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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades  no.29 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2021

 

TEMAS EM DESTAQUE TEMAS SOBRESALIENTES

 

Circuitos e circulação de crianças e adolescentes no centro de São Paulo: as políticas de saúde entre cuidado e controle

 

Circuits and circulation of children and adolescents in downtown São Paulo: health policies between care and control

 

Circuitos y circulación de niños y adolescentes en el centro de São Paulo: políticas de salud, entre atención y control

 

 

Gabriel Rocha Teixeira MendesI; Maria Cristina G. VicentinII

IPsicólogo, mestre em psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Membro do Núcleo de Pesquisa em Lógicas Institucionais e Coletivas (NUPLIC). E-mail: gabriel_rochatm@hotmail.com
IIProfessora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da PUC-SP, Brasil. Coordenadora do Núcleo de Estudos e pesquisas Lógicas Institucionais e Coletivas (NUPLIC). E-mail: mvicentin@pucsp.br

 

 


RESUMO

Este artigo discute, a partir dos modos de circulação de crianças e adolescentes em "situação de rua" no centro de São Paulo, os seus encontros e desencontros com as políticas públicas. O artigo se apoia em pesquisa de mestrado que teve como metodologia a cartografia, tendo acompanhado, com a equipe de um serviço de saúde mental, em 2018, dois grupos de crianças nos bairros da Luz e da Praça da Sé. Os acompanhamentos foram registrados na forma de diários de campo e trabalhados como narrativas. Procurou-se analisar os usos que são feitos dos serviços pelas crianças, o que acaba por engendrar um circuito institucional específico. Em direção contrária à ideia propagada pelos operadores estatais de que meninos e meninas em tais condições não "aderem" às políticas, considera-se que eles não apenas forjam usos inauditos de políticas sociais, mas também seus modos de vida conservam singularidades que despontam como desafios às políticas públicas.

Palavras-chave: saúde pública, infância, álcool e outras drogas, população em situação de rua.


ABSTRACT

This article looks at homeless children and adolescents in downtown São Paulo and their encounters and disagreements with public policies, based on how they move around the city. The article is based on a Masters research project that used cartography as its methodology, following two groups of children in the neighborhoods of Luz and Praça da Sé, in 2018, alongside a mental health service team. The interactions were recorded in the form of field diaries and worked as narratives of their institutional circuits and their encounters with public policies. In opposition to the idea often propagated by state operators that boys and girls in such conditions do not "adhere" to policies, the perspective is that not only do they forge unprecedented uses of social policies, but their ways of life retain singularities that emerge as challenges to public policies.

Keywords: public health, childhood, alcohol and other drugs, homeless population.


RESUMEN

Este artículo discute, a partir de los modos de circulación de los niños y adolescentes en situación de calle en el centro de São Paulo, sus encuentros y desacuerdos con las políticas públicas. El artículo parte de una investigación de Maestría Academica cuya metodología fue la cartografía, habiendo acompañado, en 2018, a dos grupos de niños en los barrios de Luz y Praça da Sé, junto al equipo de un servicio de salud mental. También se busca analizar los usos que hacen los niños de los servicios, los diferentes itinerarios, que acaban creando y sus circuitos institucionales específicos. Los acompañamientos se registraron en forma de diarios de campo y fueran trabajados como narrativas. En la dirección opuesta a la idea que a menudo propagan los operadores estatales de que los niños y niñas en tales condiciones no "adhieren" a las políticas, la perspectiva es que no solo forjan usos sin precedentes de estas, sino que sus formas de vida conservan singularidades que surgen como desafíos a las políticas públicas.

Palabras-clave: salud pública, infancia, alcohol y otras drogas, poblaciones en situación de calle.


 

 

Introdução

Este artigo discute, a partir dos modos de circulação de crianças e adolescentes em "situação de rua" no centro de São Paulo, os seus encontros e desencontros com as políticas públicas. Tal circulação foi caracterizada pelo acompanhamento dos usos que são feitos dos serviços, os diferentes itinerários, assim como a função das paradas e das velocidades empreendidas, o que acaba por engendrar um circuito institucional específico (Rui; Mallart, 2015). Em direção contrária à ideia frequentemente propagada pelos operadores estatais de que meninos e meninas em tais condições não "aderem" às políticas, considera-se a perspectiva de que eles não apenas forjam usos inauditos de políticas sociais, como também seus modos de vida conservam singularidades que despontam como desafios às políticas públicas.

Os diferentes usos de programas e serviços que culminam na "não aderência" às prescrições das políticas sociais (Rui; Mallart, 2015) representam na prática um tipo de circulação que pode ser constituído de: pernoite em SAICA (Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes)1, acolhimento integral no CAPSij (Centro de Atenção Psicossocial infanto-juvenil)2 e movimentos de fuga para a rua. Assim, a alternância de parada e evasão compõe um circuito original, enquanto que programas e serviços se organizam apoiados numa disparidade em relação aos movimentos dos atendidos, pois, em grande parte, a oferta de cuidado se resume à acolhida institucional.

Na esteira da longa história de institucionalizações e segregações correcionais (Rizzini; Pilotti, 2011), crianças e adolescentes em situação de rua circulam atualmente pelos equipamentos públicos, principalmente os da assistência e da saúde, num movimento que evidencia importantes tensões entre proteção e garantia de direitos por um lado, e disciplinamento e tutela de suas liberdades, por outro.

No primeiro caso, a rua pode ser locus de refúgio e sociabilidade, realizando, inclusive, o direito de refúgio estabelecido no art. 16, VII do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990a). No segundo caso, a rua é locus de intervenção de caráter normativo e higienista, como o recente recolhimento compulsório de crianças e adolescentes, proposto em 2011 no Rio de Janeiro sob a justificativa de proteção estatal frente ao uso de substâncias psicoativas ilícitas, conformando um modelo penal-sanitarista de reação às liberdades incontinentes nas ruas (Vicentin; Assis; Joia, 2015).

Diversos estudiosos (Ferreira; 1979; Gregori, 2015; Melo, 2011; Rosemberg, 1994) já sinalizaram os principais problemas das intervenções institucionais que se voltam para os meninos em situação de rua, destacando a desconsideração da heterogeneidade que implica o viver nas ruas, como "a viração e a circulação" (Gregori, 2000, p. 160) e a desarticulação entre os próprios serviços da rede socioassistencial. Tais modos de operar reproduzem a rachadura entre usuário e serviço e fragilizam a garantia de direitos.

As ações dirigidas às crianças em situação de rua ganharam, após o ECA e a implantação dos Sistemas Únicos de Saúde (SUS) (Brasil, 1990b) e de Assistência Social (SUAS) (Brasil,1993), sua faceta de política de Estado, incorporando parcialmente a perspectiva crítica experimentada por algumas ações de educação de rua (empreendidas por organizações não governamentais), bem como das agências internacionais (como o Fundo das Nações Unidas para a Infância/UNICEF), com a proposição do Sistema criança-rua (Stoecklin, 2003). Com isso, ampliaram-se as ofertas de ação na rua - como o Consultório na Rua na política de atenção básica; os serviços de abordagem de rua na política de assistência, como o SEAS (Serviço Especializado em Abordagem Social às Pessoas em Situação de Rua)3 - e as ações de busca ativa desenvolvidas pela rede de atenção psicossocial, como os CAPS. No entanto, a despeito deste conjunto de esforços programáticos, articulados intersetorialmente também por meio da política nacional de inclusão social da população em situação de rua (Brasil, 2008), crianças e adolescentes em situação de rua encontram-se distantes de uma atenção integral em saúde.

Como bem aponta Melo (2011), discutindo os direitos humanos de crianças em situação de rua, o cerne da garantia de direitos a essas pessoas tem dois pontos centrais: "de um lado, o reconhecimento da possibilidade de fala e de construção de sentidos pelas próprias crianças e adolescentes em situação de rua e, de outro, o aumento de sua capacidade de ação social" (p. 39). Segundo o autor, a constituição do ECA foi apenas parte de um amplo processo que deveria ter como foco o "resgate de cidadania" (Melo, 2011, p. 54). Nesse sentido, "nenhuma ação social deve, portanto, forçar a criança a se adaptar [...]" (Melo, 2011, p. 55) aos serviços e políticas públicas; ao contrário, é preciso que haja "reconhecimento de competências [das crianças] para que possam postular seus direitos" (Melo, 2011, p. 50).

Na esteira de uma perspectiva orientada pelos direitos humanos de crianças e adolescentes, nos pareceu importante acompanhar estas tensões entre controle e agência (Melo, 2011) das crianças e, nessa direção, encontrar uma perspectiva conceitual e metodológica que pudesse acompanhar os sentidos produzidos nos encontros das crianças e adolescentes com as políticas, analisando principalmente as tensões entre o que os serviços dispõem e os movimentos de crianças; entre circuito e circulação.

Para tanto, nos valemos da noção de circuito tal como desenvolvida por Rui e Mallart (2015) e também da noção de nomadismo (Deleuze; Guattari, 2012). A partir dessa análise, foi possível compreender de que forma o circuito se maquina dentro e fora das instituições; sobre esse aspecto, Gregori (2000) sinaliza: "eles se 'viram', circulando" (p. 19). Assim, os circuitos se forjam enlaçados às trajetórias individuais, considerando que elas também são "[...] construídas por meio dos trânsitos incessantes entre rua, quebradas, diversas instituições de assistência e de controle" (Rui; Mallart, 2015, p. 07, grifo dos autores). Portanto, cria-se uma transversalidade entre o ritmo de ordenação dos "indesejáveis" e as narrativas pessoais, constituindo um liame entre as instituições e as trajetórias individuais (Rui; Mallart, 2015). Assim, o conceito de trajetória diz respeito às narrativas pessoais, às histórias de vida, enquanto que a noção de circulação se refere ao fluxo engendrado por essas pessoas, que por sua vez esquadrinha possibilidades de trânsito (Rui; Mallart, 2015). Desse modo, há uma sobreposição entre fluxo populacional e trajetórias individuais, diagramados a partir das lógicas do poder. Para além dos fluxos e circuitos institucionais, verifica-se a possibilidade de movimentos nômades (Deleuze; Guattari, 2012), entendidos aqui como uma irredutibilidade ao aparelho de Estado na forma de máquina de guerra, ou seja, forças que de alguma forma se voltam contra o aparelho de Estado.

O nômade, segundo Deleuze e Guattari, encontra-se frequentemente ameaçado pelo aparelho de Estado, precisamente por ser exterior a ele e por forjar um modo de existência apartado dos órgãos do poder. "Ele ocupa, habita, mantém esse espaço e aí reside seu princípio territorial" (Deleuze; Guattari, 2012, p. 55). Além disso, cria trajetos costumeiros; mas, por mais que haja pontos, paradas, repousos nos trajetos, eles só existem subordinados à determinação nômade.

Tal crivo analítico, no entanto, pede uma regra de prudência: "o problema não é apenas circular, pois a questão seria avaliar quando a velocidade do circuito coloca armadilhas e quando ela é máquina desejante e guerreira de combate aos fluxos do capital [...]" (Medeiros; Lemos, 2011, p. 941).

A pesquisa de mestrado (Mendes, 2019) junto aos "encontros" dos serviços com as crianças nos permitiu identificar que, de um lado, crianças e adolescentes forjam modos de vida a partir da viração, isto é, manipulando diversos papéis sociais e produzindo circuitos institucionais singulares (Gregori, 2000); de outro lado, políticas e serviços propõem formas de cuidado que privilegiam a fixação. Nesta tensão, a itinerância do cuidado mostrará ser uma disposição vital dos serviços.

 

Metodologia

A referência metodológica escolhida é a cartografia, como método de pesquisa-intervenção que "pressupõe uma orientação do trabalho do pesquisador que não se faz de modo prescritivo, por regras já prontas [...]" (Passos; Barros, 2015a, p. 17). No entanto, não significa que esse método caminhe sem direção. Para Passos e Barros (2015), toda pesquisa é uma forma de intervenção, que se dá no plano de agenciamento entre sujeito e objeto, como algo que coemerge. Portanto, a cartografia propõe uma inversão de método; se tradicionalmente metá-hódos pressupõe caminhar para atingir um destino prefixado, hódos-metá consiste em caminhar para se atender aos processos, movimentos e efeitos da pesquisa. Sendo assim, não se estabelecem estatutos prévios a respeito da realidade, do conhecimento, logo, a construção de sujeito e objeto são produtos da pesquisa. Desse modo, não se procura estabelecer pontos externos e fixos, mas a "experiência direciona o trabalho da pesquisa do saber-fazer ao fazer-saber, do saber na experiência a experiência do saber." (Passos; Barros, 2015a, p. 18). No caso desta pesquisa, tal inversão metodológica permite a aproximação do traçado de movimentos das crianças, buscando construir um saber a partir da experiência.

Esse acompanhamento, processual e plástico, foi necessário para trazer à tona movimentos nômades em meio aos circuitos, em meio aos "entre" criados pelos meninos e meninas em situação de rua. Neste caso, o cartógrafo em questão se aproximou da "etnologia do efêmero" (Meunier, 1999, p. 84), de forma a dar visibilidade aos movimentos fugazes, imperceptíveis ou pouco considerados pelos atores das políticas no encontro com as crianças.

Portanto, quando se propõe a acompanhar, traçar linhas, imergir no plano existencial, a cartografia se faz em movimento, produzindo intervenção. Desse modo, os traços da cartografia compõem um mapa, no entanto, não devem ser confundidos com decalque - que seria fechado, estático. "O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente" (Deleuze e Guattari, 2011, p. 30).

Procurou-se organizar o trabalho a partir das redes socioassistencial e de saúde do município de São Paulo, especialmente a do centro da cidade. No entanto, o CAPSij ocupou lugar de referência, tanto de partida quanto de chegada nas andanças da pesquisa; além disso, esse ponto também propiciou ligações imediatas com o fora do serviço, com o extramuros, possibilitando conexões com a rua e outros pontos da rede que se faziam na estratégia "CAPS na Rua". Esta estratégia consiste no deslocamento de parte da equipe para os pontos de maior vulnerabilidade; lá, os profissionais desenvolvem ações de produção de cuidado, de acordo com as demandas do território. Além disso, a intervenção também busca aportes aos demais equipamentos da rede socioassistencial e, para tanto, a atuação em rede se faz fundamental. Em vista disso, o pesquisador acompanhou as intervenções dentro e fora dos serviços4, o que acabou por instaurar dois platôs distintos, onde se pôde acompanhar modos singulares de vida das crianças. Acompanhar as intervenções do "CAPS na Rua" possibilitou experimentar a itinerância como um modo de produzir cuidado (Lemke, 2009).

Outra instituição que se acompanhou foi o SEAS IV, também de forma itinerante, uma vez que a equipe concentra seus atendimentos no trabalho social de busca ativa e abordagem nas ruas, e, mais especificamente, junto às cenas abertas de uso de drogas5. Vale ressaltar também que muitos destes atendimentos são compartilhados com o CAPSij, principalmente aqueles nos arredores da Cracolândia.

A fim de acentuar a diferença entre os modos de vida nas ruas, constituímos dois campos de pesquisa: um nas imediações da Praça da Sé e outro na Cracolândia, quadrilátero localizado no bairro da Luz, próximo à Praça da Sé. Esses são os pontos de maior vulnerabilidade e incidência de meninos e meninas em situação de rua, tanto é que as intervenções de "CAPS na Rua" são nesses territórios.

As imediações da Praça da Sé são regiões conhecidas pela presença de meninos e meninas que passam lá parte do dia, num funcionamento em bando, o "Bando da Sé", tomado aqui como um sujeito múltiplo. Já na região da Cracolândia (Rui, 2014), outra paisagem se compôs, pois, a circulação perimetral das equipes é menor, comparado-se ao campo da Praça da Sé; porém, esse outro modo de circular pelas ruas evidencia a importância da Cracolândia aos olhos dos diferentes atores sociais. Basicamente, as equipes se concentram em um quadrilátero composto por alguns quarteirões e dentro dele realizam seus atendimentos. Justaposto à dinâmica territorial, o modo de vida na rua se dá de forma absolutamente distinta: crianças e adolescentes não formam grupos, a circulação tem outras intensidades, outras velocidades e repousos. Como se pôde perceber, na Cracolândia as crianças e adolescentes procuram estabelecer alianças, mesmo que efêmeras, ao invés de constituírem grupos - como no caso da Sé. Em função disso, nesse território, acompanhou-se uma criança de dez anos que, na ocasião da pesquisa, estava em situação de rua há três anos e nove meses, de forma a delinear o seu circuito.

Todas as atividades da pesquisa, que consistiram no acompanhamento das equipes em atividades na rua e nos contextos institucionais (reuniões de equipe e de articulação intersetorial), durante o período de fevereiro a agosto de 2018, foram registradas em diário (Passos; Barros, 2015b), estratégia condizente com a processualidade e itinerância do pesquisar. Outras estratégias foram realizadas, como entrevistas ou conversas com os profissionais de referência das diversas instituições que os acompanhados acessaram. A análise dos circuitos e circulação foi realizada por meio da: a) construção de narrativas, a partir dos diários, de situações analisadoras, isto é, que evidenciavam certas relações de saber-poder em jogo entre crianças e adultos (Lourau, 1993); b) pela comparação entre movimentos de composição e movimentos díspares de crianças e dos serviços. A análise de implicação do pesquisador, adulto, entre equipes e crianças, compôs também um procedimento importante do trabalho de análise. Neste artigo, destacaremos Moacyr, uma das crianças acompanhadas que, tendo transitado nos dois loci, nos permitirá ainda delinear diferenças quanto ao viver nas ruas nesses contextos, assim como quanto aos modos de conexão entre crianças e serviços.

 

A vida nas ruas: encontros e desencontros com as políticas públicas

Numa terça-feira à tarde, - como o habitual - a equipe técnica do CAPSij-Sé realizava o trabalho de 'CAPS na Rua' [...]. Desta vez ela circulava no bairro da Luz, pelas imediações da Praça Júlio Prestes, região também conhecida por Cracolândia. A equipe também cria seu circuito e produz sua própria trajetória dentro dos territórios, boa parte em função dos meninos e meninas em situação de rua. No dia em questão, a equipe já estava quase por terminar sua tarde no território quando descia a Avenida Duque de Caxias, em direção à Sala São Paulo [sala de concertos, frequentada pela elite paulistana]. De repente, os dois técnicos [enfermeira e oficineiro] avistaram um menino sozinho à frente de um bar - na mesma calçada. Pequeno e delgado, ele estava sentado com as pernas cruzadas, sereno, de costas para a porta do tal estabelecimento e de frente para rua - numa determinada posição que não comprometia a circulação dos clientes e também se fazia visto pelos transeuntes. Vestido com uma camisa do Flamengo - um tanto usada e pouco maior do que seu tamanho exigira−, bermuda de Tactel cinza, descalço, com os pés sujos e desgastados, a ponta dos cabelos amarela contrastava com o restante de sua figura, principalmente com a negritude de sua pele. Em sua frente, próximo aos seus pés, havia um copo plástico transparente, de 300 ml, que permitia constatar algumas moedas, não mais do que cinco. A equipe ficou demasiada contente por vê-lo, esse contentamento se devia à possibilidade de colher informações sobre o dia anterior, quando o menino, encaminhado a um serviço de abrigamento da assistência social (SAICA), evadiu-se prestes a chegar ao seu destino.

Na primeira tentativa de diálogo, logo após os cumprimentos iniciais, ele disse que não poderia ser atendido naquele momento, pois estava esmolando. Portanto, a conversa teria de ficar para um momento posterior. Não satisfeita com a resposta e a impossibilidade de dar continuidade ao atendimento, a equipe do CAPSij perguntou se poderia voltar algum tempo depois, e o menino disse que sim. Minutos depois, quando a equipe já estava pronta para se retirar do território, passou no mesmo ponto a fim de encontrá-lo, mas ele não estava mais lá. Este é Moacyr (diário campo, 20/03/2018).

A cena acima é corriqueira para as equipes que trabalham com essas pessoas, pois, no dia a dia, a constituição dos atendimentos se faz com dificuldade, considerando que a criança está nas cenas de uso - inclusive muitas delas se recusam a tal tarefa por acharem desrespeitoso para com o profissional; se a criança está pedindo dinheiro, também é custoso porque está em hora de "trabalho"; se ela está acompanhada de adultos, geralmente não deixam a equipe se aproximar, por inúmeras questões, principalmente por medo de que ela produza alguma denúncia que se volte contra eles, ou também por atrapalhar atividades que fomentam e envolvem o comércio varejista de drogas. Então, a equipe do CAPSij peleja por uma brecha, geralmente estreita e pontual, senão, ela também corre o risco de sucumbir ao engodo de uma circulação autocentrada e, por sua vez, ineficaz. Mas, para encontrar uma fenda, é preciso conhecer a circulação e a cultura singular da rua (Mafiltano, 2008), dotada de uma série de hábitos e comportamentos, improvisos, fugacidades, em meio à pobreza, violações de direitos, violências e exclusões.

Vejamos a forma "bando" e como as crianças "habitam" as ruas de modo a "fazer dela sua morada" (Meunier, 1978, p. 19). Meunier (1978) analisa, nos anos 1970, a constituição do modo de vida de um grupo de crianças e adolescentes que vive nas ruas de Bogotá, destacando sua formação grupal, a "gallada", e os modos de habitar as ruas numa prática de liberdade, inventando trajetos que escapam à pobreza e aos controles citadinos. Seus "sinais de astúcia e violência" (p. 65) com e contra a sociedade se tornam denúncia da maneira com que são tratados. Dizem aos adultos e ao mundo todo que "a criança morre em vós e por vossas mãos. Olhai para vós mesmos." (Meunier, 1978, p. 66, grifo do autor).

Se os meninos de Bogotá circulam com certa liberdade e descompromisso, norteando-se mais pela aventura do que pela tutela, os daqui devem enfrentar os domínios dos "pais de rua", que mantêm meninos e meninas num regime de vida próximo ao de escravidão, operando de forma a explorar as crianças tanto economicamente, pela mendicância ou venda de drogas, quanto sexualmente. Além disso, o "pai de rua" abriga as crianças em sua própria casa, onde também retém os documentos de cada uma, consolidando esse regime de vida assujeitada:

Com Moacyr não foi diferente, o menino já foi angariado por este 'pai de rua' logo quando passou a morar na rua com maior efetividade. O menino começou a frequentar as imediações da Praça da Sé como um primeiro lugar a ser habitado; esse território é conhecido pelos moradores de rua como um local de refúgio, principalmente pelas crianças (Gregori, 2000). Moacyr passou a fazer parte do grupo de crianças exploradas por esse tal "pai de rua"; no entanto, sua mãe - também em situação de rua - estava morando nas proximidades. Assim que ela tomou conhecimento da situação, foi reclamar com o explorador: o resultado desse confronto foi a expulsão de Moacyr do grupo. Depois desse acontecido, o menino teve de escolher outro lugar para morar (diário de campo, 18/05).

O bando de meninos e meninas vive nas imediações da Praça da Sé, porém, à noite, eles procuram por "mocós", lugares que funcionam como uma "casa", um repouso. Assim, quando não se deseja ir ao abrigo ou se consegue escapar do "pai de rua", eles procuram por um lugar minimamente seguro para pernoitar:

Qualquer pessoa, se reparar bem, pode ver que debaixo das pontes tem às vezes buracos feitos pelos ratos. A gente só ia lá e terminava o trabalho: aumentava o buraco, do tamanho pra gente caber. Era só pegar um papelão e forrar o chão, porque é tudo de areia debaixo da ponte, na parte que ela já está no chão. Assim a gente fazia o nosso mocó (Ortiz, 2010, p. 64).

Então, há em algumas paradas aspectos que transcendem a sobrevivência, por exemplo, a relação que se tem com o "mocó" ou com os próprios pertences. Depois do "ganha-pão", vai-se à casa, mesmo que seja do "pai de rua" ou na calçada do próprio ponto de trabalho, e lá é mais um espaço "entre", um vão; porém, nem por isso não deve ser compreendida como casa. Como no caso de Moacyr, que "[...] mora na mesma calçada em que trabalha: quarteirões próximos à Avenida Rio Branco reside um dos pontos de trabalho - o bar; quarteirões adjacentes à Rua Mauá fica a sua casa - em frente à loja Zapata" (diário de campo, 23/03).

A alternância entre Casa e Rua, que muitas vezes revela qualidades sobre velocidade e repouso, também informa sobre os diferentes itinerários que essas crianças traçam, dentro e fora da cidade, sempre em circulação, o que culmina na questão: "para onde vão essas crianças migradoras? A lugar nenhum. Vão, simplesmente" (Meunier, 1978, p. 50), numa espécie de uso empírico da cidade, guiando-se por afecções (Deleuze, 2012). O "pai de rua" controla, explora, vigia, mas, no momento em que se vai à procura de comida ou angariar dinheiro, por exemplo, apresenta-se a possibilidade de nomadizar (Deleuze; Guattari, 2012), e o bando da Sé faz uso de suas margens de liberdade no decorrer do dia:

Quanto ao bando da Sé, pode-se dizer que eles não têm uma rotina fixa, mas todos os dias têm de procurar por comida, água, algum logradouro para se limparem: isso não comporia uma rotina? Eles têm um traçado claro: dormem entremeados às colunas do viaduto 23 de maio, lá é seguro, coberto e se mantém clandestinos - inclusive dos "pais de rua". Quando saem desse mocó, vão às redondezas da Praça da Sé; lá, a comida e o dinheiro são mais abundantes. Enfim, essa é a rotina deles, o que lhes falta? (diário de campo, 20/03/2018).

Em parte, devido a esse modo de vida, essas crianças representam "um desafio à burguesia" (Meunier, 1978, p.51), considerando que elas não vão à escola, não têm residência fixa, devem grande parte de sua sobrevivência a pequenos furtos, trabalhos informais, enfim, essa vida desmedida, evidentemente, representa um incômodo aos poderes vigentes. Do mesmo modo, no Brasil, esse incessante trânsito entre abrigamento institucional e rua também acabou por produzir um circuito com velocidades e lentidões próprios (Rui; Mallart, 2015). Tanto nas redondezas da Praça da Sé quanto nas fronteiras da Cracolândia, há um enorme esforço por parte do tecido social para que se regulem os fluxos dos transeuntes, principalmente daqueles que se encontram em situação de rua - sobretudo crianças e adolescentes. Isso fez com que a segregação espacial ganhasse proporções substanciais, operando de forma austera com o objetivo de tornar o espaço hermético, higiênico e livre dos "indesejáveis".

Um exemplo de espaço que passou a ter forças gravitacionais próprias em decorrência de diversas intervenções da urbe foi a Cracolândia (Nasser, 2017; Rui, 2014; Raupp; Adorno, 2011), assim batizada para circunscrever, estigmatizando, a população em situação de rua que faz uso de drogas em seu cotidiano. Aos poucos, ver-se-á que a geometria da região passou a ter funcionamento e ritmo próprios, alinhados às exigências de segregação espacial e circuitos institucionais da cidade, principalmente devido ao uso de crack (Frugoli Jr; Sklair, 2009; Nasser, 2017; Raupp; Adorno, 2011; Rui, 2014; Rui; Mallart, 2015).

Quando se trata das crianças da Cracolândia, a dinâmica atual é bastante diferente do que aquela relatada pela literatura (Ferreira, 1978; Gregori, 2000; Ortiz, 2010; Meurier, 1978; Rosemberg, 1994). Nesse território, as crianças vivem geralmente sozinhas. Não se veem grupos de crianças em meio aos adultos, elas ficam solitárias ou em pequenos grupos de adultos, mas sem constância. Também demonstram ter grande independência em relação ao mundo adulto. Tanto é que realizam pequenos trabalhos no comércio varejista de drogas, mas, segundo as equipes do CAPSij e do SEAS, são atividades esporádicas e que não necessariamente remetem a um vínculo.

O menino Moacyr é conhecido da miniequipe desse SEAS, que trabalha com crianças e adolescentes; desde que ele chegou à Cracolândia, é atendido por esse serviço:

A equipe conta que o menino, na maior parte do tempo, foi criado pela avó, Cláudia, e pela mãe, Iracema. Sua mãe desde cedo ensinou-o a esmolar, os dois saíam pela cidade pedindo dinheiro, com o passar do tempo, ela começou a explorá-lo e exigia alguma quantia de dinheiro ao final de cada volta da rua [...]. Nesse período, Iracema intensificou o uso de drogas - principalmente de crack − e passou a se relacionar com um rapaz que também faz usos intensos de diversas drogas, essa dinâmica fez com que o casal fosse morar na Cracolândia. Quando Moacyr recebeu essa notícia, ficou revoltado e foi procurar sua mãe, seu objetivo era claro: encontrá-la e pedir para ela voltar para casa, pois ele não queria uma mãe "nóia". De fato, esse encontro aconteceu, mas o resultado não foi o esperado, Iracema disse ao filho que não mudaria de vida, em contrapartida, Moacyr retrucou, alegando que se ela não voltasse para a casa deles, ele fugiria de casa. E foi o que aconteceu, ele sustentou a sua fala, assim como sua mãe, que permaneceu na Cracolândia, e ele [agora com 10 anos], doravante na rua, aos sete anos (diário de campo, 18/05/2018).

Em função do SEAS ter como uma de suas atribuições a articulação de rede, a equipe já realizou diversas intervenções para com Moacyr, tais como: atendimentos familiares e em conjunto com a saúde; articulação de vaga em SAICA; e, inclusive, uma internação sem o consentimento da criança;

Uma das técnicas que acompanha Moacyr comenta sobre o assunto:

Foi um dia depois de uma ação truculenta da polícia na região. Encontraram o menino deitado no mesmo ponto em que sempre fica - na frente da loja de sapatos -, imediatamente, ligou-se para o pai vir pegá-lo, a partir disso, deu-se início ao processo da internação compulsória. [...] Ela afirma também que Moacyr não faz uso compulsivo de crack ou de outra substância, na maioria das vezes em que a equipe do SEAS o encontra, ele está dormindo, e sempre fora do fluxo. Ela também falou que até onde se sabe o menino não está envolvido com o crime organizado (diário de campo, 17/07/2018).

É importante salientar que a equipe do SEAS já tinha o intuito de interná-lo, pois, para eles, essa seria a única medida efetiva a ser tomada. Sobre a internação, primeiro levou-se o menino ao CRATOD6 (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas) e, com a anuência da avó e do pai, internaram-no compulsoriamente. Depois de quatro dias, ele foi levado ao CAISM Philippe Pinel (Centro de Atenção Integrada de Saúde Mental).

Para a equipe (que responde também pela família), se ele não melhorar ou não aderir ao tratamento de CAPSij, e, se voltar à Cracolândia, será internado novamente, até aderir a algum tratamento. Ou seja, tratamento compulsório até a plena adesão. De certa forma, está montado o circuito: da internação compulsória à sua casa com tratamento no CAPSij e, caso tenha alguma "recaída" ou volte para a rua, nova internação.

Os orientadores do SEAS expõem seus desejos de abordar as crianças e elas solicitarem a saída da rua, de preferência de volta à família de origem, senão, ao SAICA. Na ação da equipe, proteção se confunde com tutela; cuidado com institucionalização. A internação compulsória aponta para essa obliquidade, reflete como a combinação das políticas públicas podem operar a partir de lógicas penal-sanitárias. Isto é, por meio do direito à saúde, justifica-se o recolhimento e a privação de liberdade de crianças e adolescentes, produzindo-se o afastamento dos jovens dos contextos sociais e comunitários e a reafirmação de um circuito aprisionante (Vicentin; Assis; Joia, 2015).

Cabe ressaltar que, muitas vezes, a demanda pela internação recobre-se, para as equipes e família, da função de proteção enquanto um lugar de descontinuidade aos circuitos muitas vezes mortíferos e violentos da rua, cumprindo a função de "acolhimento institucional". Entretanto, a centralidade que a droga ocupa na internação pode obscurecer o vasto campo de vulnerabilidades que atravessam estas vidas, tornando a "dependência química" o objetivo central da intervenção, correndo o risco de institucionalizar experiências transitórias ou contingenciais no caso de crianças e adolescentes e de estigmatizá-los precocemente (Joia; Oliveira, 2016).

Segundo as equipes, o consumo de drogas de Moacyr é insuficiente para conduzir à internação, mas, na prática, isso foi um facilitador. Se a quantidade de droga não foi o agente produtor da internação, qual foi a prescrição técnica que embasou a intervenção? A combinação de Estado, Família, Psiquiatria e o desejo de normalizar: a convicção de que se pode corrigir pessoas por meio de internação psiquiátrica ainda persiste, o tratamento moral ainda pulsa como um hábito fundador. O que o conduziu à internação foi o intuito de colonizá-lo; uma tentativa de introduzir outro regime subjetivo. Moacyr é um condenado da terra7 (Fanon, 2005) - não foi em vão que ele foi capturado num sábado de manhã, "em casa".

Esta intervenção interrompe a circulação de Moacyr que expressava, por meio de suas trajetórias, a não aderência a um projeto de vida sedentário. Ele insiste num nomadismo, colocando o SAICA como abrigamento intermitente e o CAPSij como um ponto de referência de cuidado, tanto do corpo físico quanto da dimensão psicossocial, mas não como um lugar total. Durante o tempo que vive nas ruas, Moacyr fixa pontos de repouso. Como vimos, quando muito cansado, ele solicitava acolhida integral no CAPSij, estabelecendo intervalos de cuidado para a alimentação, descanso e acolhida:

"[...] quando vai ao CAPS, o menino mostra sua carência afetiva; por exemplo, nessa última quarta-feira, 'pediu beijo de boa noite'", diz a técnica e acrescenta que, segundo sua óptica, o menino pede limite, dando a entender que faz determinadas coisas, tais como subir no telhado, apenas para ouvir que tem que descer, e que isso não se pode fazer (diário de campo, 18/05/2018). Mas, quando a equipe do CAPSij vai à rua, os desafios são outros: frente à impossibilidade de elaborar oficinas na rua, atividades no território - como já acontecera -, o discurso institucional fica, frequentemente, reduzido a "venha para o CAPS". Essa fala, que se concentra no retorno ao CAPSij e não se traduz no fazer algo com eles, nem sempre afeta as crianças que estão em movimento. O retorno ao CAPSij poderá oferecer consulta técnica, ou ainda a inserção na UA8 (Unidade de Acolhimento) que articula abrigo e cuidado. Com caráter residencial, transitório e voluntário, o encaminhamento de Moacyr à UA teria favorecido articulações territoriais na produção do cuidado, bem como o direito à convivência familiar e comunitária. Situada em outro bairro central, mas distante da circulação das crianças e ainda nova como proposta, Moacyr também não se vinculou.

Quando conectado ao bando da Sé, contava com maior proteção e cooperação do grupo de crianças. Ao se mudar para a Cracolândia e ter de viver sozinho, outros modos de viração se fizeram necessários. De fato, os deslocamentos estão ligados diretamente aos arranjos territoriais. Na Cracolândia, Moacyr anda pouco para conseguir cavar um espaço na calçada à frente do bar; lá, ele se senta e espera o dinheiro cair no copo - evidentemente, suas estratégias para conseguir dinheiro não se restringem a apenas essa. Já o bando da Sé se vê obrigado a percorrer maiores distâncias para conseguir os itens necessários à sua sobrevivência. Portanto, há dois modos de circular: um lento e curto - como Moacyr − e outro veloz e longo - como o bando da Sé. Mas nos dois casos forjam-se territórios que são abandonados pela força da circulação. Os encontros (e desencontros) entre crianças e serviços evidenciam algumas tensões. A distância entre usos feitos pelas crianças e usos propostos pelas equipes são parte da dificuldade da construção do encontro, além da experiência de se estar na abordagem de rua frequentemente em meio à cena de uso. O uso que as crianças da Cracolândia fazem do CAPS é de intervalo, de parada, de contratempo (Deleuze, 2016). Nem por isso deve-se desqualificar esse uso. Enfim, quando as crianças querem ir ao CAPSij, elas vão, chegam lá a fim de "dar um tempo" e, saciadas algumas necessidades, vão-se.

As equipes de Saúde e Assistência - cada uma ao seu modo -, tentam sensibilizar as pessoas e fazer com que elas entendam que aquilo não é vida que se deva levar, que não é saudável e nem adequada. Há de chegar o dia do "insight", em que se reconheça que é preciso parar com tudo isso, ir morar numa casa higiênica, com família e filhos, pagando os impostos corretamente, cada um dentro do seu ciclo de docilidade. Uma pergunta permanece em aberto: e a demanda das crianças? Ou antes, "o que nos dizem as crianças?" (Deleuze, 2011). Pois, decerto, a Cracolândia não é uma fila de espera para os atendimentos dos CREAS e CAPSij.

Tal como as equipes, o pesquisador viveu em parte os desafios desses desencontros e das dificuldades e impasses dos serviços. Em boa parte do percurso de pesquisa, precisou ouvir as crianças por meio do seu silêncio - numa "etnologia do efêmero" - e apostar na escuta dos seus deslocamentos e circulação. É também e justamente por esse movimento - corriqueiro - de não se atentar às circulações e composições desejantes que se produz a "não-aderência".

Quanto ao SEAS, o serviço foi produzido com o intuito de atender às pessoas nas cenas de uso e de articular a rede socioassistencial a partir dos atendidos. Contudo, concentra-se em intervenções que resultam no acolhimento institucional, sobretudo, em SAICA. Assim, a equipe se percebe impotente devido ao fato de meninos e meninas não permanecerem no abrigamento. Já o CAPSij, quando concentra suas forças na fala "vamos para o CAPSij", perde potência de produção de cuidado no território (Lemke, 2009) e de ser reconhecido por meninos e meninas como um local de cuidado, que pode reduzir os danos vividos pela "situação de rua" e abrir brechas.

Certamente, há um conjunto de disposições sócio-históricas e condições socioeconômicas e políticas - de classe, raça, gênero e idade - que inscrevem essas crianças e suas famílias num ciclo de violações de direitos. Como já sinalizava Rosemberg (1994), meninos e meninas, majoritariamente meninos negros (o que se repete hoje), "usam o espaço da rua para além da circulação" (p. 34), isto é, principalmente como local de trabalho, sinalizando as condições de desigualdade social e a rua como uma resposta circunstancial de certas crianças e adolescentes pobres a pressões da vida familiar. Segundo o censo de 2019, há 664 crianças e adolescentes em situação de rua na cidade de São Paulo, sendo que 538 estão "acolhidos" institucionalmente e 126 vivendo nas ruas (São Paulo, 2019).

Se o processo de trabalho das equipes se desloca do "acolhimento como fixação e normalização da criança" à produção de cuidado, com respeito à agência da criança, aumenta as possibilidades das políticas de Saúde e de Assistência Social construírem caminhos para legitimar a garantia de direitos. Certamente, esse deslocamento não responde ao conjunto de políticas necessárias para o enfrentamento da pobreza e para uma plena garantia de direitos de crianças e adolescentes em situação de rua, mas estará próximo de uma posição em que se criam "condições de afirmação crítica pelos próprios sujeitos interessados, as crianças e adolescentes em situação de rua para que, nas práticas do cuidado de si, com promoção e apoio dos adultos, possam resistir a regimes de verdade que lhe são impostos" (Melo, 2011, p. 35).

 

Conclusão

Este trabalho se debruçou sobre a circulação de crianças e adolescentes no centro de São Paulo, trazendo dois tipos distintos de modos de vida na rua: a de um menino que vive "sozinho" nas imediações da Cracolândia e a de um bando de meninos e meninas que vive ao redor da Praça da Sé - na maior parte do tempo. Nossa perspectiva de análise buscou arguir os modos pelos quais as políticas de saúde se agenciam com tal população, suas necessidades e demandas. Impelidos à rua por miséria e pauperização da vida, meninos e meninas necessitam de ações socioassistenciais; afinal, são crianças e adolescentes que deixaram suas casas por motivos forçados, precisamente por ser insuportável a vida nas condições existentes, e demandam um conjunto articulado de políticas de moradia, educação e cultura, trabalho e renda, além de acesso à saúde.

Já no contexto de institucionalização dos direitos de crianças e da exigibilidade de políticas sociais, quando se analisa a circulação de meninos e meninas em situação de rua, é possível notar que há, por parte das crianças e adolescentes, usos singulares dos serviços, produzindo "circulação" naquilo que se esperaria ser um circuito institucional de fixação, instaurando tensões na relação com os aparelhos de Estado.

As crianças e adolescentes, ao modo de uma lógica geográfica (Deleuze; Guattari, 2012), privilegiam as conexões espaciais e os usos ativos da cidade, instaurando paradas, ritmos e expressividades nem sempre acolhidas e incluídas nas lógicas dos programas e dos serviços que operam por "aderência". Porém, quando a busca ativa e a itinerância dos serviços é entendida como um princípio político de defesa e expansão das vidas (Lemke, 2009), crianças e adolescentes também podem ser reconhecidos como sujeitos políticos que recusam as tutelas e os controles característicos das políticas a eles direcionadas.

A itinerância dos serviços e das equipes cria possibilidades de dar sentido aos diferentes modos de "habitar" o território pelas crianças e de exercitar as políticas públicas em consonância com os modos concretos de vida e com a agência e participação das crianças, abrindo possibilidades de ampliar a garantia de direitos humanos numa perspectiva territorial e em liberdade. Assim, caberia aos serviços, tanto CAPSij quanto SEAS, lançarem-se a outro tempo que não o do "resgate" dessas vidas, mas sim ao tempo de criação do inédito.

 

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Data de recebimento/Fecha de recepción: 30/09/2020
Data de aprovação/Fecha de aprobación: 23/12/2020

 

 

1 O objetivo do Serviço de acolhimento institucional (SAICA) é "oferecer acolhimento provisório e excepcional para crianças e adolescentes de ambos os sexos, inclusive crianças e adolescentes com deficiência, em situação de medida de proteção e em situação de risco pessoal, social e de abandono, cujas famílias ou responsáveis encontrem-se temporariamente impossibilitados de cumprir sua função de cuidado e proteção" (São Paulo, 2018a).
2 O objetivo do CAPS infanto Juvenil, dispositivo central da Reforma Psiquiátrica Brasileira, é "organizar juntamente com a atenção básica, o cuidado em saúde mental à infância e adolescência no seu território, (...) atendendo crianças e adolescentes com diferentes e complexas manifestações de sofrimento psíquico, sejam elas por transtornos mentais, por necessidades decorrentes do uso de substâncias psicoativas e/ou outras situações de vulnerabilidade que requeiram cuidado intensivo, (...) substituindo qualquer modelo de exclusão" (São Paulo, 2016, p.12).
3 O SEAS modalidade IV atende a pessoas em situação de rua de todas as faixas etárias, além de dar suporte à Coordenação de Pronto Atendimento Social (CPAS) nas situações de emergência. (cf. Portaria 46/2010 da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social) (São Paulo, 2010).
4 É preciso realçar que o ano de 2018 foi conturbado para grande parte dos equipamentos da região central, pois houve inúmeras mudanças das Organizações Não-Governamentais que gerem os serviços; alterações administrativas que influenciaram no cotidiano dos trabalhadores. Em função disso, as possibilidades de coleta de dados na região da Praça da Sé ficaram um tanto restritas por conta da inconstância das equipes - exceto a do CAPSij -, realizando trabalho de rua; mesmo assim, foi possível participar de reuniões de rede envolvendo tanto Assistência Social quanto Saúde.
5 Conforme Portaria nº 46/2010 da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo (São Paulo, 2010).
6 O centro de referência no tratamento de dependência química está localizado estrategicamente no centro da cidade de São Paulo. A unidade, vinculada à Secretaria de Estado da Saúde, oferece atendimento 24 horas por dia (São Paulo, 2018b).
7 O termo foi cunhado por Frantz Fanon (2005) em "Os condenados da terra", em que discute o contexto colonial: "A originalidade do contexto colonial é que as realidades econômicas, as desigualdades, a enorme diferença dos modos de vida não conseguem nunca mascarar as realidades humanas" (p. 56).
8 "As UA funcionam 24 horas, 7 dias por semana e são voltadas para pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, de ambos os sexos, que apresentem acentuada vulnerabilidade social e/ou familiar e precisam de acompanhamento terapêutico e proteção temporária" (Brasil, 2019).

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