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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.24 Rio de Janeiro jul./set. 2019

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

“Você sabe o que seu filho está fazendo neste momento?” Políticas da última ditadura argentina em torno da infância e da juventude

 

“Do you know what your son is doing right now?" Public policies of the last Argentinian dictatorship surrounding childhood and youth

 

“¿Sabe Usted que está haciendo su hijo en este momento?” Políticas de la última dictadura argentina hacia la Infancia y la juventud

 

 

María Florencia OsunaI

Universidad Nacional de General Sarmiento, Argentina.

Universidad Nacional de La Plata, Argentina.

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta um conjunto de discursos, iniciativas e atores vinculados à infância que teve lugar durante a última ditadura argentina (1976-1983). Assim, analisa um imaginário biologicista que entendia a nação como um corpo, a família como “célula fundamental da comunidade” e as crianças e jovens como as paredes mais frágeis dessa célula. Em relação a isso, o trabalho também aborda as políticas destinadas aos mais jovens, que, para a ditadura, representavam um campo potencial de incertezas que era necessário controlar e dirigir.

Palavras-chave: ditadura, Argentina, infância, jovem.


ABSTRACT

This article presents a set of discourses, initiatives and actors linked to the subject matter of childhood in circulation during the last Argentinian dictatorship (1976-1983). Hence, it analyses a biology centered imaginary that understood the nation as a body, the family as the "fundamental cell of the community" and children and young people as the most fragile walls in this cell. In relation to that, the work presented here also touches upon the public policies aimed at the young, who represented, for the dictatorship, a potential field of uncertainties that should be controlled and directed.

Keywords: dictatorship, Argentina, childhood, young.


RESUMEN

Este artículo da cuenta de un conjunto de discursos, iniciativas y actores vinculado a la infancia que tuvo lugar durante la última dictadura argentina (1976-1983). Así, analiza un imaginario biologicista que entendía a la nación como un cuerpo, a la familia como la “célula básica de la comunidad” y a los niños y jóvenes como las paredes más frágiles de esa célula.  En relación con esto, el trabajo también aborda las políticas destinadas a los más jóvenes, quienes, para la dictadura, representaban un campo potencial de incertidumbre que era necesario controlar y dirigir.

Palabras-clave: dictadura, Argentina, infancia, joven.


 

 

A história e a memória da última ditadura argentina, marcada substancialmente pelo assassinato e o desaparecimento planificado de milhares de pessoas, é parte central do campo de estudos da chamada história recente 1. Apesar de esses acontecimentos terem lugar entre os anos setenta e oitenta, sua condição “recente” se expressa nas repercussões que as políticas repressivas da ditadura tiveram e têm nas práticas e nos discursos judiciais, políticos, estatais, partidários, sociais, culturais e econômicos das últimas quatro décadas.

Neste sentido, estudar e compreender as caraterísticas das políticas repressivas dos anos setenta (antes e durante a última ditadura) nos permite lançar luz sobre processos que ainda continuam em aberto nas diferentes áreas da vida social. As políticas públicas em torno da infância e da juventude de ontem e de hoje podem (e devem) ser compreendidas à luz dessa história, visto que as formas de entender esses setores sociais e as diferentes propostas para sua “correta” socialização encontram sua formulação nesses anos.

Para ilustrar os modos em que esse passado continua aberto nas disputas sobre a infância e a juventude, podemos tomar como exemplo um acontecimento muito recente. No dia 15 de julho deste ano, por meio da resolução 598/2019 do atual Ministério da Segurança argentino, a cargo de Patricia Bullrich, foi criado o Serviço Cívico voluntário em valores, orientado a jovens entre 16 e 20 anos de idade e que será implementado nos próximos meses do ano de 2019 pela Gendarmería Nacional Argentina2 com seus recursos humanos e infraestrutura, segundo estabelece o artigo nº 3 da norma (Boletim Oficial Nº 34154, 16/7/2019). O envolvimento das Forças Armadas argentinas nas tarefas de capacitação laboral, treinamento físico e educação em valores dos jovens argentinos foi impulsionado e defendido pelos titulares dos atuais ministérios da Segurança e Educação. Esse episódio gerou debates e críticas na opinião pública com diferentes argumentos que incluíram tanto alertar sobre a possível reimplantação do serviço militar quanto o apagamento do rol pedagógico e formativo da escola na trajetória dos jovens.

Entretanto, acreditamos que é possível pensar e inscrever este acontecimento numa perspectiva histórica mais ampla. Nesse sentido, desde os anos setenta existiram pelo menos dois espaços que, mesmo que internamente diversos e complexos, respondiam a duas grandes tendências. Uma delas, predominante no período 1976-1983, se expressou nas propostas das Forças Armadas e do “mundo católico”. Esses setores, durante a ditadura, a partir da Secretaria do Menor e da Família, foram responsáveis pela formulação de políticas públicas destinadas à família, à infância e à juventude. Para esse setor, o conteúdo da educação devia se basear num ideário católico e nacionalista. Por sua vez, propunham atividades conjuntas entre as crianças, os jovens e os militares das diferentes armas, já que consideravam positivamente a socialização das crianças nos valores castrenses ligados à disciplina dos corpos, à defesa da pátria e do modo de vida ocidental e cristão. Um exemplo disso, retomando as linhas de continuidade com a medida anunciada pela atual ministra de Segurança, foi a criação da Gendarmería Infantil durante a ditadura. Essa iniciativa foi “uma tentativa de incidir na socialização das crianças e jovens por parte de um setor do regime militar” (Lvovich e Rodríguez, 2011). O objetivo era manter as crianças e jovens “afastados da subversão”, estabelecendo laços entre este setor da população e as forças de segurança, socializando em valores, princípios e cerimônias próprios dessas forças.

Embora também tenha existido uma rede de atores alternativa relacionada, por exemplo, ao Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), espaços artísticos e culturais, médicos pediatras como Florencio Escardó, dentre muitos outros que eram diversos ideologicamente, mais do que uma socialização autoritária, focavam no desenvolvimento da infância tendo em consideração seus direitos humanos, a ludicidadee a criatividade. Essa não foi a tendência predominante nesses anos, mas é importante considerar que também oferecia propostas distintas no espaço público.

Os setores que defendiam o imaginário conservador próprio da aliança entre católicos e militares eram os funcionários responsáveis pela Secretaria do Menor e da Família, dirigida pelo advogado católico Florencio Varela.

No discurso destes setores, podemos encontrar diferentes tópicos e diagnósticos sobre o acontecido na família, que se traduziram em distintas práticas e políticas em torno da infância e da juventude.

Por um lado, os agentes estatais da última ditadura, em seus discursos, utilizavam metáforas organicistas e biologicistas. Nesse sentido, segundo os diagnósticos do governo, a “subversão” era percebida como um vírus ou uma doença que tinha infeccionado o “corpo social” no seu conjunto, incluindo seus “tecidos” mais microscópicos. A família era representada como a “célula fundamental da comunidade”, sua unidade mínima indissolúvel na conformação desse “corpo social”. Por sua vez, era considerada o lugar depositário dos valores essenciais de uma mítica “identidade nacional”, relacionada com a moral cristã (Filc, 1997). Esse imaginário, próprio das elites católicas, nesses anos, se articulou ao propósito das Forças Armadas de aniquilar o heterogêneo e difuso “inimigo subversivo” que, por sua vez, era representado como um câncer ou uma infecção que se propagava pelo “tecido social” e contagiava todas as “células”. Por conseguinte, se considerava necessário “extirpar” da raiz as partes “contaminadas” do organismo. Igualmente, tentava-se fazer com que as “células do corpo” (as famílias) se protegessem dessa “ameaça” para evitar sua propagação. Nesse sentido, face à presença das ideias consideradas “estranhas” e “subversivas”, se considerou importante fortalecer a moral cristã e reforçar uma hierarquia “natural”, na qual o homem-pai devia ocupar o lugar de autoridade e a direção, enquanto a mulher-mãe devia amar sua família, assegurando o resguardo e a transmissão da tradição. Para conservar a integridade dessa unidade moral indissolúvel, tinha de ser evitado o ingresso de ideias “dissolventes”. Para isso, era necessário controlar, sobretudo, as “partes frágeis” da parede da “célula”: as crianças e jovens da família. Se considerava que, por meio deles, se propagava “o vírus da subversão” e os responsáveis de que isso não acontecesse eram o pai e a mãe. Os pais (principalmente, os homens) deviam “retomar a liderança” para “preservar” a “segurança” do lar, controlando autoritariamente a conduta dos filhos. Considerava-se importante robustecer o conteúdo moral cristão da educação dos menores, ligado ao “verdadeiro” ser argentino. Caso contrário, os jovens se veriam “seduzidos e enganados” pelo “inimigo”, através das drogas e do sexo, recaindo nos “desvios” como a prostituição, a homossexualidade, a loucura e a criminalidade.

Por outro lado, nos discursos dos funcionários, as crianças eram associadas principalmente ao futuro e, neste sentido, representavam um campo de incertezas que era fundamental controlar e dirigir para que se transformassem nos homens, cidadãos e dirigentes do amanhã.

Jorge Rafael Videla, o primeiro presidente dessa ditadura, numa conversa com as “crianças jornalistas” de um programa de televisão, afirmava que “conversar com uma criança é, em alguma medida, dialogar com o futuro e não podem ter dúvida alguma que vocês, hoje crianças, serão os dirigentes do ano 2000” (La Nación, 7/8/1978). A representação da criança como conexão com o futuro poderia implicar um risco – se os pais e responsáveis pela educação das crianças cometessem erros – ou a construção do ideal de Nação que desejavam os setores católicos encarregados da infância e da família. Devido ao fato de que a infância era percebida como o futuro indefinido do país, devia ser corretamente educada nos “valores cristãos e morais da família argentina”.

Tendo em conta esses diagnósticos, representações e as características dos atores relacionados ao universo infanto-juvenil, é possível analisar algumas políticas públicas e iniciativas relacionadas às crianças e aos jovens.

Durante a última ditadura argentina, existia uma pergunta que a mídia reproduzia insistentemente e que ainda ecoa na memória social atual sobre esses anos: “Você sabe o que seu filho está fazendo neste momento?”. Esta interrogação, como vemos, por um lado, pressupunha a necessidade de controlar a infância e a juventude e, por outro, buscava responsabilizar os pais pelo cuidado e controle da infância face aos “perigos” da incidência da “subversão” na sociedade argentina que descrevemos anteriormente. Nesse sentido, é uma pergunta que resume as intenções de uma série de políticas da Secretaria do Menor e da Família.

Assim, ao analisar as mensagens que a Secretaria dirigia à família, é possível observar que se reforçava a responsabilidade dos pais em relação ao comportamento dos menores, mas também no cuidado da sua integridade física. Por descuido ou negligência dos pais, as crianças e a juventude podiam tanto estabelecer relações perigosas por fora da família quanto sofrer acidentes domésticos que poderiam machucá-los ou levá-los à morte. Essas mensagens ressaltavam constantemente os riscos físicos e ideológicos das atitudes consideradas negligentes ou irresponsáveis.

Por um lado, então, no Boletim do Ministério de Bem-estar Social (do qual dependia a Secretaria do Menor e da Família), encontramos cartazes curtos de advertência sobre esse conjunto de perigos ressaltados em letra maiúscula e que estavam destinados a evitar os riscos físicos que, por irresponsabilidade paterna, poderiam sofrer as crianças no lar, tais como a asfixia com sacolas de plástico, as doenças por falta de higiene ou por contaminação da casa provocada por moscas e insetos, eletrocussão com aparelhos elétricos e acidentes em escadas (Boletim do Ministério de Bem-estar Social Nº 10, 4/10/1976; Nº12, 18/10/1976; Nº 39, 23/05/1977).

Alternadas com esse tipo de advertências e conselhos aos pais, aparecem as mensagens vinculadas ao “risco moral” ao que expunham aos filhos e à sociedade, se diante das anomalias familiares os menores se afastavam do lar. Nesse sentido, além do controle estrito da infância, o reforçamento dos papéis familiares tradicionais era considerado importante para evitar o vazamento das ideias subversivas, a desintegração da família e do tecido social. Nesta direção, os funcionários propunham “difundir a importância do desempenho das funções paterna e materna para o equilíbrio do lar e o desempenho normal da criança”(La Nación, 15/12/1979).

Em relação a essa estratégia estatal, o ministro de Bem-estar Social, o contra-almirante Jorge Fraga, afirmava que “a criança é a consequência da família (...) os males de uma criança são, em 90%, consequência de uma família má” (Filc, 1997, p. 37). Partindo do estado, num tom instrutivo e pedagógico, também se endereçavam mensagens constantes aos pais em relação às atitudes que deviam mudar ou evitar na hora de educar os filhos menores:

Algo para lembrar: os adultos costumam ter condutas e atitudes lesivas para a formação dos menores. Você, pai ou mãe, tem filhos. Tem pensado alguma vez que os adultos podem ter condutas ou atitudes que interferem ou desviam a formação dos menores? Isto é o que lembra a Secretaria do Estado do Menor e da Família. E faz os pais lembrarem, as mães, para que dediquem maior atenção à vigilância e proteção dos seus filhos, muitas vezes em situação de abandono pelas circunstâncias ou pela boa fé ou ignorância dos maiores. Tem pensado alguma vez no que se passa na mente, nos sentimentos do filho de 8, 10, de 12 anos quando chega do colégio e não tem ninguém em casa? Quando passa as horas com outros rapazes e toma iniciativas às vezes arriscadas e ninguém sabe por onde anda? (Boletim do Ministério de Bem-estar Social Nº 07, 13/09/1976).

Segundo o discurso dessa Secretaria, se as crianças no marco da família não eram ouvidas, eram ignoradas, não eram contidas, deixando-as só ou machucando-as, existia o risco de que estabeleceriam vínculos “perigosos” por fora da família nuclear: “O resultado desses conflitos familiares, então, é a criança que os sofre, que na medida em que o tempo passa vai adotando atitudes e condutas que se tornam contra ele e ainda contra a sociedade” (Boletim do Ministério de Bem-estar Social Nº 25, 14/02/1977). Também se insistia que “os pais devem conhecer as amizades dos filhos. Vão evitar muitas surpresas, às vezes trágicas. Sobretudo hoje, que por influências que não são argentinas, o ódio e a crueldade têm chegado a lugares insuspeitados” (Boletim do Ministério de Bem-estar Social Nº 8, 20/09/1976).

Além destas mensagens instrutivas destinadas aos pais, para evitar que os menores andassem sozinhos na via pública, foi criado o Corpo de Vigilância Juvenil, dependente da Secretaria do Menor e da Família, responsável por patrulhar as ruas. Se os pais não sabiam o que faziam ou onde estavam seus filhos, este Corpo colaborava “no mesmo sentido da proteção dos menores. Em locais de grande afluência de público exerce vigilância diariamente para evitar o risco físico ou moral de crianças e jovens” (Boletim do Ministério de Bem-estar Social Nº 24, 07/02/1977) 3. Como podemos ver, o propósito do CVJ da última ditadura também era, segundo seu discurso, evitar o risco físico e moral dos menores4.

O Corpo de Vigilância Juvenil desta Secretaria de Estado atua permanentemente. Realiza suas tarefas percorrendo locais de acesso público, estações ferroviárias e de metrô, ruas e praças, com o fim de detectar menores abandonados, geralmente por se afastar do seu lar, por maus-tratos, por falta de afeto. Na última semana internou 25 menores que se achavam nessa situação, em diferentes estabelecimentos dependentes desta Secretaria de Estado. Medite sobre o anterior, e tome cuidado. Seu filho, afastado de você, pode estar em perigo (Boletim MBS Nº 07, 23/09/1976).

Desta maneira, como podemos ler na citação, este grupo, semana apóssemana, patrulhava as ruas na procura de menores de idade e os retornava às suas famílias, os levava a hospitais ou a institutos de menores. Através do Boletim semanal do MBS, o Corpo de Vigilância Juvenil, além de endereçar perguntas aos pais (“Tem conhecimento dos locais que seu filho frequenta? Sabe se sua moral e integridade física estão resguardadas?”), publicava com orgulho o número de menores resgatados da via pública e que, depois, eram entregues aos pais ou encaminhados a institutos de menores (Boletim MBS Nº 24, 07/02/1977, Nº 27, 28/02/1977; Nº 28, 07/03/1977).

Além dessas iniciativas tendentes claramente ao controle e disciplinamento da infância, encontramos outros atores e propostas no marco do “Ano internacional da Criança”, declarado pelas Nações Unidas em ocasião de comemoração do vigésimo aniversário da Declaração dos Direitos da Criança. O objetivo central era que os Estados revissem e desenvolvessem políticas públicas de bem-estar infantil. As autoridades argentinas outorgaram importância à decisão deste organismo internacional e, por meio do Decreto Nº 549/79 do Poder Executivo Nacional, decidiram que o ano de 1979 no âmbito nacional seria o “Ano internacional da criança e da família” (Decreto 549/79, 13/03/1979). O ministro de Bem-estar Social, Fraga, explicava que “as Nações Unidas têm proclamado esse ano como o ‘ano da criança’ e nós temos considerado – tendo em consideração que tal declaração deixa liberada a cada país sua forma de comemoração – lhe acrescentar no nosso o concernente à família” (Boletim MBS 117-118, 25/12/1978-1/01/1979).

Várias das atividades desenvolvidas durante o “Ano da criança e da família” respondiam a esses propósitos das Forças Armadas e da Igreja que, por sua vez, atuavam em conjunto. Nesse marco, o General Reynaldo Bignone, fazendo referência à campanha sobre “infância e exército”, afirmou que “a vitória sobre a subversão deve se consolidar dia a dia na alma da criança” (La Nación, 6/7/1979).

Outra força, a Marinha, organizou uma visita das crianças ao quebra-gelo Almirante Irizar, e o comandante do navio entregou ao ganhador de uma regata de vela um quadro com o navio “como prêmio ao espírito marinho das crianças”. Por sua vez, o Círculo de Suboficiais da Força Aérea organizou na sua sede central um evento com “espetáculos ao ar livre”, por exemplo, o pouso de um helicóptero da Força com palhaços e mágicos que distribuíam guloseimas e brinquedos (La Nación, 5/8/1979).

No entanto, como dissemos, também se propunham às crianças atividades recreativas baseadas no brincar, a dança, a música, as artes plásticas e os concursos de manchas. Entre elas, algumas eram mais espontâneas e estavam baseadas na improvisação e outras, contudo, como shows de palhaços e alguns musicais, eram protagonizadas por personagens ligadas à religião católica.

Essas atividades todas, por um lado, implicaram uma ampla utilização do espaço público num contexto marcado pelo terror estatal. Todas essas comemorações aconteciam em praças, parques de diversão, na rua, em dependências públicas. Essa implementação nos oferece um panorama festivo de apropriação do espaço público, protagonizado por atores diversos, mas impulsionado pelo Estado. Por outro lado, as estratégias relacionadas ao brincar e à diversão, em certa medida, se distanciavam do paradigma militar e eclesiástico, público e hegemônico, que analisamos anteriormente.

Quer dizer que, apesar de encontrarmos a Igreja, as Forças Armadas e membros civis da elite tradicional propondo atividades que respondiam a uma estratégia de socialização da infância com características disciplinares autoritárias, junto a essas propostas aparecem outras que, apontando a comemorar o “Dia da criatividade”, mesmo sem ter um conteúdo muito alternativo, propunham uma abordagem didática e lúdica que se diferenciava das primeiras.

Para concluir, podemos dizer que, na Argentina contemporânea, esses dois universos de práticas, atores e lutas de sentido sobre os modos de socialização da infância e juventude continuam fazendo parte das disputas públicas. De fato, apesar do predomínio de práticas políticas democráticas nas instituições estatais, a atual Resolução 598/2019 do atual Ministério de Segurança, que apontamos anteriormente, nos mostra que, neste tensionamento, as posturas mais próximas das Forças Armadas e da Igreja Católica ainda tentam se instalar – com sucesso – dentro da agenda estatal.

 

 

Referências

FILC, J. Entre el parentesco y la política. Familia y dictadura, 1976-1983. Buenos Aires: Biblos, 1997.         [ Links ]

LVOVICH, D.; RODRÍGUEZ, L. La Gendarmería Infantil durante la última dictadura. Quinto sol, La Pampa, UNLPam, vol. 15, n. 1, p. 165-184, 2011.         [ Links ]

MANZANO, V. Ha llegado “la nueva ola”: música, consumo popular y juventud en la Argentina, 1956-1966. In: COSSE, I.;  FELITTI, K.;  MANZANO, V. (Eds.). Los ‘60 de otra manera. Vida cotidiana, género y sexualidades en la Argentina. Buenos Aires: Prometeo, 2010. p. 19-60.

 

 

Data de recebimento: 13/06/2019
Data de aceite: 01/08/2019

 

 

1 As palavras-chave do presente texto foram escolhidas com base no Tesauro de Ciências Sociais da Unesco.

2 Força de Segurança dependente do Ministério da Segurança composta por um corpo militarizado com funções similares às da polícia. o:p>

3 O ex-secretário do Menor e da Família, Florencio Varela, no ano 2004, voltou a propor a conformação de “Corpos de Vigilância Juvenil em cada município” (Página 12, 4/1/2004). Ver <http://www.lanacion.com.ar/650945-denunciaron-a-12-jueces-de-menores

4 Mesmo que, durante esses anos, as iniciativas desta Secretaria estivessem alinhadas com as políticas mais gerais do regime repressivo; em outros momentos da história argentina, existiram propostas similares. Por exemplo, em 1959, depois da criação, em 1957, do primeiro Conselho Nacional de Proteção de Menores, conformou-se um Corpo de Inspetores “para controlar o ‘ambiente’ onde os menores interagiam e para pôr em prática editais e outras regulamentações que proibiam sua presença em certos espetáculos” (Manzano, 2010, p. 34). Como explica a autora, numa ocasião, este corpo levou um grupo de 73 menores que se encontravam numa festa numa delegacia por considerar que se encontravam numa situação “inapropriada para a moral juvenil”.

 

 

I María Florencia Osuna: Doutora pela Universidad de Buenos Aires, Argentina, Mestre pelo Instituto de Altos Estudios Sociales na Universidad Nacional de San Martín, Argentina, e professora universitária  no curso de História da Universidad Nacional de General Sarmiento, Argentina. Professora da Universidad Nacional de La Plata, Argentina. E-mail: florenciaosuna@gmail.com

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