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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.22 Rio de Janeiro jan./mar. 2019

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Os “estranhos na cidade”: a clínica e a atenção psicossocial num caso de vulnerabilidade social

 

Los “extraños en la ciudad”: la clínica y la atención psicosocial en un caso de vulnerabilidad social

 

 

Julio Cesar de Oliveira NicodemosI

I Universidade Salgado de Oliveira, Niterói/RJ, Brasil.

 

 


RESUMO

O presente artigo apresenta a formação de dispositivos de segregação que se formam na pólis a partir de saberes operados por profissionais em diferentes instituições que acolhem adolescentes em situação de vulnerabilidade psicossocial, os transformando em atores “estranhos à cidade”. Demonstraremos como um fazer clínico-político pode emergir, a partir da escuta de cada sujeito, como um dispositivo de resistência a esse processo, permitindo que cada sujeito possa se relançar no mundo e nos laços sociais através de outras marcas que não aquelas que lhes são impostas por tais saberes (delinquentes, dependentes químicos, perigosos, etc.). Neste processo, ilustraremos com um caso de um sujeito psicótico acompanhado pela Equipe de Referência Infanto-Juvenil para ações de atenção ao uso de Álcool e outras Drogas (ERIJAD).

Palavras-chave: segregação, clínico-político, adolescentes, medidas socioeducativas.


ABSTRACT

This article discusses the constitution of segregational devices developed in the polis through areas of knowledges operated by professionals in several institutions that care for adolescents in situations of psycho-social vulnerability, transforming these adolescents in “strangers to the city”. We will demonstrate how a clinical-political practice can emerge from listening to each of these adolescents, as a resource of resistance against this process, allowing each person  to relaunch themselves in the world and in social ties through characterizations other than those imposed my such areas of knowledge (delinquents, chemical substance addicts, dangerous, etc.). We will illustrate this process with the case study of a psychotic subject, cared for by the Child and Adolescent Reference Team for the counsel of Alcohol and Drug abuse (ERIJAD).

Keywords: segregation; clinical-political; adolescents; socio-educational measures.


RESUMEN

El presente artículo presenta la formación de dispositivos de segregación que se forman en la polis a partir de saberes utilizados por profesionales en diferentes instituciones que acogen adolescentes en situación de vulnerabilidad psicosocial, transformándolos en actores “extraños para la ciudad”. Demostraremos cómo el quehacer clínico-político puede emerger, a partir de la escucha de cada sujeto, como un dispositivo de resistencia a ese proceso, permitiendo que cada sujeto pueda relanzarse al mundo y a las relaciones sociales a través de otras marcas diferentes de aquellas que les son impuestas por tales saberes (delincuentes, drogodependientes, peligrosos, etc.). Ilustraremos este proceso con el caso de un sujeto psicótico acompañado por el Equipo de Referencia Infanto-Juvenil para acciones de atención al uso de Alcohol y otras Drogas (ERIJAD).

Palabras-clave: segregación, clínico-político, adolescentes, medidas socioeducativas.


 

 

O processo de Reforma Psiquiátrica teve seu motor inicial através da desmontagem dos manicômios e a invenção de novos dispositivos de cuidados territoriais para a loucura. Nesse percurso, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), não sem a participação de muitos psicanalistas, surgiram, proporcionando acolhimento e modos verdadeiramente potentes de tratamento daqueles que até então só encontravam como destino as longas internações psiquiátricas, além de permitir uma intervenção que mudou em muitos aspectos o modo como a pólis compreende a loucura. Entretanto, consideramos que este processo permanece em sua trajetória inicial, possuindo um longo percurso a ser trilhado e com inúmeros desafios.

Não é fato desconhecido para nenhum de nós que, além da loucura, outros modos de existência e de sofrimento tiveram (e ainda têm) os mesmos destinos dos loucos, porém, em instituições que, a priori, não estavam sob a cobertura dos cuidados da psiquiatria manicomial: leprosários; asilos para “tuberculosos”; “aidéticos”; prisões; abrigos para crianças abandonadas; dentre outras destinadas àqueles alijados do convívio na cidade. Contudo, verificamos, ao longo de um árduo trabalho clínico com diferentes populações (dentre elas os adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas), que as institucionalizações desses sujeitos surgem nesse processo como o efeito de saberes que operam numa mesma lógica discursiva e que são promotores de segregações, seja através do confinamento de sujeitos em instituições fechadas, seja a céu aberto, até mesmo nos próprios serviços de atenção psicossocial.

Verificamos ainda hoje que os sujeitos considerados estranhos à cidade, ou seja, aqueles que interrogam a cidade em seus valores morais, legais e as fantasias atravessadas pelos ideais de “bem-viver” a partir de seus comportamentos, frequentemente os sujeitos psicóticos e/ou os usuários de drogas, permanecem como alvo do encarceramento das instituições a partir de saberes – em destaque, o saber médico-jurídico –, que exercem o seu poder de controle, algo já descrito por Michel Foucault como o biopoder, em seu livro História da Sexualidade I, A Vontade de Saber:

Este biopoder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos (FOUCAULT 1988, p. 132).

Jacques Lacan, psicanalista que fez um importante retorno a Freud, já nos apontava, em seu breve discurso aos psiquiatras, de 1967 (ao abordar a formação dos psiquiatras de sua época), que o saber psiquiátrico é apenas mais um nessa série de saberes que opera a partir de uma mesma lógica dos saberes que buscam o controle dos corpos na cidade e que, nesse caso, responde pelos efeitos de segregação. Lacan nos diz que há outros discursos bem construídos e que surgem nas formações (humanistas, muitas vezes) como um verdadeiro “desfile de circo”, correndo um atrás do outro e que nada querem saber daquilo que concerne ao sujeito do incosnciente.

Há uma segregação (conceito que inclui o termo institucionalização como um de seus efeitos, mas que também está além destes efeitos) que acontece no campo dos discursos proferidos na cidade e não apenas através das instituições que “acolhem” esses sujeitos (instituições hospitalares, de cumprimento de medidas socioeducativas, abrigos da assistência social, etc). Ou seja, antes do processo de institucionalização desses sujeitos em lugares específicos, a segregação acontece através daquilo que se diz sobre eles e através de saberes já existentes que servem mais para o controle de seus corpos no meio social e menos para acolhê-los em suas singularidades. Queremos dizer com isso que há uma espécie de “etiquetamento” por parte dos operadores desses saberes existentes para que, através de seus rótulos, cada vez mais, os fixem em determinadas nomeclaturas que os segregam e lhes conferem uma espécie de essência, como se o mal localizado em seus corpos por esses saberes constituíssem o ser, uma espécie de essência, dos mesmos, impedindo-os de vir a se posicionar no mundo através de outras possibilidades de laço social e potências de vida.

No caso dos “adolescentes em conflito com a lei” (considerando que o “conflito com a lei” não é uma especificidade apenas desses adolescentes, mas de todo sujeito neurótico), fala-se muito nas políticas públicas sobre a necessidade da oferta de uma escuta em diferentes pontos da rede (desde os CAPS, abrigos, conselhos tutelares, CREAS (Centro de Referência Especializado da Assistência Social) até as instituições do DEGASE (Departamento Geral de Ações Socioeducativas). Entretanto, verificamos, na prática, que essa escuta está restrita a um trilhamento de pré-suposições sobre suas vidas, que buscam apenas atender das suas necessidades sociais mais imediatas até as supostas carências afetivo-familiares, não se escutando a sério cada um. A partir dessas escutas, marcam-se seus corpos com novos significantes que variam entre o saber pseudocientífico do DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) até entendimentos socioassistenciais variados, isto quando não impregnam seus corpos com ansiolíticos diante de seus comportamentos transgressores (prática comum ainda em muitas instituições do DEGASE).

O que não é comum nisso tudo é encontrarmos alguma escuta, a partir da transferência1, que possa responsabilizar um sujeito sobre o seu destino (obviamente, diferenciando a ideia de responsabilidade da ideia de culpa, ou seja, que ele possa decidir um pouco mais sobre seu destino sem ficar fixado nas marcas estigmatizantes presentes em sua vida), uma escuta minimamente clínica que possa colocar em jogo aquilo que é da ordem do inconsciente, portanto, aquilo que constitui a vida subjetiva de cada um e que, muitas vezes, traz consigo as marcas estigmatizantes que impuseram a ele ao longo de sua história. É sabendo dessas marcas que cada sujeito poderá ressignificá-las, produzindo novos modos de se nomear para além das “etiquietas” mencionadas acima.

A cidade toma esses sujeitos considerados “estranhos” à ela – seus operadores institucionais, responsáveis pela oferta de inúmeras intervenções, incluindo os que deveriam ofertar alguma escuta clínica nos serviços responsáveis pelas medidas socioeducativas (a rede DEGASE) –, preferindo eliminá-los e tomá-los como objetos de processos judiciais ao invés de, justamente, escutá-los em suas dimensões estranhas e que rompem com aquilo que supostamente rompe-se com as leis e o laço social. A escuta do estranho pode ser compreendida aqui também como a escuta de um saber inconsciente, ou seja, aquilo que é estranho aos próprios sujeitos e que permanece insconsciente. Esse estranho, num processo de tratamento, reaparece para cada um na relação com aquele que oferece a escuta e os possibilita novas possibilidades de se estar no mundo, no laço com os demais sujeitos, pois passam a saber sobre as marcas que os constituem.

Sobre isso, o fato de que devemos escutar, podemos resgatar Freud (1919) em seu texto O Estranho (Das Unheimlich), onde apontará tal estranheza presente em todos nós e que se relaciona ao material que fora recalcado e que retorna à consciência. Podemos dizer que essas marcas que os tornam estranhos à cidade também são estranhas a eles mesmos, e o processo analítico permite que se descolem dessas “etiquetas” oferecidas pelo campo social.

Freud também se referirá a esse fenômeno, em que uma dimensão estranha (íntima e familiar ao mesmo tempo) emerge, como a presença de um “duplo” e que produz um terror de que nada queremos saber. Nesse sentido, fazendo uma transposição da experiência analítica para nos servir de um fazer no campo social, nos perguntamos: o que esses casos, em destaque os adolescentes que estão em conflito com a lei e, mais espeficicamente, os usuários de drogas e psicóticos, despertam nos moradores da cidade?

Esses sujeitos “estranhos à cidade”, considerados como os seus restos, permanecem institucionalizados e distantes do espaço da pólis, pois trazem consigo, em sua dimensão de estranheza, algo que evitamos nos dar conta: verificamos que, marcados pelo estigma, não podendo se reconhecer de outro modo, repetem de modo insconsciente em seus comportamentos as marcas (as tais “etiquetas”) que lhes são impostas desde os primeiros anos de vida. Podemos citar um circuito de produção desses “estranhos à pólis” como as escolas que os expulsaram, famílias violentas que os fizeram ir para as ruas, serviços de saúde que os negligenciaram, conselhos tutelares que não os acompanharam devidamente. É a própria pólis, em sua tentativa de controlar os estranhos à cidade, que reafirma, através de seus saberes, a estranheza presente em suas vidas, os fixando nesse lugar de perigosos ao processo civilizatório.

 

O relato de uma experiência clínico-política

Durante alguns anos na coordenação da Equipe de Referência Infanto-Juvenil para ações de atenção ao uso de Álcool e outras Drogas (ERIJAD), foi possível acompanharmos algumas dessas trajetórias de vida, evidenciando-se esta nossa afirmação, a de que recalcamos (num certo sentido da expressão) o nosso fracasso institucional e, ao nos depararmos com sujeitos em conflito com a lei, principalmente com os adolescentes, damos respostas pífias e de segregação. A função do analista nessa série de profissionais que nada querem saber sobre os ditos destes sujeitos é justamente fazer vir à tona os efeitos nefastos das apostas estatais oferecidas àqueles que consideramos estranhos à cidade.

Apostamos que essa recusa não seja fortuita, já que nos oferecermos a isso nos faz pagar um preço caro, muitas vezes, com a nossa própria pele na transferência e com o que surge a partir dela. Além do mais, enquanto analistas, temos o dever clínico-político de transmisitir ao campo público aquilo que recolhemos na transferência, fazer valer o nosso testemunho diante do incosnciente. Essa tarefa não é nada fácil e também requer a instalação de possbilidades, de alguma transferência no trabalho com outros colegas e instituições. Vale lembrar que a mesma palavra em alemão (idioma oficial no qual foi formulada a teoria psicanalítica e que, por isso, utilizam-se algumas palavras do próprio idioma como conceitos-chave), Übertragung, refere-se não apenas à ideia de transferência com o sujeito em tratamento, fenômeno motor num processo analítico, mas também se refere à transmissão, e será este um dos propósitos do nosso trabalho com esses sujeitos: fazer operar uma transferência nessas duas vias, com cada sujeito através dos vínculos terapêuticos com aqueles que realizam seus tratamentos e, ao mesmo tempo, transmitir à pólis os elementos daquilo que emerge na fala desses sujeitos (suas existências e seus processos de subjetivação) e faz esvaziar o imaginário social sobre o qual esses sujeitos se constituiriam como personalidades essencialmente ruins e, por isso, com altos índices de periculosidade. Sendo assim, a transmissão à polis a partir daquilo que escutamos constitui-se como uma via política do nosso mandato enquanto clínicos, o nosso mandato é clínico-político por excelência, estejamos onde estivermos institucionalmente na lida com essas populações.

Dito isto, através de um caso acompanhado pela Equipe de Referência Infanto-Juvenil para ações de atenção ao uso de Álcool e outras Drogas (ERIJAD2), entre os anos de 2011 e 2015 (caso L), ilustraremos essa discussão a partir de uma prática onde transferência e transmissão estiveram em jogo ao longo do seu tratamento, bem como na tentativa de uma aposta que pudesse minimizar os efeitos de segregação presentes, do seu rechaço. Também traremos a sua dimensão de estranheza à vida pública que o caso apresenta e que o faz ser contido e, ao mesmo tempo, expulso das instituições por onde percorre. L. é um sujeito que emerge diante dos profissionais como um “estranho” antes e depois de sua chegada à instituição de privação de liberdade por onde passou. Sua subjetividade, ou seja, sua lógica de funcionamento no laço social impede que ele seja acolhido de fato pelos representantes das instituições por onde ele passa, já que esse modo de funcionamento o associa, através de seus estigmas, ao perigo.

L. estava com 14 anos e cumpria medida socioeducativa em unidade de privação de liberdade do DEGASE (Departamento Geral de Ações Socioducativas), respondendo por um ato infracional relativo a furto/roubo. No entanto, na assentada do juiz, constava ato referente a uma tentativa de matricídio. Situação descrita sucintamente como tendo ligado o fogão e fechado toda a casa enquanto sua mãe dormia.

Diante da tentativa (mal sucedida), a família recorre à justiça, solicitando que esta determine um local de tratamento para o que entendiam ter promovido tal ato: o crack. A resposta judicial veio em forma de medida socioeducativa e foi assim que L. inaugurou sua carreira institucional.

A equipe da unidade de privação de liberdade, para onde foi encaminhado, pedia nossa parceria no acompanhamento dos pais de L. Entendiam se tratar de uma situação de grande vulnerabilidade, já apontando para a necessidade da construção de uma rede de cuidados anterior à progressão de sua medida (para a semiliberdade) e consequente contato mais regular e frequente com sua família e seu meio social de origem. Procurava-se ultrapassar os muros, na direção de um cuidado territorializado, endossando o direcionamento da assistência indicada pela máxima da Reforma Psiquiátrica, assim como do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), onde a privação de liberdade se configura apenas em caráter transitório e de excepcionalidade.

Procuramos fazer os atendimentos a essa família junto ao Conselho Tutelar, no entanto, este avaliou não ser de sua ingerência situações relativas às medidas socioeducativas, posição equivocada diante de seu mandato e que inscreve a primeira recusa do caso na rede após o início de seu percurso institucional. Constatamos, neste e em outros casos, um desvio no entendimento do que seria garantir direitos quando um sujeito se insere no circuito socioeducativo. Não só os Conselhos Tutelares, mas outras instituições da rede passam a tratá-los como uma exceção: destacando-os do grupo que mereceria ter acesso aos cuidados protetivos e os direitos garantidos.

Diante da complexidade que se apresentava, procuramos o CAPSI (Centro de Atenção Psicossocial infanto-juvenil) de referência do município para pensarmos em estratégias. Nessa reunião, convidamos também a equipe da unidade de privação de liberdade. Decidimos que ERIJAD e CAPSI compartilhariam o atendimento aos pais de L. até se determinar o lugar que melhor atendesse às necessidades identificadas.

Sendo indicada a progressão da medida socioeducativa a ser cumprida em semiliberdade, L. é transferido para o CRIADD (Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente) e, assim, tivemos a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente e já identificar fenômenos importantes como alucinações cenestésicas e auditivas a partir de sua fala em que dizia possuir “uma faca cravada em sua coluna” e que, por isso, não conseguia ficar quieto. Esse evento nos fez considerar que se tratava de um caso em que a problemática do uso de drogas não poderia ser tomada como seu principal impasse. Era preciso compreender a relevância dessas questões de investigação diagnóstica, assim como sua construção delirante, direção já colocada inclusive pela equipe do DEGASE, que compreendia que L. falava sobre sua psicose. Com isso, seria possível iniciar a construção de uma direção de tratamento além de dissolver um imaginário presente entre alguns técnicos sobre o uso de drogas como ponto principal, uma tentativa de transmissão possível para as equipes do território.

Sua inserção junto ao coletivo da unidade de semiliberdade foi complicada, uma vez que não se identificava com nenhuma das principais facções criminosas do RJ; o que fez com que os demais adolescentes passassem a chamá-lo de “alemão”, conotação linguajeira entre eles para “aquele que é de fora, invasor, mal vindo”. L. não conseguia funcionar numa identificação que o unia ao grupo através do nome das facções. Sua condição psicótica o colocava como um estrangeiro, um “alemão”, diante dos demais membros, provocando agressões físicas e isolamento. Nesse momento, nos perguntávamos como uma instituição, e nós mesmos, que deveríamos garantir seus direitos básicos, não conseguíamos possibilitar uma mediação no laço entre L. e os demais meninos? Seguiu-se um período marcado por algumas “evasões” (termo técnico utilizado para falar das saídas sem autorização, mas que, neste caso, nos interroga, já que L. era expelido da instituição), irregularidade nas consultas marcadas no CAPSI e retomada do seu uso de crack nos finais de semana.

É importante destacarmos, neste ponto, que o acolhimento de L. pelo CAPSI teve grande resistência por parte da instituição. Por algum tempo, somente a marca da infração e do seu uso de drogas eram sublinhados. Nessa ocasião, notamos a importância de transmitirmos alguns elementos clínicos do caso a partir do nosso encontro com ele, contudo, notávamos resistência principalmente pelo fato de L. também ali ser “diferente dos demais”. O CAPSI falava de L. como se já soubesse sobre ele. Somente num segundo momento, no CAPSI, foi possível acolher outros aspectos referentes à sua história de vida e de seu sofrimento. Nossa pergunta, então, era o que este caso trazia consigo de tão insuportável para os demais meninos do DEGASE e para os técnicos que tentavam recebê-lo em tratamento (CAPSI e Conselho Tutelar, por exemplo)? Após curto período, mesmo com alguma vinculação ao serviço, o CAPSI decide por encaminhar L. para um ambulatório de Saúde Mental sem oferecer elementos suficientes para compreendermos o motivo. L., tampouco, conseguiu responder às exigências mínimas daquele dispositivo. Na mesma época, o CRIAAD solicitou sua transferência para uma unidade fora do município, alegando não poder ficar com “casos como aquele”. E sua família, por vez, procurara a Promotoria, afirmando a necessidade de o filho permanecer internado, em uma instituição fechada para “dependentes químicos”. Todos diziam não haver lugar para L. diante da interrupção de todas as ações que estavam sendo construídas em seu território, a ERIJAD, mais uma vez, precisou fomentar intervenções nesses equipamentos para que fossem revistos os encaminhamentos, de modo a produzir algum reposicionamento dessas instituições na direção do necessário cuidado. A sensação é a de que falávamos com paredes que não produziam eco, ou seja, tínhamos dificuldades em transmitir a importância de se escutar os dizeres de L. sobre o seu sofrimento e que só assim poderíamos pensar em seus encaminhamentos – algo diferente dos protocolos seguidos pelas diferentes instituições e que justificavam os encaminhamentos equivocados, o crack e a delinquência tomavam a cena.

Seguiu-se longo período em que o adolescente percorreu diversas unidades socioeducativas em meio fechado, fazendo com que tivéssemos que reiniciar a discussão e transmissão do caso com cada equipe de acompanhamento. Essa inconstância produziu descontinuidade em seu tratamento, sendo possível verificar sua piora clínica. Em uma das visitas que fizemos a ele, L. mostrou seu braço, no qual talhou profundamente o seu nome, como que procurando se inscrever no mundo, na tentativa de algum reconhecimento por aquilo que lhe é próprio.

Em mais uma evasão, L. procura a casa da mãe, esta, no entanto, o leva agora para uma comunidade terapêutica para “dependentes químicos” no interior do estado de SP. Serão mais nove meses de reclusão.

Assim se passaram mais dois anos e, já com 18 anos, com sua medida socioeducativa extinta devido à sua maioridade penal, permanece condenado a um destino construído por todos esses atores: traz consigo a marca preponderante da delinquência e do uso de drogas. Já se vão mais de 5 anos de institucionalização, e o que fomos capazes de fazer por L. e com L.?

Aqui, identificamos um ponto desta discussão, do qual não poderemos recuar: no que concerne ao mandato da Atenção Psicossocial – uma rede promotora de cuidados para todos aqueles que, em decorrência de suas posições subjetivas no laço social e de seus sofrimentos, transgrediram alguns dos pactos sociais –, qual é a nossa responsabilidade na condenação à institucionalização de adolescentes como L.?Será que estamos empreendendo ações de desinstitucionalização para além dos convencionais asilos da loucura? Será que nós, atores do campo da Atenção Psicossocial, percebemos que essa população não somente, mas também, está incluída como um segmento que nos diz respeito? Notávamos um fracasso em nossa transmissão e uma impossibilidade da oferta de uma escuta a cada novo local em que L. passava e que o expulsava. Locais que nunca puderam funcionar como lugares para seu endereçamento, o tomando a partir da palavra sobre seu sofrimento e apostando que este seria a primeira possibilidade de construção de um lugar no campo do Outro, com consequências importantes para sua vinculação ao serviço de saúde proposto para seu tratamento.

 

Considerações finais

O sentimento de estranheza com o qual permanecemos diante desses casos – em especial, dos casos como o de L., que emerge como um caso estranho não apenas para a instituição de cumprimento das medidas socioeducativas, mas também para os próprios adolescentes que lá estão – interroga o que não conseguimos escutar em nós mesmos quando nos encontramos com suas histórias e também com cada um desses sujeitos que os fazem traçar seus circuitos, numa repetição ao longo da adolescência. Aliás, a compulsão à repetição presente em suas histórias, seja com o uso de drogas, seja nos atos infracionais, também trazem consigo uma dimensão do estranho e que Freud afirma ter um “caráter demoníaco” (Idem p. 256), sobre o qual, no trabalho clínico, devemos intervir através de nossa escuta que se refere ao estatuto do inconsciente sem cairmos nas armadilhas de um fazer estético-adaptativo.

Contudo, observamos o lugar comum no qual permanecemos fixados e paralisados numa outra dimensão do estranho, o terror das histórias que contam e que são permeadas de roubos, assassinatos, tráfico de drogas, etc. Precisamos inventar com cada um desses sujeitos um outro lugar possível, menos aterrorizante (e sem nos aterrorizarmos), no campo social (no campo do Outro), sem os fixarmos nos significantes que os segregam: delinquentes; usuários de drogas; adolescentes em conflito com a lei; etc.Sendo assim, podemos também, a partir desse recorte de caso, identificar as duas possibilidades distinguíveis e apresentadas por Freud em relação ao estranho: uma dimensão que se refere aos complexos infantis, como ele mesmo menciona, e que pode ser trabalhada a partir da experiência de análise, e uma outra dimensão, daquilo que advém do campo da realidade, da realidade desses adolescentes, e que fisgam os profissionais numa espécie de horror, impedindo que trabalhem a partir da escuta clínica.

No caso L., o significante alemão o retira até mesmo do grupo daqueles que são considerados “estranhos” ao meio social em seus caminhos de infração à lei. A psicose de L. o coloca no lugar da exceção institucional e do grupo, o deixa à deriva e faz repetir o seu circuito de violações de direitos. Sobre a psicose, e para finalizar, seguimos as palavras de Freud:

O efeito estranho da epilepsia e da loucura tem a mesma origem. O leigo vê nelas a ação de forças previamente insuspeitas em seus semelhantes mas ao mesmo tempo está vagamente consciente dessas forças em remotas regiões do seu próprio ser. A Idade Média atribuía, com absoluta coerência, todas essas doenças à influência de demônios e, nisso, a sua psicologia era quase correta. Na verdade, não ficaria supreso em ouvir que a psicanálise, que se preocupa em revelar essas forças ocultas, tornou-se assim estranha para muitas pessoas, por essa mesma razão (FREUD 1919, p. 260).

 

 

Referências Bibliográficas

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Data de recebimento: 29/11/2018
Data de aceite: 13/02/2019

 

 

1 Conceito definido por Sigmund Freud para designar o vínculo terapêutico específico entre o psicanalista e seu paciente.

2 Equipe constituída intersetorialmente entre a Coordenação de Saúde Mental e a Secretaria Municipal de Assistência Social de Niterói (RJ). Estivemos na coordenação da referida equipe entre os anos de 2009 e 2015.

 

 

I Julio Cesar de Oliveira Nicodemos: Psicólogo formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil. Psicanalista, Mestre em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e aluno do doutorado em Psicanálise (UERJ), Rio de Janeiro – Brasil. Atualmente, é supervisor clínico-institucional na rede de atenção psicossocial de Niterói e professor de Psicologia na Universidade Salgado de Oliveira, Niterói – RJ, Brasil. E-mail: jconico@yahoo.com.br

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