SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número31Infância, educação e a pandemia: a experiência das famílias em Buenos Aires (Argentina)Contribuições dos movimentos de crianças e adolescentes trabalhadores para a discussão em torno do trabalho infantil índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.31 Rio de Janeiro set./dez. 2021

 

TEMAS EM DESTAQUE - SEÇÃO LIVRE TEMAS SOBRESALIENTES - SECCIÓN LIBRE

 

Feminismo teen e youtubers: feminismo na adolescência em tempos de redes sociais

 

Teen feminism and youtubers: feminism and teenagers in the context of social networks

 

Feminismo teen y los youtubers: feminismo y adolescentes en el contexto de las redes sociales

 

 

Ana Carolina Vila Ramos dos Santos

Doutora em Sociologia e Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), campus São Paulo-Pirituba, São Paulo, Brasil. E-mail: carolina.vila@ifsp.edu.br

 

 


RESUMO

Este trabalho teve como objetivo investigar o modo como as motivações, práticas e experiências de adolescentes autoidentificadas como feministas são impactadas pelas redes sociais. Por meio de entrevistas semiestruturadas foi investigado de que modo as redes sociais, especialmente o YouTube, impactaram o processo de formação feminista das meninas. O trabalho conclui que as redes sociais tem delineado uma “feminização da cultura“, um longo processo histórico de mudança cultural no qual o respeito ao feminino, à dignidade humana e à diferença são valores centrais.

Palavras-chave: juventude, feminismo, redes sociais, YouTube.


ABSTRACT

This paper investigates how the motivations, practices and experiences of adolescents self-identified as feminists are impacted by social networks. Based on semi-structured interviews, it was investigated how such social networks, especially YouTube, impacted the process of girls' feminist education. The work concludes that social networks have outlined a “feminization of culture“, a long historical process of cultural change in which respect for the feminine, human dignity and difference are central values.

Keywords: youth, feminism, social media, YouTube.


RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo investigar cómo las motivaciones, prácticas y vivências de adolescentes autoidentificadas como feministas son impactadas por las redes sociales. A partir de entrevistas semiestructuradas, se investigo cómo dichas redes sociales, especialmente YouTube, impactaron en el proceso de formación feminista de las ninas. El trabajo concluye que las redes sociales han perfilado una “feminización de la cultura“, un largo proceso histórico de cambio cultural en el que el respeto a lo femenino, la dignidad humana y la diferencia son valores centrales.

Palabras clave: juventude, feminismo, redes sociales, YouTube.


 

 

Desde, pelo menos, 2016, os processos eleitorais têm anunciado que o uso de redes sociais é um ponto de inflexão na ação política das democracias contemporâneas; a rua e a assembléia, antes espaços privilegiados para o confronto das diferenças e para a elaboração de consensos, se esvanecem diante da facilidade e rapidez das redes sociais; se assumo como suposto que a ação política é uma ação comunicacional e informacional (CARDON, 2012), é preciso refletir de que forma transformações na ação comunicativa resultam em mudanças na ação política. Assim, a pergunta que este trabalho propõe é: como as redes sociais produzem mobilização política?

A literatura tem apontado as consequências do uso das redes sociais nas mobilizações, especialmente de grupos da extrema direita que propalam valores e ações que colocam em xeque a democracia (CESARINO, 2020). Esta pesquisa compartilha com essa literatura a percepção de que não se faz mais política como se fazia antigamente e de que as redes sociais têm um forte impacto na mobilização para a participação política. Meu objeto de estudo, no entanto, não é a vaga conservadora, mas mobilizações políticas que têm como referência a democracia, a igualdade e o respeito às diferenças. Olho para o modo como o feminismo, no discurso e prática de jovens, tem se tornado uma referência para percepção dessa nova forma de se fazer política ao inserir grupos sociais invisibilizados pelas dinâmicas clássicas da democracia na ágora amplificada pelas redes sociais.

O acesso de jovens às novas tecnologias de informação e comunicação (especialmente smartphones) nos convoca a produzir um “giro analítico“ (FERNANDES, 2019) que leve em conta que a juventude, no século XXI, está imersa em uma experiência cultural na qual tais novas tecnologias, principalmente as redes sociais, são elementos que compõem suas identidades. Por meio dessas novidades tecnológicas, a categoria juventude tem sido “alargada“ (TAVARES; CAMURÇA, 2006) ao garantir e amplificar a presença e ação dos jovens no mundo público: ao falaram por si mesmos, os jovens enriquecem as experiências de público e colocam questões renovadas para a teoria sociológica. Um elemento importante que indica tal renovação, como aponta Fernandes (2019), é que a manifestação pública da juventude tem tomado novas referências que iluminam o questionamento e esvaziamento da prática política institucional (partidos, movimentos sociais) como referência da ação política.

Neste trabalho, proponho que o discurso feminista de adolescentes, o qual chamo de feminismo teen, ilumina essa novidade. Por feminismo teen, entendo o ativismo político de meninas adolescentes em idade escolar (14 a 18 anos) autoidentificadas como feministas e que têm a internet como plataforma importante de construção da identidade feminista. Este trabalho tem como objetivo investigar o modo como as motivações, reflexões e experiências de adolescentes identificadas como feministas são impactadas pelas redes sociais, especialmente o YouTube.

Os resultados têm como base entrevistas semiestruturadas, realizadas em 2018, com oito adolescentes do sexo feminino entre 14 e 17 anos, sendo cinco brancas e três negras1. Eram meninas em idade escolar, moradoras da periferia de São Paulo, estudantes do ensino médio e que se identificavam como feministas. A escolha das entrevistadas teve como critério a autoidentificação como feminista e foi feita a partir de uma observação nas redes sociais e na escola na qual as meninas estudavam2. As meninas, embora fossem colegas na escola, não conformavam um coletivo ou construíam qualquer ação coletiva a partir da bandeira do feminismo (as meninas não tinham nem mesmo um laço de amizade íntimo entre si).

Com base nos resultados, sugiro que uma singularidade do feminismo teen é uma ruptura com as gerações anteriores de feministas no que toca ao processo de formação da identidade feminista que não se dá via institucionalidades tradicionais da luta política (movimentos sociais, partidos políticos ou organizações da sociedade civil), mas tem as redes sociais como referência; assim, não há solução de continuidade ou transmissão direta de experiências e valores entre as “feministas veteranas“ e as feministas teen, pois estas se tornam feministas a partir de uma variedade de experiências, dentre as quais as redes sociais têm protagonismo. O feminismo teen recobra a bandeira clássica dos feminismos, “o pessoal é político“, e o alarga do ponto de vista geracional (meninas cada vez mais jovens se descobrem feministas) e do alcance da ação política (o tornar-se feminista se dá fora das institucionalidades clássicas de ação política e se ancora no cotidiano).

Por conta dessas peculiaridades, sugiro que as feministas teen constituem uma referência de transformações mais amplas na sociedade contemporânea no que toca especialmente ao lugar da mulher no espaço público. O conceito “feminização da cultura“, proposto por Margareth Rago (2004), descreve esse fenômeno que é o resultado histórico das lutas travadas pelas feministas e que tem como indicador principal o fomento de uma sensibilidade “mais feminina e feminista, libertária e solidária ou, em outras palavras, filógina, isto é, amigo das mulheres e do feminino, o que resulta decisivamente do aporte social e cultural das mulheres no mundo público“ (RAGO, 2004, p. 281-282). Entendo que o feminismo das meninas indica que há uma mudança cultural tomando forma nas redes sociais e no cotidiano que se dá pela disputa política pela vida, dignidade e sonhos de mulheres e meninas que produzem formas renovadas de prática feminista.

Para análise do material coletado foi utilizada a ferramenta analítica enquadramento (GOMES, 2017; SNOW; BEDFORD, 1992). Trata-se de um instrumento analítico utilizado pelos estudiosos de movimentos sociais e pode ser conceituado como “um esquema interpretativo que simplifica e condensa o 'mundo lá fora' através da pontuação e codificação seletiva de objetos, situações, eventos, experiências e sequências de ação em determinado ambiente presente ou passado“ (SNOW; BENFORD, 1992, p. 137).

O objeto de estudo desta pesquisa não se constitui como um movimento social organizado nos moldes clássicos descritos pela literatura (GOHN, 2011), mas os enquadramentos demonstram que valores e práticas mobilizadas pelas meninas na conformação do feminismo têm implicações cotidianas e políticas claras, o que indica que as institucionalidades clássicas da política não mais operam o monopólio da mobilização e ação política no mundo contemporâneo.

Uma importante referência para a análise das entrevistas são as reflexões de Michel Foucault [1969]/(2007)3 sobre as relações entre discurso, poder e produção de subjetividades na experiência da modernidade. Foucault (2007) propõe o discurso como um campo de disputas a que corresponde uma rede de relações de poder que ilumina processos de conformação de instituições sociais e subjetividades. Neste trabalho, a análise do discurso será mobilizada com o objetivo de desvelar o modo como os sujeitos se constituem como tais, isto é, compreender como meninas se constituem como feministas a partir da referência das redes sociais.

Os enquadramentos foram construídos a partir da análise do discurso das entrevistadas e são divididos em três grupos: diagnóstico, motivações para a ação e prognóstico. O primeiro enquadramento é o diagnóstico que se conforma como o ponto de partida para a construção da identidade feminista das meninas; associada à experiência de violência que tem o corpo feminino como arena, as meninas se percebem como feministas ao rejeitar o lugar determinado historicamente a elas. O segundo enquadramento se refere às motivações para ação que dizem respeito a valores, palavras de ordem ou bandeiras que articulam a experiência do feminismo para as meninas; identifique! três principais bandeiras nos discursos das meninas: 1) feminismo é ser dona de si; 2) feminismo é igualdade entre os gêneros; e 3) feminismo é acolher as diferenças. O terceiro enquadramento é o prognóstico definido como estratégias de ação, o “como fazer“ para levar à frente as motivações para ação; a noção de afronta surge como ideia-força que explica a prática feminista das meninas guiada por uma ética que toma cada esfera da vida como espaço e oportunidade de ação4.

No discurso das meninas, as redes sociais, especialmente o YouTube, foram apresentadas como elemento crucial em suas experiências feministas. As meninas citaram algumas youtubers como referências (Ellora, Natály Neri, Maíra Medeiros e Nina Secrets), mas Julia Tolezano5, do canal JoutJout Prazer, teve destaque nas entrevistas. Assim, associado à análise das entrevistas, este trabalho também focaliza o discurso elaborado pela youtuber Julia Tolezano em seus vídeos do canal JoutJout Prazer de modo a investigar pontos de encontros entre os discursos das entrevistadas e o da influenciadora digital em relação ao tema feminismo. As reflexões elaboradas têm como objetivo aproximar o conteúdo e a forma dos vídeos publicados pela youtuber a partir dos enquadramentos utilizados para compreensão do fenômeno que chamamos de feminismo teen. A hipótese é a perspectiva proposta por Margareth Rago (2019) no conceito de “feminização da cultura“, isto é, tanto Jout Jout quanto as adolescentes compartilham os mesmos valores de igualdade entre os gêneros, respeito às diferenças e liberdade; longe de estabelecer uma relação determinista entre influenciadoras digitais e seguidoras, minha leitura supõe o compartilhamento de uma mesma visão de mundo que toma as redes sociais como espaço de produção e reprodução de um novo olhar sobre si e sobre o outro. Assim, espero demonstrar que youtubers e adolescentes compõem uma zeitgeist afinada com o que Rago (2019) chamou de “feminização da cultura“. Ao final do trabalho, considero os limites desta leitura quando cotejada com a dinâmica das redes sociais marcadas pela exclusão da diferença na reprodução de bolhas de interações.

 

Feminismo teen e redes sociais

De que modo as redes sociais contribuem para a formação e prática feminista das meninas? Esta é a pergunta que guia este artigo. Para todas as entrevistadas, as redes sociais, Facebook, Instagram e, especialmente, YouTube6, foram apontadas como as principais fontes de formação feminista e é esse ponto que o conceito feminismo teen pretende dar conta da novidade assinalada pela experiência das entrevistadas. Nos estudos dedicados aos feminismos, o termo “jovem feminista“ irrompe como objeto de análise em meados dos anos 2000 e descreve jovens mulheres que, de modo geral, têm acima de 18 anos, estão em universidades, no mundo do trabalho e participam de formas institucionalizadas de fazer política (GONÇALVES; FREITAS; OLIVEIRA, 2013; ZANETTI, 2011).

As entrevistadas representam uma ruptura com essa descrição e, por essa razão, atribuí um novo nome ao fenômeno, feminismo teen, pois o processo de formação da identidade feminista teen não se dá via institucionalidades tradicionais da luta política, mas tem as redes sociais como a plataforma privilegiada. As meninas se descobrem e se tornam feministas na escola, na Igreja, na família, no grupo de amigas e, como destaco neste trabalho, nas redes sociais, e não em movimentos sociais, partidos políticos e ONGs, em uma dinâmica diversa aquela descrita, por exemplo, por Rago (2013) no processo de formação das feministas no século XX.

No processo de formação feminista das meninas, Facebook, Instagram e, especialmente, o YouTube são fontes privilegiadas. No Facebook, foi constatado que, nas páginas que recebiam maior atenção das adolescentes7, o que as interessava eram memes e tweets, mensagens curtas e rápidas que viralizavam posicionamentos claros sobre o tema. A preferência pelos tweets não reflete predileção por essa rede social, mas sim o valor dado à velocidade e facilidade de comunicação, pois economicidade e rapidez são privilegiadas pelas meninas na ampliação do debate feminista. Além da rapidez e simplicidade, os memes despertam interesse porque são engraçados.

Graça, economicidade e rapidez foram também notadas nos perfis das entrevistadas no Instagram, que são compostos, em sua totalidade, por fotos e breves legendas; o “textão“, textos longos que têm como objetivo expressar opiniões com reflexões demoradas, não interessavam às meninas, que estavam antenadas com a possibilidade de conexão rápida de idéias com pessoas para além de seus restritos círculos sociais (controlados pelos pais e familiares). Por essa razão, os veículos de conexão preferidos das meninas eram fotos, frases curtas e os memes, artefatos que não produzem reflexões densas e dialógicas como os “textões“, mas produzem adesões, identificações claras e passíveis de viralização a partir das quais é possível perceber quem é parte de um NÓS.

No Instagram, o que interessava às meninas eram as fotos, a exposição imagética de si e a conexão produzida com outros a partir de uma determinada imagem que é produzida e reafirmada como expressão de si; nesse sentido, o número de seguidores e de interações indicam uma aprovação da estética e moral de si. Nessa rede social, os perfis seguidos e citados pelas entrevistadas, no que toca ao tema feminismo, foram as páginas citadas do Facebook, mas especialmente os perfis de youtubers.

YouTube é a rede social predileta quando se trata de se informar sobre qualquer assunto, uma vez que disponibiliza conteúdos rápidos (vídeos de 10 a 20 minutos) e acessíveis do ponto de vista intelectual (são fáceis de entender); do ponto de vista geográfico, podem ser acessados em qualquer lugar e de qualquer instrumento -smartphone, tablet, computador; e do ponto de vista temporal, a qualquer momento podem ser acessados e repetidos até a perfeita compreensão das idéias. As meninas veem o YouTube como a perfeita conjunção entre custos e benefícios tanto para produtores de conteúdo quanto para consumidores: do ponto de vista da produção de conteúdo, com recursos mínimos de infraestrutura é possível elaborar reflexões e posicionamentos sobre os mais diferentes temas; do ponto de vista do público, com recursos mínimos (um smartphone e uma boa conexão) é possível ter acesso a conteúdo de qualidade, 24 horas por dia, que esclarece dúvidas de forma rápida.

A constatação de que as redes sociais, especialmente o YouTube, são fontes privilegiadas para a formação feminista das adolescentes foi recorrente nas entrevistas. Como relatou Antonia, 16 anos e branca, o contato dela com o tema feminismo se deu a partir da história de vida de Malala Yousafzai8, pela qual se interessou quando fez um trabalho na 5ª série o qual tinha como objetivo apresentar uma figura feminina importante na sociedade contemporânea. Ela contou que se interessou pela personagem porque ela desconhecia que, em algum lugar do mundo, meninas não poderíam estudar. Antonia relatou que a história de superação de Malala a remetia à sensação de liberdade, à possibilidade de ampliação do conhecimento e de ascensão social, frutos do acesso à educação tomado como um direito que deve ser garantido a todos e a todas.

Educação constitui-se como um valor importante para a entrevistada porque assinala a possibilidade de ascensão social, pois, além da escola, explicou a entrevistada, há apenas dois outros meios de “subir na vida“: “ganhar na Mega Sena ou ser youtuber“. Ser youtuber é uma possibilidade factível para adolescentes que querem ascender socialmente, explicou a adolescente: a plataforma está cheia de youtubers que vieram do nada e, por isso, “todo mundo pode ser youtuber“; mas é preciso reconhecer um impeditivo, a ampla concorrência. Assim, o segredo do sucesso é a novidade associada à autenticidade, ou seja, para ser um youtuber de sucesso é preciso propor não apenas algo novo, mas uma novidade associada a mais profunda expressão de si. A entrevistada explicou que o YouTube guarda uma grande diferença em relação à TV: no YouTube há liberdade e, na TV, só é possível fazer o que os poderosos mandam.

Por meio do discurso das meninas foi possível constatar que a liberdade, concretizada nas redes sociais, permite que adolescentes como elas veiculem valores e idéias que conectam identidades e experiências afins, que, em outros contextos históricos, não se reconheceríam e conectariam. Para adolescentes como as entrevistadas, as redes sociais, especialmente o YouTube (o Instagram aparece como uma segunda alternativa), representam uma possibilidade real de ascender socialmente. O conteúdo imagético que valoriza a oralidade como meio de comunicação fácil e rápido é o grande potencial das redes sociais; o YouTube, em especial, é fácil porque é acessível intelectualmente a qualquer pessoa e tal facilidade advem da forma simples como a comunicação é produzida: são pessoas comuns, alguém como elas, que trata de sentimentos e questões que afligem todas de forma indistinta.

Da perspectiva das meninas, o esquema clássico da indústria cultural - uma elite produtora e uma massa consumidora passiva de conteúdo - foi diluído nas redes sociais, que são tomadas como uma multiplicidade de produtores que conectam outra multiplicidade de consumidores a partir de identidades e experiências compartilhadas. A liberdade, e não a produção de valor que está presente na indústria bilionária das redes sociais, mas que chama pouca atenção das meninas, é o que desperta interesse: “qualquer um pode ser um youtuber“, qualquer um pode produzir conteúdo e, com sorte, alcançar uma grande visibilidade e arrematar curtidas, seguidores e, quem sabe, dinheiro.

Para as entrevistadas, o YouTube produz empoderamento. Para uma adolescente, as youtubers constituem exemplos da forma mais rápida de “se chegar lá“. Tornar-se youtuber rivaliza com as referências tradicionais de ascensão social: o estudo e trabalho diligente e cotidiano que respeita etapas e “sabe esperar“. Além da possibilidade de empoderamento financeiro, as redes sociais também produzem o empoderamento a partir do conteúdo veiculado. No que toca ao tema feminismo, o empoderamento se dá por meio de conteúdos que têm como tom o questionamento de padrões sociais e culturais patriarcais, especificamente aqueles associados ao corpo e à sexualidade femininos. Assim, aceitar o próprio corpo, celebrá-lo e conhecer e/ou experimentar a sexualidade em sua diversidade tem como resultado tornar-se dona de si, elemento importante do feminismo teen. Retomaremos os sentidos de empoderamento e ser dona de si mais à frente na análise dos vídeos da youtuber Julia Tolezano, mas antes apresento Jout Jout.

Nas entrevistas foram relatadas algumas referências nas redes sociais para a conformação da identidade feminista, contudo, as entrevistadas apontaram a youtuber Julia Tolezano, do canal JoutJout Prazer9, como destaque. Em 2014, Julia, munida de uma câmera e um microfone, começou a gravar e postar vídeos no YouTube. Em seus vídeos, que contam com não mais que 10 minutos de duração, cabe qualquer assunto: comentários sobre músicas, confissões sobre medos e inseguranças, pensamentos soltos, análises críticas sobre a conjuntura política ou conselhos sobre relacionamentos amorosos. Julia tem um estilo autêntico, como notou uma das entrevistadas: os vídeos produzidos não tem um cenário fixo, ela não produz cabelo e maquiagem e, o mais importante, Julia fala de forma espontânea sem recorrer a um roteiro engessado.

Essa espontaneidade ao tratar de assuntos que afligem e deliciam meninas e mulheres é o que confere um toque de humor aos vídeos, tão apreciados pelas meninas. A linguagem simples e amorosa é outro diferencial de Julia: ao assistir a um vídeo dela, parece que estamos conversando com uma amiga que ouve e dá conselhos de uma maneira leve e didática, como as entrevistadas notaram. O didatismo é explicado pela linguagem tatibitate comum nos vídeos nos quais a youtuber explora temas cotidianos e tabus, como o vídeo “Cocô a dois“, no qual ela conta os arranjos criados entre ela e o namorado, durante uma viagem, para lidar com esse possível constrangimento.

No próximo tópico, apresentarei a análise dos vídeos do canal JoutJout Prazer com base nos enquadramentos delineados, sendo a hipótese condutora da análise a perspectiva proposta por Margareth Rago (2019) no conceito de “feminização da cultura“. A aplicação desse conceito supõe que tanto Jout Jout quanto as adolescentes compartilham os mesmos valores de igualdade entre os gêneros, respeito às diferenças e liberdade que conformam uma prática feminista específica. Longe de estabelecer uma relação determinista entre influenciadoras digitais e seguidoras, o que supõe uma hierarquia entre produtor e consumidor de conteúdo, minha leitura supõe o compartilhamento de uma mesma visão de mundo na qual feminismo é uma referência.

 

Feminismo teen, youtubers e “feminização da cultura“

Retomo, então, os enquadramentos do feminismo teen. O primeiro enquadramento diz respeito à construção da identidade feminista e um primeiro ponto é que se descobrir feminista, para as meninas, tem uma forte relação com descobrir-se como vítima potencial da violência de gênero. A identidade feminista de Larissa, branca e 16 anos, começou a se delinear de forma clara quando um assédio sexual ocorreu, conforme relata:

Esse foi o momento [ela se refere ao assédio sexual] que marcou que eu falei que eu era feminista. Porque eu falei agora faz algum sentido eu defender isso. Vou me declarar [feminista] porque eu fui machucada.

Assim como Larissa, JoutJout, em vários vídeos, aborda o tema violência de gênero como parte da construção de seu feminismo, sendo o vídeo “Não tira o batom vermelho“10 um exemplo. Em pouco mais de 8 minutos, em um tom didático e bem humorado, Julia enumera situações abusivas (como quando o namorado obriga a namorada a tirar o batom vermelho) e explica as razões pelas quais tais comportamentos podem evoluir para casos graves de violência. O vídeo “Vamos fazer um escândalo“11 compartilha com as entrevistadas a perspectiva de que a dor de se saber vítima de violência une as mulheres em sua diversidade e as impele à ação de fazer um escândalo para demonstrar que violência contra a mulher não é aceitável. Jout Jout demonstra que, a despeito da multiplicidade das experiências implicadas nas violências sofridas por mulheres cotidianamente, se perceber como vítima ou potencial vítima da violência as conformam como parte de um coletivo que precisa vocalizar sua vulnerabilidade e força como forma de lutar contra a violência.

Outro ponto de partida para a construção da identidade feminista das meninas é o que chamei de “experiência do corpo como expressão de si“; o feminismo é percebido não só como uma narrativa sobre a violência que incide sobre os corpos de mulheres e meninas, mas também como liberdade, e é essa experiência compartilhada que produz um sentido de um “nós feministas“. Essa experiência de liberdade, no discurso das meninas, está relacionada ao modo como a diversidade de corpo, em relação a um padrão determinado, é equacionado. Da perspectiva das meninas, perceber-se como diferente de um determinado padrão (estético-corporal e sexual são destaques nas entrevistas) implica um duplo movimento: questionar o padrão e positivar a diferença em relação à norma como uma expressão de si. O questionamento das normas estéticas e sexuais assume um sentido de desafio para adolescentes que têm no pátrio poder ou na família os eixos norteadores de sua vida. Milena, 15 anos e negra, contou como, da sua perspectiva, a luta contra o machismo está inserida no modo como ela se veste: vestir um short curto ou uma blusinha cropped é um desafio à ordem representada na figura do pai:

Uma vez eu ia sair e eu estava com um cropped e aí meu pai falou “a gente vai rasgar suas roupas“. Eu disse: “Rasga! Não é você que compra; no dia em que você comprar minhas roupas, aí você pode falar alguma coisa“. Até hoje eu falo essa mesma coisa pra ele. O meu guarda-roupa inteiro mudou de dois anos pra cá; as roupas são literalmente do meu gosto porque sou eu que compro literalmente tudo. Eu lembro que eu tinha uma blusa que era ombro a ombro e era mais curti-nha. E eu só usava ela com regata por baixo para cobrir a barriga porque eu achava ela muito curta. Aí hoje eu uso ela sem nada por baixo e não tô nem ligando.

No vídeo “Ninguém está imune“12, Jout Jout trata de um tema muito caro às entrevistadas, a autoestima ou, como Julia coloca, a falta dela, da qual ninguém escapa. Reconhecer-se mulher, em uma sociedade machista, tem como uma decorrência uma experiência de si marcada pela negatividade em relação a padrões estéticos e de comportamento; no vídeo, Julia dá dicas para se ter autoestima, definida por ela como “seu corpo muito feliz de ser o seu corpo“. No vídeo intitulado “Por uma ppk mais feliz“13, Jout Jout trata da masturbação feminina e a vincula à autoestima e ao auto-conhecimento femininos: conhecer seu próprio corpo e sentir prazer é um passo importante na conquista da autonomia feminina. No vídeo intitulado “Corpo perfeito“, a youtuber pergunta se há um corpo perfeito para curtir o verão e, em um bate-papo descontraído com suas amigas, demonstra que o corpo perfeito para o verão é o corpo que se tem. Tal como as entrevistadas que afrontam os valores patriarcais em seu dia a dia (ao usar um short curto ou uma blusinha cropped), gostar do corpo que se tem e mostrá-lo ao mundo é parte da experiência feminista que questiona um padrão estético e positiva a diferença como uma expressão de si. Para Julia e para as adolescentes, o questionamento das normas estéticas e sexuais assume um sentido de enfrentamento aos valores machistas.

O segundo enquadramento são as motivações para ação do feminismo teen, tendo três temas surgido como recorrentes: 1) feminismo é igualdade entre os gêneros; 2) feminismo é ser dona de si; e 3) feminismo é acolher as diferenças, é “acolhedorismo“14. Como tais temas são abordados nos vídeos de Jout Jout?

O tema igualdade entre os gêneros não é debatido de maneira declarada por Jout Jout, mas é um valor subjacente a todos os vídeos que tratam do tema feminismo. A igualdade entre os gêneros está presente, por exemplo, no vídeo “Oi, nós transamos. Ass: mulheres“ (2018)15, no qual Julia apresenta uma série televisiva ficcional na qual o tema sexualidade é tratado a partir da perspectiva das mulheres. Julia entende que a sexualidade feminina, no cinema e na televisão brasileiros, é historicamente tratada a partir da perspectiva masculina, refletindo um valor caro à sociedade patriarcal que toma o prazer sexual como uma experiência inerentemente masculina. Como explica a youtuber, as mulheres fazem sexo e o fazem de modos distintos dos homens. Nesse sentido, a série ficcional, apresentada no vídeo, é um passo na construção de caminhos para igualdade entre os gêneros que se fazem cotidianamente em cada pequena ação e comportamento questionado e vivenciado de outra forma.

A igualdade é um valor fundamental do feminismo, mas tal valor toma sentidos específicos nos discursos e práticas das meninas e da youtuber: a igualdade assume um sentido tão amplo que é capaz de abarcar toda prática ou discurso que considera a igualdade entre homens e mulheres como princípio inegociável. Assim, se alguém assume como valor importante em sua vida a igualdade entre homens e mulheres, então estamos diante de uma feminista. Quem fica de fora desse amplo grupo? Ora, explicaram as meninas, fica de fora quem fala e não faz! Do ponto de vista das entrevistadas, o feminismo não é apenas “falação“, mas é ação que se faz cotidianamente: “eu acordo, faço as minhas coisas, começo a pensar e começo a desconstruir algumas situações“, explicou Larissa.

A segunda bandeira do feminismo teen é a ideia de que feminismo é ser dona de si, o que significa ser autônoma, livre e coerente com seus desejos e valores mais profundos. Nas entrevistas, o termo empoderamento surgiu associado a essa elaboração e significava o reconhecimento de uma identidade coletiva, “nós meninas e mulheres“, que têm suas vidas marcadas pelas desigualdades de gênero, classe, raça e sexualidade, mas também pelo compartilhamento do valor supremo da igualdade entre homens e mulheres. Patrícia, 15 anos e negra, contou que empoderamento se forja desde cedo:

Eu nunca tinha tido contato com nenhuma dessas coisas progressistas. Na minha casa não tem nada dessas coisas. Quando eu chego em casa expressando opiniões diferentes ou ditas progressistas, há um questionamento do tipo “onde você aprendeu isso?“. A minha irmã [ela tinha 10 anos no momento da entrevista] é meio que inconscientemente ligada a essas coisas [progressistas]: ela não veste as coisas que ela não quer, ela não faz as coisas que ela não quer. Ela é muito dona de si.

“Ela é muito dona de si“: essa é uma expressão do feminismo na experiência das meninas, reafirmada por meio do enfrentamento a valores e normas consideradas machistas. Essa proposição está diluída em inúmeros vídeos do canal da Julia, e todos os vídeos citados o tematizam: ao tratar da masturbação no vídeo “Por uma ppk mais feliz“, empoderamento diz respeito a se tornar dona de seu prazer por meio do conhecimento do próprio corpo; nos vídeos em que Julia trata da violência de gênero, empoderamento diz respeito a reconhecer-se como sujeito de direitos e, consciente da experiência compartilhada por outras mulheres, dar um basta à violência. No vídeo “Corpo perfeito“, empoderamento diz respeito a aceitar quem se é e, assim, colocar em suspensão padrões estéticos e de comportamentos, e dizer um basta a esses padrões não significa empoderamento e liberdade apenas para si, mas para todas as mulheres. O empoderamento, portanto, não diz respeito a uma experiência individual, mas a uma experiência coletiva de conquista de voz no espaço público; portanto, ser dona de si implica o reconhecimento de um mundo diverso ao qual é preciso devotar respeito para, assim, ser respeitada.

A tolerância à diferença é um valor importante na formação feminista tanto da perspectiva das adolescentes quanto da youtuber. Tal como Julia, as entrevistadas estabelecem uma relação entre identidade feminista e uma variedade de outras práticas que pregam a tolerância e respeito à diversidade humana; assim, é possível afirmar que as meninas, assim como Julia, ao se identificarem como feministas também se declaram antirracistas, anti-homofóbicas e contra qualquer preconceito associado à classe social. Ser feminista, para as meninas e para Julia, está ligado a refletir sobre e agir contra as diversas formas de opressão existentes em nossa sociedade e é por essa razão que para as meninas feminismo é “acolhedorismo“. Em todas as entrevistas, é unânime a percepção de que um valor caro ao feminismo teen é a experiência de que todas, no feminismo, têm voz e espaço para falar e todas falam a partir de suas diferenças (de classe, raça, sexualidade ou qualquer outra referência), que devem ser abraçadas e celebradas. Para as meninas, feminismo é sinônimo de acolher a diversidade humana e ampliar a visão de mundo a partir da percepção de que diferença não pode implicar desigualdade de nenhuma espécie.

Antonia contou que ao fazer um cartaz sobre feminismo, solicitado pela professora de Filosofia, tentou expressar todas as possíveis formas de ser mulher, mas, alertada por uma colega, percebeu que não havia representado a mulher transexual e ficou muito triste. Ela confessou que se sentiu mal por deixar de fora uma forma de ser mulher e feminismo é justamente “colocar todo mundo para dentro“.

O vídeo “Não é para sair“16 expõe uma conversa entre uma feminista branca, Jout Jout, e uma feminista negra, Natály Neri, e ilumina como a tolerância à diferença é elemento essencial da prática feminista. A violência de gênero é um exemplo sobre as diferenças inerentes à experiência feminista: Julia retoma em sua conversa com Natály o vídeo “Vamos fazer um escândalo“ e faz um mea-culpa ao reconhecer que nem todas as mulheres podem colocar a boca no trombone quando o assunto é violência, pois há inúmeras formas de opressão que se articulam e que repõem o silenciamento de mulheres negras especialmente. “Não é para sair“ sintetiza a essência da bandeira do “acolhedorismo“: diz Julia que não é para ninguém “sair [do debate]. É horrível sair. Não é para sair - é para estar lá, mas para aprender“, tal como ela faz no vídeo em análise.

Mas, para ser feminista, além de falar, é preciso agir, então quais seriam as estratégias de ação, terceiro enquadramento, para atender as motivações descritas? As respostas das meninas e de Jout Jout apontam que é preciso afrontar. Afrontar sintetiza a forma como as meninas criam estratégias de ação que encampam as motivações do feminismo. Afrontar, no dicionário, significa ofender ou provocar ultraje. No feminismo teen, tal significado é sublevado e assume o sentido de enfrentamento e subversão de uma ordem social comprometida com a desigualdade e a violência. Milena relatou inúmeros eventos em que a afronta foi adotada como estratégia de ação para questionar normas e estereótipos de gênero que a oprimiam, como, por exemplo, a diferença entre ela e o irmão no que tocava às permissões dadas pelo pai para passear sem supervisão de um adulto:

Tinha uma época que ele [o pai] não deixava eu sair sozinha e daí uma vez eu falei que ia sair e ele disse que não era para sair e eu disse que só ia comprar um sorvete e daí eu dei um rolê...nossa...UM ROLÊ...SÓ para afrontar mesmo e daí ele ficou muito bravo.

Um passeio para comprar um sorvete se transformou em uma ocasião para demonstrar que regras injustas, baseadas em estereótipos de gênero, precisam ser desafiadas. Jout Jout afronta em todos os vídeos citados, nos quais normas de gênero são desafiadas; ao afrontar, as meninas e Júlia subvertem a ordem patriarcal e demonstram que defender a igualdade entre homens e mulheres, ser dona de si e acolher as diferenças deveria ser regra, e não ultraje. Ao afrontar, elas tornam o feminismo parte da cotidiana luta pela dignidade e liberdade de mulheres e meninas.

 

Ampliação do espaço público ou reforço de processos de excludência?

A produção da identidade feminista para as meninas tem as redes sociais como plataforma para seus idéias e práticas. Do ponto de vista das meninas, o sucesso das redes sociais está associado à produção de um mundo comum em uma sociedade estilhaçada pela experiência da modernidade. Nestes comentários finais, gostaria de tensio-nar a formação deste “mundo comum“ (ARENDT, 1983) a partir da dinâmica inerente às redes sociais.

Inspirada na psicanálise freudiana, sugiro que o princípio de mobilização das redes sociais é a identificação (FREUD, [1914]/2019a, [1921]/2019b), isto é, o princípio da adesão a partir da identidade, “daquilo que é igual a mim“, e não do princípio da realidade, a experiência dialógica do confronto com o outro; as redes sociais, portanto, não se assemelham a uma ágora, o espaço público marcado pelo diálogo e pelo confronto de diferentes perspectivas que tem como fundamento a experiência de um mundo compartilhado; assim, as redes sociais se assemelham a conglomerados de grupos/comunidades/bolhas constituídas a partir do princípio da mesmidade, a “lógica do condomínio“ que aumenta o volume do EU e diminui o valor do mundo (DUNKER, 2009).

É nessa ambiência, longe do dissenso e no conforto da bolha, que as meninas se constroem como feministas: são os canais do YouTube que produzem o encontro daquelas que, não fosse pelo ambiente virtual, não se encontrariam. Trata-se de uma novidade significativa no esteio do movimento político: a potência dos encontros promovidos por mulheres, nos anos 1970, como forma de partilhar experiências, reco -nhecer violências e produzir ações subsistem no feminismo teen, mas no formato de encontros virtuais mediados pela figura de uma youtuber ou diluídos em comentários em postagens ou vídeos; a presença das feministas em partidos e movimentos sociais é diluída pela presença virtual das meninas em inúmeros perfis e canais que tratam de política, direitos e democracia; a presença das mulheres nas ruas, palco do embate entre perspectivas conservadores e libertárias, subsiste, mas não mais exclusivamente, pois as redes sociais tornam-se arenas de formação e disputa política.

Há importantes implicações na novidade assinalada pelas práticas das meninas quando consideramos a teoria política clássica: se a democracia é calcada sobre a conformação de consensos pela constatação da diversidade, presente em qualquer sociedade nacional, como as mídias sociais impactam a democracia se priorizam e valorizam o princípio da identidade? Como produzir consensos em um mundo fragmentado? Quais os espaços para diálogo? Quais as possibilidades de construir um “mundo comum“ (ARENDT, 1983) no qual a tolerância à diferença seja princípio?

A resposta aponta para uma realidade multifacetada. De um lado, é importante considerar que a lógica descrita das redes sociais tem como condão os princípios da publicidade que reforçam a experiência de bolha identitária em detrimento do confronto do dissenso. Maria Rita Kehl (2008) nos ajuda a compreender a dinâmica das redes sociais:

[...] o apelo psicológico comum a todas as formas de publicidade visa à dinâmica da inclusão e da exclusão. A publicidade [...] vende sempre a mesma coisa: a proposta de uma inclusão do sujeito às custas da exclusão do outro [...] Goza-se com isso: não tanto da própria inclusão (que pode não passar de uma fantasia), mas da exclusão do outro. O que a publicidade vende, portanto, é exclusão (p. 27).

Kehl (2008) argumenta que os laços sociais no capitalismo contemporâneo são organizados com referência a identificações que apelam ao “gozo sem limites“ em um movimento regressivo que ilumina o narcisismo premente nas relações sociais. O narcisismo, como marca da sociabilidade contemporânea, toma o EU como a medida de todas as coisas. Ora, qual é possibilidade de construção de um “mundo comum“ em uma sociedade em que a diferença é execrada em nome do gozo imediato? Qual é a possibilidade de diálogo em uma sociedade em que o princípio do prazer é imperativo? Sob essa perspectiva, o feminismo teen é mais do mesmo e, portanto, muito distante da possibilidade de construção de pontes para um mundo comum.

Por outro lado, não é possível deixar de lado o impacto positivo na arena pública da movimentação feminista nas redes sociais. Sonia Alvarez (2014) focaliza o movimento feminista não institucionalizado que toma forma distante e crítico às institucionalidades políticas e ganha as redes e as ruas em meados de 2011. Gomes (2017) toma a Marcha das Vadias como exemplo paradigmático desse ativismo para quem o Estado não é o alvo principal de suas estratégias de ação, mas sim a cultura patriarcal que vitimiza mulheres. Uma novidade da Marcha das Vadias, segundo a autora, é a instantaneidade e espontaneidade das adesões: as marchas eram preparadas e agendadas por meio de redes sociais que impulsionaram de forma inesperada (até mesmo para as organizadoras do ato) adesões de milhares de mulheres que enxergavam na figura da vadia um grito irônico e subversivo de liberdade para seus corpos. O medo e/ou a experiência da violência de gênero e a presença de corpos seminus em praça pública produziram práticas articulatórias, laços ainda que temporários, que reconheciam em cada mulher uma igual e nesse reconhecimento se desenhou uma potencialidade política dada pela percepção de que não estamos sozinhas (“somos muitas“) e que esse NÓS tem um enorme potencial de mudar o mundo.

Inspirada pelas reflexões de Alvarez (2014), gostaria de refletir, nestes últimos parágrafos, de que modo diferenças são equacionadas e articuladas na constituição da identidade feminista teen; também gostaria de pensar se e como, apesar das distâncias (reais, virtuais, sociais e raciais), um NÓS feminista é concebido e construído pelas meninas.

Para as entrevistadas, descobrir-se feminista é encontrar a si e, assim, encontrar outras meninas e mulheres que compartilham as mesmas experiências - positivas ou negativas. Para as meninas, feminismo é a experiência de si denotada pelo prazer de ser quem se é e tal experiência não se faz sozinha, mas juntas por meio do compartilhamento, ainda que remoto, de experiências de dores e alegrias implicadas na experiência de ser menina e tornar-se mulher em uma sociedade patriarcal.

No vídeo “Tem um minuto para a palavra do feminismo?“17, Julia responde dúvidas sobre feminismo que convergem com as reflexões das entrevistadas. Uma pergunta que a youtuber responde é “como sei se sou feminista?“ e Julia explica que “as pessoas são feministas - elas só não sabem que são“. Tal leitura é apoiada na ideia de que o feminismo é “você agir em cima do que você acredita que é correto para a sociedade“, como explicou Larissa, e esse agir está diluído em cada microrrelação e microespaço social. As entrevistadas, assim como Julia, entendem que o feminismo se faz todos os dias, em todas as situações nas quais as desigualdades de gênero se mostram presentes. É ao afrontar a ordem social, marcada pela desigualdade e injustiça, que a identidade feminista se consolida.

Resistir às normas cotidianamente é tarefa a que os feminismos têm se lançado historicamente, e as meninas tomam essa tarefa como essência de sua prática. Mesmo não inseridas em espaços clássicos de ativismos, as meninas colocam o feminismo “na roda“ e entendem que o ativismo político clássico - a participação em partidos, movimentos sociais e ONGs - não é mais a única forma de ser feminista. O mundo mudou e é preciso mudar junto com ele, explicou-me uma entrevistada em uma conversa informal.

Feminismo, da perspectiva das meninas, é entendido como uma multiplicidade de discursos e práticas que têm como valores a autonomia das mulheres, o respeito à diversidade e uma experiência radical de alteridade e, desse modo, as redes sociais são espaços privilegiados de formação e de disputa política. Nesse sentido, as práticas e discursos do feminismo teen indicam uma mudança cultural, a “feminização da cultura“ (RAGO, 2019), que se dá na disputa política cotidiana pela vida, dignidade e sonhos de meninas que têm muito a dizer. Tal novidade está tomando forma, no entanto, é preciso levar em conta o movimento contraditório da realidade social marcada por um jogo de forças que se digladiam e impedem que avaliações peremptórias e terminativas sejam desenhadas.

 

Referências Bibliográficas

ALVAREZ, S. Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu, Campinas, n. 43, p. 13-56, jan./jun. 2014.         [ Links ]

ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Ed. Forense-Universitária, 1983.         [ Links ]

CARDON, D. A democracia internet: promessas e limites. São Paulo: Editora Forense Universitária, 2012.         [ Links ]

CESARINO, L. Como vencer uma eleição sem sair de casa: a ascensão do populismo digital no Brasil. Revista Internet & Sociedade, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 91-120, fev. 2020.         [ Links ]

DUNKER, C. A Lógica do condomínio ou: o síndico e seus descontentes. Revista Leitura Flutuante, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 1-8, 2009.         [ Links ]

FERNANDES, S. Sociologia da juventude: olhares interdisciplinares e intertemáticos. Contemporânea, São Carlos, v. 9, n. 2, p. 339-350, maio/ago. 2019.         [ Links ]

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio deJaneiro: Forense Universitária, 2007.         [ Links ]

FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2019a. v. XIV. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud).         [ Links ]

______. Psicologia de grupo e análise do ego. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2019b. v. XVIII. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud).         [ Links ]

GOHN, M. Movimentos sociais na contemporaneidade. Revista Brasileira de Educação, v. 16, n. 47, p. 333-513, maio/ago. 2011.         [ Links ]

GOMES, C. Corpo e emoção no protesto feminista: a Marcha das Vadias do Rio de Janeiro. Sexualidad, Salud y Sociedad Revista Latino-Americana, Rio de Janeiro, n. 25, p. 231-255, abr. 2017.         [ Links ]

GONÇALVES, E.; FREITAS, F.; OLIVEIRA, E. Das idades transitórias: as “jovens“ no feminismo brasileiro contemporâneo, suas ações e seus dilemas. Revista Feminismos, Salvador, v. 1, n. 3, set./dez. 2013. n. p.         [ Links ]

KEHL, M. Publicidade, perversão, fobias. Psicanálise e cultura, São Paulo, v. 31, n. 46, p. 27-32, 2008.         [ Links ]

MATOS, M. O movimento e a teoria feminista em sua nova onda: entre encontros e confrontos, seria possível reconstruir a teoria feminista a partir do sul global? Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 18, n. 36, p. 67-92, jul. 2010.         [ Links ]

RAGO, M. A “mulher cordial“: feminismo e subjetividade. Revista Verve, São Paulo, n. 6, p. 279-296, 2004.         [ Links ]

______. A aventura de contar-se: feminismos, escritas de si e invenções da subjetividade. Campinas: Ed. da Unicamp, 2013.         [ Links ]

______. “Estar na hora do mundo“: subjetividade e política em Foucault e nos feminismos. Interface, Botucatu, n. 23, p. 1-11, 2019.         [ Links ]

SANTOS, A. C. V. R. dos. Juventude, participação política e feminismo na periferia de uma grande cidade: o que as meninas tem a dizer? In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 19º, 2019, Florianópolis. Anais. Florianópolis: UFSC, 2019, n. p.         [ Links ]

SNOW, D.; BENFORD, R. Masterframesand cyclesof protest. In: MORRIS,A. D.; MUELLER, C. M. (Eds.). Frontiers in social movement theory. New Haven: Yale University Press, 1992. p. 133-155.         [ Links ]

TAVARES, F.; CAMURÇA, M. Religião, família e imaginário entre a juventude de Minas Gerais. Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, v. 8, n. 8, p. 99-119, out. 2006.         [ Links ]

TOLEZANO, J. Ninguém está imune. YouTube, 1 jul. 2014. Disponível em: <https://youtube/4GBgxWHub8U>. Acesso em: 20 fev. 2020.         [ Links ]

______. Cocô a dois. YouTube, 30 out. 2014. Disponível em: <https://youtube/isD15emtEds>. Acesso em: 20 fev. 2020.         [ Links ]

______. Não tira o batom vermelho. YouTube. 26 fev. 2015. Disponível em: <https://youtube/l-30cjJTPHg>. Acesso em: 20 fev. 2020.         [ Links ]

______. Por uma ppk mais feliz. YouTube, 21 abr. 2015. Disponível em: <https://youtube/nzRBVtenOrw>. Acesso em: 20 fev. 2020.         [ Links ]

______. Corpo Perfeito. YouTube, 13 out. 2015. Disponível em: <https://youtu.be/9mpe4YoHmF8>. Acesso em: 20 fev. 2020.         [ Links ]

______. Vamos fazer um escândalo. YouTube, 27 out. 2015. Disponível em: <https://youtube/0Maw7ibFhls>. Acesso em: 20 fev. 2020.         [ Links ]

______. Oi, nós transamos. Ass: mulheres. YouTube, 5 mar. 2018. Disponível em: <https://youtube/LwBxs3dBGNw>. Acesso em: 20 fev. 2020.         [ Links ]

______. Tem um minuto para a palavra do feminismo? YouTube, 21 jun. 2018. Disponível em: <https://youtube/2N71eKQRqFs>. Acesso em: 20 fev. 2020.         [ Links ]

ZANETTI, J. Jovens feministas do Rio de Janeiro: trajetórias, pautas e relações intergeracionais. Cadernos Pagu, Campinas, n. 36, p. 47-75, jan./jun. 2011.         [ Links ]

 

 

Data de recebimento: 14/06/2021
Data de aprovação: 22/08/2021

 

 

1 Os nomes das entrevistadas foram alterados assim como foram subtraídas quaisquer informações que comprometessem o anonimato.
2 A pesquisa foi conduzida com o apoio de três pesquisadoras de iniciação científica: Gabriela Aguiar de Souza, Gabrielle Melo da Silva e Giovanna de Souza Almeida. Agradeço pela inspiração e pelo trabalho, sem os quais esta pesquisa não teria sido desenvolvida.
3 A data entre colchetes indica o ano de publicação original da obra. Nas citações seguintes será registrada apenas a data da edição consultada.
4 Para detalhamento dos enquadramentos do feminismo teen, ver Santos (2019).
5 Nascida em Niterói, Rio de Janeiro, em 14 de março de 1991.
6 Embora as hashtags tenham se tornado um grande motor dos feminismos na internet, as entrevistadas não relataram seu uso, embora reconheçam a importância delas; também não relataram o uso do Twitter; a predileção pelo YouTube, Facebook e Instagram ficou clara nas entrevistas.
7 Destaque para as páginas “Diário de uma Feminista“ e “Feminismo sem Demagogia“.
8 Malala Yousafzai é uma jovem paquistanesa, hoje residente na Grã-Bretanha, que sofre perseguição política por seu ativismo na defesa dos direitos humanos das mulheres; sua história ganhou notoriedade em 2012 quando ela sofreu um atentado em seu caminho diário para a escola.
9 Em fevereiro de 2020, Julia contava com mais de 2 milhões inscritos em seu canal, constituindo-se em uma das mais importantes youtubers do Brasil.
10 O vídeo contava, em fevereiro de 2020, com quase 4 milhões de visualizações e havia recebido mais de 226 mil curtidas e quase 6 mil comentários, por meio dos quais meninas e mulheres relatavam situações de abuso, tal como se faria numa relação tête-à-tête com uma amiga.
11 O vídeo contava, em fevereiro de 2020, com mais de 2 milhões de visualizações, mais de 165 mil curtidas e mais de 8 mil comentários por meio dos quais são relatados casos de assédio e estupro.
12 Em fevereiro de 2020, o vídeo contava com mais de 384 mil visualizações, 20 mil curtidas e 236 comentários.
13 Em fevereiro de 2020, o vídeo contava com 920 mil visualizações, 30 mil curtidas e 700 comentários.
14 O neologismo foi criado por uma das pesquisadoras de nosso grupo e é uma referência às conhecidas ondas do movimento feminista: se a igualdade e diferença são valores de referência para as três ondas do feminismo, a tolerância, ou o acolhimento à diversidade humana, é o valor supremo do feminismo no século XXI, por isso, feminismo é “acolhedorismo“. Quarta onda é uma referência à proposta de Matos (2010).
15 Em maio de 2020, o vídeo tinha mais de 500 mil visualizações, 60 mil, curtidas e quase 1.600 comentários.
16 Em fevereiro de 2020, o vídeo contava com 950 mil visualizações, 90 mil curtidas e 4.786 comentários.
17 Em fevereiro de 2020, o vídeo contava com mais de 555 mil visualizações, 71 mil curtidas e quase 3 mil comentários.

Creative Commons License