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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades  no.29 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2021

 

TEMAS EM DESTAQUE TEMAS SOBRESALIENTES

 

"Sem um pingo de cor": experiências de crianças e adolescentes com a Doença Falciforme na Paraíba

 

"Without a drop of color": experiences of children and adolescents with sickle cell disease in Paraíba (Brazil)

 

"Sin una gota de color": vivencias de niños y adolescentes con anemia falciforme en Paraíba (Brasil)

 

 

Bruna Tavares PimentelI; Ednalva Maciel NevesII; Flávia Ferreira PiresIII

IBacharel e Licenciada em Ciências Sociais, mestra pelo programa de pós-graduação em Sociologia (PPGS) e pós-graduanda em Gênero e Diversidade na Escola, todos pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil. E-mail: bruna.t.pimentel@hotmail.com
IIDoutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/ICH/UFRGS, Brasil, Professora dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, Brasil. Pesquisadora do Grupessc/UFPB e do Mandacaru/UFAL, Brasil, integrante da Rede Antropologia e Saúde. E-mail: ednmneves@gmail.com
IIIGraduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. Mestre, Doutora e Pós-doutora pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Pós-doutora pela Universidade de Sheffield, Inglaterra, e UFMG; Pesquisadora do CNPq, Líder do CRIAS, Professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil. E-mail: ffp23279@gmail.com

 

 


RESUMO

Esse artigo traz uma reflexão a partir das perspectivas de crianças e adolescentes que vivem com a Doença Falciforme ou anemia falciforme, como é conhecida, sendo problematizada através da experiência e limites da vida com a doença. Trata-se de uma doença genética que acomete a população negra, o que traz consequências para o diagnóstico e tratamento. O estudo foi realizado com pais, responsáveis, crianças e adolescentes em cidades do interior e na capital paraibana, Brasil. O diálogo com os interlocutores se deu através da produção de desenhos e de entrevistas semiestruturadas. Essa abordagem permitiu concluir que os entendimentos e as experiências da doença associam-na a uma alteração no sangue, marcada por crises de dor como expressão unívoca da enfermidade. O desconhecimento dos profissionais de saúde da doença, assim como do ambiente escolar, reforçam a lógica do racismo institucional, resultando em bullying, preconceito de classe e raça.

Palavras-chave: anemia falciforme, experiência da doença, criança, racismo.


ABSTRACT

This article reflects on the perspectives of children and adolescents living with sickle cell disease or sickle cell anemia as it is known; problematized through the experience and the limits of life with the disease. It is a genetic disease that affects the black population, which has consequences for diagnosis and treatment. The study was carried out with parents, guardians, children and adolescents in cities and in the capital of Paraíba, Brazil. The dialogue with the interlocutors took place through the production of drawings and semi-structured interviews. This approach allowed us to conclude that the understandings and experiences of the disease associate it with a change in the blood, marked by crises of pain as a unique expression of the disease. The ignorance of health professionals about the disease, as well as in the school environment, reinforces the logic of institutional racism, resulting in bullying, prejudice of class and race.

Keywords: sickle cell anemia, disease experience, child, racism.


RESUMEN

Este artículo reflexiona sobre las perspectivas de los niños y adolescentes que viven con la enfermedad de células falciformes o anemia de células falciformes como se la conoce; problematizado a través de la experiencia y los límites de la vida con la enfermedad. Es una enfermedad genética que afecta a la población negra, lo que tiene consecuencias para el diagnóstico y tratamiento. El estudio se realizó con padres, tutores, niños y adolescentes en ciudades del interior y en la capital de Paraíba, Brasil. Se realizó el diálogo con los interlocutores mediante la producción de dibujos y entrevistas semiestructuradas. Este enfoque nos permitió concluir que los entendimientos y experiencias de la enfermedad la asocian con un cambio en la sangre, marcado por crisis de dolor como expresión única de la enfermedad. El desconocimiento de los profesionales de la salud sobre la enfermedad, así como en el ámbito escolar, refuerza la lógica del racismo institucional, resultando en bullying, prejuicio de clase y raza.

Palabras clave: anemia de células falciformes, experiencia de enfermedad, niño, racismo.


 

 

Introdução

Este artigo aborda a temática da experiência de crianças e adolescentes com a doença falciforme, a partir da perspectiva das ciências sociais, sendo resultado de uma pesquisa de mestrado em sociologia1. A relevância desta temática está associada à sua complexidade, enquanto uma condição que encerra diferentes esferas sociais e políticas, assim como modos de vida e formas de enfrentamento da doença. Por isso, nossa intenção é realizar uma reflexão a partir das perspectivas de crianças e adolescentes que vivem com a Doença Falciforme (DF).

De início, cabe esclarecer que a doença falciforme, como designaremos aqui, está composta por diferentes tipos de alterações ligadas às chamadas hemoglobionopatias ou, simplesmente, "alteração no sangue" como nos dizem nossos interlocutores, mais conhecida pela anemia e olhos amarelados das pessoas. É uma doença genética e hereditária, de modo que os pais repassam aos seus filhos a mutação que altera o formato das células vermelhas do sangue, provocando distúrbios orgânicos de diferentes ordens, desde a anemia à obstrução dos vasos sanguíneos e consequentes "crises" de dores e Acidentes Vasculares Cerebrais (AVC), úlceras nas pernas e priapismo.

As inquietações para o estudo estavam associadas às compreensões elaboradas pelas crianças e adolescentes sobre a condição de pessoas com uma doença e como lidavam com essa situação. Assim, surgiu a alteridade sobre as relações entre modos de vida e doença falciforme, enquanto doença historicamente marcada por acometer em sua maioria pessoas negras, seja em termos de incidências (casos novos) ou prevalência (casos novos e antigos) como informação da biomedicina, seja a partir de seus cuidadores, pais ou responsáveis, em sua grande maioria representada pelo gênero feminino, as mulheres que cuidam.

Nossa reflexão se fundamenta no pensamento da antropologia e da sociologia da saúde e da criança. Enquanto a antropologia da saúde contribui com uma reflexão sobre o lugar do corpo, saúde e doença nos processos e relações sociais, políticas e biotecnologias nas sociedades contemporâneas, a sociologia da criança busca compreendê-las como agentes sociais, investigando a sociedade a partir da visão das mesmas para entender "não apenas sobre infância, mas sobre o conjunto da sociedade globalmente considerada" (Sarmento, 2005, p. 363).

A sociologia da infância parte da reflexão epistemológica de que as crianças, "assim como os adultos, são participantes ativos na construção social da infância e na reprodução interpretativa2 de sua cultura compartilhada" (Corsaro, 2011, p. 19). Neste estudo, esse conceito permitiu interpretar as experiências das crianças (Pires, 2010), considerando que a reprodução interpretativa "inclui a ideia de que as crianças não se limitam a internalizar a sociedade e a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e mudanças culturais" (Corsaro, 2011, p. 31-32). Por isso, nos alinhamos com os estudos que reconhecem a capacidade de agir das crianças, ao tratá-las como sujeitos que têm sua percepção e visão de mundo e que, embora aprendam com os adultos acerca das normas, regras, comportamentos e outras exigências da vida social, isso não as torna meras reprodutoras.

A experiência da enfermidade, segundo Alves (1993), não é um mero estado de acometimento físico/biológico, mas remete a um complexo de valores, práticas, instituições e padrões de relacionamento, a partir dos quais "indivíduos e grupos sociais respondem a um dado episódio de doença" (Alves, 1993, p. 263). Nessa perspectiva, as narrativas e desenhos, concebidos pelas crianças e adolescentes, dão inteligibilidade às vivências e aos modos de vida dos interlocutores, tendo como referência a enfermidade. Trata-se, em especial, de entender a complexidade relacionada ao adoecer, às políticas de saúde, às experiências de infância/adolescência, envolvendo diferenças de classe, idade e etnia; em suma, às políticas da vida, como nos diz Fassin (2012).

As informações que fundamentam essas reflexões são resultado de pesquisa de campo realizada com pais/responsáveis, crianças e adolescentes com DF do estado da Paraíba, Brasil, com inserção no campo no período de abril a julho de 2019. Cabe enfatizar que, apesar de não estar no recorte inicial do estudo, o trabalho de campo propiciou a interlocução também com adolescentes, respeitando o critério de classe de idade (entre 12 e 18 anos, segundo Estatuto da Criança e do Adolescente3) e a autoafirmação racial. As crianças e adolescentes interlocutoras da pesquisa tinham entre três e quinze anos de idade.

Aqui, além da metodologia, trazemos a experiência sobre a doença falciforme na perspectiva das crianças e adolescentes, valorizando as relações que apontam entre a doença e o sangue, as situações de agravamento e internações, assim como a socialização escolar enquanto uma vivência marcante nessa fase da vida.

 

Metodologia

Este artigo pauta elementos reflexivos a partir da pesquisa de campo, na perspectiva metodológica de Beau e Weber (2007), realizada em quatro cidades da Paraíba, Brasil: João Pessoa; Campina Grande; Areia e Santa Rita. Para chegar às famílias que participaram da pesquisa, a mediação foi feita pela Associação Paraibana de Portadores de Anemias Hereditárias (ASPPAH)4, instituição à qual estão associadas.

A ASPPAH é uma organização não governamental, criada em 2001 por famílias e pessoas com a doença falciforme, traço falciforme, talassemia e outras hemoglobinopatias. A instituição vem atuando em todo estado da Paraíba com a missão de prestar apoio social, compartilhar informações sobre cuidados entre os associados e garantir o acesso aos serviços de saúde para pessoas com hemoglobinopatias hereditárias, nas quais se inclui a doença falciforme.

A ASPPAH tem atuado como representante da sociedade civil em Conselhos Municipais de Saúde (Campina Grande, atualmente) e no Comitê Estadual de Saúde da População Negra, além de promover eventos dedicados à divulgação e conscientização sobre a anemia falciforme.

A investigação consistiu em um primeiro momento de contato com as famílias e responsáveis de crianças e adolescentes, quando a pesquisa foi apresentada. Esse primeiro momento foi importante para a criação de relações de confiança com os pais e a contextualização da experiência da doença. Em seguida, foram utilizadas duas técnicas de interlocução: entrevistas semiestruturadas (Boni; Quaresma, 2005), no diálogo com os adolescentes, e a elaboração de desenhos pelas crianças. Entretanto, uma das adolescentes se propôs espontaneamente a desenhar. A elaboração de desenhos foi adotada como estratégia de aproximação e forma de interação com as mesmas. No entanto, considerando a interação desencadeada, os desenhos se tornaram uma forma de expressão das experiências de crianças e adolescentes, de modo que, ao finalizar, convidamos as crianças para descrever o que tinham desenhado, dando sua própria interpretação sobre a situação ilustrada5. Esses momentos possibilitaram a realização de observações e conversas informais durante a produção dos desenhos.

As entrevistas e a técnica de pesquisa do desenho possibilitaram acessar informações acerca das experiências das crianças e adolescentes com a doença, expressa em termos de certas categorias temáticas, tais como: a doença; os limites da infância - escola; saúde pública e privada. Os encontros foram realizados na residência das famílias participantes, cinco ao total, de diferentes classes sociais e renda. Destas, duas utilizam a rede privada de saúde e ambas residem na capital paraibana, enquanto as demais utilizam a rede pública de saúde6 e residem nas outras cidades do estado. A composição familiar em sua maioria está centrada nos pais, mães e filhos, em apenas uma delas o adolescente está sob a responsabilidade da tia. Uma família é originária de outro estado, enquanto as demais são do estado da Paraíba. Na pesquisa, os pais/responsáveis trouxeram o contexto relacionado ao processo de "descobrimento" da doença e seus enfrentamentos junto aos sistemas de saúde; já as crianças e adolescentes desenharam suas experiências com a doença, como dito anteriormente. Todos serão representados no texto por nomes fictícios (de cantoras e cantores de rapper negras(os) do Brasil)7

 

Desenhando experiências de adoecimento

Dentre os resultados mais significativos da pesquisa, selecionamos aqueles que contribuem para o conhecimento sobre as condições de vida e enfrentamento da doença, mas também resultados que podem orientar políticas de saúde e cuidado adequado às famílias e seus doentes com a enfermidade. A este respeito, é preciso ressaltar que as recentes reformulações do Ministério da Saúde produzidas pelo Governo Federal excluíram as divisões de assistência específica relacionadas à saúde da população negra e à doença falciforme8. Dessa forma, os cidadãos com a enfermidade contam apenas com as políticas de saúde e redes de serviços instituídos em municípios e estados.

Dentre as políticas voltadas à DF, o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) tem assumido um papel relevante, tendo em vista que atua tanto no diagnóstico precoce da doença, através do chamado teste do pezinho, quanto fornecendo providências para o seguimento da doença com especialista pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O programa foi estabelecido pela Portaria Ministerial GM/MS nº 822 de 06 de junho de 2001 e, na segunda fase, incluiu o diagnóstico da doença falciforme. Entretanto, cada estado incorporou esse programa de forma progressiva, estendendo sua implementação até 2013.

Para as famílias que participaram deste estudo, o teste do pezinho esteve presente como diagnóstico precoce em duas delas. O processo de descoberta da doença aconteceu de forma diferente em cada família. De acordo com Guimarães et al. (2009, p. 10), "independente do momento, a descoberta faz com que a criança e seus familiares tenham suas vidas bastante alteradas". O diagnóstico soa para alguns como alívio e para outros como um choque ou fator de preocupação. "A gente soube do diagnóstico, de certa forma, respiramos aliviados, porque a gente estava com medo de ser algo mais grave" (Linn, mãe de Negra Li de 12 anos). O alívio que aparece na fala da mãe é reflexo de um diagnóstico que se deu a partir de uma sequência de adoecimento da criança sem um motivo aparente. O relato dessa família é emblemático, considerando que a adolescente realizou o teste do pezinho, ao nascer, em rede privada de saúde, mas o resultado foi negativo para a DF, segundo relato da mãe.

 


 

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No dia da conversa com seus pais, Negra Li (12 anos) e sua irmã ficaram desenhando a partir de uma proposta de temática livre. No entanto, quando ela entregou o desenho, observamos que ela esboçou no papel sua percepção sobre a doença, enquanto os pais falavam sobre a percepção deles. No encontro seguinte, dedicado à realização da entrevista, foi levado o desenho para conversarmos sobre ele. Segundo ela, seu desenho "são umas coisas que eu passo e que eu sinto". E explicou: "Aí, eu fiz uma carinha assim, porque outra coisa não dá para fazer. Tipo assim... [carinha] chateada" (Negra Li, 12 anos). Já a "carinha chorando é porque, de vez em quando, eu tenho uma crise de anemia, porque dói muito, muito, muito, muito... Então, eu coloquei isso também. E viagens que eu não posso fazer [...] Tentei fazer um floco de gelo. Fiz um mar e coloquei que o mar gelado eu não posso entrar [...] Como eu morava perto de Gramado, a gente sempre estava lá. A gente ganhava, tipo assim... ingresso para ir nas coisas [brinquedos]. Então, tinha o Snowland, que é um espaço assim que tem neve para as pessoas entrarem e tudo mais. Só que, aí, eu não posso entrar e é muito legal. Se eu tivesse a oportunidade, mas eu não pude entrar, entende? Aí eu fico assim..." (Negra Li, 12 anos).

O desenho feito por essa criança diz muito sobre sua percepção acerca da doença e das implicações que ela causa em sua vida cotidiana. A mudança de cidade para sua melhora permitiu que ela pudesse ter menos restrições, mas ainda há muitos impactos em sua vida causados pela DF.

A história de Doralyce (3 anos) é diferente, nascida na Maternidade Cândida Vargas em João Pessoa-PB, ela fez o teste do pezinho no hospital de Bayeux-PB, pelo "SUS", como diz sua mãe. Quando a criança estava com 3 meses de vida, Lourena (mãe de Doralyce de 3 anos) recebeu uma ligação do Hemocentro pedindo para que comparecesse ao Complexo de Pediatria Arlinda Marques no mês seguinte, e já foi alertada sobre a possível doença da filha. Como a criança não tinha 6 meses de vida, requisito mínimo para a realização do exame eletroforese na Paraíba, que fornece o diagnóstico definitivo, os pais se submeteram ao exame, recebendo o diagnóstico de serem portadores do Traço Falciforme (TF), de modo que a suspeita da DF na filha só se intensificou e, desde então, o tratamento foi iniciado.

Esse relato é representativo das ações ligadas ao PNTN adotadas no estado da Paraíba, nos serviços públicos de saúde. Assim, ao nascer, a criança realiza o teste do pezinho na rede indicada, cuja análise é feita pelo Laboratório Central de Saúde Pública da Paraíba - LACEN. Caso o exame apresente alguma alteração dessa enfermidade ou de outras previstas no PNTN, é realizada a chamada busca ativa e a criança encaminhada ao Complexo de Pediatria Arlinda Marques, citado acima, para acompanhamento ambulatorial e hospitalar da DF, com agendamento prévio9

Segundo Lourena (mãe de Doralyce de 3 anos), os sintomas da doença começaram a se apresentar no quarto mês de idade, quando ela viu Doralyce "sem um pingo de cor" e, ao realizar os exames de sangue, identificou-se que a hemoglobina sanguínea estava 7.310 e, além deste aspecto, percebeu que a criança apresentava inchaço nos pés e nas mãos. O interessante nesse contexto é que a criança, mesmo sem falar, demonstrava com expressões corporais quando estava sentindo dor. Ainda segundo Lourena, ao tocar na mão da criança, a reação era grito ou encolher a mão. Assim, a mãe já entendia que existia dor naquele local. Diante disso "todo mundo que chega perto da criança quer logo pegar na mão, eu já avisava: 'não pegue na mão dela!'" (Lourena, mãe de Doralyce de 3 anos).

Em outras duas famílias, o teste do pezinho não foi realizado e, segundo os interlocutores, se foi realizado, nunca tiveram acesso ao resultado. Assim, quando questionado sobre a chamada "descoberta da doença" ter sido através do teste do pezinho, as respostas foram: "foi não, foi uma crise de dor" (Flora, Tia de Criolo de 15 anos) e "porque na época na cidade não tinha o teste do pezinho, ela fez, mas não me entregaram nada, não" (Preta Rara, mãe de Soffia de 15 anos). Esses relatos são importantes, considerando que uma parcela da população não teve acesso ao teste do pezinho e encontra-se sem diagnóstico preciso, o que só confirma a demora em implantação do Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) pelos estados e municípios.

A narrativa de Flora (tia de Crioulo de 15 anos) é reveladora da importância do diagnóstico precoce, como relatado pela literatura (Cançado, 2007; Martins; Moraes-Souza, 2010):

Ele passou internado 15 dias no HU, teve a hipótese de doença falciforme. Ele já tinha feito o exame tudo, aí chamou meu irmão para fazer. Meu irmão mostrou o traço [falciforme] aí foi quando deram o diagnóstico e não podia saber da mãe porque ela já tinha falecido (Flora, tia de Criolo de 15 anos).

O fato é que, em razão do falecimento da mãe, não se sabe ao certo se o teste do pezinho foi realizado, de modo que não receberam o resultado. Sendo assim, o diagnóstico se deu pelas crises e pelas internações. Com Soffia (15 anos) aconteceu de forma parecida. A adolescente nasceu quando a família morava em São Mamede, Região Metropolitana de Patos, Seridó paraibano, Brasil, e na cidade não se realizava o teste do pezinho, de modo que o diagnóstico se deu pelos repetitivos problemas de saúde, incluindo a anemia que perdurava, apesar dos tratamentos médicos, como relatado:

Eu não descobri no teste do pezinho, não. Aí quando a criança nasce, quando completo um dia, não dá aquele sulfato ferroso, né? Aí começaram a dar sulfato ferroso para ela, aí ela ficava tomando, tomando, e todo mês com anemia, e só aumentando (Preta Rara, mãe de Soffia de 15 anos).

Essa luta contra a anemia começou quando Soffia (15 anos) tinha 1 ano de idade e só aos 4 anos veio o diagnóstico da DF. Segundo Neves (2020, p. 197), "uma das informações mais alarmantes diz respeito à sobrevida de crianças com doença falciforme, em que [apenas] 20,2% das crianças com doença falciforme atingem os 5 anos de idade caso não recebam o devido tratamento" (Brasil, 2017, p. 33 - grifo nosso). Essa situação de diagnóstico tardio é resultado do desconhecimento da DF pelos profissionais de saúde, de modo que a anemia é tratada, por muito tempo, como sendo uma "anemia ferropriva", o que pode provocar complicações no quadro das pessoas com DF, como mostra o relato abaixo:

Aí pronto, por isso que foi tomando, tomando, tomando, quando ela completou dois anos na mesma situação ainda, e aí ia dando diarreia sempre. Ela bebezinha só vivia no médico. Dava aqueles vômitos, porque era mais golfada. Que ela era pequenininha... aí vomitava muito e depois de 3 anos para lá foi ficando com crise de garganta direto, direto, sem parar... e infecção, sabe? (Preta Rara, mãe de Soffia de 15 anos).

Segundo o relato, nesse processo de idas ao médico e idas com frequência ao hospital, sem qualquer suspeita da doença, uma enfermeira estranhou. Mesmo sem ter conhecimento da DF, a enfermeira conseguiu identificar uma característica primordial da doença, que é o fato de não ter cura:

Aí, um dia ela disse que achava que a anemia dela não era normal. Aí ela conversou com um médico da cidade para enviar ela para João Pessoa. Aí foi a mulher de lá, que ela é muito inteligente, aí ela disse: oh... A gente vai ter que enviar ela para outra cidade porque a anemia dela não é normal. O médico não sabia de nada. Uma pessoa tomar sulfato ferroso já há não sei quantos dias, e não passar, aí foi como mandaram porque a anemia não tinha cura (Preta Rara, mãe de Soffia de 15 anos).

A criança foi encaminha ao Hospital Universitário Lauro Wanderley (HULW), de João Pessoa-PB, quando foram realizados exames e a DF foi diagnosticada. Vale ressaltar ainda que o desconhecimento da doença não está apenas em cidades pequenas, o mesmo nos foi relatado por uma das famílias e aconteceu na capital do Rio Grande do Sul, Brasil, mesmo quando o primeiro sintoma da doença também havia sido anemia. A visão médica de que anemia é algo normal quando a criança está em fase de crescimento dificulta ainda mais a suspeita da DF, "o pediatra dela explicou que anemia ferropriva, de ferro, é bem normal a criança nessa idade apresentar essa anemiazinha" (Linn, mãe de Negra Li de 12 anos). Só percebem que realmente não é apenas uma anemia quando perdura por muito tempo ou quando percebem que é uma anemia incurável.

No caso de Negra Li, o tratamento durou dois anos, sem melhora. Até que a família que morava no Rio Grande do Sul decidiu viajar de férias para Salvador, Brasil, quando ela tinha 4 anos. Antes da viagem, a criança estava se recuperando de uma otite e durante o voo apresentou febre11. Ao chegar a Salvador, buscaram ajuda médica para entender o que estava acontecendo com a criança e, depois de irem a alguns lugares, chegaram a um hospital onde foi levantada a suspeita da DF e confirmado o diagnóstico. A viagem, que seria de 4 dias, perdurou por 18 dias. Nesse contexto, o teste do pezinho já tinha sido feito, mas não diagnosticou a DF.

O relato de outra família é significativo acerca do processo de diagnóstico da DF. Bia Ferreira (mãe de 3 crianças com DF) relata que Djonga (9 anos) também não teve o diagnóstico com o teste do pezinho e, mesmo passando por adoecimentos contínuos, os profissionais não suspeitaram da enfermidade; assim, a DF só foi "descoberta" quando Emicida (7 anos), seu irmão, foi diagnosticado:

A gente percebeu que ele era muito doente, a gente não sabia o porquê... Foi quando eu comecei a perceber que ele não podia sentir frio, não podia tomar banho de água fria, gripava com facilidade, sentia muita dor, sentia muita dor na região da barriga. Eu ia para o hospital, diziam que era cólica, me chamavam de irresponsável (Bia Ferreira, mãe de três crianças com DF).

Nota-se que o desconhecimento da doença e a falta de investigação do quadro da criança levaram à acusação e culpabilização da mãe. A responsabilização da mãe sobre a saúde dos filhos aponta para o atravessamento das relações e hierarquias de gênero no âmbito das práticas de saúde, mesmo que profissionais e serviços de saúde tenham falhado em cuidado e em aconselhamento genético para essa família. Além disso, tem a questão do cuidado voltado ao gênero feminino, que faz com que a responsabilidade seja cobrada da mãe.

Depois de quase 3 anos da primeira gravidez, Bia Ferreira teve o segundo filho - Emicida - e, quando ele estava com 15 dias de vida, recebeu a informação de que havia a alteração no teste do pezinho:

Aí eu tinha ido lá no hospital, quando eu cheguei lá, a pediatra já estava com o exame na mão, já para encaminhar ele para o Hemocentro, aí disse que ele tinha uma espécie de uma anemia, aí eu peguei e disse: Doutora, é por isso que o outro também é muito doente? Porque o outro era muito doente, ninguém sabia o que ele tinha. Aí ela pegou e disse: "Pois eu vou encaminhar os dois" (Bia Ferreira, mãe de três crianças com DF).

Só depois do teste do pezinho de Emicida, hoje com 7 anos de idade, foi levantada a suspeita, não pelos profissionais, mas pela mãe, do acometimento por DF também por seu filho Djonga (9 anos). Diante disso, foram realizados os exames necessários que confirmaram também a doença no filho mais velho, e o traço falciforme no pai e na mãe. Durante esse percurso em busca dos diagnósticos, a mãe engravidou mais uma vez, mas por já ter conhecimento da doença nos outros filhos, ficou atenta ao resultado do teste do pezinho; porém, o exame nunca foi encontrado e entregue: "quando fui atrás do teste do pezinho [de Karol, 3 anos], até hoje, não consegui pegar. Eu já fui não sei quantas vezes e não acharam, aí a médica mandou eu fazer o exame, aí eu fiz e primeiro deu o traço" (Bia Ferreira, mãe de três crianças com DF). Só depois a doença foi confirmada, por causa dos sintomas.

Sendo assim, pode-se dizer que o teste do pezinho tem um papel importante no diagnóstico da doença, e que a extensão dele para todo o país, pelo SUS, possibilitou o acesso a todos. Entretanto, nota-se que existem deficiências na efetivação dessa política pública, o não recebimento dos resultados ou resultados equivocados pode mudar completamente a situação familiar. O fato é que nenhuma das famílias tinha conhecimento sobre o traço ou a doença falciforme até o diagnóstico dos filhos ou mesmo quando os filhos apresentaram os sintomas da doença.

Quando nos aproximamos das crianças, a situação também é variável. As interlocutoras mais novas da pesquisa têm 3 anos, não falam nem desenham sobre as lembranças de experiências com a doença. As questões relacionadas ao adoecimento nessa idade são demonstradas pelas expressões corporais, que normalmente se apresentam com a mudança de comportamento. Já as outras crianças e adolescentes falam de lembranças da doença no ambiente hospitalar e frequência de adoecimentos iniciados a partir dos 5 anos de idade mais ou menos.

 

 

O desenho feito pela criança retrata um momento de "crise" em que foi hospitalizada, que assim explicou:

Esse daqui é quando eu estava no hospital, e eu estava levando soro aqui assim... [Entrevistadora: e esse pontinho vermelho?] Aqui? É aquela coisa que, tipo, bota para não sair do lugar, porque se não colocasse, ele ficava saindo, aí eu fiz laranja, porque branco não ia dar para saber que aquilo era, tipo, esparadrapo. O soro aqui tá pendurado no hospital onde vai descer (Djonga, 9 anos).

Assim, Djonga descreve o processo de socialização com a vivência da chamada crise, tanto em termos das marcas corporais, quanto pela passagem no hospital, completando a memória da experiência da dor. A "crise" representa um momento clínico de recrudescimento da doença, caracterizado por muita dor, chegando a internações hospitalares quando não cessa, mesmo com os cuidados tomados pela família. A dor tem sido uma característica da DF na experiência dessas pessoas e, por isso, precisam aprender sobre limitações físicas e sobre autocuidados, como a hidratação, incorporados como recurso de prevenção da dor, desde o momento do diagnóstico.

Segundo as mães, as crianças expressam a dor através do choro e da reação corporal ao toque. Enquanto linguagem corporal, as formas de expressão da dor para crianças e adolescentes estão relacionadas com o processo de socialização, quando podem se apropriar das expressões sociais e culturais nas quais a dor e o sofrimento estão inseridos. Para Sarti (2001), é na família que a experiência da dor é qualificada socialmente, em conformidade com a ordem simbólica ordenadora dos significados que lhes são atribuídos.

Outro aspecto relatado pelas famílias é o desconhecimento da doença pelos profissionais de saúde. Não conhecem a doença, tratamento, nem o protocolo estabelecido pelo Ministério da Saúde para atendimento em caso de crise. Uma das possíveis justificativas é o racismo institucional, a doença não tem a atenção necessária por indicar incidência, prevalência e mortalidade na população negra e pobre (Brasil, 2017; Soares Filho, 2012).

O desconhecimento pelos profissionais de saúde não se deu por falta de estudos ou de literaturas. De acordo com Cavalcanti (2007), estudos realizados pela área médica dos anos de 1960 e 1970 já usavam referências bibliográficas das décadas de 1930 e 1940. "A análise preliminar dos trabalhos médicos encontrados confirmou que a pediatria e a hematologia eram as especialidades médicas que se ocuparam com o estudo da anemia falciforme no Brasil" (Cavalcanti, 2007, p. 9). Neste sentido, a autora aproxima o desconhecimento da doença a questões raciais.

Tendo em vista que a falta de conhecimento da doença pelos profissionais de saúde não está atrelada à falta de produção científica sobre a enfermidade, acredita-se que o desconhecimento da DF está, de fato, associado ao racismo institucional que, segundo López (2013), é um conceito que emerge no Brasil por parte do movimento negro e tem sido legitimado historicamente pelo Estado. O termo não é utilizado pelas(os) interlocutores, mas o racismo institucional aparece em forma de preconceito. Emicida (7 anos) sempre utilizou a rede pública de saúde. Quando estava com 10 meses, teve broncopneumonia e, em busca de socorro para o filho, Bia Ferreira (mãe de 3 crianças com DF) se deparou com a seguinte situação:

Ele estava no hospital daqui [Areia-PB]. Passou o dia todinho e médico nenhum foi olhar ele. Quando foi no outro dia, ele fazia só gemer... aí o pai dele se revoltou quando viu ele. O pai dele quis brigar lá dentro, eu disse: "não, se for brigar aqui é pior". Mas ele fez um escândalo lá, o médico falou: "não, espera que eu vou olhar ele". Tinha chegado já o médico. Aí, olhou ele e disse: "mãezinha, você quer ir para Campina Grande?" Se você quiser mandar, a gente vai agora. Aí pronto, a gente foi. Chegou lá, o hospital da criança não aceitou a gente, mandaram para o Trauma, porque parece que não tinha vaga no HU. No outro dia, foi que ele foi transferido para o HU. Aí quando chegou lá no HU, eu contei e quando eu disse o sistema já todinho, aí pronto. Lá mesmo eles fizeram o exame e comprovaram. Aí quando chegou lá era broncopneumonia. Às vezes eu só me preocupo, assim, com o futuro deles, porque, infelizmente, o povo é muito preconceituoso (Bia Ferreira, mãe de três crianças com DF).

Nessa fala, a mãe associa a dificuldade de conseguir atendimento ao preconceito atribuído à doença, o que mostra a presença do racismo institucional no sistema de saúde brasileiro, tendo em vista que a anemia falciforme tem sido considerada "doença de preto" pelo índice de prevalência (Silva, 2014). De acordo com Almeida (2019), os conflitos raciais também estão presentes nas instituições, a consequência disso:

[...] é que o racismo pode ter sua forma alterada pela ação ou pela omissão dos poderes institucionais - Estado, escola etc. -, que podem tanto modificar a atuação dos mecanismos discriminatórios, como também estabelecer novos significados para a raça, inclusive atribuindo certas vantagens sociais a membros de grupos raciais historicamente discriminados (Almeida, 2019, p. 28).

O racismo institucional carrega características de ser menos evidente, mais difícil de ser identificado, o que torna o combate mais difícil e a punição aos atos menos condenável (Almeida, 2019). Por esse fator, as famílias não conseguem identificar o racismo institucional e usar esse termo para os problemas enfrentados.

Essa dificuldade, que também está atrelada ao desconhecimento da doença, não acontece apenas na rede pública de saúde, tendo como consequência o agravamento do quadro clínico das crianças e adolescentes em momentos de "crises". Negra Li (12 anos) nos relatou que utiliza a rede privada de saúde. No entanto, quando buscou o serviço em situação de "crise" de dor, não foi realizado o procedimento adequado, de modo que as dores voltaram ainda mais intensas, fazendo-se necessária a internação. A partir de então, a adolescente descreveu sua vivência com as dores da seguinte maneira:

Quando eu começo a sentir, eu já sei que vem. Quando começa assim, sabe? A me incomodar. Ou, às vezes, é só um jeito assim. Mas aí, na maioria das vezes é quando vem, mas aí demora para vir. Mas quando vem, vem assim, muito forte. Então, dessa vez aí eu estava sentindo assim, aí eu comecei a chorar, aí eu chamei minha mãe e a gente foi para a Unimed. Chegando lá assim, me examinaram e eu chorando, né? Me deram um remédio e eu fui para casa. Cheguei em casa aí eu pensei que eu posso dormir. Eu deitei, começou a vir a dor forte, forte, forte. E aí eu fui para o hospital, aí foi quando a mamãe falou que praticamente não sabia o que fazer, que teve que ligar para minha médica mesmo e tudo mais. E aí foi nesse, por causa que quando veio a dor forte, eu tive que internar na Unimed, que aí eu fiquei lá (Negra Li, 12 anos).

O relato de Negra Li (12 anos) mostra o desconhecimento da doença e, consequentemente, os agravamentos do quadro por falta do tratamento adequado que, nesse caso, o atendimento se deu na rede privada de saúde, mostrando que, quando se trata da DF, o desconhecimento da doença não é exclusividade do cuidado ofertado na rede pública de saúde.

Flora (tia de Criolo de 15 anos) passou pela experiência de ter acompanhado o tratamento de Criolo (15 anos) por 12 anos no SUS e, há pouco mais de 3 anos, está sendo acompanhada na rede privada de saúde. Sobre a diferença percebida, pontua:

O atendimento é o mesmo, só que a facilidade dos exames para você fazer é que muda, porque assim, na questão de exame, eu passava nela e passava no PSF para deixar o papel para agendar aquele exame para não sei quanto tempo, quase um mês depois. Às vezes, exames que precisava com urgência, o pai dele dava um esforçozinho e pagava, mas assim, às vezes, era quase um mês para fazer um exame. Às vezes, para marcar um retorno também, demora muito no PSF, um raio-X, essa questão dos exames é que demorava, e hoje em dia assim não, com o plano é rápido, né? Você pega, autoriza os exames hoje, você vai fazer amanhã. Ou agenda. Então a facilidade nos atendimentos, a rapidez... Para conseguir exame era muito difícil, mas graças a Deus, hoje em dia tem, e facilita muito as coisas (Flora, tia de Criolo de 15 anos).

Outras mães/responsáveis também falaram sobre a situação dos usuários da rede pública de saúde, quando se trata de marcação de exames. Eis alguns desses relatos:

A médica disse que precisa fazer um exame, porque ela viu um negócio no olho dele, aí disse que acha que é da anemia, só que tem que fazer um exame, é... Esqueci o nome agora, só que esse exame eu não faço a mínima ideia de onde faz, disseram que era em Campina Grande. E quanto é também eu não faço a mínima ideia, aí eu já fui lá na secretaria. Me disseram simplesmente que não fazia. Aí, a hematologista fez o seguinte: você pega esse papelzinho e vai lá na secretaria, fale com eles. Se eles disserem que não vai fazer, aí entre com uma ação no Ministério Público, que eles pagam. Aí eu fui lá e me negaram, aí eu vou fazer isso (Bia Ferreira, mãe de três crianças com DF).

Eu ia de seis em seis meses [Entrevistadora: ao médico em João Pessoa-PB], quando eu estava no interior, agora aqui [Entrevistadora: em Campina Grande - PB] eu vou de quatro em quatro meses, e levo uma lista de exame. Um monte de exame, aí eu pago caríssimo por esses exames, porque aqui para esperar o SUS é mais difícil. Sai a consulta e não sai os exames. Aí eu pago tudo particular e levo. Eu vou de quatro em quatro meses agora. Eu já paguei até consulta particular aqui, porque quando eu vou, eu perco a vaga. Aí para mim conseguir uma vaga para ela [Soffia] novamente, eu vou ter que fazer uma consulta particular com ela, pegar um encaminhamento, ir no SUS e depois desse SUS, esperar uma vaga com ela. Mas eu consigo, que a próxima consulta com ela é só em julho. Aí eu vou fazer isso para voltar (Preta Rara, mãe de Soffia de 15 anos).

Observa-se que a falta de acesso aos exames pode prejudicar também no acesso à consulta, sabendo que as pessoas com DF precisam ser acompanhadas por diversas especialidades médicas e realizar exames periodicamente. Em alguns casos, até a marcação da consulta pela rede pública de saúde se torna um processo difícil:

Até para fazer uma consulta, muitas das vezes eu vou a Campina Grande, porque eu espero aqui, oh... Eu passei um ano, um ano certinho para marcar para ir para hematologista. Com um ano certinho. Só não tenho o papel para comprovar, porque foi pedido lá. Inclusive esse daqui [Djonga, 9 anos] tá com uma inflamação no olho. Eu ia levar ele ontem, só que não teve oftalmologista (Bia Ferreira, mãe de três crianças com DF).

A dificuldade de acesso ao sistema de saúde público no momento de crise também é notada pelas crianças. Em uma conversa sobre uma crise de dor, Emicida lembrou "quando foi isso [se referindo ao momento da crise], mãe me avisou que a ambulância estava quebrada, aí a gente teve que ir no carro [alugado pela família]" (Emicida, 7 anos). A criança lembra que, em um momento de enfrentamento das chamadas crises, precisou de transporte para buscar atendimento médico em outra cidade - a família é de Areia-PB, e precisava ir a Campina Grande-PB - e não conseguiu pela prefeitura, pois a ambulância estava quebrada. Assim, para que conseguisse ser atendido, a família precisou alugar um carro alternativo.

Além de enfrentar os problemas voltados aos sistemas de saúde que envolve o racismo institucional, outros tipos de preconceito são pontuados pelas crianças e adolescentes, principalmente no ambiente escolar, o que pode ser denominado de bullying. A aparência física é um dos aspectos que se tornam significativos para Criolo (15 anos). Segundo ele, uma diferenciação percebida pelos colegas são os olhos amarelados. Sobre isso, Flora (tia de Criolo de 15 anos) afirmou: "Criolo (15 anos) tem muita hemólise, a crise, as hemácias dele, a crise silenciosa se mostra pelas hemólises que destrói as hemácias, aí fica essa pigmentação amarelada". E isso já foi motivo de bullying na infância, quando cursava o ensino fundamental:

Aí na época que ele estudava aqui [no bairro], em outra escola aqui, ensino fundamental, aí os meninos, às vezes, praticavam bullying com ele por causa do olho, porque, às vezes, fica muito [amarelo], aí ele fica: "olha, titia, os meninos ficam me chamando de olho amarelo". Mas ele aparentemente, eu não sei por dentro, se ele quer mostrar, aí eu dizia: "Criolo, como tu se sente quando eles te chamam e falam isso contigo?" Ele disse assim: "eu não gosto, mas eu também não me importo muito, porque eu não tenho culpa que meu olho fica amarelo, é da doença que eu tenho" (Flora, tia de Criolo de 15 anos).

A estatura menor esperada para a idade também é uma das consequências da doença. É sobre essa experiência com sua própria estatura que Flora (Tia de Criolo de 15 anos) reflete:

Os meninos tinham muito um negocinho, porque ele era pequeno, né? Para idade que tem... Aí, na sala dele, tinha um menino bem grande. Agora mesmo na formatura que teve do nono ano, o menino enorme e ele pequeno, aí eu disse: o exemplo de pequeno e grande homem... só que na escola o povo lá na escola chamava ele de pequeno homem, pequeno e grande homem, e ele gostava, porque ele é muito amostrado, aí, às vezes, ele via que tinha um carinhozinho, que quando chamavam ele de pequeno homem, aí, às vezes, ele se amostrava com isso, mas, ele dizia que não se importava (Flora, tia de Criolo de 15 anos).

Sobre essas vivências no ensino fundamental II, Criolo (15 anos) não emitiu comentários, mas falou sobre sua experiência durante o ensino médio12: "O povo diz que eu sou um guerreiro..." [Entrevistadora: por que?] "Sei não, por causa da minha doença mesmo, porque eu bebo muito líquido, [mas] o povo diz que não consegue, não".

Os olhos amarelados causados pela icterícia é algo que também se destaca no ambiente escolar por ser percebido pelos colegas, e isso aparece também na fala de Emicida (7 anos): "É... Eles me falam que fica amarelo. Eu fui ver no espelho e meu olho não tá amarelo".

 

Considerações finais

A DF afeta profundamente a vida dos acometidos e esse processo de afetação começa antes mesmo do diagnóstico. Com a baixa efetividade na realização do teste do pezinho, especificamente em relação à doença falciforme, o diagnóstico que deveria ser precoce não acontece, então, de fato, são as crises e sintomas relacionados à enfermidade que levam ao reconhecimento e diagnóstico da doença.

Neste estudo, o desconhecimento da doença por parte dos pais é unânime no momento do diagnóstico, de modo que todos passaram a saber que carregam o traço falciforme a partir do nascimento e diagnóstico das(os) filhas(os). Notamos também que esse desconhecimento se estende aos profissionais de saúde, o que dificulta ainda mais a vida dos adolescentes e crianças.

Se ainda existem lacunas na realização do teste do pezinho, a atenção em saúde para as pessoas com doença falciforme e suas famílias deveria levar em consideração a condição genética dos pais com orientação/aconselhamento genético e planejamento familiar. Essa é uma situação de luta por direitos sociais em saúde, considerando que a inexistência de políticas de atenção voltadas à população negra e com doença falciforme foi extinta pelo Ministério da Saúde, em 2019.

Nos relatos da experiência com essa enfermidade, as crianças e adolescentes comentam que é no contexto escolar que fica nítida a diferença entre as pessoas com DF e as não acometidas pela doença. Para nossos(as) interlocutores(as), a icterícia e o déficit de crescimento são sinais considerados explícitos, fazendo com que os comentários dos(as) demais alunos(as) os incomodem.

A esse respeito, o racismo institucional não aparece nitidamente nas falas, mas a dificuldade de acesso ao sistema de saúde e as problemáticas enfrentadas pelas pessoas com DF revelam elementos relacionados ao racismo enfrentado. Por exemplo, aparece na pesquisa pelo nome de "preconceito" usado por uma das mães; as outras, mesmo tendo dificuldades parecidas, não fazem essa associação. As crianças e os adolescentes também falaram sobre dificuldades encontradas no enfrentamento da doença nas redes de saúde pública e privadas. Essa falta de percepção do racismo institucional se dá pela característica de ser velado, acontecendo de forma tão minuciosa que nem sempre é notado.

Percebe-se que as crianças e adolescentes do interior têm mais dificuldade na busca por assistência que os da capital, sendo que o transporte para levar ao atendimento médico em outras cidades é uma barreira a ser enfrentada, nos casos em que a cidade não dispõe de atendimento para o caso específico. Além disso, os usuários da rede pública de saúde demonstram mais dificuldades nessa luta por assistência que os usuários dos sistemas privados na marcação de consultas, exames e atendimento de emergência.

 

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Data de recebimento/Fecha de recepción: 05/01/2020
Data de aprovação/Fecha de aprobación: 30/09/2020

 

 

1 Esta pesquisa integra a dissertação de Bruna T. Pimentel, intitulada Colorindo conversas e desenhando histórias: experiências de crianças e adolescentes com doença falciforme na Paraíba, submetida ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/UFPB), sob orientação da Profª Drª Ednalva Maciel Neves e coorientação da Profª Drª Flávia Ferreira Pires. Defendida em 28 de março de 2020.
2 Corsaro (2011) usa o termo reprodução interpretativa, a partir de uma abordagem psicológica.
3 Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
4 Mais informações são encontradas em: <https://asppah.wordpress.com/anemia-falciforme/>.
5 Sobre a utilização do desenho no trabalho de campo etnográfico, ver Azevedo (2016), Pires (2007) e Sarmento (2011).
6 Estamos nos referindo ao Sistema Único de Saúde (SUS) e suas redes privada e pública.
7 A escolha por nomear as crianças com nome de rappers brasileiros atende ao anseio de representar a questão racial tão presente no contexto da DF, vai ao encontro da luta antirracista que se explica também pela luta ao combate do racismo institucional. Além disso, optar pelos nomes fictícios tem como objetivo atender a uma exigência ética de preservação da identidade dos colaboradores
8 Informações detalhadas sobre as lutas dos movimentos sociais e políticas de atenção integral da população negra e política de atenção à doença falciforme podem ser encontradas em Silva (2014).
9 Essa descrição pode ser encontrada também em Silva (2018)
10 Hemoglobina é um exame que mede a quantidade de proteína das hemácias que indica a capacidade do sangue de levar oxigênio para os tecidos. Quando baixa, indica anemia. Para crianças entre 3 e 6 anos, o normal é de 11,5 a 13,5 g/dL; e de 6 a 12 anos: 11,5 a 15,5 g/dL (Farias et al., 2017).
11 Cabe informar que pessoas com DF não podem realizar viagens aéreas, tendo em vista a rarefação do oxigênio nas aeronaves e o ar condicionado, o que pode agravar seu quadro clínico, provocando crises de dores decorrentes da situação clínica chamada de vaso-oclusão.
12 Para saber mais sobre o sistema de educação brasileiro, acesse: <https://www.politize.com.br/sistema-educacional-brasileiro-divisao/>.

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