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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades  no.28 Rio de Janeiro Sep./Dec. 2020

 

TEMAS EM DESTAQUE TEMAS SOBRESALIENTES

 

Maternidade, crianças e cuidado: um olhar a partir de uma política de acesso à água no semiárido brasileiro

 

Motherhood, children and care: a look from a water access policy in the brazilian semiarid

 

Maternidad, niños y cuidado: una mirada desde una política de acceso al agua en el semiárido brasileño

 

 

Marcela Rabello de C. Centelhas

Mestre e doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil, e pesquisadora vinculada ao Núcleo de Antropologia da Política, da mesma instituição. É professora efetiva de Sociologia do Colégio Pedro II, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: marcelarabello91@gmail.com

 

 


RESUMO

Neste artigo, analisamos a execução de uma política de acesso à água em uma comunidade quilombola do agreste de Pernambuco com 0 intuito de pensar como concepções distintas de saúde, corpo e higiene incidem sobre as relações entre as mães e as crianças. Investigamos de que forma 0 discurso estatal elege esses grupos sociais como alvo de suas ações, criando dispositivos de regulação e controle que colocam em primeiro plano práticas de cuidado produtoras de corporalidades e coletividades. Essas práticas, vistas a partir das relações de classe, gênero, raça e geração que as engendram, se desdobram em mecanismos de avaliação pública tanto do comportamento e temperamento das crianças, como do exercício da maternidade.

Palavras-chave: maternidade, crianças, acesso à água, cuidado, corpo.


ABSTRACT

In this article, we analyze the implementation of a policy of access to water in a quilombola community in the agreste of Pernambuco in order to think about how different conceptions of health, body and hygiene affect the modes of relationship between mothers and children. We investigated how the state discourse chooses these social groups as the target of its actions, creating regulation and control devices that place care practices that produce corporealities and collectives in the foreground. These practices, seen from the relations of class, gender, race and generation that engenderthem, unfold in mechanisms of public evaluation both of the behavior and temperament of children, as well as the exercise of motherhood.

Keywords: motherhood, children, access to water, care, body.


RESUMEN

En este artículo analizárnosla implementación de una política de acceso al agua en una comunidad quilombola en el agreste de Pernambuco, con el objetivo de reflexionar sobre cómo diferentes concepciones de salud, cuerpo e higiene afectan las relaciones entre madres e hijos. Investigamos de que modo el discurso estatal elige a estos grupos sociales como el centro de sus acciones, creando dispositivos de regulación y control que ponen en primer plano las prácticas de cuidado productoras de corporalidades y colectivos. Estas prácticas, vistas desde las relaciones de clase, género, raza y generación que las engendran, engendran mecanismos de evaluación pública tanto del comportamiento y temperamento de los niños, como del ejercicio de la maternidad.

Palabras clave: maternidad, niños, acceso al agua, cuidado, cuerpo.


 

 

Políticas de saúde, políticas para a saúde: por uma definição sociocultural do termo

Em um lugar desse imenso Brasil inventado1 pelas imagens de falta d'água, impressiona aqueles e aquelas que visitam a profusão de pequenos reservatórios cilíndricos, reluzentes e cor de cal, espalhados pela zona rural. De 2002 a 2019, foram construídas no semiárido brasileiro mais de 800 mil cisternas, em sua maioria produto da luta social de sindicatos, entidades pastorais, movimentos e organizações sociais da região. Criado em 1999, porém só amplamente concretizado em 2003, o Programa de Mobilização Social Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC) tem como principal objetivo descentralizar o acesso à água em contextos rurais, marcados pela estiagem prolongada, característica do semiárido brasileiro, por meio da construção de reservatórios (as cisternas) que captam e armazenam água das chuvas.

 

 

 

 

Do ponto de vista formal, o PiMC esteve ligado por muitos anos à pasta de Segurança Alimentar e Nutricional do extinto Ministério do Desenvolvimento Social, englobado hoje pelo Ministerio da Cidadania. Suas ações articulavam-se, portanto, a objetivos diversos dentro do grande guarda-chuva de programas sociais de superação da pobreza2 implementados a partir de 2003, que iam desde a melhoria das condições sanitárias e de higiene, à diminuição da mortalidade infantil e à diminuição das doenças veiculadas por águas contaminadas ou de baixa potabilidade, bem como à erradicação da fome e à melhoria na alimentação da população brasileira.

De primeiro, já é possível colocar que, embora esta não seja uma política pública de saúde stricto sensu, no sentido de ser proposta e executada por seus órgãos e atores constitucionalmente competentes (secretarias, ministérios, profissionais da área), ela se conecta à produção da qualidade de vida, uma vez que água é vista como um recurso fundamental não só para suprir as necessidades fisiológicas, mas também para o preparo e produção (em pequena escala) de alimentos. Neste sentido, um primeiro ponto que podemos colocar é qual concepção de saúde temos em vista e como ela impacta nossas interpretações sobre as distintas realidades.

Em uma conceitualização ampla e democrática da noção de saúde, esta pode ser compreendida não somente como a ausência de enfermidades, mas a partir do gozo de condições que propiciem o bem-estar físico, mental e social de todos e todas, o que inclui a garantia do direito à alimentação adequada, à moradia, ao saneamento básico e ao respeito aos modos de vida específicos. Por isso, a idéia de saúde que defendemos aqui vai além da sua dimensão disciplinar rígida, relativa a um tipo de conhecimento científico (concernente às ciências médicas, sanitárias, farmacologia, biologia, entre outras), que pretende deter o monopólio do seu significado. Recorrendo à dimensão sociocultural deste conceito, podemos associá-lo a processos sociais que constroem definições sobre o normal e o patológico e circunscrevem, também, concepções particulares de doença, morbidade, técnicas e procedimentos terapêuticos (Langdon, 2014; Langdon; Wiik, 2010), bem como distinções e oposições entre noções de sujeira e limpeza, purezas e impurezas (Douglas, 2012).

Inscritas nas regras, acordos e instituições criadas e refeitas pela sociedade, as práticas sociais relativas à saúde se fazem também acionando modelos de família, relações de gênero, raça, classe e geração, bem como estabelecendo um conjunto de padrões prescritivos a serem seguidos pelo grupo social em questão. Sendo assim, o campo da saúde incorpora também relações de poder, já que, por meio e através dele, se estipulam dispositivos de controle sobre os corpos que, como demonstraram Foucault (2010) e Elias (1990), passam menos pelo exercício explícito da força e mais pela disciplina, educação, gestão e regulação das práticas.

Partindo dessas reflexões, nosso intuito neste texto é justamente investigar as distintas concepções de saúde e higiene em jogo na execução do referido programa voltado à construção de cisternas, que por sua vez incidem sobre as relações estabelecidas entre as mães e as crianças, colocando em primeiro plano práticas de cuidado produtoras de corporalidades e coletividades. Nossa pesquisa parte de entrevistas com gestores e materiais sobre esse Programa, porém, privilegia a interlocução com uma comunidade quilombola no agreste do estado de Pernambuco, chamada Liberdade. Nela, realizei um trabalho de campo de oito meses, distribuídos ao longo de três anos (2016-2018).

Liberdade é uma comunidade rural na qual vivem em torno de 300 famílias, que se ocupam de atividades diversas: a agricultura em pequena escala; empregos nas fazendas de gado leiteiro; nas usinas de beneficiamento de leite ou nas plantações de milho e tomate da região; além de trabalhos variados (muitos sem vínculos formais) nas cidades próximas, como serventes, mototaxistas e trabalhadoras domésticas. Nomeamos este local como uma comunidade quilombola, pois parte de suas e seus habitantes se entendem como tal e, também, porque ela está pleiteando junto ao Estado esse reconhecimento desde 2015, sendo identificada pela Fundação Palmares em 2018.

Tomar este lugar como centro de nossa análise não se orienta no sentido de reiterar sua singularidade em relação às milhares de outras localidades rurais nas quais este Programa também foi executado. Pelo contrário, acreditamos que a descrição etnográfica, como diz Peirano (2014), ainda que situada, permite a reflexão e a comparação de/sobre problemas de várias ordens e escalas, ao colocar em constante contraste concepções e categorias, sejam da pesquisadora, das suas interlocutores, dos organismos de Estado, seja da literatura acadêmica, propiciando assim a contínua reorientação dos objetivos teóricos/analíticos, bem como das certezas científicas.

 

O Programa de Cisternas, as mães e as crianças na superação da pobreza

A tentativa de universalização do acesso à água e as decorrentes melhorias nas condições de saúde e vida do povo sertanejo aparecem sempre articuladas a um aspecto muito relevante, tanto na literatura (Soares, 2009), como na fala daqueles gestores que entrevistei: a diminuição da sobrecarga de trabalho doméstico para as mulheres. A "sobrecarga de trabalho para as mulheres"3, cujo símbolo é dado pela imagem do carregar água na cabeça, é um conteúdo recorrente em materiais das organizações do semiárido e na mídia que expressa o peso que o trabalho em torno da água representa para as mulheres sertanejas, transformando-o em um problema social, tanto no sentido do esforço físico e do tempo demasiado que ele demandaria, quanto em termos das possíveis doenças advindas do consumo de água de qualidade imprópria.

O trabalho para conseguir água (já que não existe uma rede pública de abastecimento nas zonas rurais e os rios são escassos e alternantes no semiárido) soma-se aos outros trabalhos domésticos, como a limpeza da casa, as atividades da cozinha e, principalmente, o cuidado das crianças. Assim, ao reconhecer e delimitar essa problemática - a falta de água potável -, o Estado cria grupos sobre os quais seus aparelhos devem agir: as mulheres; as crianças e as famílias sertanejas.

 

 

No desenho do Programa de Cisternas, era visível a construção de uma discursividade ambígua sobre as mulheres sertanejas. Se, por um lado, atestava-se seu papel na gestão cotidiana da água - o que implicava, como diz Soares (2009), reconhecer seu protagonismo estratégico no desenvolvimento social da região -, por outro, assumia-se que esse lugar na estrutura reprodutiva do núcleo doméstico inaugurava outro problema social, pois desdobrava-se em um impeditivo para a emancipação das mesmas e para sua participação na esfera pública e na economia produtiva. O tempo e o trabalho necessários no deslocamento, muitas vezes longo, para acessar água, somado aos demais trabalhos da casa, implicavam uma "sobrecarga"4 para essas mulheres, diminuindo as suas possibilidades de participação ativa em espaços associativos, sindicais e políticos, bem como reduzindo sua disponibilidade para atividades geradoras de renda.

Esse diagnóstico da organização social e familiar do semiárido, que ao mesmo tempo reitera e denuncia o papel reservado às mulheres na domesticidade, leva à instituição de dois critérios articulados ao gênero e à geração no acesso às cisternas. O primeiro privilegia as "famílias chefiadas por mulheres"5, talvez tendo em vista a existência no Nordeste, segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD) de 2015, de um total de 40% de lares nos quais as mulheres são as figuras de referência6. Já o segundo refere-se à existência de maior número de filhos de o a 6 anos e de crianças e adolescentes frequentando a escola. Sendo assim, é possível perceber que a política social não só reconhece uma realidade concreta, de que a maior parte das famílias sertanejas tem filhos pequenos, como a reitera.

Nessa configuração familiar do programa, composta por marido, esposa e filhos, que aciona o que Fonseca (2002) chama de modelo conjugal, as crianças ganham certo destaque, uma vez que é o número delas que, em tese, enfatiza a necessidade de acesso à política. Em Pires e Jardim (2014), encontramos uma discussão com aportes similares sobre o Programa Bolsa Família, a partir da constatação de que ele reforça e recompensa o esforço infantil de frequentar a escola e que esse mesmo esforço é compreendido como sendo a condicionalidade que garante à família o recebimento dessa renda do governo.

Contudo, apesar de ambas as políticas estipularem condicionalidades aos seus e suas participantes, a forma como as crianças entram em seu desenho é muito distinta. No Programa de Cisternas, a água que ele possibilita não é mais ou menos destinada a elas e o critério do número de filhos e da frequência na escola não é entendido localmente como sendo o responsável pelo recebimento da cisterna, já que a contrapartida principal das famílias é a frequência dos adultos em cursos de capacitação sobre o uso e manejo da água.

Ao incidir sobre os modos de uso da água no cotidiano da vida doméstica, a política parece realizar um dever do Estado de prover saúde e bem-estar a todos os seus cidadãos através da gestão de práticas de cuidado relativas às casas, das quais as mulheres são tidas como as principais responsáveis. E ainda, tendo como critério de acesso a existência de filhos, ela coloca a maternidade como um valor que baliza o merecimento de um bem socialmente escasso e disputado como a cisterna.

Diversos são os trabalhos que têm enfocado essa temática de como uma certa agenda contra a pobreza, gestada a partir de 1990, tem mobilizado o lugar das mães como coadjuvantes no desenvolvimento social, em especial pelo seu papel nos cuidados e na reprodução física e social da família. Segundo Molyneux (2006), essas políticas apresentam ambiguidades, conjugando preocupações e objetivos que passam por um paradigma da civilização e modernização dos pobres, característico de um período das políticas sociais do início do século XX, ao mesmo tempo que apresentam uma nova roupagem neoliberal, enfatizando a necessidade de superar uma dependência em relação ao Estado por meio da formação de sujeitos com capacidades autônomas e valores cidadãos. A partir das idéias de corresponsabilidade, empoderamento e participação, molda-se um conjunto de ações estatais que tem como centro a superação da pobreza e da fome, como o Programa Oportunidades no México, do qual fala a autora e, aqui no Brasil, o Bolsa Família, o Fome Zero e o Programa de Cisternas.

O acionamento da maternidade como um critério do Programa e, em contrapartida, como condição para que seus objetivos sejam cumpridos, tem efeitos que caminham em sentidos opostos. Há quem insista, a exemplo da própria Molyneux (2006) e também de Quijano (2009), que isso tem reforçado certos papéis tradicionais de gênero e certos valores associados ao feminino, como a virtude, o altruísmo e o sacrifício pessoal. As mães, nessas políticas de combate à pobreza, figuram como as protagonistas para o sucesso dos programas, ao passo que a distribuição do trabalho em relação ao cuidado não é desafiada e os homens não são conclamados a tomar parte nessas atividades, o que se desdobra em um novo mecanismo de responsabilização dessas mulheres, agora, com o peso da gestão e do controle do Estado. Por outro lado, pesquisas que tomam como base outros indicadores - como por exemplo o aumento do número de divórcios e de denúncias de violência contra as mulheres entre participantes do Programa Bolsa Família (Rego; Pinzani, 2014) - mostram que o acesso a essa renda monetária fixa, ou a outros bens e direitos sociais, tem um importante papel na geração de mais autonomia para as mulheres.

Contudo, nesses diagnósticos e no impasse em catalogar avanços e retrocessos rumo a uma maior igualdade de gênero, muitas vezes deixa-se de lado um eixo fundamental dessa reflexão, que é o papel e o lugar das crianças e jovens. Figurando normalmente como filhos e filhas, ou seja, numa relação que marca a sua descendência e dependência em relação aos adultos, as crianças normalmente são entendidas e vistas como alvos do cuidado e não como promotoras do mesmo. Ao retornar ao material de campo que dá origem a este artigo, que é parte da minha pesquisa e tese de doutorado em Antropologia Social (Centelhas, 2019), reparei como havia convivido intensamente com as crianças e adolescentes, mesmo a infância e a juventude não sendo meus objetos de pesquisa principais na época. Além disso, por ser mulher, era mais fácil e aceito conversar e estar junto das mulheres, o que me fazia, também, tomar parte das atividades cotidianas de cuidados com as crianças.

Falar de políticas de saúde invariavelmente nos leva à temática do cuidado, entendendo este em sua acepção ampla, que inclui desde práticas e afetividades que garantem a manutenção da vida ao longo das suas diversas etapas, até processos terapêuticos regulados por dispositivos de Estado e parâmetros científicos. O termo cuidado é, portanto, extremamente polissêmico e politizado, uma vez que também está no horizonte de problematizações públicas, como a responsabilização desigual de homens e mulheres pelas tarefas relativas ao mesmo (Fernandes, 2018) e os debates sobre o papel do Estado e das políticas públicas na incidência dos cuidados em torno de grupos sociais como as crianças, idosos e deficientes (Von der Weid, 2018).

Tratando-se de políticas relativas à água e ao seu manejo, a temática do cuidado associa-se a um outro campo específico, que é aquele da higiene. Um breve sobrevoo sobre a historiografia brasileira das práticas sanitárias e daquilo que ficou conhecido como Higienismo nos mostra como a gestão das águas, das suas fontes e a pedagogia em torno do seu uso eram aspectos fundamentais nessa ciência que visava desenvolver corpos saudáveis e aptos ao trabalho no florescer do século XX. Seja por meio da canalização dos rios paulistas (que destituía a população do acesso direto a eles) (Paterniani, 2019), seja por meio da infraestrutura em torno da canalização das águas urbanas (Davis, 2018), o debate acadêmico tem mostrado a centralidade do controle sobre a água nos processos de formação do Estado.

Em um artigo publicado nesta revista, a Equipe Niñez Plural (2019, p. 49) faz um interessante panorama das abordagens teórico-metodológicas sobre infância e cuidado na literatura, reforçando a necessidade de que este tema seja pensado a partir de diversos atravessamentos que o compõem, "[...] percebendo tanto sua sobreposição com os processos socioeconómicos da construção da desigualdade social, como o papel do Estado nas sociedades capitalistas e a enorme diversidade cultural que a atravessa." Nessa chave, que articula esses processos de Estado com a observação da diversidade cultural, pretendemos explorar mais diretamente, na próxima seção, as distintas concepções de saúde e corpo em tensão na execução dessa política de acesso à água, e como elas mobilizam formas de relação entre as mães e as crianças, baseadas em práticas de cuidado.

 

Entre cuidados e perigos: higiene e maternidade em dinâmicas racializadas

Como abordamos acima, há um movimento passível de ser constatado, no qual afigura materna, em termos do seu papel na reprodução física e social dos corpos e coletividades, torna-se lócus das políticas de superação da pobreza. No caso do Programa de Cisternas, o acionamento do lugar das mães implica que, no desenrolar da sua implementação, as mulheres sejam as principais envolvidas nas etapas pedagógicas, isto é, nos chamados cursos de capacitação.

A maior participação de mulheres nesses cursos não se dá apenas por elas serem privilegiadas na intervenção estatal, mas também pelo fato de os homens trabalharem mais com atividades fora de casa do que as mulheres, o que diminui a possibilidade de participarem nessas atividades, que geralmente duram o dia todo. Porém, acredito que por esses cursos versarem sobre o uso e a gestão da água no cotidiano, atribuição essa que recai mais fortemente sobre as mulheres, elas são mais impelidas a neles participar, ao invés dos homens.

Os cursos são etapas necessárias e obrigatórias ao recebimento da cisterna e, como me disseram os gestores, são "uma escola", isto é, cumprem uma certa função de "formação e mobilização" característica desse modelo de gestão de políticas públicas de superação da pobreza, marcado pela participação. Durando em média dois dias, essas atividades abordam assuntos diversos e variam muito de acordo com o lugar onde ocorrem e a entidade que as oferecem. Contudo, possuem um núcleo mais duro e fixo, que trata do "gerenciamento dos recursos hídricos" ou "GRH", na palavra dos técnicos.

O "GRH", nome dado ao curso, é requisito para obtenção da cisterna de 16 mil litros, que é voltada apenas para o consumo doméstico do núcleo familiar, ao menos em princípio. A justificativa dos especialistas nessa área para tal é que 16 mil litros é a quantidade de água necessária para uma família de sete pessoas beber e cozinhar pelos oito meses que, em média, correspondem à estiagem no semiárido brasileiro. Sendo assim, é recomendado expressamente no "GRH" que a água da cisterna seja utilizada apenas para os fins prescritos: "beber, cozinhar e, no máximo, escovar os dentes", disse Anderson, "facilitador" de um dos cursos que acompanhei e que descreveremos aqui.

Ao calcular os 16 mil litros como suficientes, pressupunha-se que as famílias teriam no máximo sete integrantes, compostos por um casal heterossexual e cinco filhos, e que a água seria utilizada somente por um núcleo familiar, algo que em Liberdade não acontece na prática.

Quando mencionou esse número-base para o tamanho das famílias nucleadas, Anderson provocou uma discussão entre as presentes. Ele perguntou ao público quantos filhos em média as mulheres tinham em Liberdade. Ao responderem, uma senhora disse que isso podia variar muito e o fez acenando na direção de Esmeraldina7, única mulher assumidamente quilombola no curso, acrescentando: "tem gente que tem pra mais de dez filhos, lá [referindo-se aos quilombolas] tem gente com muito filho". Esmeraldina, um tanto constrangida, respondeu a seguir que "sim, no pé daquela serra (fazendo referência ao lugar geográfico compreendido como o quilombo), tem bem mulher com mais de dezesseis filhos". Sem citar nominalmente, ela fala da esposa de um sobrinho seu, conhecida na comunidade por ter muitos filhos e que acabara de dar à luz naquele mês.

Essa situação aparentemente corriqueira, contudo, guarda sentidos muito densos sobre as dinâmicas morais envolvidas na maternidade e na relação com as crianças. Conversas sobre filhos, momento, número ideal e desejo ou não de tê-los eram constantes na interação com minhas interlocutoras. Por um lado, havia uma pressão para tê-los, algo muito comum em localidades para além de Liberdade, que se repercutia até mesmo sobre alguém de fora como eu, ao se espantarem pelo fato de não ser mãe, quando, para as pessoas de lá, já deveria sê-lo. "Quem tem um, não tem nenhum e quem tem dois, tem um" era um ditado que ouvi diversas vezes em tom bem-humorado entre as mulheres. Assim como entre os homens, esse assunto rendia piadas entre elas, ainda que o ditado contenha um ar de cobrança em relação àquelas que optam por ter apenas um ou dois filhos.

O assunto dos filhos não era algo somente relativo ao universo das mulheres. Dentro dos limites do meu contato socialmente permitido com homens da comunidade, presenciei algumas ocasiões em que estes falavam de filhos e da paternidade. A maioria delas foram brincadeiras sobre uma possível infidelidade de suas companheiras ou de terem filhos não reconhecidos por eles. Uma situação específica me chamou a atenção.

Quando estava com uma técnica que executava as cisternas na comunidade, ela perguntou a um dos pedreiros, o mais velho, se ele tinha "menino". Ele disse que sua mulher tinha 12 "registrados", fora os que estavam "pelo mundo", o que arrancou risos dos demais presentes. Essa situação ilustra as dinâmicas desiguais que regem o exercício da maternidade e da paternidade, nas quais homens podem não saber quantos filhos têm, enquanto as mulheres são alvo constante do controle comunitário e estatal sobre seus corpos e desejos.

De todo modo, havia um cálculo moral em torno da quantidade de descendentes e da circunstância a partir das quais a maternidade deveria ser exercida. Fora do casamento, por exemplo, era algo vergonhoso, bem como ter menos de dois filhos ou filhos em excesso, como a sobrinha de Esmeraldina, não era bem visto. Essas prescrições, contudo, variavam muito em termos geracionais. Se nos anos 1980, ter dezesseis descendentes poderla ser visto como algo normal, ou ao menos socialmente aceito como tal na localidade, para minhas interlocutores com idade entre 20 a 30 anos, isso seria impensável e elas comentavam o desejo de ter entre 2 ou 3 filhos. Para suas mães e avós, estas com mais de 50 ou 60 anos, a maioria delas mães de mais de 5 filhos, a quantidade desejada pelas jovens é considerada insuficiente.

Eulália (Lila), a irmã mais nova de 16 irmãos, e hoje com 46 anos, era quem mais gostava de comentar esse assunto, talvez por passar frequentemente por situações nas quais é cobrada e perguntada sobre se teria mais filhos ou não (ela possui 3). Por ser a filha mais nova, estava muito mais próxima em termos geracionais de suas sobrinhas mais velhas do que de sua irmã Berenice, 20 anos mais velha que ela. Em uma de nossas conversas, ela conta um pouco das razões de não ter mais "menino":

Eulália: Custódia daí em cima, que é a mulher do meu sobrinho. Todo ano um filho [...]. Salário maternidade é bom [...], é bom, mas não dá pro menino crescer e rapar a barba comendo aquele salário. A pessoa tem que pensar isso aí [...], por isso que a pessoa tem que parar. Porque se não parar, for tendo só filho, só filho, só filho, depois fica a tulhona de filho [...] que a pessoa não tem o dinheiro pra comprar um calçado [...]. Que nem uma Lia da venda, do mercadinho, disse assim: 'Oxente, Eulália, tu não vai ter mais menino, não?'; Eu digo: 'Não, eu não vou querer mais não'; 'Por quê? Os outros tudo têm mais do que tu e tu não tem'; eu digo: 'Não, eu não vou querer não. Sabe por quê? Porque é pouca terra pra muito herdeiro' [...]. É mesmo, não é? Porque, oh, uma terrinha desse tamanho aqui, se tiver um rebanho de filho, vai ficar brigando [...]. A pessoa tem que pensar nisso aí.

Falávamos sobre as políticas sociais vindas nos últimos anos para a comunidade e Lila mencionou o salário maternidade, quantia paga àquelas que se ausentam do trabalho pelo nascimento do filho ou adoção. Ao falar da importância desse salário, ela menciona mais uma vez a mulher do seu sobrinho, a quem Esmeraldina (irmã de Lila) já se referira sem citar e que é sempre um ponto de comparação negativo, a partir do qual as mulheres avaliam o exercício da maternidade. Em outros momentos, para além dessa entrevista gravada, ela comentou as pressões que sofreu para "ter mais menino", algo que ela não desejava, levando em conta que suas atribuições significavam não só pensar nos recursos materiais para o desenvolvimento deles (terra, dinheiro, comida), mas também dar conta das suas preocupações, desejos e anseios.

A fala de Lila, por sua vez, articula-se ao que se passou no curso, da senhora apontar para Esmeraldina ao designar onde "tem gente com muito filho". Além das dinâmicas acusatorias relativas à comunidade, Lila estava ciente e refletia sobre o imaginário social que recaía sobre ela, mulher negra, sertaneja e pobre que, em um senso comum preconceituoso e racista, aparece como quem tem mais filho do que pode criar, ou que os tem para receber o Bolsa Família e demais esmolas, como esse discurso se refere às políticas e direitos sociais de combate à pobreza.

Essas acusações, contudo, mostram que as justificativas e moralidades em torno da maternidade e do número de descendentes não incidem do mesmo modo para todas as mulheres, ainda que residentes de uma mesma comunidade rural. Ao apontar para Esmeraldina, a única pessoa assumidamente "quilombola" presente no curso, aquela senhora sinalizava para um grupo social sobre o qual recai mais fortemente a acusação de ter filhos demais. Como trabalhos acerca das hierarquias reprodutivas têm demonstrado (Mattar; Diniz, 2012), há uma produção de legitimidades desiguais acerca da maternidade que colocam em questão marcadores sociais da diferença, tais como raça, classe, idade e parceria sexual.

A expectativa de que as mulheres gerem descendentes não é uma realidade para todas, ainda mais tendo em vista que algumas delas são consideradas incapazes para isso, tal como as práticas de Estado relativas à esterilização compulsória de mulheres negras e periféricas sinalizam8. Além disso, como notou Fernandes (2017), podemos dizer que a maternidade vista em seu lado ruim aponta para fronteiras e jogos de produção de sexualidades femininas erradas que aparecem, no discurso popular e estatal, como fonte de diversos problemas sociais, como a violência policial, o tráfico de drogas e a pobreza.

Em Liberdade, o número de filhos se articulava a um outro dispositivo moral sobre as mães: a avaliação constante sobre a higiene e o cuidado com as crianças. Higiene aqui está sendo tomada como um termo amplo, referindo-se a um cuidado sobre si e os seus - as práticas de asseio do corpo, sua limpeza, o estado e conservação das roupas, etc. - e também à dimensão pública que esses hábitos implicam, isto é, uma forma de construir-se na relação com os outros. Na situação a que nos referimos acima, a sobrinha de Esmeraldina, aquela que tem "menino demais", é conhecida também por seus filhos nem sempre estarem dentro dos padrões de asseio e as mulheres, frequentemente, ao não permitirem que seus filhos saiam de casa sujos, diziam que não queriam que eles se parecessem com os dela.

A água, na sua interação com os corpos, conectava-se, portanto, ao exercício prescrito do cuidado e da maternidade, pois a higiene das crianças era constantemente um referente a partir do qual se julgava uma boa mãe. Vestir-se com dignidade, com roupas em bom estado de conservação e principalmente limpas era algo muito valorizado no universo em questão. Apresentar um corpo asseado constitui uma forma de colocar-se publicamente, de ser visto aos olhos dos outros. As crianças, a depender da idade, já eram responsabilizadas por esses atos, contudo, as menores, como não se limpavam e nem se banhavam sozinhas, ficavam a cargo de suas mães e também de suas avós. Certa vez, estava indo à venda na companhia de duas adolescentes e da filha pequena de Joana, filha de Esmeraldina e minha anfitriã na comunidade. Estávamos quase saindo do terreno, mas Joana fez questão de que voltássemos para que sua filha mudasse de roupa e penteasse o seu cabelo: "Se a menina sai assim, vão até pensar que não tem mãe", ela disse.

Esses cuidados, perigos, cobranças e prescrições em torno das mães e das crianças não podem ser compreendidos sem levarmos em conta, também, as dinâmicas racializadas pelas quais eles se davam. Como mencionado acima, as mulheres negras dessa comunidade eram sobre quem mais incidia a acusação de ter filhos demais. Ao colocar em eco essa censura com a problemática da violência contra jovens negros periféricos, vemos como não se trata de um problema localizado, mas de um componente estrutural de responsabilização dessas mulheres pela sua pobreza e pela violência decorrente (a exemplo de proposições nefastas de políticos defendendo a esterilização como pré-requisito para acessar o Bolsa Família9).

Mais uma vez, a apreciação sobre as crianças aciona esse lado ruim da maternidade do qual fala Fernandes (2017) e que se conecta com a produção diferencial de possibilidades do exercício do bom cuidado que leva à boa educação. As mães que têm "uma tulha de filhos ou são desleixadas", mães essas cujos corpos se definem na intersecção entre classe, raça e geração, são aquelas que mais frequentemente são acusadas de não saber lidar e cujos filhos são censurados por brigar demais, como me disse Ângela, sobrinha de Esmeraldina e também quilombola, ao contar quando sua filha fora chamada de "imundiça" por uma colega de escola:

Ângela: Porque quando acontece uma bateçãozinha de boca, o nome que nós leva, nós leva o nome de imundiça. Imundiça que eu sei é um gato, um cachorro que vive brigando, são os animais, é um galo de raça e aqui ninguém é galo de raça. Imundiça é cachorro.

A fala de Ângela expõe como os xingamentos e insultos de que são alvo acionam um léxico que conecta raça, sujeira e animalização. Como ela mesma diz, "imundiça", que remete a algo sujo, imundo, é um desígnio para animais, galos, cachorros e não para seres humanos. A animalização como um dispositivo de dominação é tema abordado por Fanon (1968), que mostra como esse mecanismo opera pela destituição da humanidade do outro (o negro, o indígena, o colonizado), no sentido de subjulgá-lo e aniquilar suas possibilidades de resistência.

Para as crianças, as dinâmicas que conectavam racialização e inferiorização eram também muito presentes. Em um dia, estava com Beatriz, filha de uma vizinha de Esmeraldina, e tentava ajudá-la com sua tarefa de casa. Beatriz perguntou algumas coisas pessoais, se eu era casada ou tinha filhos. Depois de sanar suas curiosidades, me chamou a atenção o fato de ela, sem me conhecer muito, dizer que, quando era criança, sua pele era branca como a minha e que fora o descuido de sua mãe, ao deixá-la muito tempo no sol, que a fizera ter a pele negra. O duro relato de Beatriz, para além de explicitar o racismo presente na socialização de crianças ainda tão novas, nos revela a responsabilidade que ela julga ter sua mãe na mudança de sua cor e, levando em conta que ela era fruto da relação com um homem casado, coloca em relevo mais uma vez as continuidades existentes entre a responsabilização das mães e sua conjugalidade, classe e raça.

Ainda, é importante registrar como havia uma ligação forte entre sujeira e brutalidade dos comportamentos, como a fala de Ângela explicita. Em diversos momentos, até mesmo entre pessoas da mesma família, havia uma conexão entre crianças que não estavam dentro dos padrões de asseio e aquelas que eram normalmente censuradas por serem arteiras, provocadoras ou, nas palavras de lá, "perigosas" ou "viradas". Parece curioso, nesse caso, como a palavra perigo aparece conectada à infância, o que contrasta com algumas das suas simbologias mais comuns, como inocência e pureza. Nas situações em que os meninos e meninas eram chamados de "perigosos(as)", eles estavam justamente desafiando as ordens dos adultos e esse termo parecia atribuir uma intencionalidade à sua desobediência. Já uma criança virada tem origem em uma expressão popular maior, que é virado num mói de coentro que, dependendo do uso, pode designar alguém esperto ou que está progredindo na vida, mas no caso das crianças, designa alguém muito agitado.

A forma como as crianças se apresentavam publicamente, seja por meio das suas roupas, cabelos, asseio, seja pela forma como se comportavam, influenciava na apreciação coletiva, comunitária ou societária sobre determinadas mulheres. Do mesmo modo, as relações e situações familiares em que as diferentes crianças estavam inseridas eram referentes que supostamente as tornavam mais ou menos briguentas, arruaceiras, mal-comportadas. Como no caso de Beatriz que, pela situação conjugal de sua mãe, era alvo de desconfianças por parte de certas pessoas, que a julgavam ser criada de modo muito "largado", isto é, sem a supervisão constante de um adulto. Nesse sentido, podemos intuir que o trabalho materno realizado nos corpos, isto é, na sua higiene e limpeza, combinava-se e articulava-se a um outro, aquele relativo à formação e à educação. Uma criança limpa e bem-educada constituía assim um referente que conectava aspectos éticos e morais, valores e condutas, a dimensões corporificadas, como a limpeza e a higiene.

 

O "olhado" e o corpo da criança: explorando conexões entre doença e criação

Adequar as formas de uso da água daquelas mães aos parâmetros médico-sanitários de potabilidade exigia, ao longo dos cursos, adverti-las sobre as doenças veiculadas por águas contaminadas. Na linguagem técnica ao longo daquele momento, os "micróbios, bactérias e germes" eram uma ameaça constante e tidos como os responsáveis pelo adoecimento dos corpos, sendo ainda mais perigosos justamente por serem invisíveis aos olhos. Era, portanto, função formadora e pedagógica daquele espaço provar a existência desses agentes patógenos para as presentes, ainda mais pelo fato de a contaminação por eles causada ser ainda mais nociva às crianças.

Ainda que minhas interlocutores considerassem que as doenças podiam ser, sim, causadas por esses microrganismos, havia outros elementos em jogo que levavam ao mal-estar dos corpos como, por exemplo, o "olhado". A questão do "olhado" e sua relação com as dinâmicas de morbidade é um assunto muito presente nas conversas e no dia-a-dia das casas. Aos primeiros sinais de doença, principalmente nas crianças pequenas, as mães procuravam alguém que pudesse benzê-las, algo que geralmente é feito por mulheres mais velhas. "Botar olhado" muitas vezes tem origem no despeito, na inveja, no ciúme e demais sentimentos negativos, o que faz com que não haja, necessariamente, uma intencionalidade de prejudicar aquela a quem se olha, podendo o "olhado" vir de alguém muito próximo e querido. Um dia, ao levar o filho pequeno para benzer, Luiza, filha de Esmeraldina explicou que o "olhado" nesse caso se dava pelo fato de o menino estar sendo muito paparicado pela família e a "rezadeira" lhe disse que o "olhado", muitas vezes, encontra-se dentro da própria casa.

Esse fato nos parece digno de nota porque, justamente, permite articular as dinâmicas da morbidade a aspectos que não necessariamente se enquadram nas explicações patológicas da ciência médica e da biologia. O que estava em jogo era uma conexão muito significativa, a meu ver, entre doença e formas de criação, uma vez que o adoecimento do filho de Luiza tinha relação com a forma como que ele era educado em casa pela família. O conselho de Maria, a "rezadeira", mais uma vez, nos informa sobre os modos mais ou menos aconselháveis de lidar com as crianças e sobre as avaliações em torno dos bons cuidados, conectando a saúde do corpo à conduta familiar.

Tomar o "olhado" como um aspecto fundamental das causas de adoecimento, de forma alguma quer dizer que essas mulheres não concebem as bactérias, vírus e micro-organismos como vetores de doenças e malefícios para as pessoas. Contudo, essas duas explicações podem se compor e não necessariamente se anular, pois superam o princípio cartesiano de que as causas para os fenômenos do mundo são únicas e excludentes.

Assim como nas reflexões do povo zande (povo que vive na região hoje compreendida pelo Congo, Sudão e República Centro-Africana) sobre a incidência da bruxaria e como ela se relaciona a eventos da vida cotidiana (Evans-Pritchard, 2005), há coexistências de causas que explicam o fato de uma pessoa, por exemplo, furar o pé na estrada com uma pedra pontiaguda. É claro que, para eles, o pé ser furado diz respeito à sua interação com a pedra, todavia, há que se explicar por que a pedra e a pessoa estavam no mesmo lugar e por que o acaso fez a pessoa pisar justamente no lugar onde havia a pedra. Esse acaso, ou seja, uma ordem de coincidências espaço-temporais, pode ser atribuído à influência da bruxaria, um conjunto rico e complexo de conhecimentos desse povo, que serve para explicaros infortúnios e mal agouros. Parafraseando para nosso contexto aqui, os vírus e microrganismos podem até justificar uma parte do adoecimento, contudo, nem todos adoecem da mesma forma e ao mesmo tempo e, por isso, alguém que constantemente está enfermo, ou que não consegue se curar, pode estar sob influência do "olhado" de alguém.

Tal reflexão coloca para nós uma concepção de corpo que, justamente como propusemos no início do texto, articula ambiente, cultura e natureza, aspectos geralmente desconexos em uma acepção disciplinar de saúde. Em Liberdade, o corpo é concebido a partir das suas composições múltiplas, que não se limitam às separações entre natureza e cultura, corpo e mente, e essa concepção nos provoca rumo a um aporte mais complexo das diversas influências que constituem nossa relação com o mundo e, portanto, nossa saúde.

 

Considerações finais

Este texto constitui um esforço em articularas temáticas da saúde e do cuidado, pensando como suas distintas concepções e práticas perpassam e constituem relações entre mães e crianças. Partindo de uma definição sociocultural de saúde, vimos como uma política de acesso à água conecta processos de constituição do Estado em relações de gênero e geração, classe e raça.

Observamos como essa política de superação e gestão da pobreza, ao regular as formas de manejo dessa substância tão essencial à vida física e social das coletividades, inaugura um conjunto de mecanismos que elegem as mães e as crianças como alvos de suas ações. Isso pode levar tanto a uma reafirmação do papel das mulheres no cuidado das crianças, como a uma responsabilização das mesmas e de seus filhos no sucesso dessas políticas.

O número de filhos, a situação familiar e conjugal das mães, sua condição socioeconómica e a sua racialização são fatores que agem na apreciação do cuidado que elas dedicam (ou não) aos seus descendentes, bem como na forma como as crianças se comportam e se apresentam publicamente. O corpo das crianças e suas ações perante os outros na comunidade transformam-se, portanto, em um importante referente a partir dos quais essas mães são analisadas no exercício da maternidade. O trabalho de se ocupar com o asseio dos corpos e das roupas, uma atribuição socialmente tida como feminina por excelência e muitas vezes menosprezada pelo seu caráter privado, revelava-se, então, como um fazer extremamente público, uma vez que preparava os corpos para a apresentação perante os outros. As diversas tarefas domésticas que moldam os corpos para serem vistos aos olhos dos outros constituem, portanto, aspectos fundamentais nos processos de diferenciação e coletivização dentro e fora da comunidade e, por isso, são também um trabalho público e político.

Nesse fazer sobre e desde os corpos, e nesse jogo entre dinâmicas públicas e privadas, as formas de criação adquirem um lugar central, que conecta corpo e conduta e mescla elementos que a ciência natural ou a ciência médica tendem a separar. A partir da prática do "olhado", vemos como o cuidado para que as crianças não adoeçam articula formas de lidar com o corpo e formas de educar, de modo que um corpo doente é explicado não só por agentes patógenos, mas também por modos inadequados ou não recomendados de agir com e perante as crianças.

 

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Data de recebimento/fecha de aceptación: 29/04/2020
Data de aprovação/fecha de aprobación: 30/09/2020

 

 

1 A ideia de invenção aqui diz respeito aos mecanismos discursivos a partir dos quais se produzem imagens, sentidos e símbolos sobre um lugar e seu povo, gerando alteridades e efeitos de exotização. Nos inspiramos aqui em Said (1996), bem como em AlbuquerqueJúnior (2009), que fala específicamente do Nordeste.
2 As definições de pobreza são distintas e recorrem por vezes a fatores econômicos, como renda per capta, por vezes a aspectos ligados à cidadania, como acesso a serviços e direitos. A depender do seu enquadramento, são propostas formas diferentes de solucioná-la, seja por meio de programas de transferência de renda, seja por políticas que promovam o acesso a serviços públicos básicos. Contudo, a categoria pobreza deve ser olhada com cautela, uma vez que sua naturalização homogeniza um conjunto de pessoas e situações por vezes muito díspares. Para trabalhos que refletem criticamente em torno dessa problemática, ver Marins (2018) e Sprandel (2004).
3 Inserimos essa expressão entre aspas duplas uma vez que ela constitui um termo do nosso universo de interlocução. Faremos isso com as demais frases de até três linhas e termos que se refiram às falas daqueles e principalmente daquelas com quem conversei e quefizeram parte desta pesquisa.
4 A ideia de "sobrecarga" refere-se muito mais à linguagem estatal ou à teoria e militância feministas do que às categorias das minhas interlocutores. Coloco em questão se a tarefa de buscar água, ainda que seja extremamente extenuante, é localmente traduzida nessa chave de esforço excessivo ou indevido.
5 Fonte: http://mds.gov.br/assuntos/seguranca-alimentar/acesso-a-agua-1/programa-cisternas (Acesso em 15 set. 2017).
6 Para uma discussão da ideia de "lares chefiados por mulheres" e uma leitura crítica da feminilização da pobreza, ver Macedo (2008).
7 Esmeraldina é o nome fictício da principal interlocutora desta pesquisa. Ela é uma figura muito importante e bem quista na comunidade, sendo também a presidenta da Associação Quilombola de Liberdade. Além de participar ativamente do meu trabalho de campo, me apresentando às pessoas e me acompanhando em entrevistas, ela me recebeu em sua família com muito afeto e carinho.
8 O caso das adolescentes em situação de rua em Porto Alegre que tiveram métodos contraceptivos administrados sem consentimento aparece como mais um dos eventos no qual o controle e a interferência do Estado sobre os corpos femininos atinge sua manifestação mais nefasta Ver: https://gi.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2018/07/26/iniciativa-do-mp-do-rs-para-implantar-contraceptivo-em-adolescentes-de-abrigos-e-alvo-de-criticas-em-porto-alegre.ghtml (Acesso em 02 ago. 2019). A isso, soma-se o terrível caso, no interior de São Paulo, de uma mulher esterilizada compulsoriamente por determinação da Justiça: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/12/politica/1528827824_974196.html (Acesso em 02 ago. 2019).
9 Ver: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/06/bolsonaro-defendeu-esterilizacao-de-pobres-para-combater-miseria-e-crime.shtml (Acesso em 05 set. 2020).

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