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Desidades

On-line version ISSN 2318-9282

Desidades  no.30 Rio de Janeiro May/Aug. 2021

 

TEMAS EM DESTAQUE - SEÇÃO TEMÁTICA

 

Da cidade fragmentada à cidade como espaço de brincar: a invenção de uma metodologia lúdica de pesquisa

 

From a city in fragments to a city as a place to play: the invention of a ludic research methodology

 

De la ciudad fragmentada a la ciudad como espacio de juego: la invención de una metodología lúdica de investigación

 

 

Alice Vignoli Reis; Mônica Botelho Alvim

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo narra um processo de pesquisa vivido em parceria com crianças e adolescentes da Favela da Mangueira, Brasil, no qual se investigou as possibilidades de reinvenção de um espaço urbano fragmentado, marcado pela distinção corpórea e territorial de direitos. Com o intuito de provocar um estranhamento em relação às lógicas segregadoras da configuração urbana, foram elaborados exercícios de experimentação clínico-artística que permitissem desnaturalizar a percepção acerca desses modos habituais de habitação e circulação no espaço da cidade. O esforço de construir uma pesquisa de forma horizontal com as crianças e adolescentes acabou levando à invenção de dispositivos lúdicos de pesquisa e experimentação do espaço urbano. Esses dispositivos nos sinalizaram a possibilidade de proposição de uma lógica brincante de ocupação do espaço público como modo de contraposição aos modos instituídos dos ordenamentos sociais do poder e a importância de que aprendamos com os modos das crianças de conhecer e pesquisar o mundo.

Palavras-chave: direito à cidade, infância, clínica, arte, brincadeira.


ABSTRACT

This article discusses a research process lived in partnership with children and adolescents from Favela da Mangueira, Brasil, in which the possibilities of reinvention of a fragmented urban space, marked by the corporal and territorial distinction of rights, were investigated. Clinical-artistic experimentation exercises were developed, which aimed to denaturalize the perception of these habitual modes of habitation and circulation in the space of the city, anchored in segregating and violent logics. The effort to build a horizontal research with children and adolescents ended up leading to the invention of playful devices for research and experimentation in urban space. These devices signaled to us the possibility of proposing a playful logic of occupying public space as a way of opposing the instituted modes of social order of power and the importance of learning from the children's ways of knowing and researching the world.

Keywords: right to the city, childhood, clinic, art, play.


RESUMEN

Este artículo narra un proceso de investigación vivido en colaboración con niños y adolescentes de la Favela da Mangueira, Brasil, en el que se investigaron las posibilidades de reinventar un espacio urbano fragmentado, marcado por la distinción territorial y corporal de derechos. Se desarrollaron ejercicios de experimentación clínico-artística, que tuvieron como objetivo desnaturalizar la percepción sobre estos modos habituales de habitación y circulación en el espacio de la ciudad, anclados en lógicas segregantes y violentas. El esfuerzo por construir una investigación horizontal con niños y adolescentes terminó conduciendo a la invención de dispositivos lúdicos para la investigación y experimentación en el espacio urbano. Estos dispositivos nos señalaron la posibilidad de proponer una lógica lúdica de ocupación del espacio público como forma de oponerse a los modos instituidos de orden social de poder y la importancia de aprender de las formas de los niños de conocer e investigar el mundo.

Palabras clave: derecho a la ciudad, infancia, clínica, arte, juego.


 

 

Quem anda no trilho é trem de ferro.
Sou água que corre entre pedras - liberdade caça jeito.
Manoel de Barros

 

A intensificação de processos urbanos de segregação e violência tem tornado o espaço da cidade cada vez mais hostil às crianças e adolescentes, especialmente aos que moram em favelas. As lógicas instituídas de habitação e circulação priorizam o desenvolvimento do capital, de modo que pode até parecer disparatada a afirmação de que a cidade pode ser também um espaço destinado à brincadeira. No presente artigo, pretendemos compartilhar aspectos de um processo de pesquisa desenvolvido em parceria com crianças e adolescentes, em que uma das principais descobertas foi a possibilidade de produzir desvios em relação a estas lógicas habituais e instituídas de se estar na cidade, em direção a uma lógica brincante. Em particular, pretendemos frisar como o esforço de estabelecer uma pesquisa de forma efetivamente horizontal com crianças e adolescentes culminou na invenção de uma metodologia lúdica de investigação.

Essa pesquisa (REIS, 2017) partiu de um objetivo central: investigar as possibilidades de reinvenção de um espaço urbano fragmentado, demarcado pela distinção corpóreo territorial de direitos. Esta investigação, por sua vez, partia de uma indagação sobre as corporeidades que se produzem em uma cidade segregada e sobre como essas corporeidades, a partir de suas lógicas de circulação e habitação, seguem produzindo (ou reproduzindo) os modos de configuração urbana. Esse objetivo - estabelecido de forma acadêmica pelos pesquisadores adultos - emergiu de um processo vivido em um longo período de trabalho com crianças e adolescentes de uma favela no Rio de Janeiro, Brasil. A pesquisa ocorreu no âmbito do projeto de extensão universitária Expressão e Transformação: arte e subjetivação com adolescentes em comunidades, vinculado ao Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e desenvolvido em parceria com a ONG Arte de Educar. Este projeto fundamentava-se na articulação entre Gestalt-terapia, fenomenologia e arte contemporânea e trabalhou, ao longo de sete anos, com experimentações artísticas multiculturais com jovens moradores da Favela da Mangueira. As oficinas eram planejadas pela equipe de extensionistas, orientadas por uma pergunta central: "Como é ser criança/adolescente na Mangueira?", a partir da qual eram elaboradas atividades que pretendiam alargar as possibilidades de compreensão de sua situação no mundo.

Ao longo dos anos de trabalho do projeto, a temática das fronteiras urbanas foi se delineando como uma questão importante a ser trabalhada: em algumas ocasiões em que saímos do território da Mangueira para explorar outros espaços da cidade, por exemplo, foi frequente o estranhamento das crianças e adolescentes com a possibilidade de habitarem determinados espaços públicos e de lazer. Houve inclusive uma ocasião em que uma das crianças perguntou à coordenadora do projeto de extensão se tinha sido ela a conseguir uma autorização para que eles todos estivessem nos jardins do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, um espaço público e (teoricamente) de livre circulação. Foram vivenciadas, também, algumas situações de racismo e preconceito - tanto explícito quanto velado, com as crianças e adolescentes se mostrando desconfortáveis em adentrar determinados espaços.

A experiência de uma cidade fragmentada foi emergindo e ganhando contorno, de modo que, ao longo dos anos de 2015 e 2016, optamos por explorar essa temática de uma forma mais direcionada. O recorte da pesquisa que apresentamos neste artigo refere-se ao processo desenvolvido nestes dois anos, sendo que cada qual representou um ciclo diferente do trabalho e teve uma configuração distinta, tanto da equipe de extensionistas quanto de crianças e adolescentes parceiros (mantendo-se alguns elementos dos grupos entre um ano e outro): em 2015, os dispositivos utilizados para a reflexão sobre as fronteiras urbanas foram oficinas artísticas ministradas dentro do espaço da ONG; em 2016, o processo investigativo foi expandido para o espaço público, utilizando-se, como dispositivos de pesquisa, exercícios de experimentações clínico-artísticas pela cidade.

Referenciamo-nos na pesquisa-ação existencial de René Barbier (2007) que tem como ideias centrais a proposição de uma prática reflexiva em espiral - em que a ação convoca à reflexão e essa provoca uma transformação na ação, e assim por diante - e a proposição de que a investigação se desenvolva de forma coletiva, pela implicação ativa de um grupo envolvido na pesquisa, considerado como pesquisador coletivo (Ibid.). Nesse sentido, as crianças e adolescentes participantes da pesquisa são considerados nossos parceiros em um campo de estudos mais amplo, que é o da questão urbana e do direito à cidade. A partir da emergência dessa temática, propusemos aos jovens moradores da Mangueira que pesquisassem conosco as fronteiras territoriais, por meio de experimentações artísticas diversas, as quais implicavam o corpo em novas/diferentes formas de vivenciar o espaço-tempo da cidade, convidando a um trabalho de desnaturalização da percepção e invenção de novas formas de estar no mundo. Esta proposição se reveste de um caráter clínico no sentido da clínica como desvio - clinamen - que, ao nosso ver, entrelaça aspectos estético-políticos.

O material bruto produzido na pesquisa abrangeu registros escritos em diários de campo e registros audiovisuais produzidos por pesquisadores extensionistas, crianças e adolescentes. Para contemplar algumas das vozes que compuseram o campo, citaremos trechos dos diários de campo dos extensionistas, trazendo, assim, lampejos das situações vivenciadas na pesquisa1. Este trabalho compreende, portanto, uma elaboração do processo investigativo que aparece na voz singular de duas adultas, mas que trazem em seus corpos sedimentos dos encontros com as crianças e adolescentes e com os outros extensionistas envolvidos no projeto. Buscamos, sobretudo, trazer nossa perspectiva dos encontros entre corpos adultos (mas que guardam em si a memória e a possibilidade da infância) e corpos de crianças; entre corpos permeados por uma linguagem acadêmica e corpos distantes desta linguagem, entre corpos do "asfalto" e do "morro" - dos estranhamentos, das potências e das novidades que puderam de aí emergir.

 

O direito das crianças e adolescentes à cidade

A intensificação em torno do debate acerca do Direito à Cidade - tanto em meios acadêmicos quanto em diversos movimentos sociais e artísticos - tem colocado em relevo a necessidade premente de se repensar as formas de organização da vida coletiva. A cidade do Rio de Janeiro, em particular, é marcada por um processo intenso de fragmentação urbana e por uma histórica distinção entre o "morro" e o "asfalto", que expressa uma distinção espacial de direitos sociais na cidade (BARBOSA, 2012b). As favelas configuram-se como territórios em disputa constante entre o poder bélico estatal e as diferentes facções do tráfico que predominam nos morros. Outras regiões da cidade, como a Zona Sul, configuram-se como territórios altamente espetacularizados e fetichizados - a "cidade maravilhosa" que é vendida para os turistas estrangeiros e que serve de morada para os setores mais abastados da sociedade. Dentro deste contexto, os conflitos são frequentes e o Estado e a classe dominante estabelecem meios de garantir que a cidade permaneça apartada, em um devaneio de que seria possível manter a violência decorrente destes processos sociais de segregação restrita aos territórios favelados - considerados no senso comum como se fossem externos à cidade.

A despeito da ilusão corrente no imaginário urbano de que a cidade seria um espaço democrático, de livre circulação, as fronteiras que demarcam o processo de fragmentação urbana se fazem presentes e expressam-se pelos poderes de polícia (RANCIÈRE, 1996) que interditam e conduzem a circulação, pelo fazer legislativo sobre os corpos operado pelo planejamento urbano e por fronteiras estéticas, corporais: fronteiras de hábitos, formas de se movimentar e circular pelos espaços. Formas que podem estar mais ou menos estáticas, mais ou menos cristalizadas. Entendemos que a produção de subjetividades anestesiadas para o contato com a diferença, as quais ratificam a fragmentação urbana, dificultando ou mesmo inviabilizando o diálogo entre diferentes segmentos da cidade, engendram-se no corpo e na sua relação com o espaço da cidade (REIS, 2017).

As fronteiras sensíveis, estético-corporais, implicadas nos modos de mover e de falar, eram as que primeiro se apresentavam no trabalho da equipe do projeto de extensão: era comum que, em um primeiro momento, os estagiários da equipe extensionista fossem identificados pelas crianças como "atores ou atrizes da Malhação2". Nosso estrangeirismo ficava ainda mais evidente nas ocasiões em que circulávamos pela favela, quando éramos rapidamente identificados e apontados como gringos. Nossos modos de andar, falar e vestir denotavam nosso não-pertencimento àquele território. Embora nossa equipe de extensionistas não fosse tão homogênea, havendo integrantes de diferentes origens e classes sociais, compartilhávamos de determinados gestos corporais e de uma linguagem que nos situava, aos olhos dos moradores mangueirenses, como seres exóticos àquele espaço, pertencentes a outra classe social. As cartografias sociais e urbanas - de divisão de classes, cores de pele, funções sociais - vigentes em nossa sociedade estabelecem alguns estereótipos que inevitavelmente se fazem presentes em encontros extra-territoriais (Ibid.) como estes.

Há toda uma corpografia (JACQUES, 2008) comum - uma inscrição do espaço no corpo - que se estabelece ao habitar um mesmo chão, de forma que os pertencimentos ao território acabam por determinar uma divisão nós X outros, estabelecendo o que nos parece exótico e o que nos parece familiar. E então a cidade, cindida em territórios pertencentes às diferentes classes sociais, habitada por pessoas com diferentes status de cidadania, padece de uma incomunicabilidade entre os territórios que, quando muito, são apenas vias de passagem ou locais de trabalho para quem lhe é estrangeiro. Apesar de ser habitada por uma imensa massa movente, em constante circulação e estar em constante reconstrução e expansão, há uma impressão de que seu movimento é, de certa forma, estático, uma vez que segue orientado por uma lógica coreográfica (LEPECKI, 2012) que tende a se perpetuar ao longo dos anos. Segundo Lepecki (Ibid.), a circulação das pessoas pela cidade poderia ser equiparada a um fazer coreográfico e político, uma vez que o ordenamento social do espaço coreografa - traça os planos de movimento - para a massa em circulação pelas ruas.

As praias são um bom exemplo dessa lógica coreográfica que se perpetua, e de como o território urbano está em disputa, como mostra a reportagem histórica Os pobres vão à praia, de Aldir Ribeiro e Felipe Paes. Realizada para o programa jornalístico Documento Especial, essa reportagem foi ao ar em 1990 e retrata a dificuldade que moradores da Zona Norte e Oeste da cidade enfrentam para chegar às praias da Zona Sul, bem como as opiniões nada favoráveis dos moradores desta última região sobre a presença dessa população nas "suas" praias. Trinta anos depois, a presença de jovens favelados nos "cartões postais da cidade" segue incomodando, mas essa população também segue insistindo em seu direito de usufruir desse espaço público de lazer. Os jovens com quem trabalhávamos se sabiam na condição de suspeitos nesses territórios - muitos já tinham tido seu caminho para a praia interceptado algumas vezes pela polícia, que, ao longo do ano de 2015, costumava parar os ônibus que faziam o caminho da Zona Norte da cidade para as praias e fazer descer todos os rapazes que tivessem alguma estética que remetesse à favela:

Falamos também sobre a praia, já que muitos imaginaram esse lugar. Trouxemos à tona o episódio dos meninos que foram barrados no caminho para a praia. O menino que estava do meu lado falou que isso já tinha acontecido com ele várias vezes, que era normal. Respondo que eu não achava isso normal, não. Ele falou que pra quem mora na favela isso é normal. Que os policiais tratam muito mal os favelados. E falou: 'não tem aquela música que diz - rico correndo é atleta, pobre correndo é ladrão?'. Cantou também uma outra música: 'abre espaço, que nóis é pobre mesmo' [Caderno de campo. Alice Reis] (REIS, 2017, p. 151).

A todo o momento, as crianças e adolescentes que moram na favela se deparam com uma cidade sitiada, em que sua presença deve ser restrita a um território específico, longe da convivência com as classes sociais mais favorecidas. A todo o momento, coloca-se para esses jovens a realidade de que a cidade - especialmente os pontos destinados ao lazer - não lhes pertence. Aliás, sua presença nas praias apenas é tolerada quando estão na condição de comerciantes ambulantes e, sendo assim, não saem do seu lugar de prestadores de serviços. São clichês de classes e funções sociais que parecem se repetir indefinidamente.

Segundo Jorge Luiz Barbosa (2012a, p. 72), as favelas são "territórios que colocam em questão o sentido da reprodução espacial da cidade em que vivemos", que deixam patente a profunda desigualdade social estruturante da sociedade brasileira. Jailson de Souza e Silva (2012, p. 60) também coloca em questão certa naturalização da fragmentação urbana quando afirma:

(...) as favelas não cercam a cidade, nem mesmo estão nela, mas são sim seus elementos constituintes: a cidade não seria o que é sem as favelas. Por fim, como é sabido, nem as cidades nem os espaços populares estão cristalizados, pois são produções históricas. Neles desenvolve-se um conjunto de práticas orientadas pelas mais diversas referências e projetos que refletem disputas materiais e simbólicas na luta pela construção da hegemonia social.

Para repensar as formas de organização da vida coletiva, consideramos necessário produzir um estranhamento dessas formas automatizadas de habitação e circulação pela cidade, desafiando essa ficção consensual do real (REIS, 2017), na qual alguns têm o direito de usufruir da praia e outros devem estar nela apenas para servir; desafiando também um ordenamento do espaço em que a favela conta como um território externo à cidade, a que se atribui menor sentido de valor, território que conta como marginal, onde é perigoso circular e cujos habitantes são sempre passíveis de suspeita. Nossa experiência com jovens da favela da Mangueira nos colocou em contato concreto e sensível com o fenômeno da fragmentação urbana e de como ela expressa uma realidade violenta, à qual os jovens moradores da Mangueira estão especialmente vulneráveis.

Algumas das histórias que ouvimos desses jovens nos confrontavam com o abismo entre infâncias vividas em diferentes regiões da cidade. Como em uma vez que estávamos conversando sobre os personagens do desenho animado Rio e perguntamos às crianças quais seriam as personagens da cidade real do Rio de Janeiro, ao que um menino respondeu: "a polícia, a milícia, o tráfico, a mulher que é roubada e o menino que foi morto ontem no Caju" (Ibid., p. 142). Essa fala deixa explícito como a violência perpassa de maneira marcante a experiência que essas crianças têm da cidade. Embora - como estratégia de sobrevivência - essa violência apareça naturalizada em algumas falas, como quando eles dizem que é "normal" serem barrados pela polícia, ela parece impactar profundamente a compreensão que esses jovens têm de si e do mundo. Em uma outra ocasião, em que perguntamos às crianças quais os seus sonhos, uma menina nos respondeu que não sonhava mais, pois sempre que sonhava, a vida lhe dava logo "dois tapas na cara". Como viver uma infância sabendo que você pode ser o próximo a ser atingido por uma bala perdida? Sabendo que não é bem-vindo nos espaços públicos da cidade? Como sonhar? Traçar planos de futuro?

É urgente que nos proponhamos a repensar nossas lógicas de configuração urbana, uma vez que estamos muito distantes de cumprir com o que estabelece o artigo 16 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), que afirma que as crianças e adolescentes devem ter garantido o seu direito à liberdade, a qual, conforme determinado pelo Estatuto, compreende os seguintes aspectos:

I - ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais; II - opinião e expressão; III - crença e culto religioso; IV - brincar, praticar esportes e divertir-se; V - participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação; VI - participar da vida política, na forma da lei; VII - buscar refúgio, auxílio e orientação (BRASIL, 1990).

O acesso a esse direito básico de liberdade, de poder circular livremente pelos espaços públicos e comunitários, é recorrentemente negado aos jovens moradores da favela - a distinção corpórea e territorial de direitos estabelece zonas em que os direitos básicos de cidadania são sistematicamente negligenciados. Cabe a nós, enquanto sociedade, pesquisar por meios de ampliar o acesso aos direitos dessas crianças e adolescentes.

 

Caminhos metodológicos

Uma questão insistente que se colocava para nós, diante dessa problemática, era como atuar em favor da reconfiguração dessas cartografias subjetivas. Que caminhos metodológicos seguir nessa ação de pesquisa? Tendo em vista nossa percepção de que as fronteiras urbanas são também fronteiras estéticas, fronteiras de hábitos, de formas de se locomover e habitar a cidade, começamos a compreender que um dos fatores centrais para que fosse possível borrar fronteiras era criar espaços de convivência, uma vez que é pelo convívio que se "acaba pegando aquela forma de proceder" (REIS, 2017, p. 167), como afirmado pela coordenadora pedagógica da ONG - é o convívio que permite intercambiar linguagens, aprender novos sentidos, criar sentidos em comum.

Partimos de uma perspectiva que compreende que os processos de produção subjetiva se dão de forma intercorporal. Essa perspectiva tem como importante referencial teórico o pensamento do filósofo Maurice Merleau-Ponty (2011/1945), para quem o corpo é o ponto zero do espaço. É o movimento de nosso corpo, imbricado ao mundo, que nos permite traçar sentidos para nossa existência, a partir de um aprendizado prático que se dá no encontro entre meu corpo e o corpo do outro. Esse aprendizado, que se dá no plano intercorporal, nos insere no mundo da cultura e nos coloca defronte a um certo caráter impessoal da existência: aprendemos que neste mundo bebe-se, come-se, senta-se, dança-se, dimensão habitual do corpo que nos coloca num plano comum da experiência, em que compartilhamos "formas corporais e gestuais sedimentadas na cultura como um fundo anônimo" (ALVIM, 2018, p. 345).

Este fundo anônimo - dimensão originária da existência que ao mesmo tempo é de todos e de ninguém em particular - revelaria um caráter essencialmente intersubjetivo da existência, com o qual entramos em contato a partir da experiência de ser um corpo vivo no espaço. Entretanto, o lugar que o outro habita no mundo, sua forma singular de se apropriar desse fundo anônimo da cultura, nunca será inteiramente coincidente com meu estilo pessoal de existir neste mundo em geral, com a posição de onde vejo, percebo e sinto. Dessa maneira, o reconhecimento da dimensão intersubjetiva e intercorpórea, ao mesmo tempo que nos coloca em um plano comum de experiência, nos coloca frente à tensão viva do contato com a diferença apresentada pelo outro. "Importante lembrar que o intersubjetivo não é consciência coletiva: a intersubjetividade envolve relação viva e tensão, uma vez que não é separada da subjetividade como singularidade que cria, gerando diferença e movimento no campo" (Ibid., p. 345).

Neste campo tensionado da produção intersubjetiva, produzem-se o que aqui chamamos de cartografias urbanas e sociais - divisão espacial que se expressa em gestualidades corporais, hábitos do corpo que determinam zonas de pertencimento social e subjetivo. Por isso, começamos a entender que, para intercambiar linguagens e produzir sentido comum entre pessoas habitantes de territórios estrangeiros, era necessário justamente criar território comum - espaços de convivência que permitissem esse aprendizado do corpo que só se dá no contato sensível com o outro.

Ancoradas no pensamento de Merleau-Ponty, compreendemos que o movimento de produção de sentidos não como um movimento que acontece no interior de uma consciência fechada que se direciona para o mundo, ou do encontro de duas consciências fechadas em si, mas como movimento que emerge de um campo, de uma constelação de forças e sentidos que se expressam em nossos corpos: movimento instituinte, prenhe de gestos e acontecimentos que instauram novos modos de ser, modalidades de organização do tempo e do espaço. E aqui nos encontramos com um tema fundamental de nossa concepção de clínica: consideramos o processo clínico como um processo de "invenção comum de verdade" (Id., 2012, p. 1013) que provoca desvios, abre possibilidades para a emergência de novas formas de vida, para além daquelas que já estão sedimentadas e instituídas, infinitamente repetidas.

Considerando a intercorporeidade como aspecto central da produção de subjetividade, podemos afirmar que a produção de novos sentidos acontece na expressão espontânea que nasce do contato com outrem, este, ao mesmo tempo idêntico e estranho a si mesmo. Alvim (Ibid.) nos convida a conceber uma perspectiva clínica em que o terapeuta convoque, a partir de um trabalho de desnaturalização da percepção, à produção de sentidos que seja desviante em relação à produção automática e repetitiva de sentidos engendrada por um corpo anestesiado e distanciado da experiência do mundo. A autora desenvolve a noção de desajustamento criador (Id., 2014, p. 299) - ação de produção do contraditório que aciona os sentidos, a corporeidade, remetendo à experiência estética - para que assim abra-se a possibilidade de produção da novidade, da diferença. Como em uma dança, os gestos de corpos vivos e sensíveis ao espaço são gestos expressivos, que abrem espaço para novas formas de ser e estar e no mundo.

 

Imagem 1

 

Entendemos, portanto, que a experiência clínica é essencialmente uma experiência estética e criadora, se aproximando assim da experiência artística. Segundo Suely Rolnik (1999, p. 3), no mundo contemporâneo, a criação fica confinada à esfera da arte, de modo que as pessoas que estão fora dessa esfera perdem "as rédeas desta atividade de criação de valor e sentido para as mudanças que se operam incessantemente em sua existência, e passa a orientar-se em função de cartografias gerais, estabelecidas a priori, a serem passivamente consumidas". Sendo assim, vislumbramos grande potência política na hibridização entre arte e clínica. Consideramos aqui a concepção de política de Rancière (1996), que afirma que essa - ao contrário do que estabelece o senso comum - não é a maneira como grupos e indivíduos combinam seus interesses, "é antes um modo de ser da comunidade que se opõe a outro modo de ser, um recorte do mundo sensível que se opõe a outro recorte do mundo sensível" (Ibid., p. 368). O filósofo identifica a política na noção de dissenso - o confronto entre diferentes regimes de sensorialidade, que provoca uma perturbação naquilo que é passível de ser dito, visto e contado, naquilo que conta como pertencente a um mundo comum (Ibid.).

Nesse sentido, nossa busca por pensar as possiblidades de reconfiguração das cartografias sensíveis do mundo acabou por produzir, em nosso pensamento, uma imbricação entre as dimensões clínica, artística e política, de forma que nossos dispositivos de pesquisa acabaram por se situar nesse campo híbrido. A noção de performance - prática artística que ressalta a força instituinte do gesto - se apresentou como uma estratégia interessante para a nossa intenção de instaurar espaços que permitissem revolver os sedimentos do corpo e promover a estranheza sobre as formas naturalizadas e habituais de circular e de habitar na cidade.

Ao longo do tecer deste caminho metodológico, algumas referências do campo da arte foram fundamentais. A começar pelo trabalho dos artistas brasileiros Lygia Clark e Hélio Oiticica, que pertenciam ao movimento neoconcreto e propunham uma arte que descesse da redoma inatingível do museu e se fizesse presente na experiência do mundo. Ambos propunham uma mudança radical de posição do espectador de arte, que passava a ser um participante da obra. Os artistas buscavam, com suas proposições de experimentações artísticas, "desencadear a criatividade geral" (CLARK, 1980, p. 37), favorecer um estado de invenção nos participantes da obra e, assim, a interpenetração entre diferentes mundos. Em especial, a noção de Oiticica (1986) de programas abertos à realização coletiva nos inspirou no sentido de pensar em dispositivos de pesquisa que atuassem como proposições sensíveis aos participantes da pesquisa, de forma a convidá-los a uma experiência viva do espaço, que possibilitasse revolver os sedimentos do mundo instituído. Relacionada a esta última noção está a ideia de programa performativo de Eleonora Fabião (2008), a qual chama as ações performativas de programas - roteiros simples de ações que funcionam como "motores" ativadores de experiência.

Outra referência fundamental para nossa construção metodológica foi a noção de deriva etnográfica, de Thiago Florêncio (2015). O autor, ao retomar as práticas de deambulação aleatória dos surrealistas, propõe o andar à deriva pela cidade como prática performativa. Segundo Florêncio (Ibid.), os surrealistas, tendo retornado da Grande Guerra, e influenciados pelo flaneur de Baudelaire, estariam dispostos a flanar pelas cidades para realizar uma observação participante da barbárie ocidental. O jogo de estranhamento do familiar operado nesta prática resultaria em uma experiência estética, tornando possível a produção de "'momentos de intensidade' que permitem estar em sintonia com as coisas do mundo" (GUMBRECHT, 2014, p. 147, apud FLORÊNCIO, 2015).

A tessitura entre esses diferentes referenciais, que se deu de forma concomitante à nossa experiência do primeiro ano do campo - em que realizamos as oficinas artísticas dentro do espaço da ONG3 com o intuito de abordar a temática das fronteiras urbanas -, nos levou a propor, no segundo ano de pesquisa, a instauração, junto aos jovens da Mangueira, de pequenos espaços criativos de circulação e convivência na cidade. O convite para a participação nessa etapa da pesquisa foi feito a um grupo de jovens indicados pela coordenadora da ONG - nossa parceira na construção da proposta de investigação - como crianças e adolescentes que poderiam ter interesse em vivenciar esse processo. Cientes dos limites de alcance de nossas ações, lançamo-nos, junto a esses jovens, em um laboratório de pesquisa e experimentação do espaço urbano, com a intenção de que fossem abertas possibilidades de criação de novas narrativas acerca da cidade, ao favorecer, para todos nós, a experiência de um corpo menos automatizado e enrijecido por uma lógica segregadora e excludente. Foi assim que nos lançamos ao processo que culminou na prazerosa descoberta do que cunhamos de pequenos exercícios experimentais da liberdade (REIS, 2017), em homenagem à noção de exercício experimental da liberdade, usada pelo crítico de artes Mário Pedrosa para se referir ao trabalho de Clark e Oiticica.

Este nosso laboratório de pesquisa e experimentação incluía três momentos diferentes de trabalho: laboratórios semanais de preparação corporal realizados de forma interna pela equipe de extensionistas, com o intuito de trabalhar a escuta do corpo e do espaço da cidade, nos quais eram realizadas oficinas de métodos de educação somática, exercícios teatrais e também derivas etnográficas pela cidade; grupos de estudo para discussão teórica dos textos pertinentes à pesquisa; laboratórios de experimentação no espaço urbano, junto aos jovens da Mangueira, os quais foram realizados em vários lugares diferentes, dentre eles a Praça Mauá, a favela da Mangueira, o campus da UFRJ, a Praça Tiradentes e o parque da Quinta da Boa Vista.

A pesquisa foi feita de forma coletiva, em parceria com estudantes dos cursos de graduação em psicologia, direção teatral, dança, audiovisual e com crianças e adolescentes moradores da favela da Mangueira, e contou com aproximadamente 27 participantes nessa etapa em 2016, sendo 7 pesquisadores adultos e 20 pesquisadores crianças e adolescentes, com idades entre 8 e 15 anos. A participação do grupo de crianças e adolescentes na atividade era flutuante, de modo que nossos encontros semanais não contavam sempre com o mesmo número de pesquisadores. A cada atividade, os participantes produziam registros fotográficos e videográficos, assim como registros escritos, no formato de diários de campo que em alguns momentos foram feitos também pelas crianças e adolescentes.

Ao longo de todo esse percurso, foram se colocando alguns desafios importantes - para realizar a pesquisa de fato em parceria com as crianças, seria necessário transpor não só as fronteiras entre habitantes de diferentes territórios da cidade, mas também as fronteiras entre nossa linguagem adulta e acadêmica de pesquisa e a linguagem das crianças e dos adolescentes em sua forma de buscar conhecer o mundo. Algumas questões importantes se colocavam a nós: como fazer esta pesquisa de fato junto com as crianças? Como aproximar linguagens? Como abrir espaço para que elas também fossem protagonistas do processo? A resposta a estas perguntas veio do próprio campo: descobrimos na brincadeira uma linguagem comum que aproximava nossos corpos adultos e os corpos das crianças e dos adolescentes, de forma a instituir-se como principal linguagem do nosso pesquisar conjunto e a cidade mostrou-se a nós como um espaço de brincar. Ao brincar, ampliamos a possibilidade de conhecer e trocamos perspectivas sobre a cidade, abrindo espaço para a invenção de novos modos de habitá-la.

 

Experiência lúdica do espaço

Nas oficinas realizadas no primeiro ano de pesquisa, em que buscávamos investigar, junto aos jovens moradores da Mangueira, como era sua experiência do espaço da cidade, atentamo-nos para a percepção lúdica que as crianças e adolescentes têm do espaço. Em diversas atividades em que os convidávamos a encenar, desenhar, imaginar espaços da cidade, aparecia uma mistura de elementos reais com elementos fantásticos, como no dia em que desenhamos juntos um grande mapa da cidade do Rio de Janeiro:

Novamente, real e fantástico se misturam: desenhamos o alojamento do fundão, a Maré, o Maracanã, o 'Monstro Feliz', o 'Mosquito da Dengue', uma floresta, o campus da Praia Vermelha, as praias da Zona Sul, a 'Mangueira' e o 'Tuiuti', o quarto do Rogério, a baía de Guanabara, Janice fez o lago com as tartarugas, fizeram também um grande sol com um sorriso [Caderno de campo. Alice Reis] (REIS, 2017, p. 100).

Crianças que são, os meninos e meninas deixam as coisas que fazem serem tocadas pela imaginação. Às vezes de forma tão intensa que monstros imaginados podem existir e dar medo de verdade:

[Marquinhos] Contou do dia que eles foram colher jaca no Parque Lage e que lá escutaram barulhos assustadores. Brinquei que talvez o monstro feliz estivesse no Parque Lage fazendo os barulhos. Ele faz uma cara engraçada, de espanto, não sei, e diz: 'É mesmo, tia!' [Caderno de campo. Maria Errante] (Ibid., p. 100).

Huizinga (2010, p. 7) afirma que a ludicidade se baseia em uma certa "'imaginação da realidade (ou seja, a transformação desta em imagens)", o que o leva a atentar para a função significante do jogo. Ele afirma que no ato de enunciar fala, criar linguagem, é como "se o espírito estivesse saltando entre a matéria e as coisas pensadas" (Ibid., p. 7), realizando um "jogo de palavras", de forma que, "ao dar expressão à vida o homem cria outro mundo, o mundo poético ao lado da natureza" (Ibid., p. 7). As crianças, por estarem há menos tempo no mundo e, portanto, menos enrijecidas pelas coisas instituídas, realizam intensamente essa função significante e instituinte. É por isso que, no intuito de desenrijecer as formas fixadas, é importante aprender com elas.

Propor-se a pesquisar junto com as crianças e adolescentes exige despir-se da confortável posição de adultos racionais e discursivos. É necessário descentrar-se, sair da posição adultocêntrica que predomina em nossa sociedade e que considera a criança como um ser menor, que ainda não é, ser em desenvolvimento, como se algum dia o ser cessasse o movimento e parasse de se desenvolver. O que nos remete a uma potência dupla de deslocamento de um trabalho de extensão universitária realizado com crianças: da universidade para territórios "marginais" da cidade e de um pensamento acadêmico e adulto à forma das crianças de experienciar o mundo. Se, segundo Alvim (2017), a ideia de um deslocamento do centro para a margem sintetiza o "espírito" da extensão universitária, pensamos aqui nas inúmeras centralidades presentes em nossa cultura: a centralidade de um pensamento racional e discursivo, logocêntrico e adultocêntrico, de um pensamento permeado por uma lógica capitalista, centralidade de um pensamento academicista.

A proposta de sustentar uma horizontalidade no processo de pesquisa nos colocava, portanto, as seguintes questões: como estar em campo sem reafirmar as centralidades acadêmicas e adultocêntricas? Sem reafirmar a equivocada posição de "autoridade dos que sabem contra os que ignoram" (RANCIÈRE, 2012, p. 10)? A resposta a esses desafios veio da descoberta de nosso próprio corpo brincante, que a princípio se deu em nossos laboratórios corporais realizados de forma interna pela equipe de extensionistas. Se em 2015 percebemos nas crianças uma relação lúdica com o espaço da cidade, em 2016, acabamos por descobrir e experimentar essa experiência lúdica do espaço. É em um exercício de viewpoints, técnica teatral de experimentação do espaço, que aparece à primeira percepção de ativação desse corpo brincante:

Outro dia fizemos viewpoints. A potência do corpo expressivo que nasce de um contato mítico com o espaço, contato poético que permite nascimento de imagens. Imagens sacras. Imagens - corpo - experiência. Espaço potencial. Espaço de brincadeira. Que fica travestido de corpo e poesia [Caderno de campo. Alice Reis] (REIS, 2017, p. 104).

Imagino onde queremos chegar, percepções sutis do grupo, sair dos gestos óbvios. Questão de tempo, ou de treino. Brincar, competir como criança, com as crianças, produzir ócio, investir no que não tem valor de troca. Clarice disse que 'se as crianças pintam como Picasso, talvez seja mais justo louvar Picasso que as crianças. A criança é inocente, Picasso tornou-se inocente.' Vamos por aí [Caderno de campo. Rafael Ostrovski] (Ibid., p. 104).

Rafael diz que é mais justo louvar Picasso do que as crianças, talvez porque o sair dos gestos óbvios de um corpo habitual - recuperar certa inocência e curiosidade no contato do corpo com o espaço - requer esforço de corpos que já estão há mais tempo enredados na cultura e no mundo. Nos parece que esses exercícios vão nos conectando de forma mais profunda ao corpo como um eu posso, de que nos fala Merleau-Ponty (2011/1945), essa capacidade criativa de instituir sentidos, criar modos singulares de expressão - entrar em contato mítico com o espaço e descobri-lo como espaço de brincadeira que, como dito por Alice na citação acima, "fica travestido de corpo e de poesia". Este mesmo corpo brincante irá se apresentar também em nossas derivas pela cidade.

Em nossos laboratórios internos, nossa metodologia de deriva consistia em um momento inicial em que permanecíamos um tempo - de 5 a 10 minutos - quietos e de olhos fechados para entrar em contato com a paisagem sonora da cidade e ativar um corpo mais sensível ao espaço; um momento intermediário em que nos juntávamos em duplas ou trios para deambular em silêncio por um espaço determinado da cidade, durante um tempo previamente estipulado; e um último momento de compartilhamento de experiências. Foi em uma dessas derivas, que aconteceu nos arredores do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, que apareceu pela primeira vez mais claramente a ideia da cidade como espaço de brincar. Nesse dia, fazíamos a deriva orientados pela ideia de nos deixar surpreender pelos objetos que encontrássemos pelo caminho. Essa proposição acabou por fazer emergir um estado de jogo nos corpos dos integrantes da equipe, que passaram a brincar com os objetos encontrados. No fragmento a seguir, uma das integrantes da equipe narra um jogo estabelecido a partir do encontro seu e de seu parceiro de deriva com diversos cabides, jogados na rua por uma loja de roupas:

Dieymes pega um papel de coleta de lixo reciclável e pede para que eu coloque no pregador de um dos seus cabides. Começamos o jogo: pegar coisas das ruas para pendurar nos nossos cabides. Acho divertido pegar guimbas de cigarro para colocar nos cabides, porque os cabides parecem ter bocas de pato, é como se eu desse cigarros para os patos-cabides. Penduramos também: faixa de interditado, pedaço de madeira de lugar que havia sido queimado, papel de jogo do bicho, folhas secas. Juntamos todos esses elementos, fragmentos da cidade e colocamos os cabides nas grades da igreja. Parecia uma oferenda para Esú, senhor das ruas. Os objetos me distraíram de outras coisas que costumo prestar atenção em derivas. Mas me diverti demais. Cidade-espaço-de-brincar" [Caderno de campo. Alice Reis] (REIS, 2017, p. 105).

Vamos (re)descobrindo, então, como adentrar em uma experiência lúdica do espaço, que acaba sendo uma experiência de criar outros universos dentro das formas cotidianas de habitar a cidade. No fragmento a seguir, Walter Benjamin (2013, p. 16) afirma que as crianças reconhecem nos resíduos e fragmentos do mundo o rosto que as coisas "voltam exclusivamente para elas", recriando um pequeno mundo dentro do grande:

As crianças gostam muito particularmente de procurar aqueles lugares de trabalho onde visivelmente manipulam coisas. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos desperdícios que ficam do trabalho da construção, da jardinagem ou das tarefas domésticas, da costura ou da marcenaria. Nesses desperdícios reconhecem o rosto que as coisas do mundo voltam exclusivamente para elas, precisamente e apenas para elas. Com eles, não imitam as obras dos adultos, mas antes criam novas e súbitas relações entre materiais de tipos muito diversos, por meio daquilo que, brincando, com eles constroem. Com isso as crianças criam elas mesmas seu mundo de coisas, um pequeno mundo dentro do grande.

 

Brincar pelas ruas: um pequeno grandioso exercício de liberdade

Ao longo da pesquisa, enfrentávamos alguns desafios - um deles era como propor às crianças e adolescentes experimentações que permitissem a mesma ativação do corpo sensível no espaço que experimentávamos em nossos laboratórios internos, a qual nos abria a possibilidade de desnaturalização dos hábitos perceptivos. Não parecia promissor utilizar com elas a mesma metodologia que utilizávamos entre nós: intuíamos que talvez elas não se interessassem em derivar silenciosamente pela cidade por um longo período de tempo. Fizemos algumas experimentações para investigar outras possibilidades de ativação desse corpo sensível no espaço, as quais acabaram por reforçar a ideia de transformar a cidade em um espaço de brincadeira, como em uma ocasião em que levamos as crianças e adolescentes vendados pelo metrô - experiência que se revelou muito divertida: cada solavanco dos trens do metrô era acompanhado de frios na barriga e gargalhadas. Nessa ocasião, experimentamos também uma certa reorganização do espaço que acontece quando o habitamos de forma não usual: as pessoas ao redor abriam espaço para que passássemos e a presença daquelas crianças, naquela configuração, provocava mais curiosidade do que suspeita.

Inspirados pela ideia da cidade como espaço de brincar, elaboramos uma forma lúdica de realizar uma deriva etnográfica junto com as crianças e jovens, a qual denominamos jogo dos post-its. O jogo contém três regras simples: 1) Separar grupos e entregar um bloco de post-it colorido (as cores distinguem os grupos), uma folha de papel e uma caneta; 2) Cada grupo deve circular por uma área mais ou menos delimitada, colando, nos espaços que interessarem o grupo, recados/orientações/brincadeiras para um suposto visitante. O grupo deve registrar o percurso em um mapa, com dicas de onde estão os post-its; 3) Após aproximadamente 30 minutos, retorna-se ao ponto inicial. Trocam-se os mapas e passa-se a procurar e experimentar as propostas dos post-its indicados por outro grupo. Como na imagem abaixo, em que um post-it azul convidava o grupo que o encontrasse a ficar um tempo encarando uma das estátuas de leão que guardavam a entrada de um prédio na Praça Tiradentes.

 

Imagem 2

 

À medida que propunha pequenas ações coletivas que se davam no encontro com o inesperado, o jogo possibilitou um modo singular e afetivo de cartografar os espaços urbanos. Junto às crianças, fomos reconhecendo "o rosto que as coisas do mundo voltam exclusivamente para elas" (BENJAMIN, 2013, p. 16), como quando encontramos um post-it que nos convidava a procurar por caracóis em um dos jardins da Praça Mauá e colocá-los para apostar corrida. Ou quando, no processo de derivar pela cidade, algumas crianças ficaram um longo tempo discutindo sobre a cor de uma lagartixa. Algo interessante a atentar sobre essa metodologia é que ela permite um compartilhamento de experiências do mundo que não passa pelo ato discursivo: ao procurar os post-its do outro grupo, acabávamos por refazer o seu percurso e éramos convidados, a partir dos escritos dos post-its, a partilhar das suas percepções do espaço. Para nós, foi importante encontrar essa forma lúdica de compartilhar a experiência, tendo visto que nos parecia que as discussões ou conversas sobre o que tínhamos vivido não permitiam que nos aprofundássemos na vivência das crianças. Essa troca de experiências permitia, ademais, que aprofundássemos nosso conhecimento do espaço, além de nos levar a prestar atenção em coisas inusitadas, que estão presentes no mundo, mas passam desapercebidas em nosso caminhar cotidiano adormecido.

Um momento bonito que ficou na memória foi quando um post-it que encontramos nos falava para encontrar e empinar pipas. Ficamos um tempão procurando até que vimos pipas distantes, no céu, e entendemos que devíamos empiná-las imaginariamente. Essa experiência, profundamente poética - assim como outras que vivemos durante esse processo -, nos fez experimentar um plano comum entre os corpos participantes da brincadeira. Tanto o grupo que colou o post-it quanto o que o encontrou viveram uma experiência estética compartilhada. A brincadeira e a poesia se revelaram formas potentes de borrar fronteiras entre mundos, entre corpos adultos, "acadêmicos", e corpos de crianças, entre corpos do "morro" e do "asfalto". Era possível experienciar a dimensão intercorporal da existência, definida por Alvim (2014, p. 175) como "algo da ordem de uma generalidade que brota da concordância do meu corpo com o corpo do outro, a partir de uma operação da experiência e não da representação".

 

Imagem 3

 

Dentro do jogo, os espaços da cidade passam a convidar a movimentos inusitados, como na imagem acima em que, ao passar por uma estátua cravada com a palavra liberdade, éramos convidados a dançar. Os comandos escritos nos pequenos papéis coloridos acabavam virando propostas de micro programas performativos - deixadas no espaço endereçadas a um grupo específico, mas que poderiam ser encontradas por qualquer um. Por exemplo, um post-it que colocamos em uma grande pedra, na Quinta da Boa Vista, onde estava escrito "deite em cima da pedra e fique por 3 minutos olhando o céu" foi encontrado por um outro grupo de crianças que brincava no parque e que seguiu a proposição sugerida pelo post-it. Fomos assim construindo, junto às crianças e adolescentes, possiblidades de apropriação do espaço urbano para além de seus usos comuns, já instituídos, dando vazão às suas (e às nossas) percepções lúdicas do espaço. Ao traçar percursos pelo espaço orientados por uma lógica brincante, ao invés da costumeira lógica capitalista a ditar a circulação dos corpos, pudemos inventar outras narrativas do espaço da cidade, novos modos de habitá-la.

O processo de ocupar a cidade brincando acabou fortalecendo, também, nosso vínculo afetivo com as crianças. Ao sair ao ar livre e percorrer espaços, parecia se borrar uma certa lógica de professor/aluno, adulto/criança, morador do morro/do asfalto que se apresentava mais estabelecida nas oficinas ministradas dentro da ONG. Muitas vezes, quando estávamos conversando com as crianças sobre a pesquisa que realizamos, elas destacavam a amizade criada com os extensionistas como um dos pontos altos do processo.

 

Considerações finais

Brincar se mostrou um exercício fundamental de liberdade, prática instituinte que faz emergir novas configurações do espaço e do tempo. Nos lembramos aqui da noção de instituição para Merleau-Ponty, como algo que se dá num espaço intercorporal: "um sentido que me aparece por meio de uma situação - tempo-espacial - que produz um movimento, apela ao futuro, ao porvir" (ALVIM, 2012, p. 1016). Nos parece que, frente à necessidade de se repensar as formas de organização da vida coletiva, é fundamental que tenhamos uma escuta sensível às crianças e adolescentes e às suas formas de pesquisar e conhecer o mundo. A experiência de traçar uma pesquisa de forma efetivamente horizontal com crianças e adolescentes moradores da Mangueira exigiu de nós, pesquisadores adultos, diversos "descondicionamentos sociais" (Oiticica, 1986), principalmente: o deslocamento de um pensamento acadêmico e racional e o deslocamento de certos hábitos do corpo relacionados aos nossos pertencimentos territoriais. Através do encontro com as crianças, fomos lembradas/os de nosso corpo brincante e da potência que esse corpo tem de reinventar o espaço, criar novas narrativas. Percebemos nas crianças e adolescentes como este esforço abriu espaço para que elas pudessem expressar seus modos singulares de conhecer e se apropriar dos espaços. Pudemos assim aprender com elas e descobrir juntos que transformar a cidade em um espaço de brincadeira é uma maneira potente de produzir desvios em uma lógica urbana violenta e excludente.

Esperamos que o relato de pesquisa aqui apresentado possa contribuir para os debates acerca de metodologias de pesquisa criativas e participativas, em que as crianças e adolescentes sejam considerados em sua potência de pesquisadores e produtores de conhecimento sobre o mundo. Esperamos contribuir também para os estudos sobre as questões urbanas, sublinhando a importância de que as crianças e adolescentes possam participar dos debates sobre o direito à cidade a partir de seu modo singular e lúdico de experienciar o espaço.

 

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Data de recebimento: 31/01/2021
Data de aprovação: 11/05/2021

 

Alice Vignoli Reis Mestre e doutoranda em psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGP/UFRJ), Brasil. Graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), Brasil.
E-mail: alice.v.reis@gmail.com
Mônica Botelho Alvim Psicóloga, doutora em psicologia pela Universidade de Brasília (UNB), Brasil, e pós-doutorado em filosofia pela Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne, França. Docente e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil.
E-mail: monica.alvim@ufrj.br

 

 


 

 

1 As ações da pesquisa passaram por aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O projeto teve registro CAAE 5082481500005582, tendo sido aprovado pelo parecer de número 1.359.063. Todos os nomes das crianças e adolescentes citados nestes cadernos foram trocados, de forma a preservar suas identidades.
2 Malhação é uma novela direcionada ao público infanto-juvenil transmitida em uma rede de televisão brasileira.
3 Essa ONG oferecia atividades artísticas e culturais aos jovens no contraturno escolar e já possuía uma longa atuação dentro da Mangueira. Sua equipe pedagógica era composta majoritariamente por moradores da comunidade e a instituição chegava a atender uma média de 200 crianças e adolescentes dos 6 aos 16 anos, os quais eram organizados em turmas. Geralmente a equipe de extensionistas ficava responsável pelo trabalho com uma ou mais turmas, durante determinado período da semana.

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