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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades  no.27 Rio de Janeiro May/Aug. 2020

 

ESPAÇO ABERTO

 

O problema social da obesidade e sua prevalência entre crianças e adolescentes

 

The social problem of obesity and its prevalence in children and teenagers

 

 

Rosely SichieriI; Rosangela Alves PereiraII

IProfessora Titular de Epidemiologia Nutricional do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Médica sanitarista, doutora em Nutrição em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP), Brasil, pós-doutorado em Harvard, Estados Unidos, Departamento de Nutrição. E-mail: rosely.sichieri@gmail.com
IIProfessora Associada do Departamento de Nutrição Social e Aplicada, Instituto de Nutrição Josué de Castro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Nutricionista pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil, com mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Brasil. Na docência universitária desde 1981, atua na área de Epidemiologia Nutricional com foco em pesquisas sobre o consumo alimentar e condições de saúde e nutrição. E-mail: rpereira@uol.com.br

 

 


RESUMO

A entrevista traz à discussão a multiplicidade dos fatores sociais e ambientais associados à obesidade na infância e adolescência, que dificilmente são investigados e que passam ao largo das ações educativas. No Brasil, este problema de saúde pública atinge um terço das crianças menores de 10 anos e se mostra preocupante na medida em que se apresenta de forma cada vez mais precoce. A entrevistada aponta para a necessidade de uma abordagem que tome a obesidade como um problema social e ambiental, que ultrapassa em muito as questões individuais. Trata-se de abordar de forma ampla os sistemas de produção e de consumo alimentar, que impactam a saúde pública e a infância, de modo a tornar mais efetivas as ações de prevenção e controle da obesidade.

Palavras-chave: obesidade infantil, obesidade na adolescência, saúde pública, má nutrição, sistemas alimentares.


ABSTRACT

The interview brings the discussion of the multiplicity of social and environmental factors associated with child and teen obesity, which are rarely investigated and that are largely ignored by public policies in Education. In Brazil, this public health problem affects one third of children under the age of 10 and is concerning insofar as it presents itself evermore precociously. The interviewee points towards the need for an approach that understands obesity as a social and environmental problem, surpassing individual issues. It is about approaching the systems of food production and consumption that affect public health and childhood in an ample manner, allowing for more effective preventative and regulatory measures relating to obesity.

Keywords: child obesity, teen obesity, public health, malnutrition, food systems.


 

 

ENTREVISTA DE Rosangela Alves Pereira COM Rosely Sichieri

E hoje a gente sabe que, se pensarmos em cuidado, essa linha de cuidado tem que começar durante o pré-natal, durante a gestação, porque esses fatores vão se acumulando ao longo da vida. Uma criança que sofre de algum problema, e não é um problema da obesidade, um problema de retardo de crescimento intra-uterino, um problema de prematuridade, tem mais chance de ter distúrbios do ponto de vista da obesidade e do excesso de peso no futuro. Então, é uma coisa extremamente complexa que a gente não pode localizar em um momento só. Se quisermos ter um impacto realmente importante nessa redução da obesidade, temos que começar lá na gestação. E as mães estão cada vez mais com excesso de peso, fator de risco para diabetes gestacional, que predispõe as crianças a nascerem com pesos maiores. E a gente tem, no Brasil, para piorar tudo isso, altos índices de cesáreas que, por sua vez, fazem nascer bebês pré-termo e crianças com baixo peso. Tanto os nascidos com baixo peso quanto aqueles com peso elevado para a idade gestacional têm maior chance de obesidade na vida adulta. Então, isso é extremamente complexo e somente quando você pensar em toda a linha da evolução do ciclo de vida é que você vai conseguir ter um impacto maior sobre a questão da obesidade.

No campo da obesidade infantil, nosso grupo de pesquisa tem se dedicado, principalmente, a avaliar ações que promovam a redução do ganho de peso em adolescentes.

Rosangela Pereira Você gostaria de acrescentar alguma coisa, incluindo a parte ambiental? A questão dos estímulos para o aumento do consumo e a redução da atividade física seria um tema para pesquisa?

Rosely Sichieri O problema é que esses estímulos ambientais são tantos e tão dispersos e complexos. Todo mundo imagina que não faz bem essa quantidade de agrotóxico que há na alimentação. Agora, como que a gente aborda isso? Como a gente consegue provar que essas coisas estão realmente associadas à obesidade? É um problema extremamente complexo. Por outro lado, a obesidade não é uma coisa do indivíduo. A obesidade é uma doença do ambiente, é uma doença social. A abordagem mais recente da obesidade incorpora-a junto às doenças carenciais como a desnutrição, em um complexo entendido como sindemia da má nutrição1. Essa sindemia reflete complexas interações dos sistemas de alimentação, agropecuária, transporte, desenho urbano e uso do solo e que requerem mudanças globais urgentes. Esse caráter sindêmico explica nossas dificuldades em mitigar depois que se instalam os casos de obesidade e mesmo sua prevenção. Temos experiência de mais de 10 anos com escolares, promovendo consumo alimentar saudável e, embora seja possível melhorar a qualidade da alimentação com essas ações, reduzir a obesidade é quase impossível. O mesmo pode-se dizer de inúmeras dietas apregoadas para emagrecimento.

Rosely Sichieri Bom, isso está superado do ponto de vista da ciência. Essa estigmatização ainda existe, mas as bases biológicas não mostram isso e as novas abordagens mostram exatamente o contrário. Como eu já falei, existem vários mecanismos compensatórios. Por décadas, a gente pensou assim: é só mexer no consumo, é só mexer na atividade física, que essa balança fica no normal. O indivíduo faz mais atividade física, o indivíduo come um pouco menos... Mas a gente vem percebendo que existem vários fatores que independem do quanto o indivíduo come, e independem do quanto ele faz atividade física. Há vários estudos com mulheres, por exemplo. Você põe 500 mulheres para fazer atividade física e só 10% delas vão ter aquela resposta que você esperou. Têm outras que vão ter compensações tão grandes depois do exercício, que acaba havendo aumento do peso em vez da esperada redução. Então, não há como culpabilizar o indivíduo.

No mundo com tantos apelos para consumir alimentos ultraprocessados de alta palatabilidade, de forma tão fácil e de baixo custo, é muito fácil ganhar peso. Por outro lado, o organismo resiste, tudo que ele puder resistir para perder peso, ele resiste, porque a perda de peso é um indicador de que alguma coisa está errada. Foram mudanças muito rápidas da desnutrição para a obesidade, e biologicamente a gente não está preparado para entender a perda de peso. Os indivíduos que têm excesso de peso perdem peso, mas o duro é reter essa perda de peso. Porque todo o mecanismo biológico faz o indivíduo voltar ao peso anterior. É o reganho que é o grande problema, depois que você desenvolveu algum grau de excesso de peso.

Rosangela Pereira Eu acho que a gente poderia falar aqui também de duas coisas que a gente tem visto: a questão de que a recomendação de comer legumes e verduras pode acabar induzindo a um consumo maior, em vez de reduzir consumo. E a questão de que, nem sempre, para os pais e a família, a criança um pouquinho mais cheinha significa que ela está doente ou que ela deve perder peso. Para eles, pode ser até um sinal de que a criança está muito bem e tem saúde.

Rosely Sichieri Individualmente, às vezes, a criança engorda um pouquinho para crescer. Então, a gente sabe que, populacionalmente, quando todo mundo está ganhando peso, quer dizer que na população vai ter muita gente obesa. Mas, individualmente, uma criança que engorda um pouquinho, antes do estirão, é até a forma que ela tem para depois ter o estirão do crescimento. Então, individualmente, é complicado diagnosticar logo no início um ganho excessivo de peso e a própria família, quando informada de que a criança está com um peso um pouco acima do normal, resiste em mudar comportamentos. Por outro lado, com crianças e adolescentes, temos feito intervenções orientando maior consumo de frutas, legumes, verduras e eles mudam esse comportamento, mas não reduzem o consumo de alimentos não saudáveis.

No passado, quanto mais uma pessoa comia uma dieta diversificada, menos ela tinha desnutrição. A gente tinha esse indicador claro. Isso veio para os novos guias alimentares. Então, comer de forma diversificada significa comer mais. Sempre que você coloca mais itens na alimentação, a pessoa acaba comendo mais. Inclusive, a forma como a gente apresenta as orientações nutricionais pode levar a população a ficar confusa. E no caso de adolescentes, é muito complicado a gente falar para eles reduzirem o consumo alimentar porque eles estão crescendo e para não estimular distúrbios alimentares, que é também uma questão importante nessa população. Já fizemos vários estudos para redução do ganho excessivo de peso com grupo controle em escolares da rede pública de ensino. Testamos só reduzir refrigerantes. Houve redução dos refrigerantes, mas aumento do consumo de sucos. Orientamos para a redução de todas as bebidas adoçadas e substituição por frutas, houve aumento do consumo de frutas. Orientamos compras de alimentos pela família. Fomos aos domicílios de crianças com obesidade e discutimos com os familiares propostas de aumento de atividade física e redução do consumo de itens não saudáveis. Todos esses estudos melhoraram o padrão de consumo de alimentos e bebidas, mas não mexeram no ganho de peso. A gente já fez seis estudos tentando várias combinações disso e, na nossa população, nenhum deles levou à redução significativa do peso. Veja, comer frutas e verduras é ótimo para várias coisas, mas experiências em que se estimulou o consumo de frutas mostraram que, mesmo havendo aumento do consumo de frutas, elas não substituem os itens que a gente gostaria que eles parassem de comer. A gente fala para eles comerem frutas e esperaria que eles parassem de tomar sucos adoçados, refrigerantes e biscoitos recheados. Mas na prática isso não acontece.

Rosangela Pereira Como você vê o enfrentamento dessa questão da obesidade na infância no plano das políticas públicas? Você tem atuado fortemente em escolas, em que sentido você acha que as escolas podem atuar nesse enfrentamento?

Rosely Sichieri Eu e você, Rosangela, e vários alunos nossos temos nos debruçado nos últimos estudos nossos sobre isso. A minha posição hoje é que está se exigindo demais da escola, se quer que a escola resolva tudo. A escola não vai resolver se você não tem uma política ambiental que reduza a exposição de alimentos assim que a criança sai dos muros da escola. Dentro da escola, já está sendo oferecido o alimento que a gente não gostaria que eles comessem. Eles saem da escola e existe uma oferta enorme desses alimentos. Para agravar o problema, os produtos de pior qualidade são muito mais baratos, o que leva as famílias a consumirem esses alimentos. Então, não se pode exigir que a escola resolva o problema da obesidade... A gente pode educar a criança e ela comer um pouco melhor. Em todos os nossos estudos, a gente percebe que isso acontece. A gente é capaz de fazer com que a criança entenda o quanto de açúcar tem no refrigerante. Mas para que isso vire uma ação, é preciso que existam ações paralelas super importantes. Por exemplo, reduzir, ou melhor, eliminar, a propaganda de alimentos ultraprocessados; eliminar a venda de bebidas adoçadas e de alimentos ultraprocessados nas escolas, universidades e demais serviços públicos; não permitir venda casada do tipo que induz a compra de um chocolate para ganhar um brinquedinho. Tudo isso faz com que a sinalização para a criança seja extremamente confusa.

Rosangela Pereira Você considera que os profissionais da saúde estão preparados para lidar com a questão da obesidade infantil? O que poderíamos fazer para prepará-los melhor para enfrentar esse problema?

Rosely Sichieri Com certeza não estão preparados. Os médicos não sabem nutrição. Então, é supercomplicado e difícil. Os pediatras ainda tinham alguma aula sobre isso. Com todas essas fórmulas e essas evoluções da indústria de alimentos e a ampliação da venda de comida pronta, as pessoas deixaram de cozinhar. Então, para aprender sobre alimentação, a primeira coisa que a pessoa precisa saber é cozinhar, precisa saber como comprar o alimento, como escolher os alimentos na hora de comprar. A formação do médico é muito ruim na área nutricional. Eu sou médica e não tive curso nenhum sobre nutrição. Ainda hoje as experiências que tentam introduzir isso nos cursos de medicina são pequenas, que não alcançam a solução dessa questão. Os profissionais de saúde, inclusive os da atenção primária, são ainda poucos para dar conta da questão nutricional.

Fizemos um estudo, um ensaio comunitário, com o objetivo de avaliar a eficácia de ações para reduzir o ganho de peso excessivo em estudantes do 5º e 6º anos do ensino fundamental, combinando ações na escola e nos domicílios. As ações na escola eram realizadas pelas professoras, após treinamento, e as ações nos domicílios eram desenvolvidas por agentes comunitários de saúde, do Programa Saúde da Família. Treinamos agentes de saúde para, nos domicílios, incentivar melhores escolhas alimentares e aumentar a atividade física em adolescentes com sobrepeso e obesidade. Os resultados dessa experiência foram curiosos, principalmente porque cerca de 90% das merendeiras e das agentes de saúde são obesas. As profissionais da atenção primária que a gente treinou, mesmo não falando nada para elas, com o simples passo de pesar e de acompanhar, perderam peso ao fim de 6 meses. Quando elas foram para a prática junto aos adolescentes e suas famílias, elas tinham que atender uma criança que tinha um pouco de excesso de peso, porque esse é o momento melhor para intervir. Depois que a criança ficou muito obesa, é muito difícil de você fazer intervenções que funcionem. A gente teria que intervir naqueles casos mais leves para não permitir que a obesidade se estabelecesse. Mas a profissional de saúde teria que deixar de acompanhar um paciente hipertenso, um diabético, um paciente idoso, para acompanhar essa criança. Então, concluímos que a gente deveria ter uma gama de profissionais, como há em outros países, que se dedicassem exclusivamente a fazer acompanhamento domiciliar, visando à prevenção da obesidade.

Rosangela Pereira Para promover um consumo alimentar adequado, ultimamente, como você até mesmo falou sobre produtos processados, envolve fazer frente a lobbies fortes tanto da indústria quanto do comércio de alimentos, que hoje são dominados por grupos econômicos extremamente poderosos. Como os pesquisadores e profissionais poderiam se preparar melhor e como podem fazer frente a essa situação?

Rosely Sichieri É difícil a gente preparar o profissional para individualmente intervir nisso. A diretora geral da Organização Mundial da Saúde falou que o grande problema das doenças crônicas era a indústria de alimentos2, assim como foi a indústria de cigarro. Continua sendo, mas se a gente conseguiu aprender como resolver e minimizar os efeitos do cigarro, o lobby das indústrias de alimentos é muito forte e esse enfrentamento muito mais complicado. Eles dominam os congressos e dominam inclusive as agências internacionais. Quem dá dinheiro para fazer pesquisa hoje, na verdade, é a iniciativa privada que define a pauta até da OMS. Por exemplo, se o Bill Gates não der dinheiro para isso ou para aquilo, não vai ser pesquisado. Então, ou a gente faz um pacto de todas as instituições internacionais para de fato levar isso a sério, ou isso nunca vai acontecer. Os congressos vão parar e vão votar grandes medidas de prevenção da obesidade? Não vão. A gente pode fazer isso enquanto indivíduo, enquanto aquele que vota, enquanto aquele que se associa, enquanto aquele que pede para as nossas associações, muitos estão fazendo isso. Enquanto pesquisador também, pesquisando as causas. Considero que é importante que os profissionais de saúde sejam informados sobre as questões éticas e políticas que estão envolvidas na relação com a indústria de alimentos, assim como ocorre com a indústria farmacêutica.

Rosangela Pereira São as organizações da sociedade civil que poderiam estar atuando mais fortemente na conscientização e na divulgação dessas informações. Há diversas organizações, como o projeto O joio e o trigo3, a Aliança pela Alimentação Saudável e Adequada4 e a ACT Promoção da Saúde5, que fazem um trabalho importante de desmistificar as informações sobre os alimentos e mobilizar a sociedade em prol de políticas que promovam a alimentação saudável.

Rosely Sichieri Ah, eles fazem um trabalho excelente.

Rosangela Pereira Obrigada, Rosely, pela entrevista e pela reflexão interessante sobre a questão da obesidade no País.

 

 

DATA DE RECEBIMENTO: 04/03/20
DATA DE APROVAÇÃO: 29/05/20

 

 

1 SWINBURN, B. A.; KRAAK V. I.; ALLENDER, S. et al. The Global Syndemic of Obesity, Undernutrition, and Climate Change: The Lancet Commission report: Lancet, v. 393, n. 10173, p. 791-846, 2019.
2 Dra Margaret Chan, Diretora Geral da Organização Mundial da Saúde de 2006 a 2017, na abertura da 8th Global Conference on Health Promotion, Helsinki, Finlândia, 2013. Disponível em: <https://www.who.int/dg/speeches/2013/health_promotion_20130610/en/>. Acesso em: 29 mai. 2020.
3 http://ojoioeotrigo.hospedagemdesites.ws/
4 https://alimentacaosaudavel.org.br
5 https://actbr.org.br/sobre-a-act-promocao-da-saude

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