SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número30Mobilidades infantis na pandemia: revelando espacialidades invisÝveis da infÔncia na AmÚrica LatinaUNICEF, (des)colonidades e infÔncias: vidas negras importam índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.30 Rio de Janeiro maio/ago. 2021

 

TEMAS EM DESTAQUE - SEÇÃO LIVRE

 

"Sinto que renasci": a inserção de adolescentes em um Programa de Proteção

 

"I feel I was reborn": the insertion of adolescents in a Protection Program

 

"Siento que renací": la inserción de adolescentes en un Programa de Protección

 

 

Bianca Orrico SerrãoI; Juliana Prates SantanaII; Maria Jorge Santos Almeida Rama FerroIII

IUniversidade do Minho, Instituto de Educação, Braga, Portugal
IIUniversidade Federal da Bahia, Instituto de Psicologia, Salvador, Brasil
IIIUniversidade de Coimbra, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, Coimbra, Portugal

 

 


RESUMO

Esta investigação objetiva analisar os sentidos subjetivos atribuídos ao Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) por adolescentes protegidos no estado da Bahia, Brasil. Esta política foi instituída em função do aumento do número de homicídios na faixa etária de 15 a 19 anos e a necessidade de proteção para aqueles que sofrem iminente ameaça de morte. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com 16 protegidos/as, sendo que os resultados demonstram a importância do programa no direito à vida e as principais dificuldades enfrentadas pelos adolescentes para permanecerem em um programa cuja inserção envolve mudanças, regras e restrições. Pretende-se contribuir para a qualificação dessa importante política a partir da difusão das vozes dos adolescentes, além de pensar em investigações futuras que realizem o acompanhamento longitudinal dos/as adolescentes no PPCAAM, buscando compreender os impactos a médio e longo prazo da passagem pelo programa.

Palavras-chave: adolescência, proteção, sentido subjetivo, violência letal.


ABSTRACT

This investigation aims to analyze the subjective meanings attributed to the Program for the Protection of Children and Adolescents Threatened with Death (PPCAAM) by protected adolescents in the state of Bahia, Brazil. This policy was instituted due to the increase in the number of homicides in the 15 to 19 age group and the need for protection for those who suffer an imminent death threat. Semi-structured interviews were carried out with 16 adolescents, and the results demonstrate the importance of the program in the right to life and the main difficulties faced in a program whose insertion involves changes and restrictions. It's intended to contribute to the qualification of this important policy, based on the dissemination of the voices of adolescents, in addition to thinking about future investigations that carry out the longitudinal monitoring of adolescents, seeking to understand the medium and long-term impacts of passing through the program.

Keywords: adolescence, protection, subjective sense, lethal violence.


RESUMEN

Esta investigación tiene como objetivo analizar los significados subjetivos atribuidos al Programa de Protección a Niños, Niñas y Adolescentes Amenazados de Muerte (PPCAAM) por adolescentes protegidos en el estado de Bahia, Brasil. Esta política fue instituida debido al aumento en el número de homicidios en el grupo de edad de 15 a 19 años y la necesidad de protección para quienes sufren una amenaza de muerte inminente. Se realizaron entrevistas semiestructuradas a 16 personas protegidas, y los resultados demuestran la importancia del programa en el derecho a la vida y las principales dificultades que enfrentan los adolescentes para permanecer en el programa. Se pretende contribuir a la calificación de esta política, basada en la difusión de las voces de los adolescentes, además de pensar en futuras investigaciones que realicen el seguimiento longitudinal de los adolescentes, buscando comprender los impactos a mediano y largo plazo de su paso por el programa.

Palabras clave: adolescencia, protección, sentidos subjetivos, violencia letal.


 

 

Introdução

Este estudo tem por objetivo analisar os sentidos subjetivos atribuídos ao Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) por adolescentes em proteção no estado da Bahia, Brasil. Os estudos relacionados ao PPCAAM, em geral, apresentam aspectos referentes às legislações e experiências em diferentes estados (AZEVEDO; FERNANDES, 2016; REIS, 2015) e, nesta pesquisa, o intuito é abordar a perspectiva dos próprios adolescentes sobre os sentidos que atribuem à experiência de ingressar nesta modalidade de proteção.

A adolescência pode ser compreendida, acima de tudo, como um fenômeno social, histórico e cultural, que apresenta diferenças para cada indivíduo (OZELLA; AGUIAR, 2008), sendo importante considerar as questões relacionadas ao gênero, raça e classe social quando se busca investigar essa fase do desenvolvimento. No âmbito do presente estudo, será investigada a experiência de adolescentes ameaçados de morte e, nesse sentido, é importante compreender as características da violência letal no contexto brasileiro. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a violência é um fenômeno multifacetado, podendo ser definida como o:

[...] uso intencional da força física ou do poder real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação (KRUG et al., 2002, p. 5).

A violência letal contra adolescentes no Brasil tem se constituído como um grave problema social e de saúde pública e, de acordo com Cerqueira et al. (2017, p. 5), "em três semanas são assassinadas no Brasil mais pessoas do que o total de mortos em todos os ataques terroristas no mundo". Esta letalidade tem um rosto/perfil discriminado: adolescentes e jovens, em sua maioria homens e negros, moradores das periferias de regiões metropolitanas, são os mais atingidos por esta violência (WAISELFISZ, 2015). Em 2012, o país registrou o maior número de assassinatos, com a taxa mais alta de homicídios desde 1980. Foi identificado que, a partir dos 13 anos, o número de vítimas de homicídio chegou à maior percentagem na análise do índice a partir da faixa etária (71,1% de adolescentes e jovens que morreram de causas externas). A partir dos 24 anos, o número de homicídios diminui de forma lenta e gradativa (WAISWLFISZ, 2015). O Atlas da Violência (2017) aponta que 71,9% dos homicídios no Brasil são cometidos por armas de fogo, indicando que o país responde por cerca de 10% dos homicídios no mundo, mesmo que menos de 8% da população mundial habite na América Latina1.

É possível identificar a existência dessas desigualdades e violações de forma mais evidente em alguns locais do país. De acordo com o Atlas da Violência de 2019, o Norte e o Nordeste foram apontados como as regiões com maior incidência de violência letal, e a Bahia (estado escolhido para a realização desta investigação) encontra-se em 7º lugar no gráfico apresentado com a taxa de homicídios de jovens por estados do Brasil (CERQUEIRA et al., 2019, p. 26). Melo e Cano (2017, p. 28) afirmam que "em 2014, a Bahia foi o que apresentou o maior número de municípios dentro desse ranking. Itabuna, Camaçari, Vitória da Conquista, Feira de Santana e Salvador apresentaram índices entre 6,87 e 11,88". Isso reforça que uma parcela significativa de adolescentes, negros/as, residentes de regiões periféricas e em especial da região Nordeste encontra-se em situação de risco concreta e têm, além do direito à vida ameaçado, todo um histórico de vulnerabilidade social ao longo de suas trajetórias.

Diante dos dados apresentados sobre o aumento de violência letal de adolescentes e jovens, a Secretaria de Direitos Humanos do Brasil criou em 2003 e instituiu em 2007 o Decreto 6.231/07 (atualmente Decreto Nº 9.579/2018), que estabelece o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte - PPCAAM. De acordo com o art. 111º do decreto, "O PPCAAM tem por finalidade proteger, em conformidade com a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, crianças e adolescentes expostos a grave ameaça no território nacional". Além disso, o Programa também fomenta investigações e contribuições políticas que buscam minimizar a letalidade infanto-juvenil, participando da constituição do Programa de Redução da Violência Letal (PRVL) e na elaboração de indicadores através do Índice de Homicídios na Adolescência (IHA).

Em situações de risco real e iminente de morte, qualquer pessoa, incluindo a própria criança ou adolescente acompanhado ou não dos pais ou responsáveis, pode se dirigir a uma das Portas de Entrada (Conselho Tutelar, Ministério Público, Poder Judiciário ou Defensoria Pública), órgãos responsáveis em receber esses casos, para acionar o Programa. O princípio fundamental do PPCAAM é garantir a proteção integral de crianças e adolescentes, respeitando os direitos estabelecidos no ECA (1990). Outros princípios em destaque no Programa referem-se à brevidade e à excepcionalidade:

A brevidade é o princípio no qual a proteção deverá alcançar o menor período possível da vida da criança e do adolescente, considerando que, mesmo estando assegurada a proteção integral e a inserção no Sistema de Garantia de Direitos, a condição de protegido significa a restrição de alguns direitos. Ainda que o objetivo dessas restrições seja a garantia da integridade física de crianças e adolescentes ameaçados, bem como de seus familiares, tais direitos devem ser restabelecidos no menor prazo de tempo possível. [...] A excepcionalidade se refere ao caráter da medida protetiva. Isto é, ser incluído no PPCAAM deve ser considerado como a ÚLTIMA medida de um percurso, após todas as demais alternativas terem sido esgotadas (PPCAAM, 2014, p. 12).

Tendo em conta as características do PPCAAM e considerando os impactos que a inserção em um programa dessa natureza tem na trajetória de vida de crianças e adolescentes, é crucial compreender como adolescentes vivenciam essa experiência. Para isso, foi utilizado o conceito de sentido subjetivo proposto por González Rey. Para o autor, "todo sentido subjetivo tem a marca da história de seu protagonista" (GONZÁLEZ REY, 2012, p. 138). Ou seja, um sentido subjetivo é construído a partir de um processo histórico, cuja expressão comportamental do sujeito é o resultado de um longo caminho percorrido de vivências, que apenas se conformam em sentido subjetivo na medida em que trazem consigo essa dimensão histórica da experiência subjetiva individual. A constituição subjetiva dos sujeitos é realizada a partir da sua trajetória, e os sentidos surgem como elementos de ordem emocional em conjunto com os significados e peculiaridades que se revelam ao longo do desenvolvimento (OLIVEIRA, 2015).

González Rey (2010, p. 168) definiu o sentido subjetivo como a "relação inseparável do emocional e o simbólico, onde um evoca ao outro sem ser a sua causa". O sentido subjetivo representa a soma de uma história individual do sujeito e a emocionalidade que ela reproduz, situando-se tanto em um sentido delimitado em termos de sujeito concreto quanto de um grupo social. O sentido subjetivo, portanto, detém em si próprio um potencial de mutualidade e constância entre o simbólico e o emocional (GONZALES REY, 2012). Através dessa perspectiva, esta investigação buscou analisar o PPCAAM na perspectiva dos/as adolescentes, bem como compreender os sentidos subjetivos elaborados por eles/as sobre precisar ter sido protegido nesse Programa.

 

Método

A pesquisa foi realizada em quatro cidades, três localizadas no estado da Bahia e a quarta em outro estado (transferência para outra instituição de acolhimento), no Brasil, e estas não serão identificadas para garantir o sigilo e a integridade dos/as participantes e respectivos locais de proteção.

Conforme a Tabela 01, participaram da investigação 16 adolescentes, com idades entre 13 e 17 anos, sendo 6 do gênero feminino e 10 do gênero masculino. Em relação à cor desses participantes, 11 afirmaram se identificar como pardos/as e 5 se identificam como pretos/as. Os nomes foram alterados para garantir o anonimato e, na tabela abaixo, foi descrito o motivo da inclusão, sem informações adicionais, com o intuito de preservar a integridade e segurança dos/as entrevistados/as.

Dos participantes, 15 encontravam-se protegidos na modalidade do acolhimento institucional, e apenas um adolescente residia com seus pais/responsáveis. A coleta foi realizada nos momentos da visita técnica, sendo que, após a reunião com a equipe do Programa e apresentação da investigadora, era cedido um espaço seguro para a realização das entrevistas.

Como instrumento de coleta de dados, foi utilizada uma entrevista semiestruturada composta de duas partes, a primeira com informações sócio demográficas e a segunda composta de nove questões norteadoras, com o objetivo de investigar a experiência da inserção dos adolescentes no PPCAAM. Além disso, foram realizadas conversas informais, que foram registradas em diário de campo.

É válido salientar que a pesquisa seguiu a Resolução de Pesquisa com seres humanos (Resolução 510/16)2, elaborando um termo de consentimento e assentimento livre e esclarecido com todas as informações necessárias para a participação na pesquisa, sendo garantido o sigilo das informações. As pessoas responsáveis pelas instituições onde os adolescentes estavam acolhidos e a família de um adolescente entrevistado assinaram os termos de consentimento e os/as adolescentes assinaram os termos de assentimento. A presente investigação foi apreciada com parecer favorável pela Comissão de Ética e Deontologia da Investigação em Psicologia da Universidade de Coimbra.

A análise das entrevistas foi pautada na construção dos Núcleos de Significação. Estes consistem em analisar os "sentidos e significados constituídos pelo sujeito frente à realidade" (AGUIAR; SOARES; MACHADO, 2015, p. 58). A proposta utiliza como referência aspectos fundamentais da teoria sócio-histórica apresentada por Vygotsky e da Epistemologia Qualitativa desenvolvida por González Rey. Nesta investigação, será apresentado o núcleo "Aceito qualquer coisa". - Sentidos subjetivos sobre o ingresso no PPCAAM.

 

Resultados e discussão

Esta investigação teve um caráter exploratório e objetivou uma aproximação com uma realidade ainda não estudada, que são os sentidos subjetivos do/as usuários/as sobre o ingresso no Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM). Ouvir os/as adolescentes significa assumir que eles/as não se resumem ao estado de ser-em-devir, devendo suas trajetórias serem analisadas a partir dos seus próprios discursos, visualizando-as como atores capazes, políticos e sociais (SARMENTO, 2013).

Conforme proposto por González Rey, a construção dos núcleos de significação segue as seguintes etapas: é preciso realizar uma leitura dos dados denominados "flutuantes", bem como um ordenamento dos materiais utilizados para uma compreensão mais aprofundada do que foi coletado e, a partir dessa etapa, iniciar a fase de elaboração de pré-indicadores (AGUIAR; OZELLA, 2006). Em seguida, foi preciso analisar e elaborar indicadores centrais que foram identificados em cada relato e, assim, atingir os núcleos de significação que contemplem os objetivos da pesquisa. Na Tabela 02, aparecem os pré-indicadores e indicadores que foram identificados nos discursos dos/as participantes e que deram origem ao Núcleo de Significação "Aceito qualquer coisa" - Sentidos subjetivos sobre o ingresso no PPCAAM.

Nas entrevistas, foi questionado aos/as adolescentes os impactos que eles/as identificavam ao ingressar no PPCAAM, bem como os sentimentos relacionados a estar nesse Programa. No entanto, identificou-se que essas duas perguntas eram respondidas de forma associada pelos/as usuários/as, sendo citado como impacto a tristeza, angústia, medo, revolta, alívio, desejo de vingança e saudade de onde viviam e de seus respectivos familiares. Os sentidos identificados estão relacionados principalmente à privação, ao medo e ao choque do ingresso no Programa. O surgimento das experiências singulares no Programa foi mesclado com os sentimentos que definem aquilo que são os sentidos dessa experiência. Isso pode ser identificado a partir do relato de Maria:

Foi chocante, sabe, um baque. Só que a gente pensa assim, às vezes me dá uma tristeza [...] se não fosse por ele (filho) eu podia tá no lugar onde eu cresci [...] eu podia tá lá com meus amigos [...] só que...daí eu de repente venho pra um lugar que a comida é diferente, o lugar é diferente, sotaque é diferente [...] muda tudo. Não me sinto nem eu mesma, sabe? Só que quando me vem a tristeza assim de pensar em desistir, eu penso não, eu vou ficar aqui, porque aqui eu tô segura, a minha vida tá segura e principalmente a do meu filho. Eu vim pra cá por causa dele, se fosse por mim eu ficava lá [...] na entrevista foi um choque quando vi o que eu precisaria fazer para entrar...é um baque, mas era preciso pra nos proteger [...].

De acordo com Rosato (2013), pessoas que se encontram em um Programa de Proteção necessitam realizar alterações em todo o seu cotidiano (retirada do convívio familiar e comunitário, inserção em novos espaços de convivência e dificuldade de adaptação às regras). Além disso, a autora pontua que, mesmo sendo algo provisório, é preciso nesse período não só elaborar as mudanças objetivas e subjetivas na própria trajetória de vida, mas também evitar falar sobre suas vivências por questões de segurança, o que pode promover um sofrimento psíquico e uma fragilidade nas representações que os/as protegidos/as elaboram em relação à própria identidade. Em especial, no caso do PPCAAM, que protege crianças e adolescentes, essas mudanças se tornam ainda mais complexas.

Os sentidos elaborados por Maria, mesmo com as dificuldades que foram citadas por ela, permitiram com que ela compreendesse a importância de aceitar ingressar e permanecer no Programa, compartilhando o significado de proteção. Para elucidar o conceito de sentido, González Rey (2007) aponta como hipótese, a partir das contribuições elaboradas por Vygotsky, que o sentido deve ser contemplado para além da linguagem, afirmando que este possui um caráter formativo e deve ser analisado através da sistematização da psique em sua totalidade. A fala é associada em conjunto com diferentes componentes psíquicos que emergem no consciente a partir do uso das palavras, com as emoções e circunstâncias que envolvem o sentido (GONZÁLEZ REY, 2007). Para Glória, Matilde e Pedro, os sentidos atribuídos ao Programa referem-se à possibilidade de sobrevivência, como uma oportunidade de vida ou de recomeço.

Glória: O PPCAAM teve de impacto que... o impacto foi que aquela angústia, aquela coisa, tudo que eu tava sentindo, aquele medo, aquele pesadelo, tudo acabou. No instante que eu vim pra cá, acabou, entendeu? O impacto foi que mudou minha vida demais. Porque eu saí de um lugar tão longe, tô tão longe de casa pra recomeçar a vida, pra tentar de novo [...] graças a Deus existe esse programa porque se agora eu não tivesse no PPCAAM eu hoje não estaria conversando contigo [...] tu nem me conheceria porque eu estaria morta.

Matilde: Foi assim, um meio de sobreviver. Porque eu acho que se o PPCCAM não tivesse 'abrido' as portas pra mim, eu não imaginaria onde eu 'estivesse'. Então eu creio que Deus tocou no coração de cada um ali pra abrir as portas pra mim, e eles olhar dentro dos meus olhos e ver que eu estava falando a verdade, que eu precisava de ajuda [...] e por isso que eu estou aqui hoje.

Pedro foi o único adolescente que não vislumbrou a proteção como algo positivo. Para o adolescente, o "correto" é que ele se vingasse e não que "fugisse" para outro lugar.

Pedro: [...] minha atitude de sair de lá e vim pra cá foi covardia... malandro que é malandro não foge, mata [...]. Eu vou matar ele.

Em relação aos sentimentos que surgem ao ingressar no PPCAAM, 12 adolescentes citaram emoções negativas como tristeza, raiva, ódio e medo, associadas ao distanciamento do que era conhecido e das relações de afeto que ali existiam. Também foi evidenciada a dificuldade de sair de suas residências para a entrada em instituições de acolhimento.

Tomás: Tristeza. Tem dia que não tenho vontade nem de levantar da cama.

Glória: O ruim é que não precisava de tudo isso, que se a revolta e o ódio por eu não ter tido infância, e de um abandono eu hoje não estaria aqui. [...] Essa é minha revolta. [...] nunca roubei uma boca [...] se você rouba uma boca você morre na boca. Ninguém é doido de fazer. [...] Essa é minha revolta, porque eu tô aqui nesse sofrimento, me escondendo, nesse dia não era nem pra eu tá usando a droga, não precisava disso. Isso me revolta.

Felipa: É uma tristeza porque tem que abandonar a família, tudo, ficar longe das pessoas que você mais gosta [...] quando eu vim de lá pra cá, no avião, eu fiquei pensando assim, meu Deus, pra onde é que estão me levando, sei lá... ninguém me disse pra onde eu tava indo [...] Depois que chegou no portão do outro abrigo, eu pensei, pronto, tô no presídio [...] eu pensei pronto, isso vai dar merda isso, pensei, meu Deus, o que é que vai ser, aí depois foi tudo tranquilo. Aos poucos você aprende a lidar com tantas mudança...

A fala de Felipa pode ser articulada ao que é proposto por Bernardi (2010), ao afirmar que ingressar em um espaço desconhecido é sempre intimidante para uma criança ou adolescente, que muitas vezes não relata suas percepções e receios de imediato. A autora aponta que muitas crianças e adolescentes associam as instituições de acolhimento a prisões e que, somente ao longo do tempo, após se ambientar ao novo espaço, elas permitem a aproximação da equipe técnica e estabelecem vínculos no local de proteção. A sensação de cuidado e segurança é algo que muitas vezes o/a adolescente em situação de vulnerabilidade não possui em sua trajetória. Nesse sentido, o acolhimento da equipe técnica do PPCAAM e os vínculos construídos com os profissionais corroboram para o bem-estar psíquico dos/as usuários e para sua continuidade no programa.

Após o ingresso no PPCAAM, os/as adolescentes identificam os/as profissionais como única referência, como pessoas que conhecem suas histórias e com quem podem compartilhar suas angústias, sendo referido pela maioria dos adolescentes que gostariam de ter contato mais frequente com a equipe. Entretanto, é válido salientar que a equipe do Programa no Estado é bastante reduzida (9 profissionais) e a Bahia é o 4º maior estado do Brasil, com 417 municípios em sua região territorial, o que dificulta pôr em prática estas visitas de forma mais sistemática.

Foi questionado aos/as adolescentes se eles/as identificavam mudanças em si mesmos depois de entrar no PPCAAM. Onze usuários/as citaram mudanças positivas, sendo mencionado desde a mudança na forma de falar, se comportar, até em alterações no caráter:

Maria: Eu acho que antes eu era muito largada assim da vida, só queria curtir, mesmo quando eu tive o X. (filho).

Mafalda: Ah, percebo que eu mudei assim, em relação ao caráter. Que quando a gente tá no meio errado só fica no assunto de tráfico, de droga, eu não podia tá em paz, que vinha algum colega e falava [...] bora fumar [...].

Tomás: Tipo, antes eu... (pausa longa), não pensava. Hoje eu penso mais, tô mais calmo. Já planejo o que eu vou fazer... tipo, se for pra dar errado, já sei o que vai dar, sacou? Tento fazer o máximo certo possível.

Romeu: a diferença é que eu não uso mais droga né... Acho que isso é bom.

Essas mudanças podem ser associadas a partir da possibilidade de vivenciar experiências fora dos contextos de risco e vulnerabilidade no qual estes/as adolescentes estavam inseridos/as antes da proteção. De acordo com Pereira (2013), é importante que seja proporcionado a adolescentes espaços que promovam o desenvolvimento da sua autonomia, porém, com o estabelecimento de regras e limites definidos por figuras de referência, sem deixar de escutar suas demandas e necessidades.

Através do que foi mencionado pelos/as adolescentes, é possível identificar que, mesmo com as dificuldades vivenciadas durante a proteção, os sentidos elaborados por eles/as em relação ao Programa representam uma segurança que até então desconheciam e uma oportunidade de vivenciar novas perspectivas que não eram possíveis em sua trajetória.

Uma das dificuldades apontadas em relação à permanência são as regras do Programa. Estas incluem seguir as orientações dos profissionais para evitar novas situações de risco, comprometimento em relação ao processo de inserção social no novo local, respeitar as normas de segurança em relação ao uso consciente da Internet, evitando a exposição em veículos de comunicação (telefones, rádio, televisão, Internet etc.), em especial, a publicação de fotos e identificação do local de proteção nas redes sociais, já que isso poderia colocá-los/as em situação de risco. O cumprimento de tais regras aparece como um dificultador para a permanência no Programa de acordo com 14 entrevistados/as, especialmente o acesso à Internet. Um exemplo desta questão pode ser citado a partir da experiência de Felipa, que precisou mudar de pouso por ter adquirido um celular e entrado em contato com o pai sem autorização da equipe:

Felipa: Foi que assim, não podia usar telefone aí eu fui e inventei de arranjar um celular (risos) [...] aí descobriram, entraram na minha rede social, no meu face (Facebook) e tudo [...] eu tava entrando em contato com meu pai e tudo, aí eles pegou e me transferiu pra cá...

Com isso, foi preciso realizar a transferência para novo local de proteção e repactuação do termo para continuidade no Programa. O relato de Felipa demonstra que, mesmo sendo esclarecido sobre os riscos, o desejo de acessar a rede social e se comunicar com familiares foi mais relevante do que as questões relacionadas à segurança. Além disso, os/as adolescentes comumente apresentam o pensamento mágico de que são imbatíveis e imunes a qualquer risco (FEIJÓ; OLIVEIRA, 2001). Sabe-se que os ambientes digitais possuem uma importante função na socialização e na construção da identidade de adolescentes. Em uma situação de ameaça, o local de proteção pode ser facilmente identificado através de imagens e sistemas de georreferenciamento associados a esses serviços. Em decorrência dessas questões, no momento da entrevista, a equipe técnica sensibiliza o/a adolescente e sua família sobre a importância de cumprir esta regra. Ao longo da trajetória do Programa, as equipes buscam tornar todo o processo o mais sigiloso possível com todas as medidas de segurança indicadas (PPCAAM, 2017).

A partir dessa realidade, tem sido avaliado pela Coordenação Nacional do Programa a possibilidade de acesso de forma segura e responsável da Internet, entretanto, é preciso que os/as protegidos/as tenham a orientação da equipe para garantir a sua segurança, de seus familiares e do local de proteção. Colocar em prática essas estratégias em relação ao uso das tecnologias no PPCAAM é uma tarefa árdua e complexa e requer o estabelecimento de vínculos de confiança entre usuário/a, família e equipe. Estes vínculos devem ser construídos desde o início, através de um acolhimento das demandas do/a adolescente e um diálogo claro sobre a implicação do/a mesmo/a em relação a sua segurança (PPCAAM, 2010).

Também foi possível identificar que três usuários/as foram transferidos de pouso ou estavam na iminência de transferência para outra instituição em decorrência da quebra das regras do Programa. O uso de substâncias psicoativas, de celulares ou a venda de supostas drogas para trocar por roupas e acessórios foram algumas das contravenções citadas pelos/as usuários/as. O Termo de Repactuação torna-se um instrumento fundamental para registrar a oportunidade de continuar no PPCAAM e para fazê-los aprender a tecer novas atitudes e comportamentos em suas trajetórias.

Os/as adolescentes foram questionados sobre sugestões de aprimoramento do Programa e, em geral, suas respostas tinham relação com a alteração das regras. Uma das sugestões refere-se à possibilidade de contato telefônico e/ou presencial com familiares. Alguns/as adolescentes relataram o desejo de ligar para os/as pais/responsáveis com mais frequência. De acordo com o relato de Tomás, os encontros familiares presenciais podem ser mais dispendiosos, entretanto, as ligações poderiam ser realizadas mais vezes:

Tomás: Não mudaria nem tanto a parada da visita, entendeu... tipo encontro familiar... mas sim pela ligação. Ligar pra família duas, três vezes no mês... tem hora que eu fico injuriado... uma vez no mês, cinco minutos. Rapaz... tem hora que não dá pra falar nem um oi direito [...].

Maria: [...] eu sei que eu falo com a minha avó de vez em quando, todo mês na verdade eu falo com ela [...] eu peço pra ela 'vó, vem pra cá', porque eu tenho muito medo de que o pai do meu filho faça alguma coisa com ela, de tentar tirar alguma informação da onde eu estou, que queira saber do filho dele, aí eu fico com medo [...].

A importância de reestruturar os vínculos familiares no período da proteção é fundamental para provocar mudanças na estrutura da família do/a adolescente e permitir que este/a seja reinserido em seu convívio familiar. Para isso, é preciso ouvir as necessidades dos/as usuários/as, bem como ter contato com os/as responsáveis para assim coletar informações sobre o que é possível ser feito antes do período de desligamento (ROSA et al., 2012). A convivência familiar deve ser um dos principais pontos no desenvolvimento do Plano Individual de Atendimento (PIA), pois é a partir dele que é avaliado novas perspectivas para suas trajetórias.

Seis usuários/as relataram que não mudariam nada em relação ao Programa. Isso pode ser avaliado a partir da compreensão do significado do PPCAAM enquanto um espaço de proteção, e que mesmo que existam algumas renúncias, eles/as não visualizam melhoras, pois estão marcados/as pelo medo da desproteção e sensação de insegurança. Foi identificado no discurso dos/as protegidos/as sentimentos de gratidão por estar vivo/a e receio de sair do Programa e voltar a ter contato com o/a ameaçador/a. Neste sentido, estes/as adolescentes podem não visualizar uma mudança positiva para o Programa em decorrência desses sentimentos.

Foram também mencionadas pelos/as usuários/as algumas das atividades desenvolvidas durante a proteção. Quatro participantes citaram cursos profissionalizantes oferecidos pelo Programa ou pelas instituições onde estavam inseridos/as. O Projeto Adolescente Aprendiz, gerenciado também pela instituição que assume o PPCAAM, tem como objetivo realizar uma formação para adolescentes ingressarem no mundo do trabalho. O projeto garante a aprendizagem teórica para os/as adolescentes colocarem em prática em alguma empresa parceira. Para isso, é preciso que o/a adolescente esteja matriculado/a e frequentando a escola, além de ter um bom rendimento escolar. Entretanto, a maioria dos adolescentes estava em atraso na escola, o que dificulta a entrada no Projeto. Ao ingressar no Programa, é providenciado pela equipe em conjunto com a Porta de Entrada a documentação pessoal e escolar dos/as usuários/as para que estes/as sejam matriculados na escola. Após esse passo, na fase de inserção social, é realizado o acompanhamento escolar de forma sistemática dos/as protegidos/as.

A defasagem idade/série, que se encontra presente para a maioria dos participantes entrevistados (15), reforça as desigualdades sociais vivenciadas por estes/as adolescentes, já que, assim como apontado por Soares et al. (2015), existem fatores internos e externos que afastam crianças e adolescentes da escola, como questões socioeconômicas, necessidade de inserção precoce no marcado de trabalho, falta de interesse na escola, questões familiares (falta de acompanhamento dos responsáveis e nível de escolaridade dos pais), sendo estas algumas das principais causas de evasão e abandono escolar. Para essas situações em relação à defasagem idade/série, existe, através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9.394/96)3, especificamente no artigo 24, inciso V, a verificação de que o rendimento escolar observará alguns critérios, e para casos de atraso escolar, é indicada uma proposta de aceleração, que possibilita recuperar o tempo de atraso na trajetória escolar dos/as alunos/as. A importância dessa estratégia é fundamental para possibilitar aos usuários do Programa outras perspectivas para além das atividades ilícitas. Isso pode ser evidenciado a partir da fala de Vicente:

Eu não sei ler e escrever, moça, só conheço as letras [...]. Eu preciso voltar pra escola, fui matriculado hoje porque tava sem histórico, se quiser mudar de vida, tô com 17 anos, se não o que sobra pra mim é o tráfico, cadeia e caixão [...].

A Organização das Nações Unidas afirma que, para alcançar um progresso social, é necessário um desenvolvimento humano resiliente, e um dos fatores considerados relevantes para esse avanço é o aumento das taxas de escolaridade para além do ensino primário. O relatório afirma que existem fatores relacionados à desigualdade econômica e social que impedem a continuidade nos estudos para o ensino médio e superior (ONU, 2014). Para a maioria dos adolescentes que ingressaram no Programa, a situação de vulnerabilidade social não permitiu que a escola fosse uma prioridade em suas trajetórias. De acordo com Marcolan, Frighetto e Santos (2013), é através da instituição escolar que a criança e adolescente também aprende valores fundamentais para suas relações sociais, realizando uma preparação para a vida adulta, e para que possam se tornar cidadãos aptos para a sociedade.

Em relação aos planejamentos após o desligamento do Programa, sete adolescentes mencionaram a continuidade nos estudos, em especial o ensino médio, com uma perspectiva de ingressar na universidade. É necessário destacar que todas as meninas citaram o desejo de terminar os estudos, sendo citadas por algumas as profissões que desejavam seguir:

Maria: [...] agora que eu vim pra cá eu vejo que eu preciso ter um futuro, eu não posso só ficar aqui dependendo do abrigo, eu penso em trabalhar ano que vem [...] penso em fazer faculdade, terminar meus estudos, tentar o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), pra ser alguém na vida, porque hoje em dia só os estudos... eu acho que o PPCAAM vai me ajudar muito nisso, já me ajudou né, mudando de lugar, me botando aqui que é uma cidade boa até [...].

Mafalda: eu sonho é ser delegada ou advogada, eu tenho fé que eu vou estudar, fazer minha faculdade de direito pra ser advogada. Mesmo eu traficando, mesmo eu na rua, eu pensava, eu sou traficante, mas eu vou ser delegada, e eu acho lindo quando eu vejo alguém vestida de policial, boina, metralhadora, acho lindo [...]. Se eu não fosse delegada ou advogada, eu queria ser como tia R., trabalhar com o PPCAAM.

Na fala de Mafalda, fica explícita a importância dos técnicos de referência na construção de projetos de vidas para os adolescentes, seja no suporte e incentivo a conclusão dos estudos, seja como modelo possível de profissão a seguir. Para outros/as usuários/as, a perspectiva de desligamento foi associada a outras formas de trabalho, como caminhoneiro, mecânico, empacotador de supermercado, entre outras.

De acordo com Oliveira e Robazzi (2001), a escola muitas vezes é vista como desinteressante para alguns/as adolescentes que não vislumbram a continuidade dos estudos como uma estratégia de ascensão econômica e social. As autoras apontam que, para alterar essa realidade, seria necessário que a educação básica promovesse como parte importante do currículo a formação profissional no contexto da educação. Dessa forma, é crucial que a escola consiga fornecer também elementos para uma formação profissional que promova a esses/as adolescentes uma perspectiva de trabalho para além das necessidades de sobrevivência.

 

Conclusão

No núcleo analisado, foi possível identificar que os sentidos subjetivos podem vir a se posicionar de forma distinta em diferentes contextos, sempre convergindo do social para o individual, e posicionando o sujeito como protagonista desses fatos (GONZALEZ REY, 2012). Pelo foco de atuação do Programa buscar em especial garantir a integridade física do/a usuário/a, ocorrem impactos de ordem objetiva e subjetiva no desenvolvimento dos/as adolescentes que ingressam no PPCAAM, já que estes/as adolescentes precisam elaborar novos sentidos e subjetivações acerca de suas trajetórias, além da adaptação a um novo espaço de convivência e seguir regras que até então não faziam parte da sua realidade. Dentre as regras, a restrição das redes sociais e Internet foi mencionada pela maioria dos/as adolescentes, sendo esta experiência apontada como até mais difícil do que a separação dos familiares. Essa regra surge como forma de garantir a segurança e o sigilo do local de proteção. No entanto, é através da Internet que os adolescentes mantêm contato com os familiares, tornando-se confusa para eles a forma adequada de um uso seguro. Nesse sentido, é importante que a equipe técnica compreenda que a saída das redes sociais representa, muitas vezes, para o adolescente, a perda significativa da sua própria identidade e dos vínculos com o que é conhecido.

Além disso, cabe destacar que a transgressão pode ser considerada como um comportamento habitual nessa fase da vida que se caracteriza pela construção de uma identidade própria e, por isso, os atos transgressores, durante o período da proteção, devem ser encarados com naturalidade e como momentos de aprendizado e reafirmação dos valores até então compartilhados. As figuras de referências têm um papel fundamental neste processo, pois permitem, através do acolhimento e diálogo, que o/a adolescente possa incorporar os valores sociais e as regras de segurança, sem interferir na sua busca pela própria autonomia e identidade (ŢÎMPĂU, 2015). Através da construção do Plano Individual de Atendimento (PIA), o/a usuário/a pode ser orientado/a sobre seus deveres e responsabilidades, permitindo assim que ele/a possa gerenciá-las de forma positiva e empática.

Nesse sentido, a ampliação da equipe técnica foi identificada como uma melhoria importante para o funcionamento do Programa, já que, em um país tão continental como o Brasil, e em um estado tão grande como a Bahia, com o índice de violência letal tão alarmante, é preciso contratar mais profissionais para contemplar as demandas que o PPCAAM exige. Além disso, a dificuldade do repasse das parcelas de recursos federais para o Estado delimita a ação da equipe na garantia de preservar a vida destes/as e de outros/as adolescentes que necessitam desta modalidade de proteção.

Para além das questões práticas para saída do território de ameaça, os/as usuários/as enfrentam dificuldades em se distanciar de familiares e pessoas próximas, o que gera sentimento de tristeza, angústia e solidão. A adaptação em um novo espaço de convivência e o estabelecimento de relações entre pares também foi mencionado, já que não se pode relatar sobre suas próprias trajetórias no local de proteção, o que gera sentidos desfavoráveis relativos à confiança. A presença da equipe técnica de forma mais sistemática foi citada como relevante, pois os/as profissionais do Programa são associados/as a figuras de referência pelos/as protegidos/as. A continuidade dos estudos e a inserção no mercado de trabalho foram citados como uma perspectiva de desligamento do PPCAAM, sendo válido salientar que todas as meninas citaram este desejo após o desligamento do Programa.

Outra questão confirmada foi que os/as usuários/as compreendem o sentido da proteção à vida fornecida pelo Programa e identificam que, para além desta garantia, são possibilitadas novas experiências que abrangem seus direitos fundamentais como a inserção na escola, cursos profissionalizantes, entre outros. Dessa forma, o PPCAAM parece representar não apenas uma proteção imediata, mas também novos projetos de vida para esses/as adolescentes.

Em relação aos limites da presente investigação, o tempo para a coleta de dados foi considerado curto e não foi possível contactar todos/as adolescentes que se encontravam em proteção. Além disso, foi avaliada a importância de se pensar em investigações futuras que realizem o acompanhamento longitudinal dos/as adolescentes no PPCAAM, buscando compreender os impactos a médio e longo prazo da passagem pelo programa. Com isso, muito ainda pode ser analisado e discutido, pois muitos/as adolescentes ainda se encontram em situação de vulnerabilidade e risco real e iminente de morte, necessitando que sejam propostas as devidas intervenções para uma transformação dessa realidade.

O propósito foi auxiliar nas discussões acerca desse Programa, pois ainda existem poucas produções científicas sobre o PPCAAM e sobre os sentidos subjetivos produzidos pelos/as usuários/as em Programas de Proteção. Com isso, espera-se pensar em investigações que vislumbrem a importância dessa política pública na garantia dos direitos desse grupo social, principalmente no seu direito à vida.

Por fim, cabe destacar que o PPCAAM deve manter seu caráter de excepcionalidade e, para isso, é crucial o fortalecimento de políticas de distribuição de renda (com redução da desigualdade social), de educação, assim como o fortalecimento de medidas protetivas que atuem precocemente junto aos adolescentes em situação de vulnerabilidade. Isso é, a proteção à ameaça de morte precisa começar na defesa irrestrita da proteção integral de crianças e adolescentes.

 

Referências Bibliográficas

AGUIAR, W. M. J. de; OZELLA, S. Núcleos de significação como instrumento para a apreensão da constituição dos sentidos. Psicologia Ciência e Profissão, Brasília, v. 26, n. 2, p. 222-245, jun. 2006. Disponível em: <https://bit.ly/317S3zD>. Acesso em: 18 ago. 2020.

AGUIAR, W. M. J. de; SOARES, J. R.; MACHADO, V. C. Núcleos de significação: uma proposta histórico-dialética de apreensão das significações. Cad. Pesqui., São Paulo, v. 45, n. 155, p. 56-75, mar. 2015. Disponível em: <https://bit.ly/3kOteAu>. Acesso em: 18 ago. 2020.

AZEVEDO, A. C. O.; FERNANDES, R. M. Violência e juventude negra: um estudo sobre a política de proteção de crianças e adolescentes ameaçados de morte. Revista de Movimentos Sociais e Conflitos, v. 2, n. 1, p. 234 - 251, Jan./Jun. 2016.

BERNARDI, D. C. F. Famílias em situação de vulnerabilidade. In: BERNARDI, D. C. F. (Org.). Cada caso é um caso: a voz das crianças e dos adolescentes em acolhimento institucional. São Paulo: Associação Fazendo História, 2010, p. 37-44. Disponível em: <https://www.neca.org.br/wp-content/uploads/Livro5.pdf>. Acesso em: 18 Ago. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 510, de 07 de abril de 2016. Brasília, 2016. Disponível em: <goo.gl/sxgLwS>. Acesso em: 18 ago. 2020.

_________. Decreto nº 6.231, de 11 de outubro de 2007. Institui o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte - PPCAAM. Brasília, DF: Presidência da República, 2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6231.htm>. Acesso em: 18 ago. 2020.

_________. Decreto nº 9.579, de 22 de novembro de 2018. Consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo federal que dispõem sobre a temática do lactente, da criança e do adolescente e do aprendiz, e sobre o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente e os programas federais da criança e do adolescente, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2018. Disponível em: <https://bit.ly/3232bc7>. Acesso em 18 ago. 2020.

_________. Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA]. Lei Federal nº 8.069. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 18 ago. 2020.         [ Links ]

_________. Secretaria de Direitos Humanos. Programa de proteção a crianças e adolescentes ameaçados de morte: PPCAAM/Secretaria de Direitos Humanos. Brasília, DF, 2010. Disponível em: <https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/sedh/ppcaam_livro_2010.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2020.

_________. Secretaria de Direitos Humanos. Um novo olhar PPCAAM: programa de proteção a crianças e adolescentes ameaçados de morte. Ministério dos Direitos Humanos, Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, 2.ed., Brasília, DF, 2017.

CERQUEIRA, D. et al. Atlas da violência 2017. Org. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: <goo.gl/Ui1uHS>. Acesso em: 18 ago. 2020.

_________. Atlas da violência 2019. Org. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2020.

FEIJÓ, R. B.; OLIVEIRA, E. A. Comportamentos de risco na adolescência. Jornal de Pediatria, v. 77, supl. 2, p. 125-134, 2001. Disponível em: <https://bit.ly/34bwlwn>. Acesso em: 18 ago. 2020.

GONZÁLEZ REY, F. As categorias de sentido, sentido pessoal e sentido subjetivo: sua evolução e diferenciação na teoria histórico-cultural. Psicologia da Educação, São Paulo, n. 24, p. 155-179, 2007. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psie/n24/v24a11.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2020.

_________. As configurações subjetivas do câncer: um estudo de casos numa perspectiva construtivo-interpretativa. Psicologia Ciência e Profissão, Brasília, v. 30, n. 2, p. 328-345, 2010. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/pcp/v30n2/v30n2a09.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2020.

_________. O social na Psicologia e a Psicologia social: a emergência do sujeito. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

MARCOLAN, M. L. P.; FRIGHETTO, A. M.; SANTOS, J. C. A Importância da Família no Processo de Aprendizagem da criança. (N)Ativa - Revista de Ciências Sociais do Norte de Mato Grosso, [S. l.], v. 2, n. 1, 2013.

MELO, D. L. B.; CANO, I. (Org.). Índice de Homicídios na Adolescência: IHA 2014. Rio de Janeiro: Observatório de Favelas, 2017.

KRUG, E. et al. (Org). Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: Organização Mundial da Saúde, 2002.

OLIVEIRA, B. R. G.; ROBAZZI, M. L. C. C. O Trabalho na vida dos Adolescentes: Alguns fatores determinantes para o trabalho precoce. Revista Latino-Americada de Enfermagem, [S. l.], v. 9, n. 3, p. 83-9, maio 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rlae/v9n3/11503.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2020.         [ Links ]

OLIVEIRA, R. L. S. Sentidos subjetivos de adolescentes soropositivos para HIV. 2015. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal da Bahia, 2015. Disponível em: <https://bit.ly/34nfhE7>. Acesso em: 18 ago. 2020.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório do Desenvolvimento Humano 2014. Sustentar o Progresso Humano: Reduzir as Vulnerabilidades e Reforçar a Resiliência. Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal: Instituto Camões da Cooperação e da Língua Portuguesa, 2014. Disponível em: <http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr2014_pt_web.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2020.

OZELLA, S.; AGUIAR, W. M. J. Desmistificando a concepção de adolescência. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 133, p. 97-125, 2008. Disponível em: <https://bit.ly/3haP276>. Acesso em: 18 ago. 2020.

PEREIRA, S. E. Crianças e adolescentes em contexto de vulnerabilidade social: articulação de redes em situação de abandono ou afastamento do convívio familiar. DF, 2013. Disponível em: <www.aconchegodf.org.br/biblioteca/artigos/artigo01.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2020.

REIS, T. F. Se a morte é um descanso, quero viver cansado: análise do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM). Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2015.

ROSA, E. M. et al. O processo de desligamento de adolescentes em acolhimento institucional. Estudos de Psicologia, Natal, v. 17, n. 3, p. 361-368, 2012. Disponível em: <https://dx.doi.org/10.1590/S1413-294X2012000300003>. Acesso em: 18 ago. 2020.         [ Links ]

ROSATO, C. M. Subjetividades ameaçadas: Mudança de nome de testemunhas protegidas. Estudos de Psicologia, Natal, v. 18, n. 2, p. 269-276, abr./jun. 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/epsic/v18n2/v18n2a12.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2020.         [ Links ]

SARMENTO, M. J. A sociologia da infância e a sociedade contemporânea. In: ENS, R. T.; GANHANI, M. C. (Org.). A sociologia da infância e a formação de professores. Curitiba: Ed. Universitária Champagnat, 2013. p. 13-46.

SOARES, T. M. et al. Fatores associados ao abandono escolar no ensino médio público de Minas Gerais. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 41, n. 3, p. 757-772, jul./set. 2015. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1517-9702201507138589>. Acesso em: 18 ago. 2020.

ŢÎMPĂU, C. The Role of Moral Values in Development Personality Teenagers. Romanian Journal For Multidimensional Education/Revista Romaneasca Pentru Educatie Multidimensionala, n. 7, v. 1, p. 75-88, 2015.         [ Links ]

WAISELFISZ, J. J. Mapa Da Violência 2015: Adolescentes de 16 e 17 anos do Brasil. Rio de Janeiro: Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais - Flacso, 2015. Disponível em: <https://bit.ly/3ax534Y>. Acesso em: 18 ago. 2020.

 

 

Data de recebimento: 23/08/2020
Data de aprovação: 09/12/2020

 

 

Bianca Orrico Serrão
Psicóloga, mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade de Coimbra, Portugal. Aluna de doutorado no Centro de Investigação em Estudos da Criança no Instituto de Educação da Universidade do Minho, Braga, Portugal.
E-mail: bianca.orrico@gmail.com
Juliana Prates Santana
Psicóloga, Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil. Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. Doutora em Estudos da Criança pela Universidade do Minho, Braga, Portugal.
E-mail: julianapsantana@gmail.com
Maria Jorge Santos Almeida Rama Ferro
Psicóloga, Professora Auxiliar na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, Portugal. Mestrado e Doutorado em Psicologia na Universidade de Coimbra, Portugal. Suas linhas de investigação envolvem as áreas de Multiculturalismo, Teoria Crítica e Modelos de Aconselhamento.
E-mail: mariajorgef@fpce.uc.pt

 

 

1 Disponível em: <https://www.br.instintodevida.org/>.
2 Resolução atual (nº580/2018): <https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2018/Reso580.pdf>.
3 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>.

Creative Commons License