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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades  no.25 Rio de Janeiro Oct./Dec. 2019

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

 

Violência autoinfligida: jovens indígenas e os enigmas do suicídio

 

Self-directed violence: young indigenous population and the enigmas of suicide

 

Violencia autoinfligida: jóvenes indígenas y los enigmas del suicidio

 

 

Lucia Helena RangelI

I Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Brasil.

 

 


RESUMO

Este artigo trata do suicídio entre jovens indígenas, a partir de dados contidos no Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, publicado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário – CIMI. Os registros mostram a evolução das ocorrências, em âmbito do território brasileiro, porém, não esgotam plenamente a realidade. Mesmo que parciais, os dados revelam tendências, provocam dúvidas e muitos questionamentos. O suicídio é um fato social total complexo, que ocorre no âmbito do livre arbítrio e envolve uma constelação de fatores associados às condições socioculturais, ambientais, existenciais etc., que compõem o contexto de cada povo indígena no qual os episódios relatados acontecem. São relatados alguns episódios atuais e históricos para demonstrar a variação das ocorrências, isto é, as modalidades dos casos, sem, no entanto, tipificá-los. O aumento do número de suicídios entre jovens indígenas tem sido preocupante e mobiliza as consciências e a necessidade de registrá-los.

Palavras-chave: jovens indígenas, suicídio, povos originários, complexidade.


ABSTRACT

This article discusses suicide among young indigenous people, through the data contained in the Report of Violence Against Indigenous Populations in Brazil (Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil), published anually by the Missionary Indigenous Council (Conselho Indigenista Missionário – CIMI). The data collected shows an increase in occurrences in brazilian territory, however, it doesn't completely cover this reality. Even if partial, the data reveals tendencies, provokes doubts and several questions. Suicide is a complex social fact, that occurs in the realm of free will and involves a constellation of factors associated with socio-cultural, environmental and existential conditions that compose the context of each indigenous population where said episodes take place. A few present and historical cases are narrated in order to showcase the variety between individual occurrences, albeit without the intent of categorization. The increase in the number of suicides among young indigenous people has been a concern and rallies consciences and the need to document cases.

Keywords: young indigenous people, suicide, native people, complexity.


RESUMEN

Este artículo trata del suicídio entre jóvenes indígenas, a partir de datos registrados en lo Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, publicado anualmente por el Conselho Indigenista Missionário – CIMI. Los registros muestran la evolución de los hechos ocurridos, en el ámbito del territorio brasileño, pero, no agotan plenamente la realidad. Aunque sean parciales, los datos revelan tendencias, provocan dudas y muchos cuestionamientos. El suicidio es un hecho social total complejo, que se da en el ámbito del libre arbitrio e involucra una constelación de factores asociados a las condiciones socioculturales, ambientales, existenciales, etc., que componen el contexto de cada pueblo indígena en el cual tiene lugar los episodios relatados. Son relatados algunos episodios actuales e históricos para demostrar la variedad de hechos, esto es, las modalidades de los casos, sin, no obstante, tipificarlos. El aumento del número de suicidios entre jóvenes indígenas ha sido preocupante y moviliza las conciencias y la necesidad de registrarlos.

Palabras-clave: jóvenes indígenas, suicidio, pueblos originarios, complejidad.


 

 

Tema espinhoso, difícil, mas necessário atualmente, visto que os dados apontam para um aumento dos casos de suicídio entre jovens no mundo, no Brasil e, neste país, em relação aos povos indígenas. Os dados que serão apresentados neste artigo estão contidos no Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, publicado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário – CIMI. Os registros mostram a evolução das ocorrências, em âmbito do território brasileiro, porém, não esgotam plenamente a realidade. Mesmo que parciais, os dados revelam tendências, provocam dúvidas e muitos questionamentos. Gostaria de poder esclarecer todas as interpelações, mas temo que isso não será possível, pela própria impossibilidade de se conhecer o assunto suicídio em toda sua complexidade.

O suicídio é um fato social, assim dizem todos os que estudaram o fenômeno, desde Émile Durkheim, que o estudou e o classificou em tipos: suicídio egoísta; suicídio altruísta e suicídio anômico, acrescentando o tipo fatalista. São tipos referentes ao contexto social e aos propósitos dos sujeitos que os cometem. Podemos dizer que o suicídio é um fato social total, complexo, pois ocorre no âmbito do livre arbítrio e envolve muitos fatores: psíquicos; sociais; familiares; econômicos; políticos; existenciais; escolares; por adicção ao álcool e outras drogas; exposição a agrotóxicos, enfim, todos juntos ou enfatizados caso a caso. Não se trata de uma relação de causa e efeito, mas de uma constelação de fatores que permitem estabelecer uma associação entre estes e as condições que cercam o indivíduo suicida. Certamente existem razões que levam ao suicídio, no entanto, há sempre um contexto variado em que a ocorrência de casos pode ser compreendida histórica e socialmente, em que o efeito se torna causa e a causa se torna efeito.

Entre os povos indígenas que habitam o território brasileiro, há uma recorrência de situações violentas, pressões sociais e racismos que podem estar associados a práticas suicidas, envolvendo alguns ou muitos indivíduos de uma mesma localidade e ao mesmo tempo. Na tabela a seguir, pode-se ver a evolução de casos nos diversos estados da federação brasileira. O caso mais agudo refere-se ao povo Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul que, no espaço de 19 anos, apresenta uma média aproximada de 45 ocorrências por ano. Em seguida, há o estado do Amazonas, cujos casos afetam os povos Ticuna, do Alto Solimões, e os moradores de São Gabriel da Cachoeira, cidade que abriga 95% de população indígena, envolvendo os povos do Alto Rio Negro. Nota-se que, ao longo dos anos, há alguns episódios significativos, como os 11 casos em 2006; no entanto, a incidência de casos a partir de 2014 revela uma situação recrudescente. Também em Roraima, há casos expressivos a partir de 2014. No Tocantins e no Paraná, foram registrados casos em anos recentes, e o fenômeno se torna presente no Acre, no Maranhão, no Ceará, no Mato Grosso, além de registros feitos em Pernambuco, Minas Gerais e casos pontuais em Alagoas, Bahia, Goiás e Rondônia. A observação que deve ser feita é a de que, possivelmente, exista uma subnotificação de ocorrências tanto por parte dos órgãos de saúde, quanto pelas equipes do CIMI que atuam nas áreas indígenas.

Além disso, o que foi reunido na tabela a seguir omitiu alguns dados importantes, tais como a sequência de atos entre os Karajá da Ilha do Bananal, que entre 2010 e 2016 cometeram 42 suicídios por enforcamento, em um total de 95 tentativas. Em 2010/2011, há um primeiro enforcamento, de um jovem recém-casado que, ao que tudo indica, comete o ato por estar infeliz, sentindo-se muito pressionado por ter de cumprir as obrigações de genro (ir morar na casa da sogra e trabalhar para o sogro). A prescrição determina que, se o noivo falhar em seu compromisso, será espancado por seus cunhados e sua família sofrerá muita humilhação. Este jovem noivo recorre ao suicídio para escapar da situação e, assim, livra sua família da humilhação. Ele inova na técnica e se enforca. Logo em seguida, seu melhor amigo faz o mesmo e daí se seguem muitos casos de enforcamento, como em um efeito dominó.

Alguns aspectos gerais nesse caso chamam atenção, pois a maior parte dos atos é cometida por jovens entre 14 e 29 anos. A maior parte são rapazes solteiros ou recém-casados, embora nos últimos anos haja um aumento de vítimas do sexo feminino. Para Otoniel Guarani-Kaiowá, o motivo de tantos jovens cometerem suicídio é a falta de perspectiva: “não têm futuro, não têm respeito, não têm trabalho e nem terra para plantar e viver. Escolhem morrer porque, na verdade, já estão mortos por dentro” (Conselho Indigenista Missionário, 2013, p. 79). Talvez isso possa ser verdade para um determinado contexto, porém, nem sempre há falta de terras de forma tão brutal quanto no Mato grosso do Sul, afinal, a opressão atinge as comunidades de diversas maneiras.

Há uma reserva, uma atitude reticente de muitas lideranças e membros das comunidades indígenas em falar desse assunto abertamente. Por um lado, há a ponderação de que, ao falar demais, pode haver risco de disseminação da ideia e influenciar as pessoas. Por outro lado, parece haver uma reserva religiosa que não é muito bem explicitada. Do mesmo modo, a explicação sobre as razões das ocorrências recai principalmente sobre a feitiçaria, o poder do feitiço que encarna as pessoas e as levam a cometer o ato extremo.

 

Tabela: Suicídios entre indígenas no brasil

 

Período

UF

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013

2014

2015

2016

2017

2018

Total

AC

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

2

 

 

 

 

 

 

5

2

9

AL/SE

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1

 

 

 

 

1

AM

 

 

 

 

 

3

11

5

 

 

 

3

1

 

56

24

50

54

36

243

AP

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1

 

1

 

2

BA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

2

2

CE

 

 

 

 

 

 

2

 

 

 

 

 

 

 

3

 

2

 

 

7

GO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1

 

1

MA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

8

 

1

6

1

16

MG

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

2

 

 

3

 

5

MT

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

2

 

4

 

1

1

2

2

2

14

MS

44

40

38

53

42

50

40

40

59

42

40

45

56

73

48

45

30

31

44

860

PA

 

 

 

2

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1

 

 

1

3

7

PE

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1

 

 

 

2

 

2

 

 

5

PR

 

 

 

 

 

 

1

 

 

 

1

 

 

3

3

4

 

2

4

18

RO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1

 

 

 

 

 

 

1

RR

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

4

1

 

8

10

18

13

5

59

TO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

6

 

3

2

2

 

7

1

21

Total

44

40

38

55

42

53

54

45

59

42

46

58

63

79

135

87

105

126

100

1271

Fontes: Conselho Indigenista Missionário; Ministério da Saúde; Secretarias Estaduais de Saúde.

 

As análises a respeito da situação em Mato Grosso do Sul apontam para o cenário de genocídio que afeta os povos que vivem nessa região: são os Guarani e Kaiowá, os Terena, os Kinikinao e os Kadiwéu. Entretanto, é sobre o povo Guarani e Kaiowá que recai a maior tragédia: população confinada em territórios exíguos, cujas consequências maiores são os conflitos internos, as desavenças familiares, os comportamentos violentos devido ao alto consumo de bebidas alcoólicas, o envolvimento com o mundo das drogas, estupros, roubos. Das 31 terras reconhecidas pelo Estado brasileiro, os Guarani-Kaiowá e Ñhandeva estão em posse de apenas 29,04% delas. Com uma população de 54.658 pessoas, segundo a Funai, as comunidades ocupam 70.370 dos 242.370 hectares reconhecidos oficialmente como territórios tradicionais. Tem-se, desse modo, que a ocupação de terras para esse povo representa 1,2 hectares por pessoa. Isso significa mais do que limites estreitos para viver. Certa vez, em um acampamento de beira de estrada, o senhor Hamilton Lopes, já falecido, afirmou: “o que faz um homem sem terra para plantar? Bebe”.

A falta de terra é a própria impossibilidade de reprodução da vida. Um homem Guarani (Kaiowá, Ñdeva, Mbya) torna-se adulto quando faz um roçado para oferecer à mulher com quem vai se casar, como parte final do ritual de iniciação. A dificuldade em tornar-se adulto levou os jovens a irem trabalhar no corte de cana; muitos deles falsificavam o documento para comprovar que estavam em idade de trabalhar. Assim, tornavam-se homens: passavam a semana no corte de cana, ganhavam um dinheiro, e antes de chegar a casa, consumiam o dinheiro em forma de pinga, como faziam todos os adultos.

Segundo o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) de Mato Grosso do Sul, nos últimos 13 anos, cerca de 611 indígenas suicidaram-se, isto é, 1 a cada 7,7 dias. O que está em causa nessa quantidade absurda de enforcamentos e envenenamentos? A falta de acesso aos territórios tradicionais gera a impossibilidade de vivência plena dos usos e costumes, conforme garante a Constituição Federal de 1988; gera também números assustadores de violência física, ataques a comunidades que tentam retomar suas aldeias e um número muito alto de assassinatos. Em menos de um ano, entre 2015 e 2016, foram registrados 33 ataques de natureza paramilitar contra comunidades Guarani e Kaiowá. Entre 2001 e 2018, foram assassinados 14 líderes indígenas em represália às tentativas de retomar pacificamente terras já reconhecidas pelo Estado. Esse é o contexto mais violento em território brasileiro; se acrescentarmos os números da mortalidade na infância (de 0 a 5 anos), da subnutrição, dos maus-tratos e do racismo, teremos um contexto no qual a quantidade de suicídios de jovens está ancorada.

De outra feita, o missionário estava em uma aldeia e algumas pessoas saíram para buscar a cesta básica; uma mulher retorna de mãos vazias, muito brava, xingando, porque não a deixaram levar a cesta cujo cadastrado era seu marido. Ela explicou que o marido fora preso e ela deveria levar os mantimentos para os filhos, que eram crianças pequenas. Não a deixaram levar a alimentação, e as crianças deveriam esperar até que o cadastro fosse refeito. A mulher desesperada leva as crianças para a casa de sua mãe. No dia seguinte, ao amanhecer, o corpo da mulher é encontrado enforcado. Será essa uma forma de protesto?

Para entender as explicações por parte dos indígenas, é preciso compreender o xamanismo, pelo menos em parte. A morte por suicídio não é obra do morto, mas de um feitiço colocado por algum espírito do mal, um morto que perambula ou um inimigo; cônjuges envolvidos em conflitos amorosos podem atrair o feitiço por envenenamento. A presença de igrejas explicaria a ideia de possessão que está associada ao feitiço: obra de satanás. Enfermidades mentais também podem levar ao ato extremo. Isso tudo conduziria à necessidade de retomar a vida familiar conforme o modo correto de ser – teko porã.

Estudiosos e pessoas envolvidas com a causa indígena concordam que um conjunto de fatores devem ser interligados no esforço de compreender essa situação, conforme já foi dito. Perda de vínculos culturais e históricos, abuso e dependência de drogas e bebidas alcoólicas, problemas psíquicos, abusos sexuais, separação de familiares, isolamento na vida social e na família (muitos jovens têm vergonha dos pais alcoolistas), estresse cultural e enfraquecimento do sistema de crenças e espiritual são fatores de risco citados no estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do Grupo Internacional de Trabalho sobre Assuntos Indígenas (IWGIA). Sobre os indígenas, encontramos a seguinte afirmação:

Pode-se resumir que: os jovens indígenas de hoje convivem sem apoio familiar, com amigos efêmeros, sem saber qual é o seu lugar, vivem o dia a dia sem quase nunca conjugar o verbo no futuro, o máximo é o futuro muito próximo do amanhã. Carregam um trauma humanitário de histórias contadas por seus parentes, histórias de exploração, violências, mortes, perda da dignidade, enfim, a história recente de muitos povos indígenas. Histórias carregadas de traumas, presas a um presente de frustrações e impotência. Nessas circunstâncias, esses jovens são o produto de uma geração que sofre do que se costuma chamar de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) (Machado; Alcantara; Trajber, 2014, p. 131).

Já os políticos, sobretudo os do Mato Grosso do Sul, dizem que os suicidas são os próprios culpados: se há mortes, são eles mesmos que as praticam, e não é possível que alguém seja culpado por isso. Outro modo de dizer a mesma coisa é afirmar que “é da cultura deles”.

Os números de assassinatos e de suicídios são apenas a ponta do problema. De fato, são os indicativos de uma situação que se agrava com o tempo e para a qual há morosidade na solução, má vontade dos poderes públicos e negação muito forte por parte dos atores envolvidos na questão. Envolvem fatores complexos e delicados, relativos a componentes culturais e sociais. Porém, existe um consenso entre todos os analistas dessa realidade de que a extrema situação de violência a que estão submetidos esses povos pode ser a principal causa do grande número de suicídios. É provável que esse número esteja abaixo do que de fato acontece, uma vez que os dados se referem apenas a casos divulgados; grande parte dos suicídios é ocultada pelas famílias, por razões culturais, como também por considerá-los uma doença que quanto mais divulgada, mais se alastra.

Não bastasse o roubo dos territórios tradicionais, as áreas de confinamento estão praticamente todas atravessadas por rodovias de intenso trânsito. Geram grande número de mortes por atropelamento, atingindo pessoas que vivem nos acampamentos à beira da estrada. Entre 2003 e 2010, só no Mato Grosso do Sul, morreram atropelados o mesmo número de indígenas que no restante do País. Os homicídios, suicídios e atropelamentos são expressões da violência “que é uma das formas de impotência traduzida em ato, da passagem para a desordem quando a ordem se descobre sem saídas” (Balandier, 1997, p. 243).

O grito Guarani contra a entropia pode ser representado, por um lado, pelos suicídios, homicídios e atropelamentos, símbolos da negação de uma situação desesperançosa e, por outro, pelas retomadas de parcelas de terras que recuperam os tekoha, lugares da vida social, da esperança, da reprodução e da fertilidade. Embora devamos considerar a complexidade de fatores que envolvem essa realidade, levando em conta que a maioria das mortes é resultante de conflitos ocorridos dentro das comunidades, os números causam indignação e exigem medidas urgentes, amplas e articuladas, começando pela demarcação dos tekoha, lugares do bem viver.

No mundo indígena, existem experiências de suicídios que revelam maneiras diferenciadas de lidar com a questão. Quando Bronislaw Malinovski apresentou seus estudos sobre os Trobriandeses da Polinésia, escreveu um pequeno livro intitulado Crime e Costume na Sociedade Primitiva, no qual encontramos um relato em que o suicídio é uma regra punitiva para o caso de transgressão da regra do incesto. Há primos bons para casar e há primos que são irmãos; o rapaz e a moça eram primos-irmãos, portanto, consanguíneos, isto é, cuja relação sexual é considerada incestuosa, mas se apaixonaram e foram viver maritalmente. O primo para o qual a moça estava prometida resolve denunciar a transgressão, posta-se em frente à casa onde estava o casal e pronuncia publicamente a denúncia; a partir desse momento, a punição deve ser cumprida. Assim, o transgressor sai de casa, paramentado como guerreiro, sobe no coqueiro mais alto e se atira, cumprindo um rito prescrito.

Darcy Ribeiro coletou, em 1950, a história de Uirá – jovem chefe de família que entrou em desespero depois que seu filho e outros parentes faleceram. A história se passou nos anos de 1930, em pleno Estado Novo, lá no Maranhão, nas confluências dos rios Pindaré, Gurupi e Turiaçu, onde até hoje vive o povo Kaapor, designado Urubu pelo Serviço de Proteção ao Índio – SPI. Uirá vivia em ambiente de desengano, provocado pela mortalidade enorme e pelo enfraquecimento físico ocasionado por doenças levadas pelos “civilizados”, além de uma série de outras condições de penúria, e exacerbado por um conjunto de crenças e práticas mítico-religiosas. Nesse contexto, Uirá é tomado por um estado de profunda irritabilidade, ficando iñaron; desde que alguém se declare iñaron, é imediatamente abandonado por todos, permanecendo na casa com os bichos e a tralha doméstica. A cura se faz depois que o indivíduo expressa sua ira, quebrando potes, flechando, ou mesmo cortando os punhos das redes e derrubando a casa.

Depois do ataque de ódio, os parentes retornam como se nada houvesse acontecido. Mas Uirá não superou seu estado, ficando cada vez mais prostrado, triste e desenganado. Não estava apenas iñaron, estava apiay. Tentou outros caminhos para superar seu estado, mas de nada adiantou seus esforços. Continuou apiay, pensando no filho morto. Mas teve energia para uma última empreitada, tal como inscrita no mito, a lenda dos heróis que foram vivos ao encontro de Maíra.

A versão Kaapor da cosmogonia Tupi trata Maíra como mais do que um herói mítico:

A realidade e atualidade de sua existência fazem dele quase uma divindade. Não é concebido como o demiurgo que operou numa era mítica criando o mundo e as coisas, mas como um ser vivo e atuante. Ainda agora, as hecatombes, as tempestades e toda a vida, concebida como uma luta, é explicada pelos índios Urubus através da alegoria de um conflito permanente entre um Maíra pai e um Maíra filho em que duplicaram o herói. Embora não esperem qualquer ajuda de Maíra, nem concebam que se possa apelar para ele ou invocá-lo, sua ação é necessária e eficiente para manter a ordem cósmica, agora como no tempo da criação. [...] A terra é lugar de Maíra, o céu é o lugar de seu filho, desde que ele foi lá encontrar-se com seu irmão, o filho de Mikura que morrera. [...] Desde que o filho de Maíra subiu ao céu para ficar com o seu irmão, ele está sempre lutando contra o pai: todas essas pedras que se veem aí pelos rios, pelos outeiros, quebradas, achatadas, foram casas de Maíra que Maíra-mimi destruiu. [...] Quando havia pajé bom, muita gente ia para a casa de Maíra; o pajé cantava, fumava cigarros grandes, depressa eles chegavam lá (Ribeiro, 1974, p. 20-24).

Assim, Uirá decide seguir o caminho de Maíra, pintado com as tintas vermelha e preta do urucu e do jenipapo, conforme ensinara Maíra aos Kaapor. Paramentou-se com os adornos plumários, pegou as armas, arco e flechas, tudo como Maíra havia ensinado, e arrumou um paneiro de farinha para oferecer ao herói, dizendo “eu sou sua gente, a que come farinha”:

Figuremos Uirá, magnífico em seus adornos, o corpo pintado, à imagem do herói mítico, armas à mão, a tensão de quem enfrenta a mais terrível provocação expressa no rosto, nos gestos. Assim deveria parecer à mulher e aos filhos, aos olhos de sua gente. [...] Para os sertanejos maranhenses com quem iria deparar, porém, era tão somente um índio nu e armado, nu e furioso (Ribeiro, 1974, p. 25).

Em seu caminho, eles encontram fazendas onde vivem homens portadores de armas de fogo, protegendo sua propriedade; cidades nas quais os moradores se apavoram com aquela família nua. Uirá é espancado diversas vezes, escorraçado e, finalmente, preso. Entregue ao SPI, vai parar em São Luís, onde a imprensa e as autoridades protestam contra as violências sofridas pela família de Uirá. Quando estão de partida, ele e o filho veem Maíra no lugar que deveria ser sua morada – pedras e um imenso curso de água do qual não se podia ver a outra margem. Lá estava Maíra. Mas Uirá não chegou à casa de Maíra. Cumpriu o destino que traçara, no caminho de casa, ao atravessar o rio Pindaré, e por lá permaneceu. Não podendo ir vivo ao encontro de Maíra, sempre foi, porque a morte também é o caminho para encontrar a divindade.

Outro modo de lidar com o suicídio está presente na sociedade Sorowaha/Suruwaha, povo que vive nos rios Coxodoá e Riozinho, afluentes da margem direita do rio Cuniuá, tributário da margem esquerda do médio rio Purus, estado do Amazonas. A história desse povo parece ter sido uma saga contra a desordem instaurada na região, nas primeiras décadas do século XX, pelas epidemias, que abateram diversas comunidades. A depopulação, muito provavelmente, fez com que procurassem meios para refazer a vida, juntando-se e constituindo uma nova sociedade a partir das comunidades depopuladas. O novo arranjo resultou um povo coeso em língua, formas de reciprocidade e proteção. Parte dessa coesão parece ter sido a desabilitação das funções da pajelança, distribuídas entre diferentes pessoas, afetando especialmente os poderes xamânicos de viajar ao céu e retornar à terra. Os poderes xamânicos concentram o conhecimento especializado dos cosmos, dos espíritos que curam, que matam e que espalham doenças, podendo atingir indivíduos infratores, ou mesmo realizando vingança a pessoas ou grupos.

Quando, durante diversos momentos do século XX, ou mesmo em momentos anteriores, as epidemias atingiram os povos da Amazônia em função da presença violenta de agentes das sociedades brasileira, peruana, boliviana, colombiana e todos os agentes civilizatórios do capital, esses povos ficaram expostos à exploração da borracha e do caucho, da sorva, da extração de madeira, de minérios e outros recursos naturais. Essa conjuntura espalhou terror, medo e traumas: homens e mulheres, crianças e velhos tornaram-se vulneráveis aos ataques contínuos; mulheres e crianças foram roubadas, estupradas, homens torturados e assassinados, idosos abandonados. Uma das formas mais violentas de usurpação de vidas indígenas foram as epidemias – sarampo, gripe, varíola, tuberculose e outras – que mataram aos montes, deixando as comunidades sem recursos, pois não havia mais força para o trabalho, nem para enterrar tantos cadáveres. E não havia mais controle sobre os poderes dos pajés, que estavam em guerra uns contra os outros: as doenças eram causadas pelos feitiços colocados pelos xamãs; de modo geral, simplificando a explicação, é sempre um pajé de outra comunidade que envia feitiços, mas na sua própria comunidade ele protege e cura.

Aconteceu que a tamanha força das epidemias provocou um clima generalizado de desconfianças e acusações. Assim, muitos pajés foram assassinados, já que era preciso cortar o mal pela raiz, pois nenhum deles tinha força para conter uma epidemia. Desse modo, as acusações de feitiçaria recrudesceram em muitas regiões, implicando arranjos sociais variados: algumas comunidades passaram a ocultar a presença de pajés – eles estavam presentes, mas não se admitia para os estrangeiros sua existência –; outras aumentaram a visibilidade da pajelança, realizando rituais de cura no pátio da aldeia, e outros permaneceram sem pajés. O que significa que é preciso morrer para ir ao céu, e que o indivíduo necessita decidir quando e de que forma quer fazer sua viagem.

O povo Suruwaha parece ter optado por não ter pajés, distribuindo seus poderes e minimizando suas forças. Assim, existem três caminhos possíveis para cruzar a abóboda celeste: o caminho da morte, que acompanha o percurso do Sol, por onde seguem os que morrem de velhice; o caminho do timbó kunaha, a trajetória da lua, por onde vão os suicidas; e o caminho da cobra, o rastro do arco-íris, a rota dos que morrem por picada de cobra. Sentimentos como afeição, raiva, saudade, vergonha formam a teia que leva ao suicídio. Um determinado acontecimento provoca irritação ou contrariedade, então, o indivíduo destrói seus pertences; ele é deixado só para extravasar sua agressividade. Se isso não for suficiente, o indivíduo emitirá um grito e correrá em direção a uma roça; arrancará raízes de timbó e se dirigirá a um córrego, onde espremerá e mastigará o timbó para extrair seu sumo. Em seguida, beberá água para ativar os efeitos tóxicos. Se até aqui ninguém conseguiu detê-lo, ele correrá de volta à casa; ali, será acudido por seus parentes ou outras pessoas, provocando vômito, esquentando o corpo com abanos aquecidos, batendo em seus membros dormentes, gritando em seus ouvidos para despertá-lo, mantendo-o sempre sentado. O procedimento pode ou não dar certo, já que depende da quantidade de sumo de timbó que foi ingerida. A eventual morte espraia uma forte comoção e logo se inicia o choro ritual; isso motiva outras pessoas, depois de horas ou dias, a realizar novas tentativas de suicídio (Dal Poz, 2017, p. 186-187).

Os atos suicidas fazem parte do cotidiano Suruwaha e envolvem pessoas de todas as idades, mas a faixa entre 15 e 20 anos é a mais afetada. Nessa faixa, também, encontra-se um número maior de jovens do sexo masculino. A opção de livrar-se das contrariedades através do caminho do timbó não pode ser explicada como consequência direta da atuação das frentes de expansão da sociedade brasileira:

Para os Suruwaha, os mortos por kunaha, capturados pela subjetividade não humana do espírito do timbó, vivem uma alteração que os transforma em presas por excelência. Através da prática do envenenamento, os Suruwaha projetam, neste mundo em transformação, sua constituição como humanos em contraste com os mortos não humanos, alterados na nova condição de presas do veneno (Aparicio, 2017, p. 223).

Peço desculpas por simplificar em demasia a complexidade dessa prática Suruwaha que tanto preocupou aqueles que os conheceram de perto e contribuíram para que eles pudessem estabelecer relações pacíficas com as frentes econômicas depredadoras regionais. Infelizmente, eles não são compreendidos plenamente, e tornam-se também presas fáceis de ilusões religiosas manipuladoras dos significados da planta-xamã, o timbó:

Para os Suruwaha a expressão bahi se aplica aos animais caçados, abatidos sob efeito do curare das flechas: poderíamos traduzir bahi como “presa, vítima”, uma posição cosmológica oposta à condição de agy, própria dos predadores, dos caçadores. [...] As vítimas da ira dos xamãs adversários são mazaru bahini, “presas do feitiço”, e os mortos por envenenamento são kunaha bahi, presas do timbó. O ponto de vista missionário parece fundar para os Suruwaha uma nova posição no mundo. Os Suruwaha, que ao longo das últimas gerações vivem uma metamorfose em presas do veneno, se encontram agora, a partir da ação dos missionários, em um novo processo de transformação: eles são Jasiuwa bahi, as presas de Deus (Aparicio, 2017, p. 226).

Esses casos demonstram a variação das ocorrências de suicídios entre os jovens indígenas no Brasil. Não se trata de invocar modalidades classificatórias, mas parece que trazem em comum o contexto social e econômico que propicia encontros e desencontros opressores, violentos e expropriatórios. Roubam-se dos indígenas suas terras, suas riquezas, suas águas, seus valores e ameaçam sua filosofia do bem viver. Mas sua religiosidade e sua espiritualidade os apoiam em seu caminho de resiliência e dignidade.

 

 

Referências

APARICIO, M. “Jesús tomó timbó”: Equívocos missioneros en torno al suicidio Suruwaha. In: CAMPO ARÁUZ, L.; APARICIO, M. (Org.). Etnografías del suicidio en América del Sur. Quito: Universidad Politécnica Salesiana, 2017.

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Data de recebimento: 15/07/2019
Data de aceite: 18/11/2019

 

 

I Lucia Helena Rangel: Professora doutora do Departamento de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Brasil; pesquisadora no campo da etnologia indígena; assessora antropológica do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Brasil. E-mail: lucia.rangel@uol.com.br

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