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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades  no.23 Rio de Janeiro Apr./June 2019

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Projeto de Vida Titanzinho: jovens e direitos humanos

 

Proyecto de Vida Titanzinho: jóvenes y derechos humanos

 

 

Iara AndradeI, Paula AutranII

I Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Brasil.

II Universidade Federal do Ceará (UFC), Brasil.

 

 


RESUMO

O Serviluz, oficialmente denominado como Cais do Porto, é um bairro da cidade de Fortaleza, Ceará, que se encontra em situação de vulnerabilidade social, com alto índice de violência, baixo nível de desenvolvimento humano e uma grande população de jovens em situação de risco. Em 2015, foi realizada uma atuação com os jovens da comunidade com a proposta de trabalhar um Projeto de Vida. Em 2016, o projeto foi nomeado como Projeto de Vida Titanzinho e passou a atuar com a temática de Direitos Humanos, tendo como objetivo provocar reflexões, discussões e ações sobre o assunto. A metodologia envolveu roda de conversa, apresentação e construções de conteúdos, palestras, atividades de campo e grupos de arte. Como resultados das intervenções, foi possível perceber que os jovens apresentaram conhecimentos mais elaborados sobre os direitos humanos e relacionados aos temas trabalhados durante o ano.

Palavras-chave: direitos humanos, Serviluz, psicologia social, educação informal, Projeto de Vida Titanzinho.


ABSTRACT

Serviluz, officially named Cais do Porto, is a neighbourhood in the city of Fortaleza, which finds itself in a situation of social vulnerability, with a high incidence of violence, a low incidence of social development, and a large youth population at social risk. In 2015, a work was done with the community’s young people with the intent of discussing their life project. in 2016, the project was named Titanzinho Life Project and began to revolve around the theme of Human Rights, in order to provoke r eflections, discussions and actions involving the subject. The methodology of this project involved discussion groups, the presentation and construction of lectures, field activities and art groups. As a result of these interventions, it was possible to see that the young people involved showcased a more elaborate knowledge on Human Rights and related themes worked on throughout the year.

Keywords: human rights, Serviluz, social psychology, informal education, Titanzinho Life Project.


RESUMEN

El Serviluz, oficialmente denominado como Cais do Porto, es un barrio de la ciudad de Fortaleza, Ceará, que se encuentra en situación de vulnerabilidad social, con alto índice de violencia, bajo nivel de desarrollo humano y una gran población de jóvenes en situación de vulnerabilidad social y de riesgo. En 2015 se realizó un proyecto con los jóvenes de la comunidad en base a la propuesta de trabajar el Proyecto de Vida. En 2016, el proyecto fue nombrado Proyecto de Vida Titanzinho, y pasó a accionar dentro del campo de la temática de los Derechos Humanos, teniendo como objetivo provocar reflexiones, discusiones y acciones sobre el asunto. La metodología incluyó: una rueda de conversación, presentación y construcciones de contenidos, charlas, actividades de campo y grupos de arte. Como resultado de las intervenciones fue posible percibir que los jóvenes presentaron conocimientos más elaborados sobre los derechos humanos y relacionados con los temas trabajados durante el año.

Palabras-clave: derechos humanos, Serviluz, psicología social, educación informal, Proyecto de Vida Titanzinho.


 

 

Introdução

O Serviluz é uma comunidade localizada na cidade de Fortaleza, Ceará, Brasil. O bairro é conhecido por esse nome devido à Companhia de Serviços de Força e Luz (Serviluz), que era ponto de referência para a localização do lugar. Formalmente, o Serviluz está situado do Cais do Porto ao Vicente Pinzón, ou seja, é uma faixa de praia que ocupa pouco mais de três quilômetros, localizando-se próxima da zona portuária (Nogueira, 2014).

A comunidade é uma ocupação urbana formada na segunda metade do século XX, tendo surgido em decorrência da construção do porto. O local no qual a comunidade se encontra hoje foi um terreno cedido pela Marinha. Na década de 70, a capitania dos portos removeu moradores da Praia Mansa, que é uma região próxima, realocando-os para um terreno um pouco mais afastado, próximo ao Farol do Mucuripe. Os moradores não receberam nenhum tipo de indenização após essa ação e construíram suas casas com recursos próprios (Nogueira, 2007; Nogueira, 2017).

O bairro não apenas recebe descaso do governo nesta década, mas sua criação e desenvolvimento são permeados, historicamente, por ameaças e interesses do mercado imobiliário. As transformações econômicas e sociais, como a construção do novo cais do porto, a crise na pesca, a seca da cidade e as mudanças na indústria influenciaram a história do bairro, contribuindo para as situações de miséria, medo e violência (Nogueira, 2007). A região confronta-se com os projetos turísticos para a cidade, além de existir diversos projetos que planejam a retirada de uma grande parcela dos moradores do bairro (Brasil, 2014).

Em 2010, a comunidade possuía 22.382 moradores, estando 20% dessa população na faixa etária entre 15 e 24 anos, ou seja, 4.565 das pessoas que compõem o Serviluz são jovens (IBGE, 2010).

Dados de 2010 do Instituto de Pesquisa Estatística Aplicada (IPEA) apontaram que, em Fortaleza, 11,48% dos jovens de faixa etária entre 15 e 24 anos se encontravam em situação de vulnerabilidades, sem trabalhar e estudar. O afastamento da escola é apontado como uma preocupação, principalmente em lugares com alto índice de violência, por propiciar maior vulnerabilidade de adolescentes frente ao homicídio (IPLANFOR, 2015). No mesmo ano, foi realizado o cálculo do Índice de Desenvolvimento Humano por Bairro (IDH-B), que contempla três indicadores: média de anos de estudo do chefe de família; taxa de alfabetização e renda média do chefe de família (em salários mínimos), variando entre 0 e 1. De maneira mais específica, o bairro Cais do Porto encontra-se com IDH-B de 0,224, podendo ser considerado muito baixo (IBGE, 2010).

De acordo com o Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência – CCPHA (2016), em 2015, um total de 387 meninos e meninas de idades entre 10 e 19 anos foram mortos na cidade de Fortaleza, capital do Ceará. O Vicente Pinzón aparece como o quarto bairro de Fortaleza com o maior número de homicídios de adolescentes (13) (Relatório Final do Comitê Cearense Pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, 2016).

O Governo do Estado do Ceará dividiu o estado em 18 Áreas Integradas de Segurança (AIS), sendo a AIS 1 composta pelos bairros Cais do Porto, Vicente Pinzón, Mucuripe, Aldeota, Varjota, Praia de Iracema e Meireles. Essa área teve, no ano de 2014, um total de 177 homicídios e, em 2015, houve uma diminuição de 7,9% nesses crimes, tendo como resultado final 163 mortes (IPLANFOR, 2015).

O Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídio na Adolescência (2016), além de realizar um diagnóstico sobre os homicídios de adolescentes no estado do Ceará, também, propõe 12 recomendações para o combate ao homicídio de adolescentes. Entre elas, está a ampliação de rede de programas e projetos sociais a adolescentes.

Diante desse contexto, no ano de 2015, foi desenvolvida, por uma psicóloga e duas estudantes de Psicologia, uma proposta que trabalhou a temática “projeto de vida” com jovens da comunidade do Serviluz, orientando-os para o mercado de trabalho. O grupo passou a atuar na praia do Titanzinho, localizada no bairro, especificamente, na Escola Beneficente de Surf do Titanzinho, lugar onde já existiam atividades de esporte, música e lazer, que cedeu seu espaço físico para a atuação.

No ano seguinte, com um formato semelhante, mas com objetivo diferenciado, o projeto passou a se denominar Projeto de Vida Titanzinho, com a finalidade de provocar reflexões e discussões críticas sobre o autoconhecimento e conhecimento do contexto social, passando a trabalhar o tema de Direitos Humanos por meio da facilitação de grupo com jovens. O autoconhecimento e conhecimento do contexto social são embasados, principalmente, pelas perceptivas da Identidade Social (Tajfel, 1982) e Conscientização (Freire, 2016).

A Identidade Social é a comparação que a pessoa estabelece entre os grupos aos quais pertence e aqueles que considera alheios. Essa formação do grupo pode ocorrer, inicialmente, por pressões sociais externas e, só depois de algum tempo, ocorre a construção de uma consciência social de pertencimento ao grupo. Como forma de defesa, os grupos minoritários têm buscado um fortalecimento por meio da valorização de uma identidade, reavaliando suas características consideradas desfavoráveis, internamente e externamente ao grupo, de maneira a transformar essa identidade, procurando, no passado do grupo, tradições e atributos para serem revitalizados e valorizados (Tajfel, 1982).

Ainda no que concerne à visualização de grupos minoritários ou oprimidos, como Freire (2016) nomeia, a conscientização aparece como resultado de uma linha de ação pedagógica crítica, que seria “uma captação correta e crítica dos verdadeiros mecanismos dos fenômenos naturais ou humanos” (p. 77). Uma vez que ocorre a tomada de consciência, as pessoas teriam propriedade sobre as situações que vivenciam e buscariam transformá-las. Assim, as atividades que buscam a conscientização devem estimular o pensamento crítico e a libertação, por meio do diálogo, incentivando atividades intersubjetivas a partir das quais os atores produzem, partindo de suas realidades vivenciadas. Segundo Freire (2016), quanto mais as pessoas refletirem sobre a sua própria existência, mais poderão intervir sobre ela.

Para que haja uma mudança interna e externa da percepção sobre o grupo, são necessárias estratégias coletivas (Valentin, 2008). Sendo assim, as duas correntes teóricas se complementam para desenvolver uma conscientização crítica por meio da identidade social.

Desse modo, a escolha do tema “direitos humanos” se torna pertinente diante da observação de todos os dados supracitados e das violações existentes dessa realidade, vislumbrando a possibilidade de que os jovens coloquem em prática suas reflexões, transformando suas perspectivas críticas sobre o contexto social em ações. De acordo com a ONU (2016):

Os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição. Os direitos humanos incluem o direito à vida e à liberdade, à liberdade de opinião e de expressão, o direito ao trabalho e à educação, entre muitos outros. Todos merecem estes direitos, sem discriminação.

Assim, os direitos universais abrangem diversos âmbitos da vida, seja ela individual ou coletiva. Apesar disso, é relevante destacar que os direitos vigentes em cada sociedade estão ligados a contextos sociais e históricos e, principalmente, a processos de mobilização e reivindicações. Desse modo, as conquistas vigentes podem ser relacionadas a lutas políticas e socais (Medeiros, 2006).

No contexto brasileiro, as conquistas desses direitos ainda apresentam uma grande barreira a ser superada, vale saber, a desigualdade que separam os grupos sociais, devendo-se, assim, ser considerada não somente as dimensões objetivas como água, moradia e alimentação, mas, também, deve-se levar em conta aspectos da subjetividade social. Desse modo, cabe à Psicologia e aos psicólogos um importante papel, engajando-se em ações de compromisso com a promoção dos direitos humanos (Silva, 2003).

A Psicologia é uma área que estuda os mais diversos fenômenos sociais, com o intuito de relacionar as desigualdades e injustiças com o preconceito, numa tentativa de desconstruir a discriminação social (Camino, 2004). Sendo o Projeto de Vida Titanzinho composto por profissionais da área de Psicologia, considerou-se pertinente a atuação abordando o tema “Direitos Humanos”.

 

Um olhar sobre as violações dos direitos humanos

Diante dos fatores apresentados, o Projeto de Vida construiu um plano de ação para trabalhar os direitos humanos com os jovens participantes do projeto durante o ano de 2016. O objetivo principal foi o de provocar reflexões, discussões e ações acerca dos direitos e deveres humanos. A proposta foi organizada em três dimensões de ser: “eu comigo mesmo”, “eu com o outro” e “eu com o mundo”, em uma perspectiva de se trabalhar inicialmente o autoconhecimento até se chegar ao conhecimento social.

A metodologia utilizada para viabilizar o tema foi a facilitação de grupo de maneira ativa e dinâmica. A composição das experiências envolveu atividades como: roda de conversa; apresentação de informações; construções de conteúdos pelo grupo; apresentação de palestrantes convidados; atividades de campo e grupos de arte e dança. Essa forma de trabalho buscou preservar uma dimensão lúdica dentro da aprendizagem que, por meio de estratégias criativas e produtivas, envolvam e cativem os participantes com variadas formas de interação, não necessariamente com jogos e brincadeiras envolvidas (Afonso; Abade, 2013).

Além disso, o trabalho com grupos de jovens e adolescentes mostra-se apropriado, tendo em conta o sentimento de pertencimento a outro grupo, diferente de sua família, que se mostra importante na busca de identidade do adolescente. Ademais, o grupo possibilita o compartilhamento de sentimentos de dúvida e de insegurança, considerando-se, também, que cada integrante do grupo é um facilitador, já que pode compreender o outro e expressar isso (Lucchiari, 1993). Sendo assim, interação e compartilhamento fazem parte da educação não formal que, por meio de confrontações e colaborações, resultam na ressignificação de conteúdos e produção de saberes (Gohn, 2014).

Participaram das atividades 12 jovens com idades entre 12 e 15 anos, sendo três mulheres. O grupo de facilitadores foi composto por duas psicólogas e um estudante de psicologia, duas mulheres e um homem, o trabalho desenvolvido foi voluntário e a equipe contribuía com seus próprios recursos financeiros para efetuar as atividades propostas dentro do projeto.

A escolha do tema norteador – Diretos Humanos – foi pensada pelos facilitadores como uma proposta geral, porém, os temas específicos foram pensados em conjunto com o grupo de jovens participantes. Antes da delimitação sobre quais temas seriam tratados durante o ano, foram realizados dois encontros de apresentação. Nestes, tendo como embasamento a Declaração Universal dos Direitos Humanos, foram apresentados quais temas provavelmente seriam trabalhados, como uma forma de sondagem com o grupo sobre quais assuntos fariam mais sentido e quais eles sugeriam. Para isso, foram utilizadas ferramentas lúdicas, com o auxílio da cartilha de direitos humanos do Ziraldo (Ziraldo, 2008) e o uso de imagens e vídeos que abordassem os temas.

Após a apresentação, algumas temáticas foram retiradas e os assuntos drogas e educação ambiental foram adicionados por sugestão do grupo de jovens. O tema drogas foi abordado, relacionando-se ao tema defesa do seu próprio corpo, que teve como base o artigo III: “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” (UNIC/Rio, 2009). O tema educação ambiental foi adicionado por ser considerado de extrema relevância e contemplar a relação do indivíduo e da comunidade com o mundo.

Dessa forma, os subtemas trabalhados foram: privacidade pessoal; liberdade de expressão; preconceito; racismo; gênero; liberdade e defesa do seu próprio corpo; drogas; direito à educação; educação ambiental e a noção de que todos são iguais em direito perante a lei. Cada tema possuindo uma relação ou embasando-se em artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Como exemplo de privacidade pessoal, temos o artigo XII: “Ninguém será sujeito à interferência em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques” (UNIC/ Rio, 2009).

Cada um dos subtemas foi trabalhado em quantidades variadas de encontros, entre dois e quatro, dependendo das demandas que eram percebidas no grupo. Além disso, o tema abordado anteriormente era sempre relacionado ao tema seguinte; assim, discussões anteriores eram constantemente resgatadas. 

Tendo abordado de maneira ampla várias temáticas que envolvem direitos humanos, foi possível perceber, diante das reações e debates do grupo, a necessidade de aprofundar a discussão e ampliar as atividades metodológicas sobre a temática “diversidade”, seja ela étnica, religiosa, cultural ou de gênero. Essa percepção foi possível devido à conduta discriminatória que os jovens apresentaram diante de tais temas. Como exemplo, podemos comentar que, no início das atividades, trabalhou-se, por meio do tema liberdade de expressão, a liberdade religiosa, e falamos sobre as diversas religiões que são praticadas no Brasil. Nesse momento, o grupo apresentou medo e/ou preconceito em relação às religiões, principalmente as de origem africana.

Assim, reiterando-se a importância das ações lúdicas, é possível articular pensamento e ação. Brincar com a realidade implica ser capaz de ensaiar diversas facetas da imaginação e da criatividade, sendo isso possível não só nas brincadeiras infantis, mas, também, nas artes, na filosofia, nas ciências e em todas as atividades, sendo constitutivo da sociedade humana. A brincadeira se faz essencial para diversas aprendizagens do indivíduo como ser atuante no meio em que vive (Afonso; Abade, 2013; Jardim, 2003).

Temos como exemplo de atividade lúdica uma pesquisa de campo que abordou o tema racismo e foi construída a partir do artigo “Um estudo do preconceito na perspectiva das Representações Sociais: Análise da influência de um discurso justificador da discriminação no preconceito racial” (Pereira; Torres; Almeida, 2003), que foi estudado e adaptado para o contexto do grupo. O artigo base para a atividade consiste em avaliar a influência de um discurso justificador da discriminação sobre o racismo diante de um cenário, ou seja, de uma cena descrevendo uma situação racista.

Com base nisso, na atividade de campo, o grupo de participantes foi dividido em duas equipes: uma ficou com o cenário e a justificativa para o comportamento racista e a outra com o cenário sem a justificativa, que são originalmente apresentados no artigo. Os grupos, então, foram caminhando na comunidade, entrevistando os moradores que estivessem no local. Após a atividade, calculamos os resultados e conversamos sobre o assunto. Falamos sobre como as pessoas justificam seu preconceito, embasando-se no preconceito da sociedade.

Esse momento de discussão foi uma maneira de aquecer o tema que continuou na semana seguinte com um palestrante convidado, graduando em Relações Internacionais, natural da Guiné-Bissau. O estudante atuava como articulador na Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para Promoção da Igualdade Racial (Governo do Estado do Ceará) e estava coordenando o Coletivo África Eventos, sendo responsável pela Cultura & Eventos da Associação dos Estudantes da Guiné-Bissau, além de ser secretário da Associação dos Estudantes Africanos no Estado do Ceará.

Além disso, com o objetivo de trabalhar esse tema, foram realizadas duas apresentações de Tambor de Crioula. Essas apresentações foram realizadas pelo grupo Tambor Filhos do Sol e o evento foi organizado em parceria com o coletivo de jovens do bairro nomeado de Servilost – o lost (perdido, em inglês) faz alusão ao descaso das autoridades com o lugar. As apresentações foram abertas ao público, contemplando um ambiente da comunidade, o Farol do Mucuripe. Por meio da apresentação, foi possível proporcionar uma aproximação da comunidade com a cultura afro-brasileira e romper preconceitos religiosos, pois, mesmo com receio, os moradores do bairro se aproximaram da apresentação para ver do que se tratava, e muitos interagiram e dançaram nos eventos.

Além disso, o evento proporcionou circulação de visitantes no bairro, ocasionando trocas de vivências e de experiências entre pessoas que possivelmente não frequentariam o bairro se não fosse a ligação com o projeto, o que fomentou a criação de conexões para atividades artísticas e culturais em momentos futuros, para além das vivências proporcionadas pelo projeto.

Com o evento do Tambor de Crioula, também se iniciou a temática “gênero”, pois, para dançar, é necessário o uso da saia. Então, se um homem quisesse dançar, ele precisaria colocar a vestimenta típica. Inicialmente, a prática provocou estranhamento, porém, com as explicações e conversas, vários homens vestiram a saia e entraram na roda. Na semana seguinte, o tema “gênero” foi introduzido de maneira mais aprofundada ao grupo, o que proporcionou uma relação entre algo vivido anteriormente e um conteúdo teórico, desenvolvendo um processo de conhecimento (Gohn, 2014).

De maneira mais direcionada para a temática gênero, foi realizada a dinâmica “Coisa de Homem e Coisa de Mulher”, na qual, em uma cartolina separada em duas partes e com colagens, o grupo selecionou o que seria “coisa de homem” e o que seria “coisa de mulher”. Feita a divisão, o grupo foi desconstruindo, por meio da conversa, essa divisão. Dois convidados que participaram da atividade, por dedicarem-se ao estudo da temática gênero, problematizaram as questões e apresentaram exemplos na sociedade que ampliavam as possibilidades de atividades que homens e mulheres realizam. Em outros encontros, também, para abordar esse tema, foram apresentados vídeos, fotos e informações estatísticas.

Essas temáticas suscitaram a relevância de se trabalhar a partir da perspectiva da Identidade Social (Tajfel, 1982), pois esse é um dos mecanismos que explica a discriminação das pessoas, o que pode ajudar a explicar as diferentes formas de defesa dos grupos que sofrem discriminação e que têm buscado um fortalecimento de uma identidade social mais positiva. Dessa maneira, pode-se pensar em estratégias tanto para perceber os outros grupos de maneiras mais positivas ou em outras perspectivas, quanto para valorizar o local em que o indivíduo se encontra.

Outra adaptação realizada no cronograma foi relativa ao tema de educação ambiental, pois diante da realidade da comunidade – falta de saneamento básico, falta de coleta de lixo, proximidade com o mar e contato com animais de rua e marítimos –, percebeu-se a necessidade de se trabalhar tal assunto com maior profundidade. Este foi relacionado aos direitos humanos, tendo em vista a perspectiva de direito à saúde e de cidadania, com o foco na preservação do meio ambiente. Para tal, foram realizadas diferentes atividades para se trabalhar o assunto.

Para a introdução do tema, um estudante de Biologia foi convidado. O grupo desenhou um mapa do bairro, os animais que eles encontram diariamente na comunidade e problemas ambientais e de poluição. Tais assuntos foram debatidos, construiu-se um conhecimento sobre os animais que habitam o local e se discutiu sobre quais seriam as soluções para os problemas encontrados. De igual modo, realizou-se um passeio pelas dunas da Sabiaguaba, sendo este um momento de entrar em contato direto com a natureza. Além disso, conversamos sobre os benefícios que ela possui e os problemas que são causados pelas intervenções humanas, tendo como guia um biólogo que estuda a região.

Na semana seguinte, os próprios participantes do projeto guiaram os facilitadores do grupo pelo bairro, mostrando lugares na comunidade que tinham significado para eles, além de terem contato com elementos da natureza. Esse contato consiste em uma maneira de pensar o ambiente não somente em relação com a natureza, mas em relação aos outros e consigo.

No dia das crianças, foi realizado um mutirão de limpeza da praia, sendo que a equipe que coletasse mais lixo venceria a brincadeira. Outra intervenção relativa ao tema foi a exibição do documentário Lixo Extraordinário (2010), seguido por um debate sobre o documentário e um planejamento de ações que poderiam ajudar na preservação do bairro.

Na semana seguinte, o grupo foi dividido em duas equipes para que cada uma desenvolvesse um plano de ação para diminuir a poluição na comunidade. Posteriormente, foram convidados dois estudantes de Engenharia Ambiental e Sanitária para explicarem acerca dos resíduos sólidos.

Os resultados alcançados foram realizações de ações intramuros, produção de cartazes e realização de gincanas produzidas pelos jovens, além de eventos extramuros, como uma atividade cultural em alusão à cultura negra e a coleta de materiais recicláveis.

Para uma avaliação individual sobre o aprendizado e engajamento dos participantes, foram realizadas entrevistas semiestruturadas individuais no início e no final do grupo. O roteiro de entrevista foi composto por perguntas sócio-demográficas (idade, escolaridade, com quem mora) e sobre: (1) compreensão do tema “direitos humanos”; (2) relatos de direitos humanos infringidos; (3) expectativa sobre o projeto (antes); (4) sugestões e demandas (depois).

Avaliando as entrevistas antes e depois das atividades, de uma maneira comparativa, foi possível perceber que o conhecimento inicial sobre a temática de direitos humanos já era existente, porém, de maneira mais abstrata: “Respeitar uns aos outros” (M.S., menino de 12 anos); “A pessoa ter o direito dela a se expressar e fazer o que quiser” (L.O., menino de 13 anos). Depois das atividades, observaram-se respostas mais elaboradas e relacionadas com os temas trabalhados durante o ano: “Se a pessoa tem seus direitos, deve correr atrás. A gente sozinho não pode fazer nada” (L.O., menino de 14 anos); e ainda “Direitos iguais, sem humilhar as pessoas. [...] O bullying com as mulheres” (E.S., menina de 12 anos).

Em relação aos relatos de direitos humanos infringidos, observa-se que, na primeira entrevista, os jovens apresentaram relatos sobre os quais não se implicavam tanto: “Pessoas negras sofrendo preconceito” (R.E, menino de 15 anos) ou “No colégio, várias pessoas desrespeitam os professores” (M.S., menino de 12 anos). Já no segundo momento, notam-se relatos mais próximos de suas vivências: “No fórum, quando o pai não assume a responsabilidade, a promotora deveria procurar mais direitos”; “Na escola, quando tomei a frente de todo mundo na fila”; “Quando a vizinha coloca o som alto demais” (V.S., menino de 14 anos) ou “Quando matam alguém de nossa família. [...] Quando a polícia para um cara por ser negro um bocado de vezes” (L.O., menino de 14 anos). Além disso, foi possível observar uma maior implicação dos jovens sobre o tema, reconhecendo que também já violaram direitos dos colegas ou seus direitos foram violados, vivências relacionadas principalmente com o preconceito: “Quando chamo o X [colega do projeto] de viado” (M.S., menino de 12 anos) e “Na escola me chamam de burro, negro [...] os apelidos” (B.S, menino de 12 anos).

Com a finalização das atividades, foi possível perceber o conhecimento teórico e cognitivo dos jovens sobre os temas. Apesar disso, as mudanças de comportamento não foram tão claras, sendo possível observar a exposição de opiniões contra outros integrantes do grupo, colocando em questão as vivências promovidas sobre igualdade e respeito às diferenças. Diante disso, reitera-se que a conscientização é um processo e que o convívio social e as atividades em grupo contribuem para tal. Assim, a estimulação do pensamento crítico e a libertação, por meio do diálogo, incentivo de atividades intersubjetivas nas quais os atores produzem, partindo de suas realidades vivenciadas, devem seguir. Ainda, deve-se considerar que o conteúdo aprendido não é uma cópia do que foi transmitido, pois as pessoas reelaboram o que recebem a partir de suas experiências, vivências e cultura (Freire, 2016; Gohn, 2014).

Em relação às expectativas, demandas e sugestões que foram apresentadas pelos jovens, observam-se, tanto antes quanto depois, apontamentos sobre o interesse em atividades dinâmicas, passeios e gincanas. Além disso, como sugestão de temas mais recorrentes, apareceram os assuntos de educação ambiental, racismo, preconceito e bullying, o que reitera a importância do trabalho de facilitação de grupos com jovens em uma perspectiva lúdica e dinâmica, tendo em vista que essas temáticas foram contempladas com maior variabilidade de métodos e dinâmicas.

 

Considerações Finais

Tanto as informações estatísticas apresentadas neste texto quanto o relato sobre a história do nascimento do bairro Serviluz apresentam notórias violações aos Direitos Humanos. Violações que podem ser representadas pelos altos índices de homicídios, baixo IDH-B, remoção de moradores e interesses públicos que favorecem uma minoria privilegiada. Apesar desses fatores, o bairro possui diversos movimentos internos, seja de associações e escolas de surf, seja de projetos sociais, grupos que promovem atividades de arte, cultura e esporte.

Essas atividades por si só já são promotoras de saúde e promovem acesso a determinados direitos que poderiam não existir se não fossem por elas, como o convívio em comunidade e o lazer, também proporcionando reflexões críticas específicas de cada tema. Porém, outros processos também aparecem como relevantes para instigar reflexões e discussões críticas, sendo um deles a facilitação de grupo de jovens aqui relatada. O conhecimento cognitivo dos Direitos Humanos pode por si só estimular jovens a reivindicar seus direitos e identificar a violação que sofrem, porém, o envolvimento por meio de vivências e trocas em grupo apresenta maior engajamento dos participantes em relação à temática.

Diante disso, o psicólogo possui um compromisso ético e profissional com esse tipo de atuação, tratando as perspectivas do autoconhecimento e conhecimento do contexto social e apresentando comprometimento com os Direitos Humanos. Esse profissional deve, sobretudo, manter uma postura crítica e reflexiva sobre os fenômenos sociais para que não reitere desigualdades e injustiças. Para esse processo, as práticas da educação não formal podem ser fortes aliadas. Esse modo de atuar possui como vantagem sua maior flexibilidade e a possibilidade de permear por variados temas, o que pode proporcionar a adesão de jovens participantes.

Observar que em apenas um ano de trabalho um grupo de jovens se formou de maneira tão coesa e já propor atividades para melhoria de acesso aos direitos humanos do bairro já é uma grande conquista. Além disso, observa-se que, através do projeto, os jovens puderam ter maiores relações com a comunidade, conhecendo novas pessoas e ocupando de maneira diferente os espaços que já habitavam. Nas atividades externas ao bairro, os jovens também puderam ter contato com novos ambientes e pessoas que provavelmente não conheceriam se não integrassem o grupo de participantes do projeto.

Embora as mudanças de comportamento dos jovens não tenham sido tão perceptíveis, devido à persistência de apelidos e desrespeito aos colegas, em determinados momentos, percebe-se uma mudança de discurso dos participantes sobre os temas. Ademais, os integrantes apresentaram interesse em permanecer no grupo, sugerindo temas e atividades para o ano seguinte (2017), mesmo que esta não seja uma atividade obrigatória.

Diante do exposto, há que se destacar as potências dessa caminhada que apenas foi iniciada e que segue em busca do desenvolvimento de pessoas ativas, questionadoras e participantes na sociedade. Seguindo com conteúdo e dinamicidade para que os jovens possam ter uma compreensão global e implicada sobre os assuntos discutidos no grupo.

 

 

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Data de recebimento: 07/05/2018
Data de aceite: 11/01/2019

 

 

I Iara Andrade: Mestranda em Psicologia pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR, Brasil. Atualmente é membro do Laboratório de Estudos sobre Processos de Exclusão Social (LEPES). Também atua com intervenção social por meio do Projeto de Vida Titanzinho. E-mail: iara_andrade_@hotmail.com

II Paula Autran: Graduada em Psicologia pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR, Brasil. Pós-graduação em Neuropsicodiagnóstico – Educação a Distância, pela Unichristus, Brasil. Mestranda em Psicologia, Universidade Federal do Ceará - UFC, Brasil. Também atua com intervenção social por meio do Projeto de Vida Titanzinho. E-mail: autranpaula@gmail.com

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