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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.22 Rio de Janeiro jan./mar. 2019

 

ESPAÇO ABERTO

 

O sofrimento psíquico de crianças e jovens nos dias atuais

 

El sufrimiento psíquico de niños y jóvenes en los días actuales

 

 

Entrevista de Sonia BorgesI e Renata MonteiroII com Edson SaggeseIII

II Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa na Infância e Adolescência Contemporâneas, Universidade Federal do Rio de Janeiro (NIPIAC/UFRJ), Brasil.

II Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói/RJ, Brasil.

III Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil.

 

 


RESUMO

O sofrimento psíquico de crianças e jovens tem sido motivo de grande discussão nos últimos anos. Tal discussão gira em torno, principalmente, de um possível agravamento desse sofrimento em função de mudanças vividas no laço social. Na entrevista, procurou-se abordar aspectos importantes relacionados à subjetividade de crianças e jovens no contemporâneo. Os perigos da chamada “patologização da vida” e suas consequências, como o aumento do apelo à medicalização, o estatuto do corpo como ponto de identificação e o aumento no número de suicídio entre jovens, estão entre as questões discutidas de maneira não alarmista, apostando na resposta que as próximas gerações poderão produzir. Discutiu-se também o papel dos pais, profissionais e da sociedade como um todo frente ao endereçamento dessas novas e diferentes formas de manifestações do sofrimento.

Palavras-chave: juventude, sofrimento psíquico, medicalização, corpo.

ABSTRACT

The psychological suffering of children and youth has been highly discussed in the last few years. This discussion revolves mainly around a possible intensification of this suffering, due to changes in the experience and configuration of social bonds. The interview approaches important aspects of the subjectivity of children and youth today. The dangers of the so called “pathologization of everyday life” and its consequences, like the spike in and appeal of medicalization, the status of the body as a means of constitution of identity and the growing number of suicide amongst young people are some of the questions here discussed, refusing and alarmist tone, and betting on the answers that the next generations will be able to produce. The role of parents, professionals and society as a whole in addressing these new forms of suffering is also discussed.

Keywords: youth, psychological suffering, medicalization, body.

RESUMEN

El sufrimiento psíquico de niños y jóvenes ha sido motivo de una gran discusión en los últimos años. Tal discusión gira en torno, principalmente, del posible agravamiento de ese sufrimiento en función de las transformaciones que han sufrido las relaciones sociales. En la entrevista, se abordan aspectos importantes relacionados con la subjetividad de niños y jóvenes en la contemporaneidad. Los peligros de la llamada “patologización de la vida” y sus consecuencias, como el aumento de la apuesta por la medicalización, el estatuto del cuerpo como punto de identificación y el aumento del número de suicidios de jóvenes, están entre los temas discutidos sin un estilo sensacionalista, apostando por la respuesta que las próximas generaciones podrán producir ellas mismas. Se discute también el papel de los padres, los profesionales y de la sociedad como un todo, frente a la expresión y el rumbo que toman esas formas nuevas y diversas en que se manifiesta el sufrimiento.

Palabras clave: juventud, sufrimiento psíquico, medicalización, cuerpo.


 

 

Sonia Borges – Queremos agradecer por você ter aceitado nosso convite. Primeiramente, gostaríamos de perguntar se você poderia nos falar um pouco sobre a sua entrada e interesse na clínica com crianças e adolescentes.

Edson Saggese – A minha entrada na clínica com crianças e adolescentes se deu há cerca de um pouco mais de 40 anos, quando eu cheguei ao Instituto de Psiquiatria e havia a clínica de orientação da infância. Eu cheguei lá na década de 70 e essa clínica era uma das primeiras do Brasil, criada nos anos de 1950. Era uma clínica que existia num modelo do que tinha na Inglaterra, nos Estados Unidos, de orientação da infância, a partir da teoria psicanalítica. Então, já entrei na clínica com crianças e adolescentes não no lugar de psiquiatra, mas já a partir do interesse da psicanálise por crianças e adolescentes. Bom, fiz especialização lá, passei a trabalhar no instituto e, curiosamente, na época, não existia uma clínica de adolescentes. Não só no instituto, mas em todo o Brasil. Não existia uma clínica de saúde mental de adolescentes e o instituto, curiosamente, atendia crianças até 12 anos, e adultos a partir de 18. Então, entre os 12 e 18 anos, o que se fazia? Acho que esse não era um problema específico do instituto, mas era, sim, um não pensar sobre a adolescência. Então, eu participei da criação do primeiro serviço de adolescência que o instituto teve, e provavelmente um dos primeiros do Brasil, para preencher um pouco essa lacuna entre os 12 e 18 anos. Enfim, entre outras coisas, a existência dessa lacuna foi algo que, de alguma maneira, me instigou a pensar por que a adolescência não é vista, e tal. Por isso, desde cedo eu fui marcado pelo interesse pela adolescência e pela psicanálise, apesar de ter tido antes uma formação médica, psiquiátrica.

Renata Monteiro – Edson, esse serviço é o SPIA1?

Edson Saggese – Se vocês me permitem, o SPIA não é o nome que me agrada particularmente. Nos anos de 1990, nós criamos um novo serviço no instituto que nós chamamos de CARIM – Centro de Atenção e Reabilitação da Infância e Mocidade – porque nós achamos que era mais eufônico CARIM do que SPIA. Porque SPIA tem uma conotação um pouco persecutória. Esse serviço foi um dos primeiros também que incorporou a ideia de um CAPSi2. Não existia ainda esse nome oficialmente no Ministério da Saúde, então talvez esse tenha sido um dos primeiros CAPSi do Brasil. Eu implico um pouco com esse nome, CAPSi, de Centro de Atenção Psicossocial à Infância. Eu sempre reclamei, por que também não adolescência? Porque se há uma faixa etária ciosa da sua individualidade, certamente essa faixa etária é a adolescência. Então, por isso eu não gosto de me inscrever sobre esse nome SPIA.

Renata Monteiro – O senhor coordena um curso de especialização que acontece no Instituto de Psiquiatria, cujo nome é Psiquiatria e Psicanálise com crianças e adolescentes. A partir dessa experiência e de tantos anos de clínica, que palavras o senhor tem a dizer sobre o estatuto do sofrimento psíquico entre crianças e adolescentes nos dias atuais?

Edson Saggese – Bom, o sofrimento psíquico não conhece barreiras etárias, ele se apresenta às vezes de forma diferente segundo as faixas etárias. Mas, inclusive essa fronteira, sofrimento psíquico, já parece que exclui o corpo. Mas não só na criança, o sofrimento psíquico se apresenta conjugado ao sofrimento do corpo. Não há esse limite. Mas nós adotamos essa maneira de falar porque talvez isso nos facilite, separar o que é algo que tem um forte componente psíquico, daquilo que é primariamente físico ou orgânico. Então, eu poderia dizer, ou pelo menos dar ênfase, o que eu vejo é uma acentuação e uma certa mudança de formas de sofrimento psíquico, sobretudo na adolescência. Com a característica de a adolescência ser algo muito mais sociocultural, do que algo que responda propriamente à puberdade, ou mudanças orgânicas. Então, a gente pode dizer que essa adolescência se alastra – esse sofrimento acentuado na adolescência – para o que nós consideraríamos, não muitas décadas atrás, como infância. Ou seja, questões da adolescência começam a surgir muito mais precocemente do que nós chamaríamos como infância e se estendem para muito além do que o Estatuto da Criança e do Adolescente chama de adolescência, que iria até os 18 anos. Então, o conceito de mocidade, juventude, como vocês sabem, o conceito de juventude, eu acho muito mais significativo do que é a definição puramente legal de adolescência. Mas eu insisto que muitas questões que eram pensadas na adolescência começam a surgir mais precocemente também entre as crianças.

Renata Monteiro –Então, indo um pouco nessa direção, em termos de sintomas, de queixas, e até as intervenções... primeiramente, gostaríamos de saber se haveria uma nova sintomatologia, uma nova forma de pedido, de endereçamento chegando aos serviços, e se isso tem provocado mudanças nas intervenções e na intervenção clínica em relação a elas.

Edson Saggese – Bom, dividindo a resposta em duas partes, eu acho que mudanças na forma de expressão do sofrimento existem. As transformações no Outro fazem com que as formas de sofrimento psíquico mudem. Um exemplo muito relevante disso são as grandes crises histéricas que marcaram o final do século 19, o início do século 20. Não é que elas tenham desaparecido, mas deixaram de ter a relevância ou a atenção que tinham antigamente. Por quê? Porque o espaço social, a rede sociocultural para acolher o sofrimento traz mudanças e a maneira de expressar esse sofrimento muda. Então, no presente – dando um salto para esse século 21 – nós temos paulatinamente alguma coisa que vai à direção de uma acentuação do individualismo, e também uma concentração sobre o corpo, mais ainda como um representante ainda mais marcante do sujeito, ou seja, o sofrimento se expressa talvez menos, ou tem que dividir a sua expressão simbólica, com expressões muito concretas. Então, a questão dos cortes, a questão da preocupação com o corpo, da  anorexia, da obesidade, as passagens ao ato, em termos de tentativa de suicídio, alguma coisa que passa, não só, mas muitas vezes, pelo corpo. O ponto complicado de falar nisso é que parece que as outras formas de sofrimento psíquico desapareceram. Nós falamos agora na histeria e tal. Não, eu acho que não desapareceram as outras formas clássicas como psicose. Mas elas convivem com novas formas, ou cederam algum espaço para novas formas de apresentação do sofrimento psíquico, o que de certa forma complicou um pouco a resposta daquelas pessoas preocupadas com a infância e adolescência.

Quanto à resposta que se dá a velhas e novas formas de sofrimento psíquico na infância e adolescência, as respostas têm sido em média muito ruins. Por quê? Por conta de uma série de fatores. As respostas, assim como a apresentação, vêm muito marcadas por uma certa concretude corporal, as respostas também são marcadas por uma medicalização muito grande na infância e adolescência. Quando eu falo medicalização, nós temos de explicar um pouco. Se trata também de um desdobramento daquilo que Michel Foucault vai falar sobre a medicalização, a interferência do saber médico, mais propriamente psiquiátrico, sobre a vida. Mas também, especificamente, sobre medicalização no sentido de dar remédio mesmo. Não só tomar conta ou colonizar o sofrimento psíquico através do saber psiquiátrico, mas responder a isso tudo muito através de medicação. É claro que, se vocês quiserem, eu falo mais sobre isso, mas é um pouco extenso explicar como nós chegamos a isso.

Sonia Borges – Buscando seguir um pouco o que o senhor acabou de dizer, gostaríamos que o senhor falasse um pouco sobre o aspecto da patologização da vida, com a profusão de diagnósticos como o Transtorno de Déficit de Atenção – com ou sem hiperatividade –, transtorno bipolar, depressão, tanto para crianças quanto para adolescentes. Algo que temos percebido e que tem sido discutido, é que alguns profissionais da área da saúde pensam que essa profusão talvez aponte, também, para uma dificuldade de os pais ou educadores, enfim, de quem lida com crianças e adolescentes, sustentar e poder se haver com as frustrações e as crises, que têm a ver com o viver, tanto de crianças quanto de adolescentes, porque o dia-a-dia traz uma série de dificuldades e frustrações. Nós gostaríamos que o senhor falasse um pouco sobre isso.

Edson Saggese – Eu concordo com essas afirmações, de que as dificuldades das famílias e dos profissionais da educação, e outros, de lidarem com crianças e adolescentes em seu sofrimento, ou seu processo de desenvolvimento de vida, estão ligados a isso. Eu penso que isso é verdade, mas que nós poderíamos ir um pouco além e pensarmos por que isso acontece. Por que essas dificuldades estão mais intensas? Eu acho que há muitos autores que comentam sobre isso, nós estamos em um período de certa transformação civilizatória. É muito difícil a gente dizer isso porque nós estamos dentro do processo, então: como é? Qual a extensão desse processo? Mas não resta dúvida de que nós vivemos um período de intensa transformação. Alguns teóricos chamam de hipermodernidade, modernidade tardia, modernidade líquida, metamorfose da civilização. Mas realmente nós vivemos em um período muito acelerado de mudanças. Em parte, pela aceleração das mudanças tecnológicas, que ampliou, de certa forma, muito, o mundo em que as pessoas viviam. Hoje em dia, não se sustenta a autoridade familiar, o que é vivido dentro da família se interconecta diretamente com o que é vivido pelo mundo, é invadido pelo mundo. E é muito difícil controlar isso, com o mundo pós internet, com o mundo pós celular, que  acelera cada vez mais a transformação tecnológica. Isso se liga a causas também econômicas, uma certa mudança, uma aceleração no nosso sistema econômico, basicamente capitalista, já que as opções ao capitalismo praticamente desapareceram do mundo, a partir dos anos 80, e uma aceleração do que se convencionou chamar de neoliberalismo, não sei se esse é o nome melhor. Mas o fato é que existe uma concentração enorme dos valores em termos do econômico, que esmaga todo mundo, esmagam um pouco a possibilidade da construção de outros valores. Então, eu creio que a gente não pode simplesmente responsabilizar uma certa inação ou inabilidade da família ou dos profissionais de lidar com as novas questões que surgem para as crianças e adolescentes. É uma transformação realmente sociocultural da sustentação simbólica do mundo que se transforma e se torna mais complexa de se lidar.

Sonia Borges – Talvez não tenha ficado muito claro nessa pergunta que a associação era entre o excesso de medicalização e esse olhar de que talvez isso passasse por todo esse processo que o senhor falou. Mas eu acho que a gente pode compreender esse entrelaçamento, sim...

Edson Saggese – Eu posso complementar um pouco. Podemos nos aproximar mais desse assunto da medicalização, identidade e o espírito da época. O espírito da nossa época, sobretudo a partir dos anos de 1990, se voltou muito para compreender o funcionamento humano a partir da biologia, do orgânico. O crescimento de conhecimentos da imagem, do funcionamento do cérebro, o crescimento de conhecimento da genética, hipnotizou um pouco o mundo acadêmico, e depois o mundo em geral, para achar que a causa para o caso do sofrimento psíquico estaria nesse nível: orgânico, genético, cerebral. Isso produziu a impressão de que nós acharíamos também, a partir daí, respostas para isso. E isso tem uma continuidade com o fator econômico, que é a lucratividade, a potência dos grandes laboratórios farmacêuticos que estão entre as principais fontes de produção de riqueza no mundo capitalista. Essas coisas se uniram, eu diria, à ideia de um homem cujo sofrimento é cerebral, é alguma coisa que não funciona bem no seu cérebro. A ideia é que a resposta também deva ser genética, deva vir a partir da genética, a partir de substâncias, ou de interferências no seu cérebro. Isso se une a uma terceira questão que nós começamos a abordar, no caso, essa crise identitária, que aparece a partir da transformação de todo esse universo simbólico que sustenta o sujeito. Eu acho que nós acreditamos nisso, que o homem não é um ser da natureza, existe um gap entre o homem natural e o homem que vive em sociedade, que tem uma linguagem própria, isso não é novidade. Mas talvez nós estejamos passando por uma época na qual essa sustentação da rede simbólica tenha sido bastante abalada, com resultado imediato numa questão identitária. Ou seja, o que sustentaria a busca identitária do homem? Então, não é somente a ideia de que esses saberes peritos, de que esses saberes eruditos da ciência imponham ao sujeito identidades. Essas identidades também são queridas e requeridas pelas pessoas que tendem a explicar os seus problemas a partir disso, tais como: “eu tenho uma deficiência de serotonina”, “eu acordo bem e durmo mal porque eu sou bipolar”, “esse meu filho não vai bem na escola porque ele tem um déficit de atenção, hiperatividade”. Isso para quem, como eu, está na área de saúde mental há muitas e muitas décadas, é espantoso, como crianças de 2 anos são classificadas de bipolares. Como uma porcentagem imensa de crianças toma remédios, sem que sequer se saiba os prejuízos a longo prazo que essa medicação vai causar. Como é difícil você se recusar a medicar uma criança, como é difícil você discutir que questões escolares podem ser deficiências do processo educacional daquela escola. Como é difícil conversar com os pais para dizer que a interação do casal interfere na vida daquela criança. Tudo pode ser simplificado pelo diagnóstico e pela medicação. É espantoso! Por exemplo, medicar um adolescente há quatro décadas, em geral, eu contava com muita resistência do adolescente, agora, invariavelmente, os adolescentes resistem a não serem medicados, “porque eu vi, eu descobri na internet”, diz o adolescente, “eu sou bipolar, o senhor não vê isso?”.

Renata Monteiro – A nossa próxima pergunta diz respeito àquelas questões do corpo que o senhor já adiantou, já trouxe desde o início na sua resposta. Se não me engano, a gente pode falar de duas leituras sobre o corpo, de um corpo atravessado pela linguagem e pelo simbólico, e o corpo talvez do saber médico, das neurociências, que sofre outro tipo de intervenção. Mas a gente viu, inclusive pela leitura de alguns de seus artigos, de um lugar, que talvez a gente possa falar, privilegiado do corpo na adolescência, um lugar de sofrimento, de endereçamento. Em um de seus artigos, o senhor discorre sobre uma série de comportamentos dos jovens que apontam para uma tentativa de criar pontos de identificação, baseados a partir do corpo, como piercings, tatuagens, comportamentos extravagantes, na busca de uma segurança identitária. Mas como a gente pode compreender, por outro lado, quando o corpo vira objeto de ataque, aí, através de outras manifestações que também têm sido mais frequentes, recentemente, aparecem mais na clínica, como os casos de anorexia, bulimia, o cutting e até comportamentos de risco ligados à sexualidade, ao uso de drogas. Como é que o corpo aparece como lugar identificatório, de apresentação, de construção identitária, e ao mesmo tempo, o lugar de um certo ataque?

Edson Saggese – Existe mais de uma maneira de abordar esse assunto. Uma delas é, digamos, na medida em que se concentra a busca identitária no corpo, na medida em que o adolescente, ou as exigências sociais sobre o corpo se espalham, e o adolescente se vê insatisfeito com o próprio corpo, magro, gordo, alto, baixo. Nós sabemos que um ideal, seja ele qual for, principalmente um ideal referente ao corpo, é sempre inalcançável. É como o cachorro que corre atrás do próprio rabo. Ou seja, quanto mais alguém tenta chegar perto do que seria o ideal do seu corpo, mais esse ideal avança e o indivíduo nunca consegue chegar perto desse ideal. Acontecem aí duas coisas. A primeira é que existe uma certa concentração da apresentação da identidade a partir do corpo. Eu sou o que é meu corpo e o corpo tem uma plasticidade relativa. Fazendo uma certa imagem de um elástico, o elástico tem uma plasticidade, o corpo também tem certa plasticidade, mas tem um limite. Então, na medida em que o sujeito vai querendo esticar demais essa elasticidade do corpo para moldá-lo a esse ideal que foi socializado, isso começa a produzir estragos. Por exemplo, um exemplo clássico, a anorexia. Ou seja, o ideal de um corpo magro, se espelhando nas modelos da propaganda. Vivemos também uma era de imagem, da predominância desse universo imaginário, que um pouco abala outras apresentações do eu. O eu se apresenta como esse eu corporal, um eu imaginário. Isso começa a provocar estragos e sofrimento psíquico como, por exemplo, no caso da anorexia. Talvez não seja só isso, talvez também se acelere a propagação de certos comportamentos que serviriam para expressar sofrimento psíquico, como é o caso do cutting. Nós temos a internet, os celulares, que multiplicam muito a difusão de certas marcas do que seria o sofrimento psíquico. Esse alguém que se corta é identificado como alguém que está sofrendo. Por outro lado, a palavra, “eu estou sofrendo”, perde um pouco a força frente à imagem de um membro sangrando, de um corpo cortado, de uma série de cicatrizes. É claro que essa proliferação, essa certa contaminação do sofrimento de um pelo sofrimento de outro não é uma novidade. Sigmund Freud falava, falando da histeria, do que poderia produzir um desmaio, num dormitório de meninas, depois que uma menina, recebendo uma carta de amor, desmaia e tal, depois vêm as outras, né? Mas acho que isso foi muito multiplicado pela internet e o celular, pela difusão das imagens. Vivemos fortemente influenciados por isso. E a questão do sofrimento que é reconhecido enquanto sofrimento que se expressa no corpo, num emagrecimento extremo, no corte, no vômito, nas coisas que passam por essa identidade corporal.

Renata Monteiro – Você diria que, em última instância, o próprio suicídio?

Edson Saggese – Isso é... a minha resposta será, certamente, como todas as respostas, respostas precárias e provisórias. No meu caso, mais ainda porque eu estou começando uma pesquisa, justamente, para tentar desnudar um pouco esse imaginário que engloba tudo. O sujeito começa se cortando, depois aquilo vira uma tentativa de suicídio, e aí morre, e que há um aumento de tentativa de suicídio, porque as pessoas se cortam e perdem o controle... Eu acho que isso ainda está muito mal arranjado, né? Quer dizer, nós temos o cortar-se, por exemplo, e a tentativa de suicídio, são duas coisas em geral bastante diferentes. Uma, cortar-se, expressa isso, o que eu acabei de falar, uma forma de reafirmar: “olha, estou sofrendo”. Ao mesmo tempo, provoca uma maneira, uma linha de lidar com ansiedade que se localiza ali no corte, que sangra e tal. Já as tentativas de suicídio merecem talvez uma outra consideração. E também podemos dividir em graus diversos de gravidade. Creio que, sem dúvida, não podemos desvalorizar, que aquilo que falamos no começo, ou seja, que uma certa rede sociossimbólica, que vai sustentar o indivíduo jovem a amarrar-se  nesse universo social, como essa rede, está frouxa, difícil de identificar pontos de ancoragem... É claro que isso pode realmente trazer, e alguns estudos apontam isso, um certo aumento de atos suicidas e, também como eu falei um pouco antes, sobretudo indivíduos mais novos, mais jovens, começam, a digamos – muito precocemente – ficar bastante desiludidos com a possibilidade de amarração na sua vida, na sua vida socioeconômica, sexual, de identidade sexual etc. Muito precocemente abalados com a dificuldade que isso traz. Mas talvez mais precocemente do que antes.

Sonia Borges – O senhor acha que faria sentido dizer que nós estamos diante de uma forma mais generalista de sofrimento? Que os jovens têm apresentado isso, buscando a morte como um dizer, como endereçamento?

Edson Saggese – Eu recorro ao que eu já disse. Ou seja, eu tenho isso muito mais como questão do que como resposta. Mas assim, previamente, respondendo a partir, não evidentemente das minhas pesquisas, mas do que já se disse, ou já se pensou, sobretudo no campo psicanalítico, é que nós temos aí pelo menos duas formas básicas de suicídio. Numa, a questão do apelo, que é algo que é mais comum, na adolescência ou não, mas na adolescência se torna muito comum pegar um punhado de comprimidos e tomar, se expor a situações perigosas, exigir e pedir a intervenção do outro. Isso é uma forma e talvez a forma mais expandida, a tentativa de suicídio como um apelo. Mas eu acho que há ainda algo mais perigoso, que é a desilusão. A desilusão muito precoce quanto à possibilidade de arranjar um lugar no mundo. Aí seria algo muito mais grave: “Não, não, não. Eu não quero que alguém me responda: eu quero sair”. É claro que são dois extremos. Entre eles, a gente pode pensar outros arranjos, e também nós temos – a partir da psicanálise – muita dificuldade de generalizar. Nós temos que nos dirigir ao sujeito no um a um. Mas é claro que, se não generalizássemos um pouco, não existiria teoria psicanalítica. Ela está em construção, mas tem bases. Então, seriam esses dois extremos quanto à questão do suicídio.

Renata Monteiro – Eu acho que nós estamos insistindo um pouco nesse tema porque é um tema polêmico. Eu estou achando muito importante ouvir que o senhor está sustentando isso como questão. A gente facilmente tira consequências, faz afirmações... A gente recortou duas situações que eu acho que trazem um pouco dessa discussão entre os jovens, entre os adolescentes. Uma foi a série que foi exibida no Netflix, 13 Reasons Why, que fala do suicídio de uma estudante do ensino médio. Essa série passou em vários lugares do mundo, e eu acho que uma das repercussões, dos desdobramentos, foi uma associação entre a exibição dessa série e um possível aumento do número de suicídios, das tentativas de suicídio entre os jovens e adolescentes. E, ao mesmo tempo, a gente se lembrou também de um fenômeno anterior, que foi o da Baleia Azul, ocorrido pela internet, pelo jogo, que tinha como um dos destinos, o suicídio. Como é que o senhor avalia essa associação entre essas novas formas de comunicação, essas novas formas de interações midiáticas, e talvez essa propagação, pelo menos discursivamente, dessas possibilidades?

Edson Saggese Invertendo um pouquinho a questão, a história de publicidade de suicídio não é nova. Ou seja, há muitas décadas, os grandes jornais americanos tinham um certo acordo de não divulgar muito, pelo menos os suicídios e, sobretudo, os suicídios muito espetaculares, dos jovens que fazem juras de amor e se matam... Um tipo de coisa que tinha um efeito de propagação em ondas e, enfim, isso não é recente. É claro que o desenvolvimento dos meios de comunicação, das redes sociais, deve ter aumentado a possibilidade de repercussão disso. Essa série e esses fenômenos da internet podem ter uma influência nisso. Eu digo podem porque eu não tenho acesso a dados estatísticos sobre isso. Me parece um pouco difícil de construir uma associação positiva entre esses fenômenos e o aumento de tentativas de suicídio, ou do suicídio mesmo. Acho muito difícil de construir. É uma coisa muito impressionista, eu não tenho como falar com segurança sobre isso. É claro que essa coisa é antiga, o contágio, essa identificação sobre o ponto de vista afetivo é perfeitamente possível. Mas acho que isso não é explicação absoluta, ou a explicação única, ou a explicação mais forte. Eu acho que nós passamos mesmo por transformações do universo sócio-simbólico que têm dificultado muito essa travessia da adolescência, da juventude. Eu acho que isso é alguma coisa que transcende o simples processo de identificação com o outro a partir dessas histórias.

Sonia Borges – Em um evento do ano de 2018, de comemoração de 20 anos do NIPIAC, sua fala procurou fazer uma diferenciação entre ADOLESCER e ADOECER. Acho que, em sua resposta, o senhor está falando um pouco dessa diferenciação. O senhor poderia nos falar um pouco mais sobre esse tema?

Edson Saggese – Esse é também o título principal dessa pesquisa que eu estou iniciando, “o adolescer e o adoecer”... é um pouco esse jogo de palavras que, em português, soa de uma maneira curiosa, e é um pouco um resumo disso sobre o que nós tínhamos falado. Tanto do ponto de vista de que adolescer se torna algo mais difícil, ao mesmo tempo, isso não é um discurso absolutamente pessimista, porque se é mais difícil, também é um sinal de que nós atravessamos dificuldades no nosso processo civilizatório e a resposta virá dos jovens. A resposta não virá do passado. Essas grandes transformações tecnológicas não podem ter uma resposta regressiva. As mudanças objetivas, temos que lidar com elas, com os nossos processos subjetivos, e certamente os jovens estarão mais preparados. Ainda que passem por processos difíceis. A resposta que pode haver é uma resposta que venha do futuro, e o futuro está com os jovens. Espero, e aí não falo a partir de uma posição de saber, mas no sentido de ter esperança, que essas respostas, não só no Brasil, como em outras partes do mundo, mas no Brasil muito gravemente nos últimos tempos, possam ser menos regressivas. Ou seja, respostas que nós podemos lidar com a crise que nós passamos em diversos aspectos, não só socioeconômicos, mas também essa crise do que eu estou chamando de uma rede simbólica que sustenta nossas subjetividades. As questões que envolvem a identidade sexual, a identidade de gênero, as questões que envolvem as mudanças, no trabalho, no emprego e tal. Que nós possamos ter respostas novas, respostas que vêm do futuro e não essas que vêm do passado, que tentam nos impor e que obviamente não responderão às necessidades. As pessoas, no desespero em que nós vivemos, numa crise social séria no mundo, e em particular no Brasil, dão respostas muito regressivas, achando que nós podemos voltar a valores que não se sustentarão mais com as novas formas de vida que nós temos. Espero que as respostas também, que as respostas que poderão vir positivas, virão da juventude. Há um risco de nós passarmos um discurso de que a juventude está perdida. Não! A juventude tem dificuldades, mas quando, e se, houver alguma resposta, virá dela e não do passado.

Renata Monteiro – Eu acho que a nossa última pergunta é mais para o senhor deixar uma palavra, já que a revista tem essa proposta de ser uma revista de divulgação científica. Então ela é dirigida para profissionais fora da universidade, fora da academia, para profissionais que estejam ligados ao tema da infância e da juventude.   Em sua última publicação, sobre  juventude e saúde mental, o senhor alerta aos profissionais de saúde mental sobre os perigos de uma direção clínica individualizada e padronizada do tratamento, que acabe por ofuscar a visão que está para além do indivíduo e que reduziria a ampliação das possibilidades de intervenção, incluindo, também nestas, o contexto social. O senhor poderia nos falar um pouco sobre essas possibilidades, o que seriam essas intervenções que extrapolam e ampliam para além dessa questão do indivíduo? E como os profissionais de saúde, da assistência, mas também da educação, poderiam pensar em intervenções e possíveis respostas que possam abarcar as demandas que estão cada vez mais prementes e que atendem a essas dimensões sociais? É uma pergunta longa, mas a gente ficou marcada por essa sua sensibilidade!

Edson Saggese – Vocês se colocaram e me colocaram em maus lençóis! Pedindo alguma coisa profética, alguma iluminação que eu realmente não posso dar... Quando, a coisa que eu posso fazer, é talvez dar alguns alertas, algumas coisas que vêm da minha própria experiência. Ou seja, um pouco esse jogo, adolescer e o adoecer, é um pouco um jogo que não deve ter uma resposta rápida e única, deve ser mantido aberto. Ou seja, adolescer pode ter um viés de adoecer. Mas não devemos chegar rápido demais a isso! Temos essas respostas padronizadas da moderna psiquiatria, e sua influência sobre a escola, as famílias... Nós temos sistemas peritos, padronizados que podem logo dar a resposta. Adolescência ou  adoescência? Se me permitem o neologismo. Não. Isso é um primeiro alerta. Ou seja, não é que não existam situações muito graves na adolescência, que existem e merecem cuidados especializados. Mas se nós rapidamente identificarmos questões da adolescência como questões patológicas, corremos também um sério risco de não deixar que aquele indivíduo possa desenvolver as suas potencialidades e de rapidamente aprisioná-lo, por exemplo, no diagnóstico. Então, esse é um alerta. O individual e o social, é claro que eles sempre estão de mãos dadas, ninguém consegue ser um indivíduo sem um contexto social, ninguém, a sociedade não se expressa senão através de indivíduos. Então, a questão é, devemos manter um encontro individual, devemos manter uma abertura para entendermos o contexto de vida daquela pessoa que estamos encontrando. Mas, ao mesmo tempo, não devemos chegar a explicações rápidas, ou seja, o indivíduo está assim por conta dos conflitos familiares, da violência, ou está assim porque usa drogas. Essas respostas muito rápidas também são respostas muito simplistas. Nós sempre estamos em busca de soluções simples e rápidas. Eu gosto de citar uma frase do Menckel, um jornalista americano muito criativo, morto na passagem do século 19 para o século 20. Ele dizia que todas as questões complexas têm uma resposta simples, e errada. Essa é uma outra coisa, de não tentarmos rapidamente termos respostas. Por quê? Porque a criança, o adolescente, eles têm processos autorregenerativos, eles estão descobrindo caminhos deles próprios, e a gente muito rapidamente... É impressionante na clínica! Assim como encontramos situações muito difíceis, também encontramos situações que aparentemente são muito difíceis, mas que há uma transformação muito rápida, muito viva de crianças e adolescentes. Sobretudo, como eu trabalho muitos anos com adolescentes, eu vejo isso, a gente precisa esperar um pouco. Não esperar sob o ângulo da omissão, mas esperar sob o ângulo da crença na potencialidade da juventude. Temos que esperar que os próprios processos de transformação possam agir.

Renata Monteiro – Muito obrigada! Nós deixamos em aberto para que você possa falar alguma coisa que desejar.

Edson Saggese – Eu gostaria de agradecer a confiança de vocês em me entrevistarem e me incluir na publicação, de acharem que eu possa dar alguma contribuição sobre o assunto. Eu agradeço, espero que isso tenha algum tipo de utilidade para os leitores.

Sonia Borges – Nós é que agradecemos. Esta é uma edição especial, com o olhar mais voltado para a saúde mental. Obrigada por sua disponibilidade e participação.

Edson Saggese – Na verdade, eu fico muito satisfeito, já que a DESidades vai publicar um número com esse viés, que tem sido a minha vida profissional toda, 43 anos dessa minha longa vida profissional.

 

 

Data de recebimento: 02/07/2018
Data de aceite: 30/01/2019

 

 

1 Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência.

2 Centro de Atenção Psicossocial infanto-juvenil.

 

 

I Sonia Borges: Psicóloga Clínica, Mestre e Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília. Pesquisadora permanente do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa na Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC/UFRJ). Editora Associada da DESidades – Revista Eletrônica de Divulgação Científica da Infância e Juventude. E-mail: soniarborges@uol.com.br

II Renata Alves de Paula Monteiro: Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF-Niterói), Brasil. Pesquisadora permanente do Núcleo de Pesquisa sobre Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC/UFRJ). Editora Associada da Revista DESidades. Coordenadora do curso de pós-graduação lato sensu Psicanálise e Saúde Mental (UFF). Membro do Espaço-Oficina de Psicanálise. E-mail: rapmonteiro2014@gmail.com

III Edson Saggese: Psicanalista, psiquiatra e professor do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil, onde fundou o CARIM, um dos primeiros CAPSis do país. Criou e coordena o grupo de pesquisa Proadolescer. Dentre suas últimas publicações destacam-se os livros: Juventude e Saúde Mental: a especificidade da clínica com Adolescentes, Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2015 e Proadolescer: pesquisa e clínica com adolescentes na rede de saúde mental. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. E-mail: edsonsaggese@gmail.com

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