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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades  no.29 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2021

 

ESPAÇO ABERTO ESPACIO ABIERTO

 

Reflexões e debates emergentes sobre justiça juvenil

 

Emerging reflections and debates on juvenile justice

 

Reflexiones y debates emergentes sobre justicia juvenil

 

 

Jalusa Silva de ArrudaI; Maria João Leote de CarvalhoII

IAdvogada e doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Brasil. É professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Brasil, e pesquisadora associada do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM/UFBA), Brasil. E-mail: jsarruda@uneb.br
IISocióloga, bacharela em Educação e doutora em Sociologia pela Universidade NOVA de Lisboa, Portugal. Desenvolve pesquisa de pós-doutorado com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FTC) (SFRH/BPD/116119/2016) sobre os jovens na justiça juvenil e penal em Portugal. E-mail: mjleotec@sapo.pt

 

 


RESUMO

Nesta entrevista, foram abordados aspectos relevantes sobre a justiça juvenil, tais como o papel das investigações sociológicas e as mudanças nos mundos sociais da infância e da juventude e seus impactos no atendimento e acompanhamento de adolescentes e jovens. Foram tratadas questões atuais que orbitam a justiça juvenil, a exemplo das percepções sobre o desenvolvimento em relação à idade e o crescente aumento do número de adolescentes e jovens do sexo feminino selecionadas pelo sistema de justiça juvenil. Com foco na realidade portuguesa, a entrevistada defendeu a priorização das ações comunitárias, bem como a excepcionalidade da imposição de medidas privativas de liberdade, em sua visão, de efeitos que podem ser prejudiciais para adolescentes e jovens frente às medidas menos severas. A entrevista é relevante para pesquisadores que se interessam por temas relacionados à justiça juvenil, especialmente com vistas aos estudos comparados.

Palavras-chave: justiça juvenil, delinquência juvenil, Lei Tutelar Educativa, risco, reincidência.


ABSTRACT

In this interview relevant aspects about juvenile justice were addressed, such as the role of sociological investigations and changes in the social worlds of childhood and youth and their impact on the care and monitoring of adolescents and young people. It dealt with current issues orbiting youth justice, such as today's perceptions of development in relation to age and the increasing number of female adolescents and young people selected by the juvenile justice system. Focusing on the Portuguese reality, the interviewee defended the prioritization of community actions, as well as the exceptionality of the imposition of custodial measures, in his view, of effects that can be harmful to adolescents and young people in the face of less severe measures. The interview is relevant for researchers who are interested in themes related to juvenile justice, especially with a view to comparative studies.

Keywords: juvenile justice, juvenile delinquency, Educational Tutelage Law, risk, recidivism.


RESUMEN

En esta entrevista se abordaron aspectos relevantes sobre la justicia juvenil, como el papel de las investigaciones sociológicas y los cambios en los mundos sociales de la infancia y la juventud y su impacto en la atención y seguimiento de los adolescentes y jóvenes. Se ocupó de cuestiones actuales que orbitan la justicia juvenil, como las percepciones actuales del desarrollo en relación con la edad y el creciente número de mujeres adolescentes y jóvenes seleccionadas por el sistema de justicia juvenil. Centrándose en la realidad portuguesa, la entrevistada defendió la priorización de las acciones comunitarias, así como la excepcionalidad de la imposición de medidas privativas de libertad, a su juicio, de efectos que pueden ser perjudiciales para adolescentes y jóvenes frente a medidas menos severas. La entrevista es relevante para investigadores interesados en temas relacionados con la justicia juvenil, especialmente con miras a estudios comparativos.

Palabras clave: justicia juvenil, delincuencia juvenil, Ley de Tutela Educativa, riesgo, reincidencia.


 

 

Os trabalhos acadêmicos e a atuação da pesquisadora portuguesa Maria João Leote de Carvalho são referências para profissionais e pesquisadores da infância e juventude no campo da justiça juvenil. Em junho de 2016, pelo reconhecimento e pela expertise na área, foi nomeada conselheira do Conselho Nacional da Comissão Nacional para a Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens de Portugal. Atuou por anos com adolescentes e jovens infratores em uma instituição de custódia e com crianças e adolescentes em risco nas escolas estaduais de bairros de habitação social em Portugal. É coordenadora da equipe de pesquisa Direitos, Política e Justiça no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade NOVA de Lisboa (CICS.NOVA) e uma das fundadoras das seções de Sociologia do Direito e da Justiça e Sociologia da Infância da Associação Portuguesa de Sociologia. Representa Portugal no European Council for Juvenile Justice, no Observatório Internacional para a Justiça Juvenil na Child-Friendly Justice - European Network e é membro do Grupo de Trabalho Temático sobre Justiça Juvenil da European Society of Criminology. Nesta entrevista, Maria João Leote de Carvalho abordou aspectos relevantes sobre a justiça juvenil, tais como o papel das investigações sociológicas e as mudanças nos mundos sociais da infância e da juventude e seus impactos no atendimento e acompanhamento de adolescentes e jovens.

Jalusa Arruda

Considerando a evolução da justiça juvenil, como podemos localizar a teoria sociológica sobre a criminalidade juvenil?

Maria J. L. de Carvalho

A Sociologia tem uma responsabilidade na construção social e política dos próprios conceitos e, como exemplo, em Portugal, quando falamos "criminalidade juvenil", no fundo, estamos falando de uma criminalidade de adultos, uma vez que jovens com idade igual ou superior a 16 anos são considerados e julgados como adultos à luz da lei penal, pois esta é a idade da maioridade penal no país. Se pensamos no sistema de justiça juvenil enquanto sistema diferenciado para jovens inimputáveis, o termo que aplicamos em Portugal não é criminalidade juvenil, mas delinquência juvenil. Ou seja, o que temos é uma justiça juvenil para os jovens que, entre os 12 e os 16 anos, praticam fatos qualificados pela lei penal como crimes, mas que não são considerados como prática de crimes, tal como no Direito Penal.

O conceito de crime tem como fundamento a garantia da paz social e simultaneamente uma ideia de retribuição da parte do próprio indivíduo que praticou o ato e, por conseguinte, a relação do Estado com este indivíduo é uma relação que procura por um lado a sua posterior reinserção, mas também que ele retribua à sociedade pelo dano que cometeu pela prática daquilo que historicamente definimos como crime. É, portanto, uma questão legal e social. Mas se o jovem é inimputável, o objetivo não é que ele retribua à comunidade ou à sociedade, mas é o Estado e a comunidade que podem e devem intervir junto do jovem no sentido da sua proteção, ressocialização e educação.

É importante pautar essa distinção porque esses conceitos são facilmente apropriados pelos meios de comunicação social e, não raro, cria-se uma amplificação e uma concepção errada sobre os próprios termos usados. Se acharem que estamos falando de crime, facilmente as pessoas são levadas a acreditar que o jovem tem que ser responsabilizado no sentido de que tem que "pagar" à sociedade pelo crime que faz. Enquanto pesquisadores, não podemos fazer concessão a essa concepção, mas antes ir ao que está de acordo com as normativas internacionais que orientam a justiça juvenil1

Neste ponto, é também essencial ter clareza na construção do conceito de jovem. Nas sociedades atuais, sabemos pela Sociologia e por abordagens multidisciplinares que o jovem - aquele rótulo que nós aplicamos para uma determinada fase da vida - é uma fase que se prolonga cada vez mais no tempo. Começa antes, mas também termina mais tarde, e a construção da teoria sociológica sobre a juventude caminha neste sentido. É claro que não se pode desconsiderar a influência da construção da norma, do direito e da reação social, quer dizer, na reação do controle social formal quanto à prática de delinquência juvenil. Na justiça juvenil, quando se usa o conceito de criminalidade juvenil, acaba-se por desvalorizar o conceito de jovem, e essa é uma questão fundamental na análise social e jurídica. Mesmo que seja não intencional, quando a teoria sociológica adota o conceito de criminalidade juvenil, aplicando-o aos inimputáveis, anula-se a ideia no Direito da Criança estabelecido no quadro da Constituição da República Portuguesa e do próprio conceito de jovem. Naturalmente, é uma questão que mostra como o pesquisador tem sempre de acautelar como âncora os conceitos que variam de contexto em função das diferenças da lei vigentes em cada Estado. Para entender melhor, trato da justiça juvenil em Portugal em alguns textos (Carvalho, 2017b, 2017c).

Jalusa Arruda

Mas em Portugal é possível encontrar referências ao termo "criminalidade juvenil".

Maria J. L. de Carvalho

Sim, e sou extraordinariamente crítica. Nós assistimos em Portugal uma situação em que a Sociologia tem se omitido na área da delinquência juvenil e esse espaço tem sido claramente ocupado pelas áreas das Ciências Humanas, em que a Psicologia se põe no topo, e temos assistido que esse domínio prevalente coloca em causa muito mais o âmbito individual e não tanto o social. Assistimos um deslocamento do olhar das práticas da delinquência juvenil mais centrada na responsabilidade do próprio indivíduo, o que tem um peso muito grande quando nos voltamos para as políticas públicas de prevenção da delinquência juvenil.

É inescapável dizer que também é uma responsabilidade acadêmica não ter dado tanta atenção ao tema e estar um pouco ausente nas discussões e nos debates no campo. Lamento que alguns de meus trabalhos de mais de década e meia ainda continuem a ser uma referência em Portugal, porque já devia ter havido outras pesquisas, já deveríamos ter uma renovação teórica no debate sociológico sobre a delinquência juvenil. Aqui são pouquíssimos os pesquisadores da Sociologia que estão dedicados à área da justiça juvenil, mesmo nosso país tendo sido um dos primeiros a ratificar a Convenção sobre os Direitos da Criança.

Apesar de termos um sistema de justiça juvenil que nos seus princípios (com exceção de uma questão que falarei mais à frente) é visto como um dos mais avançados, a verdade é que continua a ser uma área vista como "menor". Aliás, toda temática que envolve infância e juventude continua a ser vista como menor, apesar da complexidade. É uma área que permite um olhar sobre as mudanças sociais e sobre a forma como as sociedades se organizam, mas infelizmente nós temos um esvaziamento entre parte do meio acadêmico e o que se passa na realidade social, mesmo para a Sociologia.

No panorama internacional, no qual destaco o contexto europeu, nos últimos anos, as questões associadas ao terrorismo e a luta contra o terrorismo assumiram prioridade para os governos europeus. Na Europa, entramos numa nova cultura de controle, uma cultura de controle securitária que - se já havia uma rotulação dos jovens como perigosos e desafiantes que incitavam o controle social - com as questões associadas à radicalização e ao envolvimento de alguns jovens (e até de crianças) em atos relacionados com terrorismo, ou ainda, fenômenos nomeadamente de imigração e de radicalização de ida para territórios de zonas de conflitos, assistimos um olhar mais controlador e ainda mais securitário para com a juventude.

Isso é agravado pelos movimentos de imigração que se alastraram pela Europa e que têm marcado a situação no contexto europeu nos últimos anos, sobretudo, as imigrações que vêm de fuga de zonas de guerra e de conflitos e que trazem o problema dos menores2 não acompanhados (Carvalho, 2019). Para se ter uma ideia, entre 2008 e 2017, entraram cerca de 200 mil menores não acompanhados na Europa. Portugal não sente tanto esse problema por estar na periferia ou, ao menos por aqui, é um problema menos visível, mas temos que pensar que é uma situação muito específica. De um modo geral, infelizmente, em muitos casos, noutros países europeus tem sido o sistema de justiça a intervir, e com a privação de liberdade. Muitos desses jovens são colocados em centros de detenção, de acolhimento ou de ressocialização. Seria fundamental adaptar a própria justiça juvenil àquilo que são os novos contextos de vivência da juventude e aos novos fenômenos que marcam o contexto europeu.

Jalusa Arruda

Pensando no contexto que a senhora apresentou, Portugal tem muitos adolescentes e jovens privados de liberdade?

Maria J. L. de Carvalho

Atualmente está por volta de 150 internados em centros educativos. Em se tratando de jovens entre 16-17 anos, ou seja, menores de idade do ponto de vista civil, mas maiores de idade já do ponto de vista penal, em maio de 2019 eram 43 detidos em estabelecimentos prisionais3. Aqui, tanto a justiça penal como a justiça juvenil têm tido uma tendência de não aplicar a pena de privação de liberdade ou as medidas tutelares educativas de privação de liberdade. Está mais que provado que as medidas de privação de liberdade devem ser aplicadas em último caso e quando não for possível outra medida eficaz para aquele adolescente ou jovem.

Outro ponto para refletirmos a partir da Sociologia é a relação entre Estado, cidadão jovem e justiça. Vivemos em épocas de transformações sociais que afetam fortemente a juventude. Hoje temos jovens mais escolarizados, mas que têm uma maior dificuldade no acesso ao mercado de trabalho e, muitas vezes, quando conseguem trabalho, não só é mais tarde, como se dá em condições mais precárias; temos mais jovens constituindo família mais tarde e temos novos modelos de família; temos, ainda, cada vez mais jovens dependentes de medicação, porque os problemas de comportamento da adolescência e da infância em Portugal tendem a ser resolvidos com medicação e não temos uma estrutura e uma rede de saúde mental voltadas para a infância e a juventude que consiga cobrir todo o território nacional. Ainda, na relação entre o Estado, a comunidade e o cidadão jovem, buscamos rótulos e "caixinhas", tirando-os de uma e colocando em outras, onde a justiça juvenil é a "caixinha" em que muitos dos jovens vão parar porque, em suma, faltou ações de cuidado e prevenção durante a sua infância.

No âmbito das políticas públicas, o próprio Estado não considera ações de prevenção como uma prioridade e não se vê o jovem como um todo. Ora o jovem está no sistema de promoção e proteção, ora no sistema de justiça, ora no sistema de saúde, mas de forma fragmentada. Não temos uma visão sistêmica sobre o que é ser jovem e temos dificuldade em perceber que o mundo mudou muito e continua a mudar. Podemos até falar aqui de uma questão geracional, que é muito atual: há uma patente dificuldade do Estado e de profissionais, de técnicos que atuam na área da infância e juventude, em acompanhar essa mudança social.As tecnologias de comunicação e informação e os usos do meios digitais são um exemplo disso, pois os mundos sociais da infância e da juventude mudaram. São outros desafios e são necessários outros instrumentos para a intervenção, inclusive para a própria justiça juvenil (Carvalho, 2019).

Jalusa Arruda

A senhora pode dar um exemplo?

Maria J. L. de Carvalho

Em Portugal, há um instrumento da avaliação do risco do jovem usado desde 2010, que é referenciado à polícia para depois ser referenciado ao sistema de justiça juvenil, construído com base num procedimento científico com resultados validados cientificamente. O instrumento foi criado a partir dos estudos de Andrews e Bonta e transposto para a realidade portuguesa, mediante investimento da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) [serviço vinculado ao Ministério da Justiça, responsável pela gestão do sistema de justiça juvenil e sistema prisional]4. O instrumento, conhecido pela sigla YLS, permite fazer uma avaliação da situação de risco do jovem5. Mas, apesar da validade científica, a literatura atual nos diz que o que está inserido no instrumental relacionado diretamente com o sistema da justiça juvenil, quer dizer, toda fórmula de socialização na infância e juventude, está diferente. Com isso, os riscos são outros e a própria noção de risco está diferente. Logo, os instrumentais de avaliação de risco, de avaliação social, de avaliação psicológica, da avaliação forense de crianças e adolescentes têm que mudar e passar a contemplar, exemplarmente, uma forma de socialização básica na infância e juventude atual que passa pelos mundos virtuais. Em boa parte do mundo, os jovens estão na internet e nas tecnologias. Nós temos modelos de intervenção técnica na justiça e fora da justiça que não estão preparados ainda para lidar com esse cenário. São questões às quais a Sociologia da infância e da juventude ainda não nos trazem muitas respostas, são questões novas para as quais estamos à procura de respostas.

Jalusa Arruda

O uso desse instrumental diz algo sobre a reincidência?

Maria J. L. de Carvalho

A avaliação que o Ministério da Justiça e a DGRSP têm feito das taxas de reincidência, nomeadamente, dos jovens que tiveram medidas educativas e de internamento em centros educativos, realmente mostra taxas mais baixas em comparação com países europeus que têm políticas mais punitivas.

Jalusa Arruda

Quer dizer que medidas menos severas são mais eficazes para evitar a reincidência?

Maria J. L. de Carvalho

É o que a literatura científica aponta. Na justiça juvenil em Portugal, temos um direito educativo centrado na educação para o direito. Isso quer dizer que, em nosso sistema, não basta que o jovem tenha cometido aqueles fatos, pois o jovem tem que ser avaliado na sua personalidade e no seu contexto para verificar as necessidades de educação para o direito para só depois poder ser aplicada uma medida judicial. O jovem pode ter cometido um fato grave, mas pode ficar provado que aquilo não passou de um conjunto de circunstâncias e que, para o melhor do jovem e da comunidade, mais vale a justiça não intervir com a medida de privação de liberdade e ser aplicada outra medida ou até mesmo concluir-se pela desnecessidade da intervenção judicial do que intervir mal. Porque é isso também que a literatura científica nos evidencia: às vezes, a intervenção da justiça, em especial, se for com respostas muito severas, mas descontextualizadas das necessidades do jovem, pode causar maiores danos e reforçar a sua trajetória criminal em vez de ressocializá-lo e evitar a reincidência. A lei refere que a privação de liberdade é uma medida de natureza excepcional e a privação de liberdade deve sempre ser o último recurso.

Jalusa Arruda

Então baixos índices de reincidência são indicadores da eficácia da medida aplicada?

Maria J. L. de Carvalho

Sim, até um certo ponto podemos ir nesse sentido, mas é necessário cruzar com outros indicadores, pois sabemos que estes jovens são apenas a ponta da pirâmide da delinquência juvenil. É difícil ter uma avaliação fora do contexto português, mas temos visto nos últimos anos um aumento significativo de intervenções pelos sistemas de justiça e a partir de uma perspectiva neopunitivista, que na justiça juvenil tem encarcerado mais jovens.

Jalusa Arruda

No Brasil é similar, especialmente em relação à adolescência e juventude negras.

Maria J. L. de Carvalho

Sim, mas aqui em Portugal tem outra questão importante. Do ponto de vista político, é interessante notar que, na última discussão pública ocorrida há uns anos sobre esta matéria no Parlamento português, com exceção do CDS-Partido Popular (CDS-PP), [partido político português conservador], que levantou a possibilidade de redução da imputabilidade da idade penal para os 14 anos, de resto a infância e a juventude é uma área em que as várias perspectivas políticas ou partidárias têm tido um relativo consenso (esta afirmação remete para a composição do Parlamento na legislatura anterior às eleições de 2019).

Nosso problema é outro, e diz respeito ao Regime Penal Especial para Jovens Delinquentes que contempla os designados jovens adultos com idades entre os 16 e 21 anos e que é já um Direito Penal. O Estado português é alvo de críticas por parte das instâncias internacionais, porque, com isso, não cumpre integralmente a Convenção sobre os Direitos da Criança (o regime penal especial é da década de 1980, ou seja, antes da Convenção). Aqui a maioridade penal é aos 16 anos, diferente do que orienta a Convenção. O regime penal especial para jovens adultos garante que deve ser evitada a aplicação da pena de prisão, mas a verdade é que, entre os 16 e 18 anos, eles são condenados em tribunais de adultos e, mesmo com a aplicação do regime penal, seguem para prisão de adultos. Isso porque os centros de detenção especializados para jovens previstos no regime penal especial nunca chegaram a ser construídos. Esse regime não é de aplicação obrigatória e depende da opção do juiz que tem de fundamentar na decisão a sua opção pela não aplicação, nos casos em que isso aconteça. O maior problema é que o regime está desatualizado do que é a condição de jovem na atualidade e não é fornecido ao tribunal e ao juiz, em particular, a opção de medidas, tampouco existem os recursos mais adequados às especificidades de certos casos, nomeadamente quando se cruzam outras necessidades como, por exemplo, relacionadas à saúde mental. Essa é uma questão que está por resolver na justiça portuguesa.

Jalusa Arruda

Pensando nas idades, podemos dizer que há uma curva especialmente selecionável para o sistema de justiça juvenil?

Maria J. L. de Carvalho

Na literatura científica, encontramos que, independentemente da cultura e do país, tende a haver uma correspondência, uma curva de idade que associa um pico da prática de delitos. Apesar dos jovens não serem os responsáveis pelo maior número de crimes do ponto de vista absoluto, sabemos que, percentualmente, a proporção e a tendência para a prática de ilícitos começa a aumentar a partir do final da infância e tende a atingir um pico entre os 15 e os 19 anos. É a faixa etária em que está concentrado o maior número de prática de ilícitos e, então, mais sujeita às respostas do sistema de justiça. Mas o que também vemos acontecer é que a maioria dos jovens, a partir dessa idade, tende a desistir da prática de delitos. Nesse aspecto, vemos o peso do desenvolvimento (a prática pelo risco, pelo desafio, pela quebra da norma), que em algumas situações acabam por configurar em ilícitos.

No sistema português, ao fechar a possibilidade de intervenção pela justiça juvenil naqueles entre os 12 e os 16 anos, o que temos é que, às vezes, pela demora no trâmite judicial ou porque os fatos foram cometidos aos 15 anos, muitos começam a executar as medidas após os 16 anos, alguns dos quais já com prática de crimes após essa idade. Com isso há o encontro entre o sistema tutelar educativo e o penal, que na prática é difícil de operacionalizar. O jovem em casos assim tem que cumprir a medida pela lei tutelar educativa, mas caso cometa algum crime após os 16 anos, o juiz do penal pode decidir mantê-lo em execução de medida ou decidir no âmbito penal outra medida para complementar, mas é algo que tem pouca aplicação prática6. O que temos observado, por fim, é que de fato há uma curva de idade demonstrada em estudos internacionais e que coincide com os dados aqui em Portugal. Entretanto, agora passando aos estudos mais longitudinais também a nível internacional, há um aumento do número de adolescentes mais novos, a partir dos 11-12 anos, envolvidos em delitos. Resta saber se é reflexo da transformação dos mundos sociais da infância ou se é por que o sistema de controle social formal está mais preocupado com eles e, assim, estão mais visíveis para as instituições.

Jalusa Arruda

A senhora acredita que pode ter algo a ver com a política de repressão às drogas?

Maria J. L. de Carvalho

Em Portugal, há mais de 20 anos temos uma política de descriminalizar o consumo de drogas, e nossa política tem sido apontada como referência internacional. Obviamente, isso nos levou a reduzir as práticas de crimes associadas às drogas. Há consumo, mas que é visto como um problema de saúde que deve ser tratado no sistema de saúde. Resta-nos saber se essas respostas são ou não adequadas, mas fato é que os jovens não são mais criminalizados só por consumirem drogas, e por isso não temos uma situação como outros países em que grande parte da delinquência juvenil está fortemente associada ao próprio consumo.

Outra questão é o patamar do tráfico de droga, que tem a ver com a situação geográfica de Portugal, e em muito associadas com o tráfico internacional. Então, não são os menores que estão mais associados ao tráfico de drogas. Mas sim, em alguns territórios, em alguns bairros mais fechados, as crianças e jovens servem como correios em pequenas entregas. Por exemplo, na minha tese de doutorado (Carvalho, 2010), acompanhei crianças muito novas, abaixo dos 12 anos - eram casos raros -, mas que falaram dos seus percursos e das distribuições que faziam no bairro. Interessante que depois esses casos não estavam nas ocorrências policiais, porque são questões que estão bem fechadas em alguns territórios. Há territórios que são segregados e que têm concentração de problemas sociais, territórios que têm concentração de indivíduos associados a redes criminosas e que é um patamar já de organização de criminalidade, em alguns casos, uma criminalidade organizada e violenta.

Ainda com vista ao consumo, temos que ver também um conjunto de novas drogas, algumas das quais quase que socialmente aceitas, e que estão associadas a todas as classes sociais, incluindo jovens de classes sociais mais abastadas, relativamente aos quais pouco se fala. Falo das "pastilhas" [em referências às drogas sintéticas] consumidas em festas que, ainda que consumida por outras gerações, são vistas como socialmente aceitas por crianças e adolescentes. Isso tem a ver com uma outra visão que as "pastilhas" despertam, pois em relação ao consumo das décadas de 1980/1990 não são percebidas por muitos como as ditas "drogas duras" tradicionais. Agora, as questões do consumo mais preocupantes em tempos atuais, se calhar, estão relacionadas às dependências das tecnologias, que acaba por ser uma nova adição, numa perspectiva que é expansiva a toda infância e juventude e, em muitos casos, sem controle. Podemos dizer que temos aí uma nova dependência para qual ainda não temos uma resposta, que é a dependência e as adições a determinadas atividades com uso das tecnologias e que levam às práticas de delinquência e de crimes. Essa é uma questão fulcral no meu trabalho de pós-doutorado, pois acredito que vai alterar radicalmente a própria concessão dos instrumentos da justiça e das execuções das medidas7

Jalusa Arruda

Ainda sobre as idades, quais seriam as melhores formas de intervenção tendo em vista o perfil etário de adolescentes?

Maria J. L. de Carvalho

Como disse, ao invés de apontar para uma mera punição, nosso sistema caminha no sentido da educação para o direito. Daí que temos que ter mais atenção para os programas de privação de liberdade, pois aqui temos visto que medidas de não institucionalização quando bem executadas têm resultados melhores, a exemplo das medidas comunitárias. Contudo, para isso, é necessário haver recursos adequados e o problema é que escasseiam e são vistos como de menor importância pelo decisor político.

Nessas medidas, uma primeira perspectiva é do jovem se inserir num contexto concreto comunitário com um tutor e desempenhar uma tarefa ou um plano de atividades e compromissos a cumprir em que, usando suas competências, resulte também por ser reconhecido e ter outra visibilidade na própria comunidade. A segunda é que se trata de um trabalho muito mais individualizado que vai permitir acesso e entendimento com a própria vítima. A questão é que as medidas de reparação esbarram na negativa da vítima em querer ter contato com o jovem, mas são medidas que podem sim ter ações muito mais efetivas.

Ainda, na justiça juvenil em Portugal, a mediação tem força de suspensão do próprio processo. O Ministério Público abre o inquérito, mas o próprio órgão, ao avaliar o caso e com o envolvimento de todos os intervenientes, incluindo o jovem e sua família, tem indicadores de avaliação que permitem apontar se vale a pena apostar num plano de conduta para aquele jovem. Então, o processo pode ser suspenso e é dada uma oportunidade ao jovem durante um determinado período, até no máximo de um ano, de ele desenvolver aquele plano de conduta estabelecido e com compromisso de todas as partes. Ao retomar o processo, se o plano tiver sido desenvolvido com sucesso, o caso nem segue para julgamento8 O dado positivo é que, justamente nesses casos em que houve a suspensão dos processos com a intervenção do Ministério Público, encontramos menores taxas de reincidência - menores do que em qualquer outra medida, segundo a informação da DGRSP. Mais uma vez, podemos concluir que, em muitos casos, quanto menor e mais focada a intervenção pelo sistema de justiça e pelas instituições, melhor. Mas desde que existam os recursos necessários e se possa efetivar, com fundamento sério, a execução desse plano. Vê-se que é um plano de conduta diretamente voltado para aquele jovem em concreto, trabalha-se diretamente a ressocialização em seu contexto, e nem sequer se chega à necessidade de aplicação de uma medida tutelar educativa quando todo o plano é cumprido. No fundo, dá-se uma oportunidade para a promoção da mudança em tempo útil. Por isso, em termos de programas de atendimento, deve haver metodologias e programas com atendimento individualizado, efetivamente voltado para o jovem e no seu contexto comunitário.

Jalusa Arruda

Tribunais norte-americanos têm considerado aspectos da neurociência para tomada de decisões no âmbito do sistema de justiça juvenil em que questões relacionadas ao desenvolvimento e à culpabilidade são suscitadas pela Suprema Corte, reverberando em atenuantes ou mesmo na extinção de medidas mais graves (Cohen; Casey, 2014). Podemos dizer que é um movimento emergente que anda "à busca de uma idade" para o sistema de justiça juvenil?

Maria J. L. de Carvalho

Em primeiro lugar, essa é uma questão polêmica em torno das áreas da neurobiologia, do neurodesenvolvimento, da neuropsiquiatria e da neuropsicologia. O que temos que tomar nota, como referem diferentes autores, é que, só por si, o desenvolvimento na neurociência e de áreas correlatas não devem justificar uma reforma do sistema da justiça juvenil. Não se pode correr o risco de voltarmos aos tempos lombrosianos e da criminologia antropológica e bioantropológica e andar à procura de perfis, tipos biológicos ou genéticos que, apenas aparentemente, nos "resolvam" os problemas (Carvalho, 2019).

Agora, o que esses estudos nos trazem de contributos que não podem ser ignorados, é que o desenvolvimento do indivíduo e de sua personalidade não correspondem exatamente às idades fixas e se estendem por um período maior e estão muito mais relacionados às experiências dos indivíduos nos contextos aos quais estão inseridos. E novamente voltamos à questão social e à importância da Sociologia e da análise social, pois o desenvolvimento da personalidade e a maturação do desenvolvimento cerebral depende do contexto social. Exemplarmente, estudos nos mostram que experiências traumáticas na infância deixam marcas no desenvolvimento dos indivíduos e que jovens que tiveram percursos de maus tratos na infância poderão ter áreas do cérebro afetadas. De fato, são flexibilizações mais consideradas nos EUA, pois vale lembrar que lá a justiça juvenil funciona muito na base da jurisprudência e o país norte-americano não ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança. Lá é precisamente pela validação científica desses estudos que o próprio sistema de justiça juvenil tem evoluído numa proximidade ao disposto de alguns dos princípios da Convenção para este campo. Entretanto, a grande conclusão é que apenas esses resultados não bastam, pois é preciso entender de onde partem essas influências, e elas partem do contexto social.

Esses estudos mostram que não há uma idade fixa para considerar a maturação cerebral do jovem. Em certa medida, fazemos algo disso aqui em Portugal quando, por exemplo, o sistema de justiça juvenil somente aplica uma medida de privação de liberdade em regime fechado para aqueles que têm, no mínimo, 14 anos de idade e mediante não apenas uma avaliação social, mas também após uma avaliação psicológica especializada, após uma perícia forense sobre a personalidade do adolescente (entre os 12 e os 14 anos, independentemente da gravidade dos fatos, os jovens só podem ser colocados em centros educativos de regime aberto ou regime semiaberto). No caso da justiça juvenil portuguesa, a importância do desenvolvimento da personalidade está considerada na própria lei ao definir os instrumentos mínimos que devem ser adotados antes de decidir pela aplicação das medidas de privação de liberdade, que são as mais severas.

Jalusa Arruda

Não há risco de cairmos em leituras neopositivistas?

Maria J. L. de Carvalho

Para este assunto, eu recomendo os trabalhos de Elizabeth Scott e Laurence Steinberg (2008), que são dos mais citados nas decisões do Supremo Tribunal de Justiça nos EUA, e os próprios autores falam que a procura pelas neurociências pode ter um efeito perverso. É por isso que os autores alertam que o indivíduo não é só cérebro, tendo de haver atenção às mudanças no próprio modo de vida da infância e da juventude que têm se alargado e, por conseguinte, o tempo do desenvolvimento também se alargou. Há que se ter muita cautela e não perder de vista a interação que há entre o desenvolvimento biológico e o desenvolvimento social.

Nessa linha, na Europa, o sistema de justiça holandês é uma referência no que podemos chamar de sistemas mais flexíveis quanto à idade. Os Países Baixos tiveram uma reforma no sistema de justiça juvenil em 2014 que permite que os tribunais decidam se o jovem entre 18 e 24 anos vai responder no âmbito da justiça juvenil ou na justiça penal. As respostas, então, são mais flexíveis a depender da avaliação sustentada do caso, o que permite observar mais de perto, por exemplo, um jovem que apresenta percurso mais grave e frequente e, provavelmente, não será aos 23 anos que a justiça juvenil lhe servirá; mas, sem dúvida, poderá ser o caso para outros jovens com percursos diferentes. É a oportunidade de flexibilização das respostas judiciais atendendo ao indivíduo em seu contexto.

Jalusa Arruda

Num de seus textos, a senhora ponderou que não há diferença na etiologia das formas de infracionar entre meninos e meninas (Carvalho, 2014a), mas a trajetória infracional não sofre impacto das diferenças da socialização?

Maria J. L. de Carvalho

Esta questão é muito interessante, pois de um modo geral, durante muito tempo, na Sociologia, os estudos sobre a delinquência foram baseados na delinquência masculina. Há inegável mudança na socialização das meninas e temos assistido também uma mudança na própria prática de infrações por elas. Na última década, vimos uma maior presença de meninas nas medidas de justiça juvenil, mas, sobretudo, nas práticas de atos pessoais. O que eu pude identificar nas minhas pesquisas é que as próprias instituições de controle social informal olham de forma diferente para os meninos e as meninas logo no início das práticas antissociais. Enquanto para os rapazes se tende a não perdoar e busca-se logo a repressão, às meninas tenta-se proteger. No meu mestrado (Carvalho, 2003a, 2003b), aquilo que eu via na transição do século, entre 1999/2001, é que as meninas eram mais protegidas pelas famílias, evitando-se que elas acessassem determinados espaços. Entretanto, hoje isso está completamente fora, porque meninos e meninas estão nos mesmos espaços de socialização. No mestrado, vi que muitas meninas que passavam pela justiça juvenil acabavam por ser desresponsabilizadas das próprias práticas. Quando efetivamente entravam no sistema, era num patamar de gravidade, com prática de atos considerados mais graves e numa tipologia de práticas muito mais na esfera relacional. O que temos agora são atos muito parecidos, mas o que magistrados, procuradores e as próprias polícias me referem é que o olhar das escolas, das associações de pais e de famílias em relação às meninas está diferente. E elas estão tão ativas quanto os rapazes em práticas que de fato podem ser qualificadas pela lei penal, e eu neste momento estou tentando entender isso também na minha pesquisa de pós-doutorado e estou encontrando um aumento significativo da presença de meninas com processos judicias com origem em fatos muito violentos e graves. Em alguns casos, pesquisadores podem interpretar como "as meninas estão mais violentas", mas acredito que não é por aí. Acredito que estejam com outra visibilidade porque elas não estavam nos mesmos espaços que os meninos e agora estão. Por acaso, nas entrevistas que eu tenho já feitas a intervenientes no sistema de justiça, esse é um tema muito falado, mas em direções diferentes.

Aqui em Portugal, no CICS.NOVA, temos feito estudos em diferentes gerações: eu com as crianças do bairro, Vera Duarte (2012) com as meninas do tutelar educativo, e a Sílvia Gomes (Duarte; Gomes, 2017) com as mulheres no sistema penal, e percebemos as mudanças relacionais que há no papel da mulher na sociedade portuguesa de geração para geração através do seu envolvimento nas práticas antissociais e criminais. As crianças do bairro têm uma total emancipação referente ao papel da mulher, assim como algumas das meninas da justiça juvenil em que elas não dependiam do papel masculino, não "seguiam" a visão masculina para as práticas delinquentes. Exemplarmente, nas crianças que pesquisei, elas entravam nas práticas delinquentes com base nos modelos femininos que tinham na família e era através desses modelos que eram incentivadas a reproduzir os modelos sociais de entrada nas práticas de delitos (Carvalho, 2010). Nas meninas do tutelar educativo, era visto como uma forma de emancipação, contrariando a ideia de que elas eram "levadas" pelos pares masculinos. Mas, sem dúvida, precisamos aprofundar mais e produzir mais conhecimento a respeito, pois mudanças significativas estão acontecendo.

Jalusa Arruda

No Brasil, é possível encontrar resultados parecidos em estudos e pesquisas dedicados às meninas (Arruda; Krahn, 2020).

Maria João Leote

Sim, eu mesma tenho algo a respeito (Duarte; Carvalho, 2013; Carvalho, 2017a). As criminalidades femininas não devem ser vistas - e nem as meninas aceitam ser assim rotuladas - como "maria rapaz", como meninas que se masculinizaram, pois se trata de uma forma de feminilidade. Ou seja, essa é mais uma forma que elas encontraram para se afirmarem enquanto mulheres, enquanto meninas, no seu papel de gênero. Investigações realizadas mais recentemente dão conta que as meninas e as mulheres não são vítimas sempre, não estão sempre como passivas. Entretanto, não quer dizer que, através dessa lente sobre as suas práticas delinquentes, não voltaremos a encontrar as tradicionais desigualdades de gênero que remetem para distintas posições na estrutura social.

Jalusa Arruda

Qual é o perfil étnico-racial dos adolescentes e jovens alcançados pelo sistema de justiça juvenil em Portugal?

Maria J. L. de Carvalho

Essa é uma questão que não consigo responder corretamente porque a Constituição da República Portuguesa não permite que façamos levantamento e o cruzamento de dados de raça ou etnia ou cor da pele9. A variável que temos e que nos aproxima disso é a nacionalidade. É, realmente, um tema complicado pela falta de levantamento de dados. Tenho um artigo numa revista brasileira no qual discuti o assunto usando a pertença étnica-cultural das crianças, porque penso que não tinha como ignorar a questão étnica e racial, que são fundamentais em termos da aplicação da justiça (Carvalho, 2014b). A forma como nós pesquisadores trabalharmos essa questão é a partir das palavras dos próprios jovens. Aqui é muito forte a estigmatização que se associa à condição social e ao território, e sabemos que é onde está a maior parte da população de diferentes etnias, onde há a maior diversidade cultural, nomeadamente representada pela população afrodescendente das antigas colônias portuguesas.

Jalusa Arruda

Então estamos falando de uma população de imigrantes ou de filhos de imigrantes?10

Maria J. L. de Carvalho

Sim, imigrantes das segundas, terceiras e quartas gerações. Mas nesses territórios também há muitos outros, portugueses originariamente do interior do país que se adensaram em pólos urbanos, especialmente em torno de Lisboa. E, simultaneamente, com os processos de independências das colônias portuguesas em África e na sequência da Revolução em 25 de Abril, passou a vir muita gente de fora. Nesses próprios bairros, havia uma hierarquia entre as casas e divisões dentro do próprio território, também a partir do pertencimento étnico. Na tese, abordei como os bairros sociais se organizavam em função dos grupos étnicos, e depois como as próprias políticas públicas (isso nos bairros que investiguei) contribuíam com as divisões (Carvalho, 2010). Num dos bairros que investiguei, tinha uma rua conhecida como "a rua dos ciganos", assim referenciada por crianças e adultos. Somos impedidos de fazer um levantamento direto dos dados, mas as informações sobre as crianças, os jovens e suas próprias falas nos permitem identificar questões referentes à etnia que, associadas à classe social e ao território, são questões muito fortes que emergem na análise. Como é possível verificar a nacionalidade, sabemos que existem jovens com nacionalidade estrangeira no sistema de justiça juvenil português. Dentre esses jovens, muitos são de antigas colônias portuguesas, incluindo o Brasil, mas mais dos países africanos, que refletem a perpetuação de um ciclo de falta de regularização quanto à aquisição da nacionalidade portuguesa. Às vezes estão ilegais, ou com documentação ilegal, mesmo os que já são nascidos em Portugal, mas que por motivos da lei, permanecem como estrangeiros. Essa é uma característica que está nos indicadores do sistema de justiça juvenil e também no sistema penal.

 

Referências Bibliográficas

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Data de recebimento/Fecha de recepción: 26/07/2020
Data de aprovação/Fecha de aprobación: 03/12/2020

 

 

1 Na norma internacional, criança é toda pessoa com menos de 18 anos. A entrevistada faz referência indireta à Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas, às Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil (Regras de Beijing) e às Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil (Diretrizes de Riad).
2 No Brasil, a expressão "menor" está relacionada ao período tutelar e foi substituída por crianças e adolescentes com o estabelecimento da doutrina da proteção integral. De cariz jurídico e estigmatizante, menor foi usado para se referir ao segmento infanto juvenil que estava sujeito às intervenções estatais em razão da pobreza, do abandono e da prática de atos infracionais. Portugal adotou as categorias crianças e jovens, mas o sistema de justiça português e a organização judiciária portuguesa mantiveram ainda o termo menor, inclusive para nomear a área especializada de Família e Menores e mesmo o Tribunal de Família e Menores. Para mais informações, vide: https://justica.gov.pt/Justica-juvenil. O termo menor não acompanhado reporta-se, segundo as normas internacionais, a crianças que foram separadas da sua família e que não estão sob cuidados de um adulto.
3 Em Portugal, são considerados inimputáveis adolescentes entre 12 e 16 anos, conforme a Lei Tutelar Educativa (Lei nº 4, de 15 de janeiro de 2015, primeira alteração à Lei nº 166, de 14 de setembro de 1999). Entretanto, há um regime penal especial para jovens adultos, assim consideradas as pessoas entre 16 e 21 anos, previsto no Decreto-Lei nº 401, de 23 de setembro de 1982.
4 A entrevistada refere-se aos pesquisadores Donald Andrews e James Bonta (2010). Na psicologia da conduta criminal, busca-se analisar a delinquência e o crime a partir da psicologia. Especialmente dedicada às carreiras criminosas e ao tratamento do criminoso, interessa-se pela explicação do comportamento antissocial, com destaque às teorias da aprendizagem, às características individuais daqueles considerados criminosos e às análises sobre os vínculos sociais dos indivíduos. Os resultados dos trabalhos dos autores tiveram repercussão na elaboração de programas de prevenção e tratamento do crime com jovens, autores de violências doméstica e sexual etc.
5 O Youth Level of Service/Case Management Inventory (YLS/CMI) é um instrumento estatístico de escala de avaliação de risco muito utilizado pelos sistemas de justiça juvenil dos países da Europa e da América do Norte. O instrumento avalia as características e circunstâncias de vida dos jovens que podem incidir no risco à reincidência, bem como contribui para decisões no âmbito da justiça juvenil e também no processo de intervenção, supervisão, planejamento e gestão dos casos (Cabral, 2019; Pimentel et al., 2015).
6 No Brasil é similar, pois permanece a possibilidade de imposição e execução de medida socioeducativa de ato infracional praticado antes da maioridade penal até que o jovem complete 21 anos, conforme previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990). Todavia, é facultado ao juiz extinguir a medida caso o jovem em cumprimento de medida socioeducativa passe a responder por processo-crime, nos termos da Lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Lei nº 12.054, de 18 de janeiro de 2012).
7 A pesquisa de pós-doutorado da entrevistada centra-se na comparação das práticas de delitos por jovens de dois grupos etários: os que são abrangidos pela justiça juvenil (12-16 anos) e os que são abrangidos pelo regime penal especial para jovens adultos (16-21 anos) e na análise da tomada de decisão dos tribunais em ambos os sistemas de justiça (juvenil e penal). O projeto tem apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) (SFRH/BPD/116119/2016). Mais informações em: https://www.cics.nova.fcsh.unl.pt/research/projects/individual-projects/youth-offending-in-the-juvenile-and-criminal-justice-systems-in-portugal. Acesso: 14 jun. 2020.
8 As medidas comunitárias citadas se assemelham às medidas socioeducativas de obrigação de reparar o dano e prestação de serviços à comunidade existentes na legislação especial brasileira. Ainda com vistas às análises correlatas, vale conferir as modalidades de remissão, também previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.
9 A Constituição portuguesa e a Lei da Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 67, de 26 de outubro de 1998) não permitem o levantamento de dados estatísticos baseados nas categorias cor, raça ou etnia. Contudo, o Estado português tem sido pressionado a inserir no censo demográfico questões relacionadas ao perfil étnico-racial de sua população. Sugere-se Otávio Raposo et al. (2019).
10 Diferentemente da legislação brasileira, Portugal não adota o princípio jus soli, em que a nacionalidade originária é atribuída em razão do local de nascimento. O Estado português adota o jus sanguinis, em que a nacionalidade e a cidadania são reconhecidas de acordo com a ascendência. Vide lei nº 37, de 03 de outubro de 1981, conhecida como Lei da Nacionalidade.

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