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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.26 Rio de Janeiro jan./abr. 2020

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Batalhas de rima de crianças da Favela da Maré: improviso, duelo e autoafirmação

 

Rhyme battles with children from Favela da Maré: improvisation, duels and self-affirmation

 

Batallas de rima de niñes de la Favela da Maré: improvisación, duelo y autoafirmación

 

 

Adelaide Rezende de SouzaI

I Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas, Universidade Federal do Rio de Janeiro (NIPIAC/UFRJ), Brasil.

 

 


RESUMO

Após dez meses de observações numa escola do complexo de favelas da Maré, percebemos a frequência com que algumas crianças do terceiro ano do ensino público costumavam rimar e suas maestrias durante a composição de seus versos. Com foco nos significados e repercussões nas interações e vínculos dessa turma, propusemos organizar “batalhas de rima”. Através de registros fotográficos, áudio e vídeos, foram registrados os momentos dos duelos para posterior análise. Assim, identificamos que as regras foram elementos centrais, pois, com base na disputa para manter a honra e autoestima, as batalhas evidenciaram o limite entre a agressividade e a fronteira do “zoar” e humilhar. Além disso, houve um significativo nexo da brincadeira de “batalha de rimas” com os jogos de “zoar” que ocorrem na Maré, em que se desenvolve um tipo de relação de disputa, humilhação e competição, mas também de capacidade de rimar, de autoafirmação, fantasia e prazer coletivo.

Palavras-chave: batalhas de rima, criança, escola, brincadeira, favela.


ABSTRACT

After ten months of observation at a public school in the the Maré favela complex, we noticed the frequency with which some children from the third year of public education used to rhyme and their mastery during the composition of these verses. Focusing on the meanings and repercussions of the interactions and social bonds of this class, we proposed to organize "rap battles". Through photographic, audio and video records, we registered the dueling moments for further analysis. Thus, we identified rules as central elements to these battles, because based on the dispute to maintain honor and self-esteem, the battles showed the limits between aggressiveness and the frontiers of “mocking” and humiliating. In addition to that, there was a significant nexus between the "rap battles" and the "mocking" games that take place in Maré, where a relationship based on dispute, humiliation and competition is developed, but where the ability to rhyme, self-affirmation, fantasy and collective joy are also present.

Keywords: rap battle, children, school, games, favela.


RESUMEN

Después de diez meses de observaciones en una escuela del complejo de favelas de la Maré, observamos la frecuencia con que algunos niños del tercer año de la enseñanza pública acostumbraban a rimar, así como, sus destrezas en la composición de los versos. Nos centramos en los significados y las repercusiones de esto en las interacciones y vínculos que se daban en ese grupo y propusimos organizar "controversias con rimas". A través de registros fotográficos, audios y videos registramos los momentos de los duelos para su análisis posterior. Así, identificamos que las reglas fueron elementos centrales, pues con base en la disputa para mantener la honra y la autoestima, las controversias evidenciaron el límite entre la agresividad y la frontera de la "burla" y la humillación. Además de eso, hubo un sentido vinculante entre las "controversias de rimas" y las "burlas" lúdicas que se dan en la Maré, donde se desarrolla un tipo de relación de disputa, humillación y competencia. Pero, también, de capacidad de rimar, autoafirmación, fantasía y placer colectivo.

Palabras-clave: controversias con rima, niño, escuela, juego, favela.


 

 

O brincar tem sido considerado uma maneira de ação, interação e produção infantil, uma possibilidade de exploração do mundo real que ajuda a criança a enfrentar os desafios apresentados no decorrer do cotidiano, em que os limites entre a realidade e os desejos são experimentados.

Isso nos instiga a relacionar a brincadeira infantil aos territórios em que as crianças habitam. Observar os espaços urbanos, inclusive as favelas, como ambiente diário das crianças possui relevância para a compreensão desse tema, pois as peculiaridades e organizações das brincadeiras podem afetar usos e adaptações que as crianças estabelecem com os espaços, além de suas interações com seus pares e adultos (Cotrim; Bichara, 2013).

Estudar a brincadeira na favela, onde em muitos momentos as crianças podem brincar livremente, circulando entre os arredores de suas residências, enfrentando e construindo com seus pares diferentes sociabilidades e limites territoriais, traz um rico repertório de habilidades que normalmente não costuma ser considerado como algo importante relacionado às crianças desses contextos. Uma das brincadeiras que evidenciam a importância desses estudos é a brincadeira das batalhas de rima.

Souza (2011) encontrou na origem do vocábulo batalha a ideia de empreender esforços para vencer adversidades e problemas, afirmando que a noção de batalha cria um campo semântico que pode ser relacionado à peleja, ao duelo, ao ataque e outros termos. Aqui, fazemos uma conexão com o território no qual foi realizada esta pesquisa, entre duas comunidades do complexo de favelas da Maré, no município do Rio de Janeiro. O local se caracteriza por ser um espaço dividido entre duas facções do varejo do tráfico de drogas, sendo palco de permanentes conflitos armados, fato que interfere nas brincadeiras dos moradores, sejam eles crianças, jovens ou adultos. Muitas vezes, as delimitações territoriais são marcadas por códigos, regras e sinais que delineiam as expressões e os movimentos da cultura local.

As experiências no mundo real dão às crianças os recursos para as brincadeiras. Nesse sentido, “[…] os aspectos da identidade social da criança – o gênero, o ambiente cultural e a organização familiar e comunitária, os valores e as crenças – irão influenciar o estilo, os tipos e a quantidade de brincadeiras que uma criança irá exibir” (Garvey, 2015, p. 239). Nesta pesquisa, lidamos com crianças que faziam parte de grupos relativamente estáveis e integrados, o que nos permitiu encarar a brincadeira como parte de atividades grupais constantes, em que há uma riqueza e complexidade cultural que mostram tanto as marcas das concepções e valores dos adultos quanto as formas como as crianças lidam com elas.

Definimos cultura lúdica por um conjunto de regras e significações próprias que as crianças adquirem e dominam no contexto do jogo. Segundo Brougère (2002), o jogador precisa partilhar dessa cultura para poder jogar, respaldado em referências intersubjetivas. O aprendizado desse conhecimento se faz através da troca entre as crianças que possuem a oportunidade de encontros regulares, em que criam e recriam aspectos de suas brincadeiras, enriquecendo sua cultura a partir desses momentos e das fortes contribuições de seu território.

Com base nos estudos de Brougère (2002), afirmamos que a cultura lúdica se compõe de esquemas que permitem iniciar a brincadeira, uma vez que produz uma realidade diferente daquela da vida quotidiana. No caso das batalhas de rima, os gestos exagerados e os verbos ou palavras inventados fazem parte dos atributos indispensáveis para que o brincar ocorra, e nos parece que as formas e os elementos que surgem nesse jogo compõem a cultura lúdica infantil, sendo influenciados pela cultura mais ampla da Maré.

Nesse contexto, podemos classificar o comportamento de zoar como um ritual de sociabilidade, uma espécie de passaporte de entrada para o brincar do grupo. Normalmente, esse verbo está associado à ideia de desqualificar alguém; o adversário deve humilhar, “zoar” o outro, para se autoafirmar. Ao “zoar”, que ocorre nas inúmeras interações mareenses de adultos e crianças, a posição social de cada indivíduo diante do grupo depende em parte da desenvoltura de respostas engenhosas e da capacidade de manter-se calmo, ao mesmo tempo em que o indivíduo dá e recebe insultos ultrajantes ou desafios à sua autoestima.

Assim, o zoar pode ser uma disputa argumentativa, na qual o desempenho do oponente mais articulado e do seu rival vai interferir no lugar deles entre os amigos. A questão é que a criança mais rápida que consegue se sobrepor à outra com seu raciocínio e rapidez será aclamada pelas demais. Mesmo os palavrões ou as piores ofensas ganham permissão de serem ditos nesse universo que é perpassado por outras expressões, tais como movimentos corporais e gestos. Parece-nos que zoar é uma categoria genérica que pode ser incluída como fazendo parte da brincadeira, em que se desenvolve um tipo de relação que passa pela disputa, humilhação e competição. Mas também envolvendo a capacidade de rimar, a autoafirmação, a fantasia e o prazer coletivo.

A respeito dos jogos de humilhação, Green (2013) destaca um lado pouco discutido nas pesquisas sobre o brincar, o lado perverso, chamado pelo autor de “jogo sujo”, uma vez que não é baseado exatamente num intercâmbio, mas na vontade de dominar; é uma forma de impor a vontade de uma pessoa e de submeter o outro. A batalha de rimas é um desses jogos de disputa, no qual o objetivo central é humilhar o outro, rimando, se sobrepondo ao adversário. Há um lado perverso de ver o rival sem respostas submetido publicamente ao poder do jogador mais articulado.

A forma como a brincadeira de rima se estabelece a partir de duelos de afrontas organiza uma disputa de quem xinga melhor, com versos maiores que ridicularizam o adversário: elas exigem um combate de zoação, em que o objetivo maior é saber quem zoa melhor o outro através da rima. Há a vontade de provocar, de deixar o amigo sem graça e humilhado diante do grupo. Por sua vez, o grupo se manifesta torcendo para assistir à próxima rima, querendo ouvir uma provocação mais afrontosa.

 

Freestyle rap ou batalha de rimas: afronta e resistência

A respeito da brincadeira de batalhas de rima, é necessário, inicialmente, contextualizar seu significado. Tradicionalmente fazem parte do movimento Hip Hop, uma produção histórica da cultura negra. Segundo Cazé e Oliveira (2008, p. 1): “[…] O Hip Hop é uma estratégia de sobrevivência da cultura popular, é uma forma de visibilidade de grupos de excluídos”. Esse movimento é uma expressão das pessoas marginalizadas que fazem política através da arte e de seus corpos, que refletem os problemas que reverberam nas estruturas sociais em que coabitam. Portanto, “[…] a mestiçagem no Movimento Hip Hop (ou Cultura Hip Hop) é uma lógica organizativa de partida que se dá a partir do encontro do Rap, do Break e do Graffiti” (Cazé; Oliveira, 2008, p. 5). Aqui destacamos que, tradicionalmente, esses movimentos populares, ao mesmo tempo em que denunciam as arbitrariedades dos grupos sociais dominantes, unem as pessoas que não são visibilizadas pela sociedade em geral, expressando na arte resistência e luta.

Souza (2011) comenta que a inserção do Hip Hop na cultura paulistana está relacionada a um espaço de memória dos laços de solidariedade que foram fundamentais para garantir a sobrevivência de negros cativos ou libertos na época do Brasil desde a colônia. A autora destaca que o movimento do Hip Hop fez parte do processo de ocupação da cidade de São Paulo e surgiu entre o final da década de 1970 e o início dos anos de 1980, fortalecendo os espaços de resistência que se constituíram vindos dos povos mais pobres e marginalizados, justamente no declínio da ditadura militar, autorizando a tomada das ruas dos grandes centros urbanos pelos movimentos sindicais e populares.

Souza e Bernardes (2018) realizaram um estudo sobre as batalhas de MCs no contexto do movimento Hip Hop em duas cidades da Região Norte Fluminense, revelando que, mesmo o Hip Hop tendo passado por certa massificação nos últimos anos, continua sendo um movimento cultural urbano juvenil, com característica de luta pelos direitos sociais de jovens das periferias.

As duas modalidades mais conhecidas na cena do Rap são chamadas de batalha do conhecimento e batalha de sangue. A batalha do conhecimento tem como principal objetivo desenvolver rimas sobre temas preestabelecidos pela organização ou pela plateia durante o evento, enquanto que, na batalha de sangue, não existe tema, o conteúdo é livre e tem como foco atacar (verbalmente) e responder ao ataque do adversário através do improviso. As batalhas de rima produzem ricos conteúdos espontâneos que marcam a criatividade, a resistência e o saber coletivo popular.

Há uma significativa produção nas trocas simbólicas dos jogadores, através das quais se criam enfrentamentos contra o modelo hegemônico de ser e brincar, permitindo a expressão de uma cultura invisibilizada. O que se fala a respeito do movimento Hip Hop o associa às atividades culturais de resistência, oposição e contracultura. No entanto, Albuquerque (2013) problematiza esse aspecto ao afirmar que a resistência não pode ser entendida simplesmente como uma oposição. A autora aponta para a utilização do conceito de resistência como uma proposta de relação entre as pessoas que buscam, nos discursos que acionam, o vínculo a ser construído no momento da interação. Destacamos que as produções culturais costumam ter um forte efeito nos territórios em que ocorrem e podem, inclusive, transformar papéis e lugares, criando um sentimento de pertença, politizando o cotidiano e estabelecendo redes que permitem novas apropriações e atuações.

Neste estudo, as crianças estavam marcadas pelos desafios de trocas agonísticas, interações que não envolviam apenas o ato agressivo em si, mas eram compostas por exibições, fugas e conciliações, em que uma criança procurava se impor a outra, tentando anular a possibilidade de resposta do adversário, momentos em que “[…] o ataque não visa encerrar o embate, mas provocar a resposta” (Oliveira, 2007, p. 331). Tudo isso se dá através da “zoação” rimada direcionada ao adversário. A brincadeira é essencialmente duelos de honra, nos quais o adversário deve humilhar, zoar o outro para se autoafirmar. Ganhar no jogo significa manifestar sua superioridade “rimante”.

As batalhas de rima protagonizadas por um grupo de crianças na favela da Maré tiveram como foco suas interações e vínculos, com base na disputa para manter a honra e a autoestima diante do grupo mais do que a resistência ou protesto a algo. Assim, a pesquisa buscou compreender os diferentes significados e repercussões relacionais desse jogo enraizado no território e na cultura local mareense.

 

A pesquisa com as crianças

Durante dez meses, através de visitas a uma turma com 30 crianças do terceiro ano, pertencentes a uma escola pública localizada em uma das comunidades do complexo de favelas da Maré, efetuamos uma pesquisa etnográfica com observações e interações de crianças, entrevistas semiestruturadas, situações de brincadeiras com a pesquisadora, elaboração de desenhos, registros fotográficos, caminhadas pelas ruas da favela com gravações de áudio e vídeos.

A escola apresentava um cenário contraditório: exibia excelente espaço físico e bons equipamentos, além de uma equipe comprometida com o ensino; ao mesmo tempo, estava localizada em um contexto repleto de tensões, situada em um território de grande escassez econômica, com frequentes conflitos devido à disputa territorial entre as organizações criminosas do comércio de varejo de drogas e as intervenções policiais.

Com o foco nas brincadeiras do grupo, as observações foram realizadas entre e durante as aulas regulares, as refeições e as atividades extras. Percebendo a frequência com que as crianças costumavam rimar e a maestria delas durante a composição de seus versos, entregamos uma proposta para a escola, sugerindo organizar pequenas batalhas de rima durante duas aulas extras, nas quais a pesquisadora e dois professores da escola teriam o papel somente de auxiliar, procurando agregar às ideias das crianças.

Uma vez a proposta tendo sido aceita, cinco encontros foram organizados para planejar e realizar as batalhas de rima. Os momentos das disputas foram registrados em vídeos cujos áudios foram transcritos. Desses momentos, foram destacadas para análise as imagens das expressões corporais e as falas das crianças consideradas relevantes para compreender o processo de organizar e realizar as batalhas. Um dos pontos que assumiram grande importância foi a criação das regras, fundamentais para que a brincadeira acontecesse. Trazemos aqui, portanto, a análise desse aspecto da brincadeira, que apontou para os laços de cumplicidade entre os jogadores e os valores do grupo.

 

A construção de regras: fronteira entre autoafirmação e agressão

A maioria das regras foi combinada em dois encontros, tornando-se elementos centrais, pois delinearam, em muitas circunstâncias, o limite entre a agressividade das crianças e a fronteira do zoar e humilhar, de modo que se produzisse uma moderação na intensidade do jogar.

Inicialmente, apresentamos o projeto para as crianças, dizendo que ele seria construído com a participação de suas ideias, explicando que iriam votar nas decisões a serem tomadas e participando do processo de construção. A partir desse momento, falamos sobre a necessidade de criar regras – o que valeria e o que não iria valer na brincadeira. As crianças começaram a dar ideias que foram registradas em um quadro branco. Abaixo, estão as regras iniciais sobre o modo como iriam “batalhar”, sendo que algumas foram modificadas na medida em que as batalhas ocorriam e as crianças sentiam a necessidade de novos ajustes:

1) quem não quiser participar vai falar que não quer e não será obrigado;

2) tem muitas formas de participar: rimando; dando ideia e julgando;

3) não pode zoar o amigo (regra modificada pelas crianças). Não pode magoar o amigo;

4) antes de chegar à sala de leitura geral, vai ao banheiro para não atrapalhar as batalhas;

5) não xingar a mãe dos outros;

6) respeitar quando perder;

7) não falar junto com o colega;

8) levantar a mão pedindo para falar; e

9) não pode falar que o colega “mija” e “caga” na cama.

Nesse momento, houve a participação ativa das crianças, que animadamente votaram e deram ideias, concordando e discordando, tendo a oportunidade de vivenciar conflitos e divergências. A título de exemplo, a ausência do Ju1, que não estava no primeiro encontro, mas que, no segundo estava presente, foi essencial para as mudanças que ocorreram no segundo dia. Quando fomos reler as regras combinadas e registradas em uma cartolina, ao chegar à regra de que não podia zoar”, ele discordou veementemente, afirmando que a batalha de rima é “zoar o outro”. Júl, que havia proposto essa regra, defendeu sua ideia: “eu disse isso porque não pode fazer o amigo ficar triste e chorar, não pode magoar”. Mas, ao mesmo tempo, disse: “zoar pode, não tem rima sem zoar!”. Então, depois de algumas ponderações, em que muitas crianças falavam ao mesmo tempo, a pesquisadora organizou uma votação na qual quem concordasse em mudar essa regra deveria levantar a mão. A maioria levantou a mão e a regra foi modificada. Portanto, a regra de “não zoar” saiu, pois a brincadeira era de “zoação”, como pode ser percebido na lista das regras acima.

Depois dessa etapa, passamos para a votação de que tipo de batalha seria: de sangue ou de conhecimento. Surpreendentemente, foi eleita a batalha de conhecimento, contradizendo a maneira com que os duelos costumavam ser, pois eram de xingamentos, ou seja, de sangue. As crianças, quando brincavam na escola, se enfrentavam frequentemente, procurando desvalorizar a outra para se autoafirmar através da depreciação pública do rival. Outra surpresa foi quando escolheram como tema para ser rimado “animal”, pois entre as opções havia futebol e videogame, jogos com os quais costumavam brincar.

Apesar dessas escolhas, na prática, continuaram se xingando nas batalhas, usando nome de animais como: carrapato; cavalo ou urubu. No entanto, nem sempre conseguiam rimar usando nomes de animais, fato que, no decorrer das batalhas e após várias chamadas da pesquisadora a respeito, fez com que mudassem de ideia e as batalhas passassem a ser oficialmente batalhas de sangue. Assim, ficaram mais à vontade para os enfrentamentos, momentos em que as regras serviram de fronteira para que a autoafirmação pelo xingamento não se transformasse em um nível de agressividade mais danoso. O processo de elaboração de regras foi importante para que as crianças fossem testando paulatinamente seus limites entre se autoafirmar e agredir respaldadas pelo grupo e pudessem manifestar o desejo de mudar ao longo do caminho o tipo de batalha e as regras já construídas.

Após os acertos iniciais, ficou estabelecido que a batalha seria entre grupos rivais e existiria um júri composto pelas demais crianças que não desejassem participar dos confrontos.

 

As batalhas de rima – cumplicidade e valores grupais

As tradicionais batalhas de rima geralmente contam com o mestre de abertura da cerimônia. Neste trabalho, a própria pesquisadora se propôs a fazer a abertura das batalhas, seguida por uma dupla de grupos opostos que começaram a duelar se “zoando” e rimando, enquanto o duelo era avaliado pelo júri que assistia e torcia.

As crianças estavam muito entusiasmadas, batendo palmas, fazendo diversos barulhos com o corpo; seus movimentos eram frenéticos e, ao término das aberturas iniciais, faziam sons como: “êêêêêêêêêêê”. A alegria e o vigor imperavam nesses momentos. Porém, um aspecto que se repetiu em quase todas as pelejas foi que nem sempre o melhor rimador era o mais ovacionado pelo grupo. No trecho abaixo, mesmo Lu não tendo conseguido criar uma rima no final, seu grupo gritava seu nome, junto com o som: “uôôôôôôôôô! Não tem jeito, já venceu!”.

[…] Vieram de muitos lugares, até de Japeri! Agora vamos chamar esses dois grupos pra fazer as suas rimas. São crianças inteligentes que sabem o que vão combinar e agora a disputa vai começar!

Lu: Oh Dan deixa eu te levar um papo, cala a sua boca, seu cara de carrapato, a minha condição é maior do que a sua, eu quero que você vá tomar uma injeção da chikungunya!

Enquanto Lu rimava, Dan ajoelhou na sua frente para ouvir a rima. Em seguida, levantou-se e disse:

Dan: Oh Lu, tô te mandando um papo reto sem neurose e sem caô, a tua boca fede a cocô, depois cocô!

Lu: Oh Dan, eu fui na tua casa e fede a cocô e fede a rato! Deixa eu te mandar um papo, cala a sua boca, bunda de girafa e cara rachada! (falou essa rima com a mão na boca, fazendo um gesto como se estivesse direcionando a voz apenas para o adversário, gesto comum, usado pelos MCs durante as batalhas).

Dan: Eu vou falar pra tu, sem neurose nem caô, tu não sabe nem rimar, tua rima fede a cocô, eu vou falar pra tu, essa daqui é na moral, eu vou fazer contigo o que eu fiz com mano Brown! Eu vou falar pra tu, sem neurose e sem caô, tu quer falar de mim, mas tu ainda é um cocô!

Lu: Eu vou te mandar esse papo, Dan, você presta atenção, você tem bafo de camaleão!

A torcida do Lu começa a gritar e a pressionar o Dan.

Dan: O Lu, deixa eu te mandar um papo, cara de martelo e um monte de carrapato!

Lu: O Dan, deixa eu te mandar um papo, cara de martelo e um monte de carrapato!

No final dessa sequência, Lu rima, mas repete exatamente o que Dan tinha acabado de falar e ninguém questionou. Ficaram dizendo que estava quatro a dois para o Lu com o apoio do júri infantil. Dan, gesticulando com as mãos na direção do opositor, discordava. No entanto, o grupo de Lu, após sua rima, repetiu o mesmo som: “uôôôôôôôôô!”. Cabe colocar que o Lu era primo de Ni (menina líder do grupo), portanto, a proximidade (laço de parentesco) de Lu e Ni parece ter influenciado a vitória de Lu entre as crianças. Não houve um reconhecimento da qualidade das rimas do Dan que foram mais articuladas. Parece que a cumplicidade anterior à brincadeira, existente entre os grupos, consistiu no critério mais importante para o movimento do grupo de definir o vencedor. A desenvoltura de certos oponentes não pareceu alterar o resultado da batalha; é como se o lugar de sucesso estivesse garantido pelos laços de maior proximidade que um dos personagens tem com o grupo.

No entanto, mesmo com uma aparente proteção dada pelos vínculos grupais preestabelecidos, isso não significou que, no decorrer das batalhas, não fosse possível observar que certa criança, com pouca popularidade, tivesse sua posição modificada a partir da sua desenvoltura na rima, passando a ser chamada com mais frequência pelos colegas para compor os times de futebol. A título de exemplo, durante as partidas de bola, essa criança, que normalmente ficava esperando a sua vez como reserva, passou a ser uma das primeiras a ser escolhida para jogar. Antes das batalhas, ela não ocupava um lugar de importância e houve certa surpresa em relação ao seu desembaraço. É o que podemos perceber na disputa abaixo:

[...] Agora estamos aqui reunidos nesta escola para fazer mais uma batalha de rima entre as crianças que sabem rimar, elas são alegres e gostam de brincar, do lado esquerdo tem um grupo, do lado direito tem outro grupo (ao falar o nome dos dois grupos as crianças se agitam). E agora elas vão começar a disputar, aqui pode zoar, mas não pode magoar!

Y: Agora eu mando um papo: se liga, eu estou no ar, cabeça de martelo e pé de carrapato!

Gui: – Eu vou mandar um papo, o meu é sem gracinha: cala a sua boca, a sua cara é de calcinha; a minha condição é melhor do que a sua, eu quero que você vá tomar injeção na chikungunya!

Y: Agora fica ligado, porque eu fui na tua casa e tinha um cavalo!

Gui: Eu vou mandar um papo, o papo no sapatinho, cala a tua boca, seu manguinho, bagulho é na moral, bagulho é sem gracinha, cala boca seu cara de carapinho!

Y: Agora, bora pro pau, cala tua boca e agora eu já mandei, te liga na tua responsa, olha o teu bafo é de onça!

Gui: Eu vou mandar um papo, o papo é sem gracinha, cala sua boca sua cara de calcinha, o bagulho é na moral, bagulho é sem neurose, cala a sua boca você tem verminose! (Gui falou muito aceleradamente sem errar, seguindo sem intervalo com um novo conjunto de versos rimados e provocativos).

Gui: Eu vou mandar um papo: o Y é sem gracinha, aqui o papo é reto, aqui é na moral, cala sua boca, seu cara de bacalhau! O papo agora acabou e já perdeu, cala a sua boca, que só tem você e eu!

Y: Agora eu mando um papo, se liga agora eu falo: tu é um monte de carrapato, se liga agora eu falo, tua cara é de cavalo!

Gui: Olha pro bagulho, o negócio é eu e tu, cala sua boca, seu cara de urubu, o bagulho é na moral, o bagulho é sem gracinha, eu sou faixa preta e tu é faixa calcinha, bagulho é sem neurose, bagulho é na moral, cala sua boca, seu cara de bacalhau!

Houve uma enorme animação e as crianças do grupo do Gui começaram a gritar “Gui! Gui! Gui!”. Por outro lado, a torcida do Y vaiava bem alto. Gui, através de sua agilidade em rimar, passou a ser uma criança mais aclamada pelos amigos nas batalhas e procurada por eles em outros momentos. Podemos dizer que a habilidade de rimar nesta brincadeira também propiciou a formação eventual de vínculos, antes não existentes, pois quando a criança era bem sucedida durante as respostas ao ataque, parecia “crescer” diante dos demais. A habilidade de resposta correspondia publicamente à autoafirmação diante do rival e ao seu enriquecimento no grupo. Dessa maneira, observamos que a brincadeira permitiu a alteração de vínculos entre as crianças, da mesma forma que corroborou a existência de vínculos já existentes.

Em muitos momentos, para a pesquisadora, a sensação era de que o projeto não estava acontecendo como planejado, mas quando as crianças eram questionadas sobre o que tinham achado, diziam que tinha sido “muito legal”. Nesses momentos, elas manifestavam a aderência às suas próprias regras e a possibilidade de se ordenarem, mesmo demonstrando alguma desordem e eventuais conflitos possivelmente necessários. Em um dos encontros, houve a tentativa de a pesquisadora distribuir pequenos pedaços de papéis para as crianças escreverem suas rimas antecipadamente, dessa forma, as batalhas seguiriam mais organizadas. Sugestão que não teve aderência junto ao grupo, pois as crianças nunca chegaram a usar os papéis. A dica foi totalmente ignorada, pois a essência do jogo é o improviso.

Outro aspecto é que, do lugar de adulto que brinca com as crianças, não há como ser imparcial. Houve torcida por parte da pesquisadora quando um dos meninos que tinha muita dificuldade em sala de aula brilhou inúmeras vezes no palco, competindo em pé de igualdade com as outras crianças que costumavam ir muito bem nas tarefas escolares. Esse menino conseguia rimar prolongadamente durante as batalhas, sendo ovacionado pelos amigos do mesmo grupo e admirado pelos seus adversários. Nessas circunstâncias, não houve rivalidade suficiente para afetar a admiração dos colegas.

À medida que os encontros iam acontecendo, a disputa ia se intensificando e o ritmo e a duração das rimas iam aumentando, exigindo que os jogadores suportassem as humilhações e xingamentos. Faziam isso através das posturas corporais e a articulação de suas rimas. Tudo isso ia deixando as crianças mais acesas e mais agressivas. Ao tentar se autoafirmar, após ser atacada por um xingamento rimado, é possível que, em alguns momentos, uma criança tenha tido vontade de chorar, porém, sabia que isso poderia fazer com que se sentisse mais humilhada. Assim, parecia buscar forças em si mesma para continuar enfrentando o rival. Quando uma criança era vaiada e sabia que não tinha feito bem a rima, após o vexame, ela erguia o peito e se posicionava na direção do oponente, reiniciando a batalha para tentar se autoafirmar. Não havia desistência em público; a honra vinha em primeiro lugar.

O que vimos era claramente um limite delineado segundo as regras do jogo diante dos enfrentamentos mútuos. Havia uma satisfação com o jeito de brincar que fazia sobressair o mais ágil na fala, no gesto e no movimento, já que ninguém queria “pagar de otário”. Essas formas apresentaram uma ambiguidade que envolveu alegria e tensão, associadas ao relaxamento entre o xingar melhor e rir de quem foi xingado e não reagiu no tempo ou na maneira certa. Nesses casos, a melhor opção era levar no bom humor.

 

Considerações finais

Destacamos que as batalhas de rima das crianças, aprendidas no contexto das ruas da Maré, se configuraram pelo uso da linguagem verbal e dos movimentos dos corpos, assinalando momentos de desafios, nos quais o objetivo maior era superar o outro, através de sua humilhação. Logo, a brincadeira externou um lado agressivo e, muitas vezes, cruel durante as disputas, a competência imposta exigia suportar os fortes vexames que surgem das rimas cantadas publicamente pelo adversário. Ao deferirem xingamentos, os oponentes faziam a peleja aumentar de intensidade, acelerando o ritmo do raciocínio requerido na elaboração de uma resposta improvisada à altura.

Essas ocasiões representavam situações de competição em que, de forma indireta, conflitos eram vivenciados, nos quais a intenção não era eliminar o adversário, apesar das ofensas, que deveriam ser levadas na esportiva. Eram momentos permeados por certa intimidade e ao mesmo tempo hostilidade, em que se notava uma espécie de jogo perverso, no qual o adversário era vencido ao ser “corretamente” (segundo as regras) “zoado e humilhado. No entanto, o derrotado, na maioria das vezes, se erguia rapidamente para continuar o jogo, parecendo sair em busca da incessante e tão necessária autoafirmação.

É possível afirmar sobre o significativo nexo da brincadeira da batalha de rimas com os outros jogos de zoar” que ocorrem na Maré, pois, nesse lugar, os jogos de disputa, tais quais as batalhas de rima, permitem exercitar a autoafirmação a partir da humilhação do rival, uma vez que a vida nesse território exige a força e o vigor da defesa da própria identidade. As crianças também são impelidas a exercitarem a disputa, tendo que se relacionar com os desafios do território, muitas vezes, convocadas desde pequenas a se impor e a reagir com potência durante as diversas interações perante outras crianças e os adultos do lugar. Durante as disputas, mesmo que visivelmente abaladas com as humilhações em público, as crianças sabiam que era parte do jogo e continuavam interagindo.

Entretanto, uma brincadeira que tinha como objetivo principal, segundo as crianças, zoar o outro, pela forma como o processo foi construído, envolvendo regras e duelos, possibilitou a experiência de discordar e chegar a um consenso. Nesse sentido, o jogo viabilizou que fossem além das expectativas iniciais, permitindo que as crianças refletissem sobre o tênue limite entre “zoar e agredir.

Houve pequenos conflitos que poderiam ultrapassar o limite do xingamento da brincadeira para agressões físicas. A título de exemplo, em algumas circunstâncias, quando uma sequência de xingamento rimado era valorizada pelo júri, deixando o oponente humilhado e irritado, notou-se que o impulso inicial, muitas vezes, era tentar agredir o colega fisicamente. No entanto, quando chegava a esse ponto, o movimento brusco não passava de ameaças corporais, pois as regras construídas coletivamente foram eficazes para estabelecer o limite da brincadeira sem transformá-la em agressão física. As fronteiras não foram ultrapassadas, pois romper as barreiras poderia significar “uma guerra”, com agressões físicas que atingissem os laços de amizade, infringissem as regras e anulassem o prazer do brincar. Vale frisar que as regras foram construídas e avalizadas coletivamente pelas próprias crianças, e sua infração talvez correspondesse a mais uma derrota em público daquele que não sabe brincar.

Ao longo de todo o projeto, foi visível o envolvimento e a alegria das crianças no decorrer das batalhas. Elas experimentaram uma interessante experiência de criação, pois além da capacidade da criança de lidar com o improviso, realizaram o desafio de conseguir expressar suas ideias, encadeando o ritmo obrigatório desses jogos e, através disso, poder zoar” o outro rimando.

Finalmente, destacamos o papel da escola que, com uma postura diferente, favorece a afinação e o entrosamento entre os funcionários dos diversos setores, propiciando um clima harmônico, no qual a cultura local mareense pode ser valorizada. Não houve nenhum empecilho para a realização da proposta que retrata o Hip Hop como uma manifestação de cultura de rua que, além de caracterizar uma forma de intervenção artística, permite um modo de vida e de expressão nos espaços públicos da favela. Ao fortalecer a cultura local, a escola incentiva as crianças a estarem na escola e perceberem esse espaço como um lugar em que se sentem acolhidas e reconhecidas nas suas práticas cotidianas e, sobretudo, a poderem estabelecer relações entre essas práticas e o aprendizado dos conteúdos formais.

 

 

Referências

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Data de recebimento/Fecha de recepción: 19/12/2020
Data de aprovação/Fecha de aprobación: 22/02/2020

 

 

1 O nome das crianças está substituído pelas letras ou sílabas iniciais de seus nomes para preservar suas identidades.

 

I Adelaide Rezende de Souza: Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil. Membro do grupo de pesquisas NIPIAC (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas/UFRJ). E-mail: adelaidebrinqead@gmail.com

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