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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades  no.27 Rio de Janeiro May/Aug. 2020

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

O recurso da "metodologia de cartas" como forma de captura dos fluxos urbanos de jovens contemporâneos

 

The feature of "letter methodology" as a form of capture of urban flows of contemporary young people

 

 

Victor Hugo Nedel OliveiraI; Andreia Mendes Dos SantosII; Miriam Pires Corrêa De LacerdaIII

IDoutor em Educação (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-PUCRS), Professor do Departamento de Humanidades, Colégio de Aplicação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Brasil. E-mail: victor.juventudes@gmail.com
IIDoutora em Serviço Social (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-PUCRS). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PUCRS), Brasil. E-mail: andreia.mendes@pucrs.br
IIIDoutora em Educação (Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS). Professora da Universidade La Salle-Canoas/ RS,Brasil. E-mail: miriam.p.c.lacerda@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo busca apresentar uma técnica de coleta de dados do fluxo urbano de jovens contemporâneos a partir do que se denominou metodologia de cartas. A técnica propõe a análise do conteúdo das cartas escritas por jovens para um visitante hipotético em sua cidade, o qual teria vinte e quatro horas de convivência para apresentar seus locais de interesse e seus itinerários com o convidado. Para discutir a aplicação metodológica, realizou-se um estudo de caso com 24 jovens estudantes do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tendo como recorte espacial a cidade de Porto Alegre. Os resultados apontam que os locais públicos e de lazer predominam para os jovens participantes da pesquisa, bem como se pode constatar uma visão sobre a cidade ser perigosa e insegura. Percebeu-se, em diversas cartas, que o itinerário escrito passou por lugares em que estes jovens escolarizados circulam em sua rotina.

Palavras-chave: juventudes, cidade, metodologia de cartas, educação.


ABSTRACT

This article seeks to present a technique for collecting data on the urban flow of contemporary young people from what has been called letter methodology. The technique proposes the analysis of the content of letters written by young people to a hypothetical visitor in their city, who would have twenty-four hours of living together to present their places of interest and their itineraries with the guest. To discuss the methodological application, a case study was carried out with 24 young students from the College of Application of the Federal University of Rio Grande do Sul, with the city of Porto Alegre as a spatial section. The results show that public and leisure places predominate for young people participating in the research, as well as a view of the city being dangerous and insecure. It was noticed, in several letters, that the written itinerary passed through places that these young schoolchildren circulate in their routine.

Keywords: youth, city, letter methodology, education.


 

 

Para início de conversa: a cidade e seus jovens

As juventudes contemporâneas e os espaços urbanos são dois campos do conhecimento que estão em constante movimento, na medida em que os jovens e as cidades são reinventados a cada dia, tornando assim o trabalho dos pesquisadores desses campos propício a sempre pensar em novos temas de investigações. O objetivo deste texto é apresentar uma metodologia de captura dos fluxos urbanos de jovens contemporâneos, a partir do que se denominou de "metodologia de cartas", conforme será apresentado ao longo do artigo e tendo como plano de fundo a cidade de Porto Alegre, bem como sujeitos, jovens do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

A cidade de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul e integrante do território brasileiro, deu início a sua história em 1752, com aproximadamente sessenta casais portugueses açorianos que esperaram uma demarcação de terras no noroeste do estado pelo governo português. Com a demora, se instalaram no chamado Porto de Viamão, primeira nomenclatura da atual cidade de Porto Alegre.

Traçando um panorama geográfico, às margens da capital, encontra-se o Lago Guaíba, que possibilitou a importação e exportação de produtos para Porto Alegre através do Cais do Porto. Localizado na zona central, é perto desse Cais que se dá início à Orla do Guaíba, sendo direcionada até a zona sul da cidade, com seus diversos pontos: Orla do Gasômetro, Orla da Assunção ou Orla de Ipanema, nomeados pelos prédios culturais perto do local ou pelos bairros em si. Em Porto Alegre, encontram-se múltiplos locais de cultura ou lazer, sendo públicos ou privados. Há forte presença de museus, como o Museu de Arte do Estado do Rio Grande do Sul, o Museu Iberê Camargo, o Museu de Ciências e Tecnologias da PUCRS, entre outros. Também há importantes eventos culturais, como a Feira do Livro de Porto Alegre e a Bienal do MERCOSUL. Os espaços de lazer combinam o hábito de frequentar praças como momento de descanso nos finais de semana, sendo os mais conhecidos: Parque Marinha do Brasil, Parque Farroupilha e o Parque Germânia. No setor do comércio, encontram-se locais privados como shoppings e as lojas nos bairros comerciais, como, por exemplo, o Centro da cidade. E há também as feiras em zonas de lazer, nas quais são vendidos principalmente artesanatos e alimentos.

Visto o cenário urbano da cidade, assume-se que Porto Alegre permite a ocorrência de diversas relações sociais, as quais podem ser um passeio por lazer, algo cultural ou para fazer compras. Entende-se que, a partir dessas relações, forma-se o sujeito na cidade, e pode-se considerar a cidade de Porto Alegre como um lugar, conceito definido por Santos (1997) como espaço de identidade e pertencimento. Os jovens, por sua vez, também são habitantes da cidade e, conforme Carrano (2003), a cidade, por sua vez, também é um espaço educativo.

É preciso estabelecer, portanto, que há diferença entre estudar jovens e adolescentes, sendo que cabe aos pesquisadores das juventudes entender as culturas juvenis, suas relações consigo e com os demais, além dos seus espaços de pertencimento. Segundo Wulff (1995), os estudos da adolescência se preocupam com corpos e mentes, enquanto o estudo da juventude enfatiza o aqui e agora das experiências do jovem para entender a formação de seus mundos. Entende-se, então, que há profunda diversidade entre os jovens. Pais (2001) reivindica a necessidade de entender que existe uma pluralidade entre os jovens, justamente pela diversidade entre as suas culturas. É importante salientar que tal diversidade também afeta as relações sociais desses jovens e sua maneira de entender o seu mundo, bem como a forma como se posicionam diante de situações, identidades e espaços. Somos constituintes do mundo enquanto estamos vivendo, sendo essa uma relação além do corporal, pois ser do mundo implica ao sujeito a maneira ao qual ele é integrante. Nisto, há de se entender que os jovens também são integrantes do mundo e buscam uma maneira de ser parte constituinte de seu lugar. Nesta investigação, entende-se o "mundo" como a cidade de Porto Alegre, para poder entender qual a relação dos jovens pesquisados com a cidade, ou seja, os espaços urbanos ocupados e perpassados durante suas rotinas.

É notável a presença dos jovens nos espaços urbanos, na medida em que observamos sua linguagem e vestimenta ou quando escutam música e mexem no celular. Trata-se de múltiplas características, que se relacionam com contextos locais e globais, que atravessam a escala coletiva e individual, expressadas de diferentes formas e fortemente representadas nas gerações de juventudes contemporâneas. Essas são as culturas juvenis: múltiplas e, por vezes, ditas efêmeras. São largamente trabalhadas por Feixa (1998), quando afirma que:

En un sentido amplio, las culturas juveniles se refieren a la manera en que las experiencias sociales de los jóvenes son expresadas colectivamente mediante la construcción de estilos de vida distintivos, localizados fundamentalmente en el tiempo libre, o en espacios intersticiales de la vida institucional (p. 32).

Reforçando o caráter diverso da juventude, pode-se ressaltar Pais (2003), quando propõe que:

[...] a juventude deve ser olhada "não apenas na sua aparente unidade, mas também na sua diversidade", pois não há um único conceito de juventude, que possa envolver todos os campos semânticos que a ela estão associados (p. 98).

Portanto, as juventudes são múltiplas na medida em que coexistem de vários modos diante das distintas realidades nas quais as encontramos nos espaços da vida real. Sua diversidade vai do individual ao coletivo, sendo expressa neste último na medida em que agem e são percebidos nos espaços em que transitam.

Conforme proposto pelo IBGE (2010), os jovens estão enquadrados na faixa etária entre 15 e 29 anos. Há de se perceber que há uma pluralidade entre esses sujeitos, apesar de terem características próprias devido ao restrito recorte etário, no que é preciso entender que juventude não é apenas um momento de transição entre infância e o mundo adulto.

As juventudes são encontradas por toda a parte, seja em um espaço educativo, seja em um local não-formal de aprendizagem, como os espaços de uma cidade. Há o debate sobre essa apropriação das juventudes com os locais em que convivem, como expressam Borelli e Rocha (2008):

[...] com "rodinhas nos pés", tomam conta da cidade como um todo ou dos bairros das regiões em que vivem, numa circulação transversal e desordenada, que explode os limites da espacialidade urbana e, por vezes, do próprio pertencimento social (p. 23).

Outros autores também se situam no debate sobre a função da cidade e como os jovens se apropriam desses espaços. Para o autor, a cidade também funciona como um local de aprendizados, visto que possibilita relações e práticas sócio-educativas. Afirma Carrano (2003):

As práticas sociais que ocorrem nas cidades incorporam-se ao conceito de educação, uma vez que compreendem em suas dinâmicas culturais próprias de realização, a formação de valores, a troca de saberes e, em última instância, a própria subjetividade (p. 20).

O autor entende que a educação cabe além do espaço escolar, podendo ser desenvolvida na própria cidade, a qual possibilita que os jovens se constituam sujeitos próprios para ensinar ou aprender. A cidade é o espaço no qual as diferenças se encontram com frequência, onde o trânsito é constante, de maneira que a paisagem não é inteiramente estática, uma vez que está em constante mudança, movimento. A cidade pode ser entendida também como uma multidão de desconhecidos, pelos quais estamos em constante contato no cotidiano. Afirma Reyes (2005):

Viver na cidade é viver a dinâmica da realidade cotidiana, é estar inserido no fluxo da vida diária com tudo o que esse fluxo propõe. É como estar aberto não só ao conhecido, ao que é familiar, mas, sobretudo, estar disponível ao olhar do estranho (p. 19).

O conceito de espaço, definido por Santos (1997) como "um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos de ações, não considerados isoladamente, mas como quadro único no qual a história se dá" (p. 51), relaciona-se com a ideia de cidade na medida em que consegue dar conta de suas relações com um dos objetos de estudo desta pesquisa: o espaço urbano. Este último, por sua vez, é definido como "uma unidade de análise consistindo em um conjunto de edifícios, atividades e população conjuntamente reunidos no espaço" (Clark, 1991, p. 37). Esse espaço se interpela com uma série de relações, que causam mutação no ambiente e no entendimento dele em relação a quem o observa e o vive. Essas relações, como já dito anteriormente, mudam o espaço e podem demonstrar poder, o que se entende como território, mas também podem demonstrar identidade e pertencimento, o que, por sua vez, se compreende como um lugar.

 

A "metodologia de cartas" como recurso metodológico

As cartas relatam intimidade dos seus autores com sua escrita e expressam a sua maneira de estar no mundo, além de conhecimentos acerca desse espaço. O que foi escrito parte da subjetividade dos sujeitos que escrevem e, assim, suas maneiras de pertencimento e interação com a cidade, uma vez que se escreve sobre espaços de identidade e pertencimento. A partir da leitura de Sierra Blás (2002), é possível entender que a escrita de si assume a subjetividade de seu autor como dimensão integrante de sua linguagem, construindo sobre ela a sua verdade.

Sobre o tema, definição e análise das cartas, encontra-se apoio teórico em Bezerra (2003), quando afirma que:

Analisando cartas em geral, reconhece-se que seu corpo permite variados tipos de comunicação (pedido, agradecimento, informações, cobrança, intimação, notícias familiares, prestação de contas, propaganda e outros), o que a faz afirmar que, embora sendo cartas, não são da mesma natureza, pois circulam em campos de atividades diversos, com funções comunicativas variadas: nos negócios, nas relações pessoais, na burocracia, no trabalho... (p. 210).

Outra ideia que defende a realização de tal instrumento pode ser encontrada em Camargo (2000), quando cita que:

Assumindo as cartas como objetos nos quais estão imbricadas as práticas culturais, o desafio é rastrear os motivos, modos e procedimentos que configuram essas práticas escritas e inscritas (p. 205).

Ou seja, a carta constitui-se também como forma de rastreio das práticas culturais dos sujeitos jovens, visto que tal elemento marca o lugar social de onde falam e, tão importante quanto saber o que falam os jovens, é saber de onde eles procedem.

No que se refere aos interlocutores da carta a ser escrita, para além do visitante hipotético, Camargo (2000) orienta que também serão compostos por aqueles que têm acesso à carta quando publicada e também aqueles que se inserem ou se interpõem no discurso de quem escreve, visto que os pesquisadores e os futuros leitores do trabalho também formarão parte deste grupo.

Assim sendo, a escrita das cartas pelos sujeitos jovens é uma forma de deixar suas marcas sobre como seria sua vida se, em um dia, tivessem a missão de apresentar sua cidade para um visitante. Esse tipo de utilização metodológica inovadora de cartas ao visitante já foi relatado em outros trabalhos de nossa autoria, como encontrado em Oliveira e Lacerda (2018a; 2018b) e em publicações de Oliveira (2018a; 2018b; 2018c).

A metodologia apresentada é considerada inovadora, na medida em que não se verificou, em estudos anteriores, utilização semelhante à que se propõe no presente texto. Tal embasamento teórico-metodológico pode ser verificado em Oliveira (2020), quando apresenta, em trabalho doutoral, o caráter de ineditismo do recurso das cartas como captura dos fluxos dos jovens contemporâneos. Ao mesmo tempo, é imperativo destacar que a participação dos jovens no processo da pesquisa, enquanto metodologia participativa, foi de suma importância: para além da escrita das cartas, que se configura como recurso material apresentado pelos sujeitos, o que mais se ressalta é a apresentação de ideias em relação à cidade pelos jovens. Nesse sentido, a captura dos dados de investigação junto aos sujeitos jovens em uma escola configura a proposta investigativa como uma metodologia relacionada aos processos educativos amplamente relacionados com a participação dos jovens.

Como um estudo de caso de aplicação dessa técnica de coleta de dados com jovens, realizou-se uma pesquisa com jovens contemporâneos estudantes do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, com foco nos espaços urbanos de Porto Alegre por eles ocupados. A metodologia da investigação foi a escrita de uma carta a um visitante hipotético, que ficaria na cidade por 24 horas em companhia do jovem. A produção de escrita foi realizada por 24 estudantes de uma turma do segundo ano do ensino médio da escola mencionada.

A escrita da carta ao visitante ocorreu em sala de aula e, para tal, cada estudante recebeu uma folha com a orientação: "prezado visitante, me chamo (fulano) e teremos um dia juntos na cidade de Porto Alegre. Assim, eu gostaria...". A partir desse ponto, cada participante narra um dia de trânsito em Porto Alegre, relatando os locais em que levaria um hipotético visitante. Numa totalidade, foram vinte e quatro cartas produzidas e analisadas.

 

 

A análise partiu para resultados quantitativos acerca dos espaços urbanos citados pelos sujeitos e resultados qualitativos, ao entender o fluxo entre os locais referidos.

 

Um estudo de caso da aplicação da "metodologia de cartas"

A investigação baseou-se em resultados extraídos das cartas escritas por estudantes de uma turma do segundo ano do ensino médio do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ao total, foram 24 cartas escritas, das quais se analisaram três eixos básicos: a) os lugares citados; b) o fluxo na cidade e c) as "dicas" ao visitante.

Análise quantitativa dos resultados

É importante destacar que a análise foi de complexa realização, visto que havia cartas escritas de maneira sucinta, ou seja, em poucas linhas, abordam o que foi solicitado. Há algumas que citam lugares de maneira genérica, sem identificação específica do local, por exemplo: "eu levaria ao shopping". Logo, algumas frases foram excluídas para a análise quantitativa da qual se elaboraram gráficos. Também, quando a generalização dos espaços é extrema, encaixa-se apenas no debate de análise geral das cartas, como quando os sujeitos escreveram "diversos lugares". O foco se deu, portanto, numa avaliação sobre os locais citados e, em dados numéricos, apresentam-se os mais referidos e algumas características acerca desses espaços.

Foram retirados das cartas todos os espaços urbanos de Porto Alegre citados pelos sujeitos da pesquisa, como espaços com nomeação genérica. Houve lugares referenciados de uma relação íntima, como as casas das famílias ou outros espaços de intimidade que não puderam ser incluídos na análise quantitativa, pois se buscou os locais que mais foram citados dentre a lista de tantos outros referidos. Assim sendo, por meio de um empate com a porcentagem e referência nas cartas, a análise foi feita a partir de onze espaços.

 

Figura 2

 

Conforme a imagem do mapeamento, os espaços de Porto Alegre destacados foram: Usina do Gasômetro, Estádio Beira-Rio, Parque da Redenção, Casa de Cultura Mario Quintana, Museu de Ciências e Tecnologias da PUCRS, Parque Germânia, Jardim Botânico, Fundação Iberê Camargo, Orla do Guaíba e os bairros Cidade Baixa e Centro.

 

 

Em relação ao gráfico, é preciso ressaltar que, para este primeiro, a citação dos bairros foi excluída, pois são entendidos como espaços de trânsito. É possível perceber, dessa forma, grande diferença porcentual entre os eixos, sendo 78% dos espaços citados espaços públicos. Percebeu-se que há uma valorização e ocupação dos jovens pelos locais públicos, sendo esses mencionados inúmeras vezes. Reparou-se que há um forte conhecimento entre os jovens estudantes sobre esses espaços, visto que foram nomeados em maioria, além de que, em algumas cartas, foi escrito que são ocupados durante a rotina. Repara-se que, em maior parte, os espaços públicos citados também são locais abertos por serem parques ou espaços da Orla do Guaíba. O que se pode afirmar é que, além de serem locais públicos, os sujeitos da pesquisa ocupam locais abertos. Sobre os lugares privados, que compõem 22% do gráfico, esses são espaços de cultura como museus, nos quais há de pagar a entrada, como o Museu de Ciências e Tecnologias da PUCRS. Entretanto, há de se afirmar que a frequência a este museu cabe em boa parte a estudantes de escolas quando vão a passeios estudantis, ou os estádios de futebol, onde também há de se pagar a entrada para ter direito de ver os jogos, sendo exemplificado pelo estádio Beira- Rio.

 

 

Sobre os lugares referenciados, há uma diversidade característica entre eles, visto que não foi selecionado apenas um tipo de espaço urbano para ir junto ao visitante, o que possibilita afirmar que houve uma preocupação, por parte dos sujeitos, com que o visitante pudesse conhecer diferentes lugares de Porto Alegre, não ficando apenas em um passeio entre parques ou museus, por exemplo. Assim, repara-se que há uma divisão entre espaços concretos e de trânsito, estes sendo os bairros, a Cidade Baixa e o Centro Histórico. São espaços de trânsito porque os jovens pesquisados os escreveram como espaços urbanos abertos, no sentido de conhecer as ruas e os seus prédios. Sobre a movimentação acerca do Centro, foi recomendada como um trajeto durante o dia para conhecer a arquitetura e a história de Porto Alegre, enquanto a Cidade Baixa é apontada, preferencialmente, para um movimento noturno em busca de bares e festas para levar o visitante.

Acerca dos locais concretos em si, são citados em maior parte os espaços de lazer, dos quais entram na classificação os parques ou espaços que compõem a Orla do Guaíba. Por segundo, ficam os espaços de cultura, sendo a Casa de Cultura Mario Quintana o mais citado. Sobre a Alimentação, em poucas cartas citou-se algum local de alimentação, e quando citados foram espaços únicos, demonstrando a pouca percepção pelos jovens pesquisados em parar em um momento do fluxo para comer.

 

 

Em disparada, a Usina do Gasômetro se fez a moda, com referência em 58% das cartas analisadas. O Gasômetro é uma construção que antigamente era usada como uma usina de geração de eletricidade. Dentro do prédio, encontram-se salas para peças de teatro ou exposições e um espaço aberto no segundo andar. No entanto, a Usina fica em frente ao Guaíba, sendo parte de sua orla. E é nela que se concentram os jovens, visto que na orla há espaço para sentar e conversar, além de poder caminhar, atividade que é citada em algumas cartas como "vamos dar uma caminhada no Gasômetro".

A Redenção, nome popular para o Parque Farroupilha, é um espaço grande na zona central de Porto Alegre no qual há a convivência de todas as gerações e de animais. É um espaço de lazer que costuma ficar cheio principalmente nos finais de semana, sendo inclusive um cartão-postal da cidade. A Redenção é espaço de eventos musicais e políticos.

Como espaço cultural mais citado, apareceu a Casa de Cultura Mário Quintana, que chama a atenção pela sua arquitetura diferenciada. É um espaço no Centro de Porto Alegre que valoriza a arte, com exposições artísticas e peças de teatro, além de um cinema no primeiro andar. Ao seu redor, encontram-se bares e cafeterias.

 

 

Sobre o gráfico 4, destacam-se os outros espaços urbanos mais citados na lista do mapeamento, os quais ficaram com uma frequência de 17% e 21% de referência nas cartas. Aparecem juntos no gráfico porque tiveram o mesmo número de citações.

O Parque Germânia é um local de lazer, situado na zona norte e encontrado perto de bairros nobres, por ser um parque fechado por grades e portões. No entanto, aparece como sugestão nas cartas, inclusive, logo depois de conhecer os shoppings por perto. É um parque mais novo na cidade, cuja movimentação partiu das construções no bairro.

O Jardim Botânico configura-se como um espaço urbano da cidade que fica mais distante da zona central. É um espaço fechado com grades e portaria, visto que também é um museu botânico. Portanto, há um espaço ao ar livre com pequenos lagos e fontes, junto com espécies da botânica. A entrada nesse espaço é de baixo custo para os estudantes, e permite que possam circular por todos os subespaços internos. Sua presença nas cartas aponta um diferencial em relação aos outros espaços urbanos citados, visto que é sugerido para que o visitante possa conhecer junto com os jovens, porque há uma curiosidade pelo sujeito da pesquisa, que transita por perto, mas nunca entrou no local.

Percebe-se que os espaços da zona central da cidade são os mais visitados e ocupados pelos jovens, além de ser uma sugestão dada por eles. Conforme os gráficos, são poucas citações para além da zona central. Sendo assim, em ordem do eixo horizontal do gráfico, os próximos espaços fazem parte da zona central de Porto Alegre.

O Iberê Camargo é uma fundação cultural, sendo um museu diferenciado. A arquitetura chama a atenção por ser diferente dos outros museus da cidade, que são de formato mais clássico, sendo o Iberê uma arquitetura de estilo contemporâneo. Entretanto, a maior movimentação se faz na sua área externa, visto que há a orla do Guaíba. Na cidade de Porto Alegre, é comum, principalmente no final de semana, que os cidadãos saiam para caminhar ou pedalar pelos parques e pela Orla. É por isso que a Orla do Guaíba é conceituada como um espaço urbano pelos próprios sujeitos da pesquisa. Contudo, apesar de ser um lugar longo, por ser uma orla desde a zona central até a zona sul da cidade, o foco dos sujeitos coube nesse espaço mais central, sendo iniciada pela Usina do Gasômetro até o Iberê Camargo.

A Orla do Guaíba é um espaço urbano de lazer, sendo de movimento ou para relaxar. Ou seja, podem-se praticar esportes ou apenas ficar sentado na grama. É um local que permite a sociabilidade com diferentes grupos da sociedade, visto que é ocupado com diferentes objetivos, podendo ser, por exemplo, fazer um piquenique enquanto apreciase a vista do Guaíba, pedalar pela Orla, fazer uma festa aberta etc. Logo, diante dessa diversidade de pessoas, como dos próprios jovens da cidade, e dessa pluralidade de atividades possíveis, a Orla do Guaíba na zona central é movimentada, principalmente nos finais de semana.

Sobre os bairros citados, os mais evidentes são: Centro e Cidade Baixa. Reparou-se que o Centro foi referenciado para que o visitante pudesse conhecer a História de Porto Alegre e sua antiga arquitetura. Também foi situado como um espaço de passeio turístico, sendo que os sujeitos da pesquisa apontaram que estariam circulando com o visitante através de uma caminhada. Com uma movimentação diurna, ambos circulariam em busca de conhecer Porto Alegre por locais culturais, como os museus da Praça da Matriz ou a Casa de Cultura Mário Quintana. Entretanto, percebeu-se que haveria de ser uma movimentação rápida, visto que, quando o Centro foi apontado, apareceu como mais um espaço urbano importante de conhecer, mas como um local transitório para o próximo espaço sugerido.

O bairro Cidade Baixa já é apresentado como um espaço urbano para se permanecer por mais tempo, visto que a referência ao bairro sugere uma movimentação noturna, justamente em busca de bares ou festas para o jovem e o visitante. Conforme palavras dos próprios sujeitos, a ida para esse bairro à noite é para "fechar com chave de ouro". Aqui, não foram nomeados por quais locais fechados seria a circulação, porque iriam descobrir na hora, ou passear pelas ruas, apenas.

Os fluxos na cidade Porto Alegre

O segundo tópico é sobre os fluxos na cidade, ou seja, o trânsito para realizar o deslocamento entre os lugares citados. Em nenhuma carta se apresentou como seria a locomoção, seja por ônibus, seja por carro, por exemplo. Entretanto, aparece em algumas a sugestão de uma caminhada para conhecer a cidade.

Outro ponto de destaque é que, na maior parte das cartas, é escrito um itinerário, do qual foi possível buscar o fluxo urbano para saber sobre a percepção entre tempo versus distância, além dos espaços escolhidos para se conhecer em 24 horas na cidade. Assim, fez-se uma análise sobre todos os fluxos citados e percebeu-se que houve uma rota mais recomendada:

 

 

A rota ou o roteiro que apresentou maior sugestão nas cartas foi uma caminhada pela Orla do Guaíba, com saída ou do Centro ou do Iberê Camargo, quando não perpassar pelos dois espaços. Conforme o Google Maps, a rota inteira há de ser uma caminhada por, aproximadamente, 1h30min, o que possibilita ser um fluxo viável, visto que o visitante pode conhecer inúmeros espaços entre os mais citados, circulando entre os recomendados pelos jovens pesquisados. Foi possível perceber, igualmente, rotas com um fluxo entre espaços distantes entre si.

Dicas ao visitante

Foram encontradas dicas de dois tipos: a de qualidade e a de perigo. Ao dizer qualidade, refere-se às dicas que sugerem pontos positivos, como o que se encontra de bom em Porto Alegre: churrasco e o pôr-do-sol. Conforme palavras dos sujeitos, "Aqui há o melhor churrasco do país", e a sugestão de caminhar pela Orla do Guaíba para "ver o lindo pôr do sol de Porto Alegre".

Entretanto, o foco é maior nas dicas sobre a violência, ou seja, em 20% das cartas, se pontua fortemente para tomar cuidado, pois Porto Alegre é violenta, com frequentes assaltos e assassinatos. Inclusive, como escreve um jovem estudante, "há uma grande frequência de roubos, mas não se assuste, depois de duas horas na cidade vai se acostumar". Ou outro que pontua: "Não ande com objetos na mão, esconda [...]".

 

Considerações finais

Diante dos tantos resultados, afirma-se que os jovens pesquisados conhecem a cidade de Porto Alegre e seus espaços urbanos, sendo estes ocupados ou apenas perpassados pelos sujeitos. Entende-se que há uma marcação, circulação e ocupação da cidade pelos mesmos, sendo sujeitos que ensinam e aprendem com a cidade. Por outro lado, há a falta de percepção entre tempo e distância com espaços de zonas opostas, enquanto valorizam a zona central de Porto Alegre.

Outro detalhe reparado é a supervalorização de espaços públicos da cidade, visto que foram a maior parte dos espaços referenciados nas cartas. Estes são espaços como parques, bairros de trânsito e consumo, além da Orla do Guaíba, que é característica da capital gaúcha. A carta ao visitante, como estratégia metodológica, possibilitou ampliar o grau de análise dos espaços urbanos de pertencimento dos jovens estudados, visto que sua utilização permitiu, para além da simples nomeação de espaços, entender a relação adotada entre os jovens estudantes e os locais da cidade pelos quais transitam e desejariam apresentar para um visitante hipotético.

Conhecer os sujeitos da investigação e suas relações com a cidade, a partir de seus escritos nas cartas ao visitante, constitui-se, portanto, uma estratégia metodológica que evidencia a urgente necessidade de repensarmos as estratégias que envolvam a participação juvenil em contextos escolares. Conhecer os jovens estudantes e suas relações com os mais diversos aspectos da vida cotidiana, dentre esses, a cidade, trata-se de processo que vem colaborar com as interações tão necessárias no cotidiano escolar.

As narrativas de si e, consequentemente, de seus fluxos urbanos faz com que se possa entender melhor quem é o jovem contemporâneo que transita pela cidade e que frequenta a escola, possibilitando, assim, um maior e melhor conhecimento por parte de seus docentes, pois conhecer os alunos forma parte, igualmente, de um melhor planejamento pedagógico.

É possível, ainda, perceber nuances importantes a partir das análises dos fluxos juvenis pela cidade. As cartas auxiliaram os pesquisadores a dirigir um olhar refinado aos sujeitos de análise: as questões de segurança, por exemplo, ficam em evidência quando se trata de territorialidades dos jovens pela cidade, tanto na relação de frequentar espaços públicos ou privados, quanto na escolha por sair de dia ou de noite, bem como nas dicas apresentadas aos visitantes.

Espera-se que os gestores públicos da cidade atentem para esse transitar juvenil, pois essa construção de relação com a cidade justamente se inicia nesses processos de independência dos jovens, quando estes circulam sozinhos, ou com amigos, pela cidade. Oxalá se tenha, em um futuro próximo, uma cidade na qual os jovens possam circular sem medo e, assim, serem mais felizes.

 

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DATA DE RECEBIMENTO: 15/02/2020
DATA DE APROVAÇÃO: 28/06/2020

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