchar essa estranha mistura? Antes de propor qualquer univocidade, precisamos pensar que estamos prioritariamente fora do campo do recalcamento: aqui, a clivagem domina e debruçamo-nos na tentativa de deciframento de vivências que tiveram extraviadas seu sentido. O não sentido pulsa aqui, com seu poder disruptivo, carecendo de simbolismo. Fica-nos como tarefa complexa e paradoxal uma escuta polifônica: de um lado, reconhecer esses movimentos/atos/paralisações do adolescente como retornos do clivado, acolhendo o “não sei” e a repetição do vazio traumático.

Se, por um lado, os ataques ao próprio corpo pouco ou nada significam, de outro, podem vir a constituir uma escrita na pele com endereçamento, resguardando assim algo de comunicação. O corpo adolescente é objeto de sofrimento: “trata-se de lutar contra tensões que lhe colam à pele” (Dal Pont, 2009, p. 167). Corpo também odiado, porque é objeto de transbordamento. A relação com o corpo ganha gravidade se não puder ter sido mediada pela relação primária com a mãe e, depois, pelos os laços com o ambiente. Articulam-se assim o desafio próprio do eclodir pubertário com as falhas iniciais, aquelas concernentes a experiências de extremo abandono ou extrema invasão vividas pelo bebê.

Atuar sobre o corpo pode ser também compreendido como uma passagem para a atividade de algo vivido passivamente, tentando dessa forma escapar da impotência a que são submetidos através de ataques diretos “a envoltórios corporais” ou ao se exporem a riscos. Depois dos comportamentos de automutilação, tem-se a sensação de recuperar o domínio sobre essa violência externa e sobre esse corpo-odiado, pois objeto de transbordamento. Mas o alívio é breve, o traumático insiste, repete-se o ataque ao próprio corpo, tanto como insistência no domínio quanto como em casos em que se preserva algo de simbólico, comunicação ao ambiente primariamente traumatofílico. Deriva-se daí a dimensão de endereçamento.

O endereçamento refere-se às múltiplas fontes traumáticas – aquela do próprio corpo invadido por desafios do enfrentamento da sexualidade, mas também à fragilização do vínculo com os pais. O adolescente precisa ser apoiado por estes para que possa completar sua constituição narcísica, ou seja, sua confiança frente a si mesmo e aos laços parentais – tanto os que se referem aos pais reais, quanto às imagens interiorizadas dos mesmos.

Embora se mantenham como comportamentos de risco, vê-se nos atos a busca de pertencimento a grupos, à “turma dos deprês”. Essa busca de grupos de referência, própria da adolescência, ganha aqui um apelo dramático, porque são referidos a desencontros traumáticos com o ambiente primário, o que vem dificultando ou mesmo impedindo a renovação dos laços intersubjetivos.

Soma-se ao mal-estar do adolescente em integrar seu corpo sexuado a uma problemática da relação com os objetos primários: a ausência de cuidados maternos em sua função de contenção; perturbações severas nas identificações com a mãe; ausência ainda de um objeto paterno. Se, por um lado, as marcas do corpo podem vir a significar tentativas de reconstrução psíquica-corporal, esses comportamentos sobrevêm com referência a violências nos apegos, a uma pregnância do traumático na relação objetal, o que remete a uma dinâmica de domínio no laço intersubjetivo. Sua paradoxalidade destaca a importância de conceber a subjetivação na adolescência como uma “intersubjetalização”. Em outras palavras, o adolescente não se torna adulto sozinho, mas na relação com os demais: com os pais; com os pares; com a sociedade como um todo.

As automutilações são ainda gesto impreciso, hesitante do adolescente que espreita a catástrofe final sob a forma de tentativa de suicídio. Recorrendo ao texto de Winnicott (1994), “O medo do colapso”, podemos articular as ideias de morte projetadas para um futuro ou presente próximos, a uma morte já acontecida na primeiríssima infância, o que Winnicott denomina de “morte psíquica” (ibid., p. 74). A catástrofe ao final é reencontro com a das origens: pensam no suicídio como solução, isto é, “no envio do corpo a uma morte que já aconteceu na psique” (ibid., p. 74). O suicídio, não como resposta, mas como gesto de desespero.

A morte, encarada desta maneira, como algo que aconteceu ao paciente que não era suficientemente maduro para experienciar, tem o significado de aniquilamento. É como se desenvolvesse um padrão no qual a continuidade do ser fosse interrompida pelas reações infantis do paciente às intrusões (impingements), com estas sendo fatores ambientais que se permitiu invadirem por falhas do meio ambiente facilitador (ibid., p. 75).

Refletimos sobre o suicídio, remetendo-o às fraturas do início: assim pensa Winnicott e, como veremos adiante, Dolto nos auxilia ainda nesta mesma direção, ao refletir sobre o desejo de morte na adolescência.

A vulnerabilidade de Ana, mesmo que posteriormente a esta fossem somadas forças vitais, foi e continua sendo pano de fundo, forração pantanosa, capaz de expô-la aos mais diversos riscos. A fragilidade de Ana pode ser assim descrita por Dolto (1990., p. 19-20):

Para melhor entendermos o que é a privação, a fragilidade do adolescente, tomemos o exemplo dos lagostins e das lagostas quando perdem sua casca: nessa época, eles se escondem sob os rochedos, o tempo suficiente para segregarem uma nova casca, para readquirirem suas defesas. Mas se, enquanto estão vulneráveis, forem golpeados, ficarão feridos para sempre, sua carapaça recobrirá as cicatrizes, jamais se apagará. Nesse momento de extrema fragilidade eles se defendem dos outros, ou através da depressão ou através de um estado de negativismo que agrava ainda mais sua debilidade.

Dolto destaca que há adolescentes que têm sadiamente ideias de suicídio e outros que podem tê-las de maneira mórbida, quando desejam realmente chegar ao ato de morrer. As primeiras, correspondendo ao imaginário; sendo que a fronteiras entre ambas é muito delicada. O adolescente precisa de um ouvinte, é uma idade de sofrimento, porque é uma idade de mutação. Continuando:

É como uma borboleta que sai da crisálida. Essa comparação é válida na medida em que o recém-nascido morreu para alguma coisa a fim de renascer para outra; o adolescente também morreu para a infância. Ele está na crisálida, não tem nada para dizer a alguém, está no seu banho. Se a gente abre uma crisálida, só encontra água. O adolescente está no nível zero e as palavras não tinham o mesmo sentido que tinham antes. Amar, nada significa. “Amar é me chatear, meus pais me amam, e me chateiam, eles me vigiam, me perseguem”. Amar, é desejar fisicamente (ibid., p. 120).

Se a fantasia do suicídio no adolescente é imaginário, é portanto natural. Já com o suicida em potencial, com seu desejo de levar a termo, estamos frente à doença, à morbidez. Este revive o não-desejo de que ele imagina que seus pais tiveram quando nasceu. Nem todos conseguem concretizar essa fantasia e os que quase chegaram a concretizar, acreditavam que eram demais nessa família. Dolto se refere à culpa por terem nascido: o suicídio agradando à mãe (dentro deles) que não estava feliz por vê-los nascer. Recorrendo ainda a Dolto (ibid., p. 122):

O ato remonta ao nascimento. Não havia, na hora do parto, alguém que tivesse uma expressão de alegria ao vê-lo nascer. Mas isto não lhe foi dito. Está gravado no umbigo de sua alma. No suicídio, é na falta de qualquer possibilidade de esperança, de alegria, de estima por si mesmo, que isso acontece. Então, quando fantasia o suicídio, sente uma espécie de prazer de posse sobre si mesmo. Vai brincar com sua vida. O adolescente deleita-se com a ideia da morte e da emoção dos outros a quem fará falta: é vivida como enterro de sua infância, de seu modo de ser. É ao mesmo tempo, uma nostalgia do que ele vai deixar. Se chega a crer que ninguém será afetado pelo seu desaparecimento, e se em sua primeira infância não teve verdadeiramente uma pessoa que influenciasse o sentido de sua vida pelo amor que teve por ele, então ele pode partir para a ação, depois de um certo tempo de alucinação pelo suicídio, que nem sequer lhe proporciona o prazer da nostalgia pela pessoa que chorará por ele.

Como já foi falado, se a adolescência é naturalmente travessia turbulenta nesse enfrentamento da morte da infância, aqueles que foram sujeitos ao que Winnicott denomina “desilusão precoce” (1994, p. 17), que foram significantemente “desapontados”, no sentido de terem sido traumatizados por um padrão de fracassos ambientais, têm suas personalidades estruturadas em torno de defesas de qualidade primitiva, tais como a cisão, sujeitos que foram expostos a falhas na aquisição da confiabilidade pessoal necessária para um estado de “rumo à independência”.

Estes terão que pisar em terrenos mais pantanosos e movediços e precisarão de se apropriar de suas forças vitais para vencerem os comportamentos de risco, a iminência de colapsos, os negativismos e retraimento. Recorro novamente a Dolto (1990, p. 14-15):

As que, na partida, não consumaram a ruptura que realiza a tomada de autonomia, que pisam com bloqueios nesse terreno de instabilidade e de fendas que é a adolescência, serão menos favorecidas do que as outras, mas todas precisarão de toda sua vontade de viver, de toda a força de seu desejo de se realizar para enfrentar essa morte da infância.

Resta ressaltar meu interrogar sobre a imprecisão das fronteiras que separam as fantasias, do desejo de morte de Ana. Qual a extensão de sua vontade de viver? Como ela se manifesta, embora de modo tortuoso, como veremos adiante? Não há como negar seu adoecimento, mas será mesmo uma suicida em potencial? Oscila entre o morrer e a vida, anuncia a morte como encenação da dor e, ainda, clamor para que curem suas feridas. A indiscutível fragilidade lado a lado com seu deleite em pensar na falta que fará. Precisa enterrar a infância, mas não sabe como. Como fora saudada ao nascer? O que estará gravado no umbigo de sua alma? Quanto de seu desamor próprio, de sua descrença em relação à sua bondade terá sido inscrito desde os inícios? Como fora recepcionada, afinal?

 

A aparição do corpo

Apresento, dessa forma, minha história com Ana, não porque as dores e manifestações de conflitos e desencontros consigo mesma tenham seguido uma ordem. Logo nesse primeiro momento, em que os sentimentos depressivos se revelavam na superfície (da pele, do corpo, da falta de sentido), tudo surgiu ao mesmo tempo (exceto a comunicação a respeito da bissexualidade); mas sou levada à proposição de uma organização forçada, como se esta fosse um contraponto à “desarrumação” extrema em que se encontra, própria da adolescência, aqui conduzida a fronteiras de confusão e desassossego. Assim, o corpo já está presente desde o tempo dos inícios, mas nessa passagem turbulenta para os anos seguintes, os ataques corporais e as ideias de suicídio anunciavam a convocação à cena da importância da reedição da problemática da personalização, das tarefas consequentemente enfrentadas e soluções sintomáticas, estas procuradas como saída para os dilemas tanto subjetivos como intersubjetivos.

Portanto, quando falo de “aparição do corpo”, não quero dizer que este estivesse ausente, mas pretendo destacar a relação entre a bulimia e o desafio de reapropriação de uma imagem corporal transformada.

Ana é vegana, justificando sua opção através de um discurso em que defende os animais mais do que alguma preocupação com a saúde. Há poucos anos, estava com sobrepeso, fizera uma dieta, emagrecendo 10 quilos. Pergunta-me insistentemente, ao relatar que comia 600 calorias por dia, controlando quase que obsessivamente o que ingeria: “você acha que era anorexia? Você acha que era anorexia?” Percebo uma certa excitação nessas perguntas sobre possíveis diagnósticos: Ana parece se sentir aliviada se reconhecida adoecida. Vejo aqui, por um lado, uma demanda intensa de ganhar visibilidade em sua dor, mas, ainda, frente à precariedade de modelos com que se identificar no âmbito familiar, é como se “grudasse” nas manifestações psicopatológicas próprias da adolescência contemporânea: depressão, cutting, ideias de morte e bulimia. É a encenação da dor e, entretanto, é dor, pois como diz o poeta: “finge sentir que é dor, a dor que deveras sente” (Pessoa, 1987).

Agora, apesar de restringir-se a alimentos veganos, Ana mostra ter prazer em comer, não raro, chega à sessão comendo algo ou se queixando de fome. Para manter o peso, recorre então ao vômito, segundo ela, várias vezes ao dia. “Manter o peso” é decerto o motivo manifesto; todavia, como vê seu corpo, a insatisfação com o mesmo, suas percepções, o corpo-inimigo-odiado como ela em seu autodesprezo, a busca de controle onipotente entre o que “entra” e “sai”, a relação com o feminino, consequentemente com a mãe, são algumas de outras tantas questões que atravessam a “via-crúcis” de seu corpo adolescente.

A exibição do corpo, fotos com lingerie, biquínis e maiôs também explicitam de outro lado o interesse e apreço por esse novo corpo e suas transformações, nutre intensa ambivalência, portanto, pois as novas formas também são vividas como invasões: o corpo adolescente sendo assim vivido tanto como ansiado como persecutório. O corpo admirado (embora negue, espreita-o no espelho, nas fotos, nos olhares alheios) também se lhe é imposto, fugindo ao seu controle. A bulimia surge, entre outros sentidos, como tentativa onipotente de “moldá-lo”, conter os prováveis excessos derivados da avidez, “retirar as curvas”.

Embora afirme enfaticamente que é feminina, a recusa das curvas apontam para uma recusa da feminilidade e, assim como na anorexia, tal recusa pode ser remetida à recusa da mãe. Como afirma Fortes (2008, p. 146):

Ao tentar apagar todos os contornos arredondados femininos de seu corpo, a menina quer minimizar dessa forma a invasão da presença materna. Dolto mostra como se trata de uma perturbação da relação entre a menina e a mãe, que será desdobrada para a relação entre a menina e o alimento, e para a menina e seu espelho.

Mas vejo em Ana, como já foi apontado, uma ambivalência ou mais, uma invasão de sentimentos controversos, pois o corpo reto que anseia é o corpo da mãe; este, entretanto, feio. Busca a mãe e a repudia. Quer a presença daquela, capaz de autorizá-la a viver, mas ainda diferenciar-se do traumático que une as duas (ideias de morte, depressão, a vivência de rejeição na chegada à vida). O comportamento bulímico e as ideias a ele relacionadas não visam ao apagamento da feminilidade, esta veementemente “defendida”, mas a conquista de um modo próprio de ser feminina, de ter um modo de ser com uma configuração única de subjetivação.

Ana arrasta a infância como ânsias não suficientemente saciadas: o arcaico se mesclando aos dilemas que envolvem o corpo adolescente. Realmente, algo de muito primitivo une-separa Ana de seus objetos primários, especialmente da mãe. Chega às sessões repetindo: “sou uma bebezona. Durmo cedo e acordo cedo”. “Sou mimada. Minha mãe faz tudo pra mim”. Comunicações como essas me alertam sobre o que faltou, assim como um pedido-necessidade de cuidados de contorno, limites e de dispositivos de contenção. Solta pelas ruas, cuidando (?) de si sozinha, faltaram-lhe as vozes parentais, atos, presença, sustentação capazes de propiciar/auxiliar na configuração de um funcionamento psíquico que prevalecesse o recalcamento. Quer comer e não engordar, tudo de marca (a narcisação possível?), quer passar de ano sem estudar (é quase certo que repetirá de ano e me pergunta se ela pode se negar a repetir). Misto de transgressões e de busca identitária através de ideários (que a ligam a determinados grupos), tais como a legalização do aborto, a legalização da maconha, a defesa frenética de opções sexuais ilimitadas; tudo isso acrescido à relutância à elaboração do luto da onipotência infantil. São agora outros caminhos por onde vem adentrando e que relato a seguir.

 

Segundo ato: A encenação da dor

Ana atravessou um tempo de invisibilidade e reclusão, negada em suas dores pelos pais e isolada na escola. Com o apelo endereçado àqueles, mais a atenção vigorosa tanto minha quanto do psiquiatra, abriram-se novos caminhos, para nossa surpresa, já que trouxeram mudanças num tempo curto demais para alguém que se mostrava envolta em tristezas tão intensas.

A dor, embora inegavelmente verdadeira, também é abrigo: modo de ganhar uma face própria; lugar conhecido; modo de chamar olhares; de pedido de ser compreendida em suas ânsias indefinidas. Como no dizer da poeta:

Bendito sejas, meu pesar interno, /embora sempre me martirizes! /Bendita a dor que no meu ser atua. /Porque, apesar de tudo, a dor é boa /para quem a ela se habitua. /A dor antiga é uma dor amiga, /dói pouco a pouco, não magoa quase. /A dor inesperada é a maior dentre as dores, /vem com toda a violência das vinganças (Machado, p. 207)...

Devemos também pensar os adoecimentos na adolescência atual seguindo modalidades de um caráter epidêmico (vide a série de suicídios e sintomas que se repetem, como venho falando). Assim, junta-se o individual com suas tendências a forças anti-vitais dentro do contexto intersubjetivo familiar, com o cenário ampliado das contingências históricas de miséria simbólica e consequente ausência de mediação capacitadora de transição dos afetos em estado bruto para elaboração e transformação dos psiquismos na direção da saúde e de processos criativos.

Depressão, cutting, ideias suicidas, vazio, bulimia. Depois de curto tempo, se declara bissexual. Surpreendo-me e relaciono o quadro múltiplo de sintomas e queixas às manifestações da adolescência contemporânea e, numa primeira conclusão, a ser sempre revisitada, penso na dor de Ana como própria, mas ainda como (e já venho acentuando tal percepção) recurso extremo a modelos identificatórios, mesmo que encerrem enredos de vazio e morte.

O humor de Ana se alterou radicalmente: de isolada, passa a ter contato constante com as meninas “nunca patricinhas”, passa a sair, longas conversas em WhatsApp ocupam seus dias. Parara de se cortar depois de dois anos de ferir-se incessantemente.

De um falar constante sobre desejo de morrer e que “nada faz sentido”, passa a um humor quase eufórico ancorado na declaração de que iniciou nova fase em seu percurso de encontros/desencontros/desastres/perdição; enfim, ilimitados modos de ser que comunicavam tanto recursos de saúde quanto adoecimento. Fala-me, espreitando minha reação e em tom peremptório: “sou bissexual”.

Desde então, é no cenário das questões sexuais que se enredam tanto os enigmas em relação à sexuação quanto a emergência de uma configuração identitária. Pois passa a ser nesse novo campo que continuam ainda em pauta os dilemas (não apenas quanto à efervescência pulsional) ligados ao arcaico e ao vir-a-ser.

Ana se deleita em se apresentar “bissexual”, algo de vida emerge, e logo se envolve com outra menina. Blos (1962) afirma que, no início da adolescência normal, a ilusão da bissexualidade é mantida, mas tem que ser renunciada para ser substituída pela assunção de um sentimento de posse de um corpo feminino ou masculino. Faz parte dos lutos enfrentados pelo adolescente o luto pela onipotência da bissexualidade. A este também, Ana resiste a abdicar, afirmando reiteradamente: “não sou lésbica”, “gosto de meninos e meninas. Mas as meninas são mais bonitas. A outra menina, “estão namorando” – diz com orgulho – a outra, sim, é lésbica. Estou apaixonada? Me pergunta mais uma vez sem saber de si, mais uma vez também querendo saber de mim, se a compreendo, se estou atenta. Eis aí uma busca especular: o reencontro com o feminino perdido ou nunca encontrado, derivado das lacunas e vazio, ânsias insatisfeitas brotadas do colo materno por vezes árido, por vezes promissor de dádivas sob a forma de “tudo poder”.

 

Eu quero você viva

Alternam-se dias de tormenta com calmaria, a instabilidade sempre mostrando sua face: a face do precário, do “por um fio”, das águas rasas às abissais, do vôo ao peso. Assim, chega a outro momento em tamanho desalento e não quer falar o porquê. Desconfio que, quando sua rede (esburacada) de cuidados (as amigas e o crush) vacila, por pouco, talvez apenas um dia sem contato, a ameaça de despencar acena, ressurgindo as ideias de morte. Apenas repete que quer morrer, sua cabeça dói, ri e chora, como sempre enroscada nessa rede de confusão de emoções e pergunta se pode fazer algo. Ofereço papel, caneta, tinta, argila. Escolhe esta última e faz silenciosamente e com delicadeza uma cabeça sem corpo. Uma plaquinha embaixo tem escrito: “Eu quero morrer”.

Eu – O corpo dá trabalho – digo. (Mas Ana não reage)
A –- É uma cabeça. Sou eu.
Eu – A cabeça dá trabalho. (Sim, já chegara a dores na cabeça trabalhosa)
A – É. Minha mente dá trabalho. Eu dou trabalho.
Eu – É: você está viva. Quem está vivo dá trabalho.
A – Você já teve algum paciente que se matou?
Eu – Não! Graças a Deus! É terrível!
A – Deve ser muito triste!
Eu – Eu quero você viva!
(Nossa última sessão antes de uma semana minha de férias.
Eu quero Ana viva e o que mais pode nos unir tão fortemente?)

 

 

Referências

BLOS, P. On Adolescence: A Psychoanalytic Interpretation. New York: Press of Glencoe, 1962.         [ Links ]

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Data de recebimento: 05/09/2018
Data de aceite: 02/12/2018

 

 

1 Nas patologias neuróticas, o mecanismo de defesa principal é o recalcamento, quando representações (ideias) ligadas ao desejo são enviadas ao inconsciente. Assim, o reprimido ou recalcado tende a retornar sob a forma de sintomas que podem ser: ou histéricos ou fóbicos ou obsessivos. A cisão é um mecanismo de defesa que caracteriza modos de adoecimento não-neuróticos: o eu se divide e uma parte se mantém desconectada da outra. Como, por exemplo, no caso de Ana: o “riso estranho” e fácil se mostrava incompatível com os pensamentos melancólicos.

2 Nas patologias neuróticas, o mecanismo de defesa principal é o recalcamento, quando representações (ideias) ligadas ao desejo são enviadas ao inconsciente. Assim, o reprimido ou recalcado tende a retornar sob a forma de sintomas que podem ser: ou histéricos ou fóbicos ou obsessivos. A cisão é um mecanismo de defesa que caracteriza modos de adoecimento não-neuróticos: o eu se divide e uma parte se mantém desconectada da outra. Como, por exemplo, no caso de Ana: o “riso estranho” e fácil se mostrava incompatível com os pensamentos melancólicos.

 

 

I Fátima Flórido Cesar: Psicóloga, Psicanalista, pós-doutoranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Brasil. Autora dos livros: "Dos que moram em móvel-mar: da elasticidade da técnica psicanalítica" e "Asas presas no sótão: Psicanálise dos casos intratáveis". E-mail: fatacesar@gmail.com

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