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Desidades

versión On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.30 Rio de Janeiro mayo/ago. 2021

 

TEMAS EM DESTAQUE - SEÇÃO TEMÁTICA

 

Desafios à circulação de jovens mulheres na cidade do Recife

 

Challenges to the movement of young women in the city

 

Desafíos al movimiento de mujeres jóvenes en la ciudad

 

 

Jaileila Araújo MenezesI; Débora Carla Pereira CaladoII; Juliana Catarine Barbosa SilvaIII

IUniversidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Recife, PE, Brasil
IIUniversidade Federal de Pernambuco, Curso de Psicologia, Recife, PE, Brasil
IIIUniversidade de Pernambuco, Curso de Psicologia, Garanhuns, PE, Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo objetiva problematizar a circulação de jovens mulheres periféricas pelos bairros do Recife, Brasil, e compreender como elas se relacionam com o contexto urbano. Como referencial teórico-metodológico, utilizamos o debate feminista pós-estrutural e a interseccionalidade para abordar as categorias de articulação que colaboram na compreensão dos desafios de circulação na cidade. Nas oficinas e entrevistas realizadas, as jovens participantes evidenciaram um contexto urbano que dificulta os trajetos de pessoas pobres, não garante direitos básicos como o lazer às comunidades periféricas e torna passíveis de violência os corpos femininos. Destacaram como fundamentais para melhoria da vida nas periferias a implementação de mais ciclofaixas e espaços de lazer. Em nossas reflexões, observamos a ausência do Estado no enfrentamento efetivo das problemáticas referenciadas e destacamos a importância da garantia de espaços democráticos para que as jovens possam compor as pautas relacionadas à melhoria de suas condições de vida na cidade.

Palavras-chave: jovens, gênero, direito à cidade, interseccionalidade.


ABSTRACT

This article aims to discuss the movement of young peripheral women through the neighborhoods of Recife, Brasil, and understand how they relate to the urban context. As a theoretical-methodological framework, we used the post-structural feminist debate and intersectionality to address the categories of articulation that collaborate in understanding the challenges of circulation in the city. In the workshops and interviews carried out, the young participants showed an urban context that hinders the paths of poor people, does not guarantee basic rights such as leisure for peripheral communities and makes female bodies liable to violence. The implementation of more cycle lanes and leisure spaces was highlighted as fundamental for improving life in the peripheries. In our reflections, we observed the absence of the State in the effective confrontation of the referred problems and highlighted the importance of guaranteeing democratic spaces so that young women can compose the guidelines related to the improvement of their living conditions in the city.

Keywords: youths, gender, right to the city, intersectionality.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo problematizar el movimiento de las jóvenes de la periferia por los barrios de Recife, Brasil, y comprender cómo se relacionan con el contexto urbano. Como marco teórico-metodológico, utilizamos el debate feminista postestructural y la interseccionalidad para abordar las categorías de articulación que colaboran en la comprensión de los desafíos de la circulación en la ciudad. En los talleres y entrevistas realizados, las jóvenes participantes mostraron un contexto urbano que dificulta los caminos de los pobres, no garantiza derechos básicos como el esparcimiento para las comunidades periféricas y hace que el cuerpo de la mujer sea susceptible de violencia. La implementación de más ciclovías y espacios de ocio se destacó como fundamental para mejorar la vida en las periferias. En nuestras reflexiones, observamos la ausencia del Estado en el enfrentamiento efectivo de los problemas referidos y resaltamos la importancia de garantizar espacios democráticos para que las mujeres jóvenes puedan componer los lineamientos relacionados con el mejoramiento de sus condiciones de vida en la ciudad.

Palabras clave: jóvenes, género, derecho a la ciudad, interseccionalidad.


 

 

O presente artigo deriva de uma pesquisa mais ampla com foco na temática juventudes e direito à cidade. Buscaremos problematizar a circulação de jovens mulheres periféricas pelos bairros do Recife, Brasil, e compreender como elas se relacionam com os desafios que a cidade lhes impõe.

Consideramos a cidade como formação que vai além de uma estrutura física, sendo essencialmente composta pelas pessoas que nela circulam diariamente e, em complementaridade, também as constituem, a partir das relações com os espaços públicos, privados, em dimensões objetivas de busca de sobrevivência e afetivas de encontros e recordações. A cidade é uma rede viva de relações entre corpos de concreto e de carne, artérias, vias, pontes, viadutos, pulso de trânsito, planejamento e caos. Torna-se inviável tentar separar a cidade das pessoas que nela habitam, pois essas modificam o território, sendo também modificadas por ele. Nesse sentido, a construção das cidades deveria ter uma orientação democrático-participativa e atender de modo equânime às demandas de seus/suas cidadãos/cidadãs; no entanto, a lógica capitalista neoliberal tem mercantilizado das mais diversas formas a cidade e o modo de vida citadino (MARTINS et al., 2017). A cidade neoliberal agudiza ainda a cisão entre as zonas de acesso privilegiado aos bens culturais, de lazer, de serviços em geral e os cinturões de pobreza.

Historicamente as periferias espelham a segregação socioeconômica, sendo áreas desvalorizadas tanto pelos agentes públicos quanto pelos investimentos privados (GUIMARÃES, 2015). Particularmente a cidade do Recife, lócus de nossa pesquisa, é uma metrópole composta por 94 bairros, muitos constituídos a partir de ocupações, que estão atualmente agrupados em seis regiões administrativas, nas quais se podem situar 66 Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), que resultam de uma história de luta pelo direito à cidade (COSTA; MENEZES, 2009). Para Mendes (2019), a forma como o modelo econômico neoliberal influenciou a formatação da capital pernambucana pode ser observada nas propostas apresentadas pelos planos diretores municipais ao longo das três últimas décadas. Nesse período, muitas obras coletivas foram realizadas a partir de interesses privados e apresentavam grande potencial de retorno financeiro direto ou indireto para os envolvidos. Temos como exemplo o projeto Via Mangue (2004-2016), que liga importantes áreas de interesse comercial na cidade. Por outro lado, propostas como o Parque dos Manguezais, empreendimento de reconhecida relevância ambiental, não foram viabilizadas com alegação de falta de verbas (Ibid.).

Mesmo as áreas periféricas são tratadas de modo desigual. A comunidade popular de Brasília Teimosa, localizado no bairro do Pina, é recorrentemente destacada nos planos diretores do Recife, sendo alvo de inúmeros investimentos de capital público e privado em decorrência de sua proximidade da orla e de áreas nobres e comercialmente estratégicas (Ibid.). O referido território vem passando por visível processo de gentrificação.

Recife tem um significativo cinturão periférico, com população predominantemente jovem, na faixa etária de 15 a 30 anos (IPEA, 2013). As desigualdades sociais pluralizam as formas de ser jovem no Brasil, grande parcela dessa população ainda precisa lidar com a pobreza, ineficácia do transporte público, falta de local adequado para estudos, violência e precariedades diversas nos lugares onde residem (LEITE; MELO, 2017). D'Andrea (2020) compreende que a juventude periférica tem suas trajetórias quebradas por serem marcadas pelos múltiplos obstáculos em seus cotidianos urbanos que impedem sua ascensão social, retroalimentando o ciclo da pobreza inerente à lógica hierárquica do sistema capitalista neoliberal.

Do exposto, destacamos que um marcador social importante para pensar a experiência de ser jovem na cidade é o seu local de moradia, enquanto zona de privilégios urbanos (saneamento, iluminação, opções de mobilidade, equipamentos de lazer, complexos culturais, de saúde) ou de escassez. É nesse contexto em que vivem que os/as jovens expressam suas demandas e produzem saídas para tornar suas vidas vivíveis (LEITE; MELO, 2017). Outro marcador que acessamos na pesquisa foi o de gênero, pois, se por um lado, os/as jovens que vivem em cinturões periféricos das grandes cidades têm mais possibilidades de sofrer quebras em suas trajetórias, por outro, as possibilidades de restaurar as fraturas são diferentes e desiguais entre os que performatizam gênero como homens ou mulheres em uma sociedade estruturalmente marcada pelo colonialismo heteropatriarcal.

Para Galetti (2017), a circulação das mulheres nas cidades é coreografada pelo medo, pois elas evitam circular por alguns locais com receio de sofrer violência, em especial, violência sexual. A falta de infraestrutura urbana e o transporte público precário dificultam a mobilidade das mulheres na cidade, não levando em conta as especificidades de suas demandas. Dentre as condições que colaboram para a violência de gênero na cidade, podemos destacar: a falta de iluminação em ruas e parques; a redução do transporte público à noite; além de ônibus lotados, o que facilita a ação de abusadores. Essas violências são realizadas diretamente por homens, mas também pelo Estado, que negligencia o direito de permanência do corpo feminino na cidade. Esses acontecimentos atingem de modo mais contundente as mulheres negras, sendo elas historicamente mais pobres e desprotegidas em cidades que as colocam entre a parcela da população que é mais vitimizada pelos crimes de agressão física e feminicídio (Ibid.). Sousa, Nunes e Barros (2020) fazem referência à vulnerabilização de corpos negros em contexto urbano e, no caso do Brasil, se destaca o alto percentual de óbitos de mulheres negras no ano de 2017, sendo de 66% do universo total de mulheres mortas.

Mesmo que as cidades não sejam acolhedoras às mulheres, no Brasil, elas ocupam predominantemente os espaços urbanos. Contraditoriamente, o poder decisório das mulheres não acompanha essa vantagem numérica, sendo sua admissão em cargos políticos ainda muito pequena, fator que inviabiliza que o processo democrático seja construído de forma equânime (CASIMIRO, 2017). Ao citar a importância da presença das mulheres nos processos de tomada de decisão, e ao mesmo tempo denunciar sua exclusão dessas instâncias, queremos também alertar que é papel do Estado garantir que os processos democráticos ocorram de forma não segregacionista (Ibid.). É imperativo que a vida nas cidades seja pautada pela lógica democrática, com equidade participativa.

Para Haraway (2009), as atuais organizações políticas, econômicas e tecnológicas estão intimamente relacionadas ao enfraquecimento do estado de bem-estar, o que corrobora a feminização da pobreza, em que empregos estáveis são exceção, alimentada pela perspectiva de que os salários das mulheres não serão equiparados aos dos homens. Destacamos aqui que, para as mulheres negras, o trabalho fora de casa e em iguais condições de exploração de suas forças com relação aos homens brancos ou negros já lhes é uma realidade há muito tempo e a desigualdade de poder entre elas e as mulheres brancas veio à tona e de modo mais sistematizado com a produção do movimento feminista negro (COLLINS, 2019).

Entendemos que a análise das situações de desigualdades que estruturam as sociedades capitalistas requer uma visão de rastreio para a localização dos pontos de articulação que intensificam as adversidades existenciais nesse contexto. Com essa inspiração, o presente artigo congrega esforços para abordar a circulação de jovens mulheres na cidade em uma perspectiva interseccional (AKOTIRENE, 2018), considerando as marcações de pertencimento territorial, de raça, gênero e geração que compõem um movimento dinâmico de coletivização e singularização das possibilidades de ser e existir na cidade.

Em territórios que privilegiam corpos masculinos, brancos e elitizados, as mulheres jovens, periféricas e negras lutam cotidianamente pelo direito de vida na cidade (KOETZ, 2017), ampliando assim o próprio sentido da reivindicação de direito à cidade. Nesse sentido, pontuamos que o direito à cidade envolve o desenvolvimento social, e não apenas o econômico. É crucial garantir a todos e a todas acesso ao lazer, à habitação digna, trabalho, serviços e circulação livre, a fim de possibilitar uma cidade plural, diversa e democrática firmada na justiça social (CASIMIRO, 2017). Com o presente estudo, pretendemos nos debruçar sobre a circulação de jovens mulheres periféricas pelos bairros do Recife e compreender como elas lidam com os desafios que a cidade lhes impõe.

 

Metodologia

Desenvolvemos o presente estudo tendo como guia o debate feminista pós-estrutural e interseccional (HARAWAY, 2009; PISCITELLI, 2008; AKOTIRENE, 2018), buscando compreender os marcadores sociais que se articulam na composição das experiências de jovens mulheres periféricas na cidade do Recife. Participaram da pesquisa jovens que residiam em bairros periféricos de Recife e frequentavam uma ONG situada em um bairro da zona sudoeste da cidade. O bairro está localizado na Região Político Administrativa (RPA) 5, apresentando uma área territorial de 14 km² e população de 2.420 habitantes (IBGE, 2010). A referida ONG iniciou suas atividades em 2009 e oferta atividades artísticas para crianças e jovens da região.

Todas as fases da pesquisa ocorreram após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética, conforme as orientações da resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, que trata sobre pesquisas com seres humanos. Destacamos, ainda, que todos/as os/as participantes leram e assinaram em duas vias, recebendo uma delas, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que assegura a liberdade, a segurança e dispõe sobre possíveis riscos advindos de sua participação na pesquisa. Com o objetivo de garantir a segurança e a escolha pelo anonimato feita pelos/as participantes, foram atribuídos nomes fictícios aos jovens que contribuíram com o estudo. A estratégia metodológica adotada foi proposta em duas etapas: oficinas e entrevistas semiestruturadas.

Na primeira fase, participaram das oficinas temáticas, 3 jovens homens e 3 jovens mulheres, com idade entre 15 e 24 anos. As atividades foram intituladas da seguinte maneira: a) a aventura de contar-se na cidade; b) quais os gêneros da cidade?; c) qual a cidade que queremos? Nesse sentido, mesmo que o presente artigo foque as experiências de circulação pela cidade das jovens mulheres, entendemos, em uma perspectiva de relações de gênero (SCOTT, 1995), que as mesmas se forjam a partir das práticas discursivas e de seus efeitos em corpos identificados como masculinos e femininos em sociedades heterocapitalistas. Para a análise das oficinas, selecionamos trechos de falas que evidenciassem as temáticas de nosso estudo.

Todas as oficinas foram iniciadas com vídeos (entre 10 e 15 minutos) relacionados aos temas propostos, seguidos de atividades temáticas e debate coletivo. Durante a primeira oficina, foi produzido um mapa afetivo (SILVA; BOMFIM; COSTA, 2019), utilizado como dispositivo na tentativa de identificar e compreender os significados construídos pelos e pelas jovens sobre suas relações com a cidade. Na segunda oficina, os/as jovens construíram a história fictícia de uma jovem mulher que precisava circular pela cidade, tendo como referência o mapa afetivo anteriormente produzido. Na última oficina, os/as participantes produziram uma pintura em tela com a representação de como a cidade poderia/deveria ser. Cada oficina teve a duração média de duas horas e ocorreu com intervalo de uma semana. Todas as sessões foram gravadas e posteriormente transcritas.

Durante a segunda etapa da pesquisa, foram realizadas entrevistas semiestruturadas apenas com as jovens mulheres com o objetivo de aprofundar os significados sobre a vida na cidade e aspectos relativos à temática do direito à cidade. A organização e análise de todo o material produzido visou favorecer uma discussão comprometida com a perspectiva interseccional, destacando o agravamento das dificuldades existenciais conforme à condição juvenil sobrepunha-se marcadores de raça, classe, gênero e território.

Entendemos a interseccionalidade como uma poderosa lente analítica articulada com o que bell hooks1 (2018, p. 165) denomina de feminismo visionário radical que "incentiva a todos nós a ter coragem de avaliar a vida do ponto de vista de gênero, raça e classe, para que possamos compreender precisamente nossa posição dentro do patriarcado de supremacia branca imperialista". Nesses termos, daremos destaque às falas das jovens mulheres negras periféricas de nosso estudo, tendo em vista outro aspecto apontado pela autora supracitada, que é a deficiência destas em protagonizar um debate central, pois, na luta feminista, ainda estão em desvantagem com relação às mulheres brancas e, na luta antirracista, os homens negros figuram em maior evidência.

No que corresponde ao perfil das jovens mulheres, todas se declararam negras, eram estudantes do ensino superior e moravam em bairros periféricos da cidade do Recife. Duas delas, Ana e Júlia, possuíam renda familiar que girava em torno de um a dois salários mínimos, enquanto a terceira participante, Bruna, possuía renda familiar de três a cinco salários mínimos.

Na sessão seguinte, analisaremos os desafios impostos à circulação das jovens mulheres na cidade do Recife, ressaltando modalidades de discriminação interseccional em relação aos privilégios dos/das que gozam de estatutos normativos (SOUSA; NUNES; BARROS, 2020) e usufruem do direito à cidade.

 

Resultados e discussão

Após a transcrição de todo o material produzido durante as duas etapas da pesquisa, realizamos sucessivas leituras e o organizamos a partir de dois eixos centrais. Inicialmente, vamos tratar da circulação das mulheres pela cidade. Nesta seção, debateremos sobre questões relativas à mobilidade urbana, pobreza, gestão do tempo e o ser mulher transexual na cidade. Na segunda parte, discutiremos os desafios do direito à cidade para as jovens, abordando a questão do assédio sexual e espaços de lazer.

Deslocar-se na cidade: a saga das jovens pretas periféricas

Ao nos depararmos com o discurso de nossas participantes durante as oficinas e entrevistas realizadas, um elemento que chamou bastante nossa atenção foram as adversidades que marcam suas experiências de deslocamento na cidade. Grande parte das mulheres pobres brasileiras gasta preciosa fração de suas vidas em transportes coletivos, sendo a mobilidade urbana uma pauta fundamental no debate sobre o direito à cidade. Sobre esse tópico, destacamos os seguintes trechos de entrevistas de Ana, 19 anos e Júlia, 20 anos:

Ana: Normalmente eu venho para a federal à tarde. Aí, eu tenho que sair (de casa) 1 hora antes, por exemplo, eu tenho aula às 13:30, aí eu tenho que sair 12:30, porque tem demora de metrô e demora de ônibus. Apesar de que eu moro a 5 km daqui (UFPE) (...). Eu gasto muito tempo no trânsito, muito tempo mesmo. Até a volta pra casa à noite, que deveria o trânsito tá livre, não tá.

Júlia: ...eu não tenho ônibus que passa (...), que venha pra cá (ONG) ou um terminal de integração, que integre aqui e ao Totó, não sei. É muito mais complicado vir pra cá. Eu faço parte da zona oeste, mas nem todos os lugares da zona oeste eu consigo chegar com facilidade. Eu prefiro andar até a Abdias de Carvalho e pegar o Totó/Jardim Planalto ou o Abdias de Carvalho, do que ir pra Boa Vista pra... porque pra mim, qual é a intenção? Pra que isso tudo? Eu vou gastar passagem, entendeu? Talvez eu só tenha duas passagens, a de ida e a de volta. Eu não vou pra Boa Vista ou pro Derby, pra poder pegar o Totó/ Jardim Planalto. (...). Quando eu venho pra (ONG), por exemplo, eu passo um trajeto gigantesco. Mas, eu chego praticamente em cima da (ONG), entendesse? Ele (ônibus) passa por tantos babados, mas no final das contas, a gente chega no local. Mas, o enfado que isso dá é terrível. A gente acaba perdendo várias horas dos nossos dias apenas no ônibus... (...). Eu durmo no ônibus para ter oito horas de sono completo, porque, tipo assim, eu durmo nos ônibus, uma indo e uma voltando e mais quatro horas em casa aí dá seis, pronto o sono completo.

As participantes descrevem uma cidade que não facilita seus processos de circulação, trajetos curtos que poderiam ser rapidamente executados demandam grande quantidade de tempo no transporte público, fazendo com que o cálculo de horas seja constante em suas vidas. Nas metrópoles, os sistemas viários priorizam os automóveis particulares, pouco facilitam a circulação de transportes privados de baixo custo, como bicicletas, e os consórcios não investem na melhoria do serviço de deslocamento coletivo e público. Para Villaça (2001), esses aspectos congregam o estabelecimento e a manutenção da segregação de camadas populacionais com relação aos processos de produção, consumo e ocupação do espaço urbano.

A questão da má qualidade do transporte público foi também destacada por Júlia, com a ressalva de seus efeitos na precarização da saúde em geral e, particularmente, nas condições e tempo adequados para a função mais básica da existência humana, que é o sono. O percurso de ir e vir dos lugares vira uma prova de resistência, onde quem sai perdendo é a população mais pobre. Obrigada a morar longe da escola, da universidade, do trabalho, do comércio e de outros serviços, por exemplo, a população pobre é submetida a uma situação mais sofrida de deslocamento, perde em tempo social e em oportunidades de lazer no espaço urbano.

O estudo realizado em 2013 pelo censo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que os trabalhadores pobres fazem viagens 20% mais longas, em comparação aos mais ricos. De acordo com o Ipea, 19% gastam acima de uma hora de viagem, contra 11% dos mais ricos. A pesquisa relata que essa diferença entre ricos e pobres entra em variação conforme as regiões metropolitanas, e Recife-PE apareceu entre as capitais que registram maior variação em relação à viagem (IPEA, 2013).

A saúde não é apenas a ausência de doença, mas sim um conjunto de condições ofertadas aos cidadãos em busca de garantir seu bem-estar. No que diz respeito à mobilidade, seria a tentativa de implementar um transporte seguro, pontual e acessível, o que tornaria o deslocamento uma atividade prazerosa e saudável. Entretanto, quando um indivíduo passa por uma viagem demorada, as consequências como fadiga, cansaço e estresse são evidentes (NUGEM; SANTOS; OLIVEIRA, 2012).

Durante as oficinas, ao problematizarem suas dificuldades de mobilidade urbana, as jovens também foram estimuladas a propor soluções, como a que Bruna, negra, 18 anos, pontuou durante a atividade:

Aqui a gente colocou as ciclofaixas [Entrevistada está explicando um desenho realizado em grupo], no intuito de ter menos carros nas ruas e mais transportes sustentáveis..., mas aí a gente precisa de um transporte... que preste. (...) a gente colocou cultura dentro das comunidades, no intuito de descentralizar, porque tudo de cultura acontece no centro da cidade. E a gente optou em levar para periferia, e não a periferia se deslocar até o centro.

A bicicleta é um meio de transporte que não apresenta alto custo, além de não agredir o meio ambiente; contudo, a maior parte das cidades não investe em estruturas viárias que facilitem a utilização desse transporte, o que ocasiona grande número de acidentes envolvendo ciclistas. Segundo Galvão et al. (2013), no estado de Pernambuco, a maior parte dos acidentes com ciclistas ocorreu em vias públicas, sinalizando que essas não lhes são acessíveis.

É interessante observar a preocupação das três jovens em descentralizar os espaços de cultura e lazer, em busca de uma cidade mais justa e acessível à população periférica. Sobre essa questão, ressaltada no momento da oficina, Júlia, 20 anos, negra, destaca:

Bom, lá perto de casa, eu moro no Cordeiro, né? Lá perto de casa tem o parque Santana e só, pra onde eu vou e só pra lá. Não é uma área de lazer, eu só vou por causa da academia. Mas assim, eu saio do meu espaço, de lá onde eu moro, pra ir pra outros lugares procurar lazer, porque lá onde eu moro não tem lazer, entendeu? Tipo assim, tem lugar, tem uma praça, mas você que faz o seu lazer lá, não é que tipo tem um dia específico para ter alguma diversão, pra chamar atenção da criançada, dos adolescentes. Lá tem muito evento, entres aspas né? Mais no final do ano. Mas assim, eu procuro em outros espaços lazer. Tipo, eu venho de lá, para o (ONG) aqui no Totó. Que não é longe, mas tipo, a logística do caminho, não tem condições. Eu tenho que ir para o Derby ou tenho que vir andando até a Abdias de Carvalho e pegar o Totó. De lá da minha casa da Caxangá, até a Abdias andando e pegar o Totó na Abdias de Carvalho. Então tipo, querendo ou não eu venho buscar em outros lugares o lazer que eu quero pra mim, porque eu não tenho perto de casa, (inaudível)... Que eu fique lá pra sempre. (...) Que eu me encaixo aqui, eu venho, aí tem o C. (ONG) sonoras aqui, sabe? Tem a galera da percussão. Tem a galera do grafite, que eu faço parte. Então, tipo assim, eu me sinto bem, me sinto no meu lugar de lazer.

As estratégias criadas pela jovem novamente demostram o gasto de tempo, a necessidade de um plano elaborado para ter acesso ao direito de lazer. O trajeto do ônibus se mostra difícil, já que pode consumir um tempo considerável para chegar ao local, o que também interfere no tempo de permanência, pois precisa garantir o mínimo de segurança para seu retorno. Observamos no discurso de Júlia que, para a jovem, o lazer vai além da existência do espaço físico, as praças e parques não são consideradas por ela locais de lazer quando não ofertam atividades recreativas. De acordo com Zingoni (2009), o lazer é considerado como parte relevante na vida das pessoas, construído a partir de momentos agradáveis, que se encontram ligados a alguma atividade que geralmente não está direcionada ao trabalho. Em uma perspectiva interseccional, podemos destacar a importância do lazer para a juventude, mas também o quanto o direito à fruição é diferenciado pelo racismo, classismo e sexismo (AKOTIRENE, 2018).

Segundo Matijascic e Silva (2016), é importante combater a desigualdade social a fim de garantir a melhoria da vida e do bem-estar dos/das jovens. O que, consequentemente, poderia gerar maior panorama de justiça social e equidade, que deveria ser desejado pelas sociedades alicerçadas na democracia. A localização dos contextos e colisões de fluxos entre estruturas, frequência e tipos de discriminações interseccionais (AKOTIRENE, 2018) permite-nos compreender que operar mudanças nos contornos da cidade implica enfrentar o debate sobre os privilégios e segregações de territórios geográficos e de corpos que (não) importam.

Segundo Barros e Mattedi (2006), as praças, os parques e os espaços públicos que têm mais investimento na cidade estão localizados nos bairros nobres. Entretanto, os jovens da classe média quase não utilizam esses equipamentos, já que eles preferem sair para boates, shoppings, bares, entre outros. O trânsito das jovens negras periféricas em locais de consumo da cidade como o shopping center expressa bem o deslocamento social e desconforto de estar em um lugar que não foi feito para gente como elas. Sobre essa situação, durante a entrevista, Ana, 19 anos, negra, relata que:

Só que quando eu vou para o RioMar2 é super fora do lugar, é muito incomodante assim, é muito ruim, muito ruim... (...) Acho que, primeiro, quando você chega de ônibus, você vai para o estacionamento, aí você já vê a quantidade de carros luxuosos, aí você já fica humm... parece que aqui não é o meu lugar. (...) Aí você entra, são lojas que provavelmente você não compraria com dinheiro, a maioria das coisas. E aí, eu não me sinto confortável lá, porque, o público lá, todo... acho que 95% do público, são pessoas do que a gente chama de elite né? (...) dá pra perceber claramente quando você passa 'as olhadas', você percebe claramente e o espaço não é feito para você, não, dá pra perceber isso, pelas lojas. Eu fui (risos), tava passando assim e aí tinha um vestido muito bonito, e eu fui ver o preço assim tinha lá 15.000. (...) Aí você fica esse não é o meu lugar, e eu procurando blusa de 25,00 reais. (risos) (...) Entendesse a disparidade? Enorme, enorme, enorme. Você não se sente confortável lá, pelo menos eu não me sinto, né?!

Reiteramos o lazer como elemento fundamental da vivência juvenil, fazendo parte da construção das identidades, valores, referências e na relação com os espaços na cidade (MARTINS et al., 2017). As experiências que as jovens passam nesse momento biográfico que é a juventude articulam-se com outros marcadores, como: classe, gênero, raça, território, entre outros. Para Ana, a classe influencia bastante os lugares que ela frequenta na cidade e a sua maneira de se sentir acolhida nos espaços. Portanto, estudar as questões que perpassam o lazer e a juventude nos ajudam a entender os mecanismos de pertencimento que as jovens elaboram, a maneira como elas se inserem na dinâmica social e os laços que são concebidos nessas trocas.

Durante as entrevistas, a temática racismo também foi abordada. Ao serem questionadas sobre a possibilidade de terem sofrido ou presenciado algum episódio de discriminação, as jovens Bruna, 18 anos, negra, e Júlia, 20 anos, negra, relataram as seguintes situações:

Entrevistador/a: Tu já sofreu ou presenciou algum tipo de discriminação nos espaços?

Júlia: Eu posso dizer que sim, por tipo, acho que não gostarem da minha pessoa ou por eu estar 'molambenta'. No sentido... é porque quando eu volto do treino, quando eu volto de uma grafitagem, entendeu? Que a gente volta mais sujo de tinta e tal. A galera fica com um olho assim... ninguém fala né? Mas tipo, deixar de sentar do meu lado, isso é comum. Até se eu tiver dormindo, tiver cochilando assim... às vezes as pessoas deixam de sentar. Eu não sei por que não, mas, vai saber, né?

Bruna: Sempre acontece, não só de forma tão explícita das pessoas falando, como os olhares, as vezes os olhares dizem muito, é melhor você até não falar nada. E aí, quando eu fui fazer minha matrícula, na verdade, eu já estava matriculada na universidade, como eu estudo em uma universidade privada. Eu fui fazer minha matrícula na biblioteca, meu cadastro na biblioteca e um dos atendentes veio perguntar se eu era prounista. Aí eu fiquei parada assim, e não entendi na hora. Eu: 'oi?'. Ele: 'você conseguiu entrar pelo PROUNI, foi?'. Eu: 'não, minha renda não é compatível ao PROUNI, eu sou aluna, fiz vestibular, passei e entrei'. Aí: 'não tem nenhuma outra bolsa, não?'. Aí eu: 'não, por quê?'. Aí, enfim, ele desconversou e perguntou meu curso e desejou boas-vindas, eu fiquei na hora sem digerir bem. Caramba, eu não sou nem tão retinta assim, sabe? É um negócio bem, e é um ambiente, eu tô falando isso no caso acadêmico, é um ambiente que não foi, eu já falei isso também, não foi pensado pra mim. Não foi pensado pras roupas que eu uso, não foi pensado pro meu cabelo. Então, tem todo aquele estigma, estereótipo que meus pais não devem ter condições de pagar uma universidade pra mim, com os valores altos que ela tem. Mas a gente passa todo dia.

Essa maneira de agir e tratar com violência a população negra tem feito parte da estrutura do país, que dramatizou um violento processo de colonização. Apesar da Lei Áurea ter concedido o status de cidadania aos negros, ela não estabeleceu diretrizes para o enfretamento da condição de pobreza e discriminação. Não existia nenhuma medida protetiva e não foram oferecidas condições dignas para que a população negra pudesse viver com equidade de oportunidade social. Nessa perspectiva, esses resquícios da violência colonial ainda reverberam no cotidiano da juventude negra, pois eles/as ainda são as pessoas mais expostas à precarização das condições materiais de vida e de trabalho (SILVA, 2020).

Exposição dos corpos femininos à violência urbana

Até aqui, problematizamos a circulação das jovens mulheres participantes de nossa pesquisa pela cidade e suas tentativas de compor os cenários dos centros urbanos. As questões de classe marcam de modo contundente a forma como esse acesso é realizado. Passaremos agora a problematizar as investidas dessas cidades contra as mulheres, o modo violento como o direito à cidade lhes é negado.

Uma temática recorrente nos encontros realizados foram as situações de assédio vivenciadas. Não é de hoje que os corpos e a dignidade das mulheres são violados. O patriarcado trouxe consigo uma dominação exorbitante que humilha e ao mesmo tempo obstaculariza a autonomia das mulheres. A aliança entre patriarcado, capitalismo e urbanismo resulta em um modelo citadino marcado pela permissividade à violação dos corpos das mulheres em espaços públicos (MARQUES, 2017). Destacaremos, a seguir, um trecho da entrevista de Ana que trata sobre a questão:

Pesquisadora: Para você, o que é ser mulher no transporte público?

Ana: É sentar e ter medo quando um homem se aproxima do seu braço, do seu corpo. Quando você está sentada, né? Porque quando você está em pé, você tenta ao máximo, sei lá, se esquivar, pelo menos eu tento, apesar de... né? Não deveria isso acontecer. Quando chega alguma pessoa... algum homem, eu já fico... sabe? Tentando afastar ou eu ficando de lado, tentando me colocar em algum buraco só para não chegar perto, porque eu tenho muito medo. O metrô rola a mesma coisa, eu tô falando do ônibus, mas isso se aplica também ao metrô. (...) E você tem que pensar, às vezes eu não queria admitir isso, mas às vezes eu penso em qual roupa eu vou usar pra determinados horários que eu vou sair de casa. Às vezes eu não venho para universidade de short, porque eu tenho medo de pegar o transporte e acontecer alguma coisa.

Alguns homens se sentem no direito de "tomar posse" do corpo das mulheres, o que repercute na dificuldade de elas exercerem a livre circulação nos espaços públicos (SANTOS, 2015). O relato de Ana sinaliza que cabe às mulheres criar estratégias que busquem, mesmo que de modo infrutífero, reduzir esses efeitos.

Viver na urbe significa deslocar-se em suas ruas e avenidas, habitar e circular por seus espaços. O transporte coletivo foi criado com o objetivo de facilitar o percurso diário das pessoas; porém, as mulheres se deparam com obstáculos que dificultam a utilização desse serviço, com destaque para o assédio. A superlotação e falta de segurança nessa modalidade de transporte favorece situações de violência física e emocional. Em contrapartida, o Estado e as gestoras dos meios de transporte compartilhado parecem compactuar e silenciar diante de tais práticas. Atrelada a tais fatores, está a naturalização da sociedade em relação à violência de gênero (KAWANISHI; FERRAREZE, 2018).

Uma das consequências advindas do debate anteriormente apresentado é o fato de homens e mulheres se apropriarem de maneira diferente do cenário urbano, conforme observa-se nos seguintes trechos da entrevista:

Pesquisadora: Na tua opinião, existe diferença entre homens e mulheres, em relação à circulação e ao acesso à cidade?

Ana: Uhum, e aí envolve a questão do assédio. E aí entra outra questão também que eu acho interessante pontuar. Quando você é homem, e você transita nesses lugares escuros e perigosos, o seu medo é de ser assaltado, quando você é homem. E quando você é mulher, você tem medo de ser estuprada e não de ser assaltada.

Pesquisadora: Tu achas que as vias públicas, as ruas oferecem condições adequadas para circulação das pessoas?

Júlia: Na minha rua, a minha casa fica de esquina, aí tem uma rua de barro e uma rua calçada. Então, nessa rua de barro é que eu chego pra poder ir pra minha casa, é extremamente esquisita, não tem uma iluminação. Tem a iluminação de outras ruas perpendiculares, mas ela não. Então assim, eu não me sinto segura. Eu não acho que são todas as ruas circuláveis, entendeu? Fácil de circulação, porque não são. Eu não vou mentir.

O temor da violência sexual pelas jovens mulheres leva-nos a dimensionar a forte pressão da colonialidade de gênero sobre seus corpos, em uma relação notória de poder e dominação, atuando também quando os gestores não se comprometem em garantir infraestrutura urbana que assegure uma circulação não violenta por parte delas, principalmente para as mulheres pretas e periféricas (SANTOS, 2015).

No Brasil, em 15 maio de 2001, a lei nº 10.224 passou a estabelecer o assédio sexual no ambiente de trabalho como crime. Ela abrange homens e mulheres, mas elas são atingidas em maior dimensão. Tal lei, contudo, é restrita ao espaço laboral, desconsiderando a frequência com que essa violência perpassa as vias públicas (BRASIL, 2001). Em 2018, conseguiu-se um novo marco legal, a inclusão pela lei 13.718/2018, art. 215-A do código penal, do delito de importunação sexual. Esta atuação compreende: "Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro". A pena pelo crime é a reclusão de 1 a 5 anos, se o ato não constituir transgressão mais grave (BRASIL, 2018).

A violência sobre os corpos femininos no contexto urbano é composta por várias camadas, passando por distintas questões, e nossas jovens participantes destacaram a identidade de gênero. Em uma das oficinas realizadas, elas trouxeram a questão de ser jovem mulher transexual3 na cidade:

Bruna: É, ela se chama Josi Baratão. Ela tem 24 anos. Ela é aqui moradora das adjacências (Totó) e cursa Psicologia na Estácio. Mas para que ela possa cursar Psicologia na Estácio, ela trabalha na C. (empresa de telemarketing), para complementar a renda. Sabe como funciona, a C. tem todo um rolê, tem todo um rolê de tipo, ser o trabalho um lixo, e ela tem que tá lá dentro, porque ela se vê dentro da faculdade, e ela quer continuar lá. Mas se ela não trabalhar, ela não continua no local. E tem os rolês de representatividade, que não existe, de mulher negra, de mulher trans negra, dentro da academia. E acaba que ela, pra sair dos desafios, ela encontra as redes de apoio e fortalecimento, uma delas é O Amor Trans. (...) E é daí, a partir daí, aí que ela consegue se fortalecer e continuar nessa rotina dela, porque a gente sabe que já é difícil uma mulher trans, uma pessoa trans na cidade, conseguir trabalho. E ela não tem como, não tem como não fazer porque não está se sentindo bem. E ela arranja mecanismos através das redes de fortalecimento, para se manter na academia e nos espaços em geral. (...). Isso aqui deveria ser o arco-íris que representa os LGBTs e também, querendo ou não, Pernambuco (aponta para o desenho produzido durante a oficina). A bandeira de Pernambuco tem o arco-íris, mas principalmente, para causa LGBT. Aqui embaixo tem o símbolo do feminismo, que é para representatividade da mulher na cidade do Recife.

De acordo com Silva et al. (2016), no imaginário social, a violência - tanto a psicológica, quanto a física - é naturalizada por significações do que é ser transexual ou travesti, que se encontra enraizada na discriminação em relação a essa população. Em uma pesquisa realizada no Brasil, 10% dos sujeitos entrevistados, na sua maioria homens, sentem ódio ou repulsa relacionado às pessoas trans. Número ainda mais alarmante quando a pergunta é direcionada à antipatia, revelando que, para 46% dos entrevistados, essas pessoas passam uma imagem de repulsa, o que deixa evidente que os corpos trans são vítimas do preconceito orientado pela normatização.

O Brasil figura como o país que mais mata pessoas transexuais no mundo. Em 2017, a pesquisa sobre o mapa de assassinatos de travestis e transexuais no Brasil apresentou dados alarmantes, pois só naquele ano ocorreram 179 assassinatos de pessoas trans, sendo 169 travestis e mulheres transexuais e 10 homens trans. Desses casos notificados, só 18 tiveram êxito na prisão dos suspeitos, o que representa apenas 10% das ocorrências. Conforme esses dados, a estimativa é que a cada 48 horas um transexual é morto no Brasil, e a idade média das vítimas circula em torno de 27,7 anos (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS, 2018).

O discurso de Bruna denuncia os desafios que mulheres transexuais enfrentam quando precisam circular na cidade e acessar direitos básicos. Segundo Almeida e Vasconcellos (2018), predomina a ausência de políticas públicas que incluam as travestis e as transexuais na escola e no mercado de trabalho. O trabalho é um direito social, que se encontra garantido na Constituição Federal de 1988. Entretanto, no Brasil, em razão do preconceito e da discriminação, o público em debate apresenta maior dificuldade de entrar no mercado de trabalho formal. Isso ocorre porque a sociedade concebe essas identidades como desviantes, fora da norma.

As falas trazidas pelas jovens participantes de nossa pesquisa descrevem uma cidade que não acolhe as mulheres, que adoece aquelas/as que precisam trabalhar e que nega lazer à juventude periférica e violenta corpos considerados desviantes em relação à heteronorma.

 

Considerações finais

O presente estudo teve como participantes jovens mulheres, negras, que tinham em comum a participação em uma ONG destinada ao seu segmento populacional e o fato de enfrentarem cotidianamente a aventura de circular pela cidade. Tal jornada as afeta na carne, e elas expuseram de modo vivo e emocionante o que significa habitar uma cidade construída e pensada para outros, para poucos.

Nos discursos apresentados, observa-se que as pessoas pobres sofrem mais em relação ao deslocamento na cidade, porque residem longe do trabalho e de outros equipamentos que oportunizam acesso à saúde, educação e lazer. Além de enfrentar o trânsito intenso, têm que suportar o transporte público que não oferece um serviço de qualidade, fator que causa perda de tempo social, fadiga, cansaço e estresse. Nesse contexto, no que se refere à mobilidade, a questão da classe aparece como marcador que influencia bastante na movimentação das jovens no espaço urbano, isto é, nos locais que frequentam e no transporte que utilizam. Ao problematizarem as questões que enfrentam cotidianamente, as jovens também pensam em possíveis soluções, como as ciclofaixas, que são representadas como ferramentas para lidar com as dificuldades de mobilidade urbana.

Outra questão levantada pelas jovens foi o assédio sexual. Tal crime compõe uma lógica de dominação exercida pelos homens, que contribui para opressão das mulheres e acaba por regular as suas possibilidades de circulação na cidade. Evidenciou-se que nos transportes e espaços públicos as jovens mulheres sentem medo, e tentam desenvolver estratégias para não sofrer violência. Entre as soluções apresentadas, elas pontuaram mudar a roupa, não ficar perto dos homens nos ônibus, não utilizar o metrô em horários específicos, entre outras. Observam-se estratégias de resistência solitárias e grande ausência do Estado no enfrentamento das supracitadas questões.

Nesse sentido, o estudo aqui compartilhado sinaliza para a fundamental importância de que sejam garantidos espaços democráticos em que as jovens mulheres possam compor as questões relacionadas ao espaço em que vivem. Sabemos que o direito à cidade é uma expressão daquilo que queremos, em que se destaca a busca por um contexto acolhedor, democrático, sustentável e seguro para todas e todos.

 

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Data de recebimento: 30/01/2021
Data de aprovação: 20/04/2021

 

 

Jaileila Araújo Menezes
Docente vinculada ao Departamento de Psicologia e Orientações Educacionais e ao Programa de Pósgraduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura e Práticas Coletivas (GEPCOL/UFPE).
E-mail: jaileila.santos@ufpe.br
Débora Carla Pereira
Calado Graduanda do Curso de Psicologia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil, bolsista de iniciação científica financiada pela Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE). Pesquisadora vinculada ao Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura e Práticas Coletivas (GEPCOL/UFPE).
E-mail: debora.estudante@gmail.com
Juliana Catarine Barbosa Silva
Professora adjunta do Curso de Psicologia da Universidade de Pernambuco (UFPE), Brasil. Doutora em Psicologia pela UFPE. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura e Práticas Coletivas (GEPCOL/UFPE).
E-mail: jucatarine@gmail.com

 

 

1 O nome bell hooks foi inspirado na bisavó materna da autora, que se chamava Bell Blair Hooks. A letra minúscula expressa o posicionamento político de dar enfoque ao conteúdo da sua escrita e não à sua pessoa.
2 O RioMar Shopping é um centro comercial de grande porte, localizado na cidade do Recife, capital de Pernambuco. Inaugurado em 30 de outubro de 2012, trata-se do maior empreendimento comercial do Norte e Nordeste em área bruta locável, e o maior do país fora do eixo Rio-São Paulo (Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/RioMar_Shopping_(Recife)>. Acesso em: 30 jan. 2021). Precisamos também destacar que esse Shopping foi construído em uma das regiões de maior disputa na cidade, a conhecida bacia do Pina e ilha de Joana Bezerra, onde se localiza uma das maiores favelas da cidade, o Coque, alvo constante das mais variadas formas de violência, inclusive a da especulação imobiliária.
3 Mesmo que ser jovem mulher transexual não faça parte da experiência de vida de nossa participante, decidimos trazer o trecho da oficina que trata do tema, por considerarmos relevante a temática no contexto do debate sobre direito à cidade.

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