SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.14 issue1What Substance Makes up Love?: Building conjugality in Guimarães RosaWork in waste recycling cooperatives: social and environmental aspects according to the optic of members author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.14 no.1 Fortaleza Apr. 2014

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Pseudoformação e violência: impactos da socialização direta na constituição da personalidade

 

Pseudo formation and violence: impacts of the direct socialization in the personality constitution

 

Pseudoformación y violencia: impactos de la socialización directa en la constitución de la personalidad

 

Pseudoformation et violence: les effets de la socialisation directe sur la constitution de la personnalité

 

 

Pedro Fernando da SilvaI; Gil Gonçalves JúniorII; Ednilton José Santa-RosaIII

IDoutor em Psicologia Social pela PUC/SP, docente do Instituto de Psicologia da USP e pesquisador com apoio da FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Número do processo: 2010/20900-8
IIDoutor em Psicologia Social pela PUC/SP, docente na Faculdade Paulista de Serviço Social de São Caetano do Sul - FAPSS/SCS
IIIDoutor em Psicologia Social pela PUC/SP e docente nas Universidades de Sorocaba - UNISO e Anhembi Morumbi

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo refletir a respeito da relação entre pseudoformação e violência, atendo-se, sobretudo, à deterioração das mediações existentes na relação entre indivíduo e sociedade, atualmente caracterizada pela socialização direta. Argumenta-se que a socialização direta cumpre a função de esteio da pseudoformação, pois favorece a fixação dos modelos de conduta propalados pela indústria cultural e demais agências extrafamiliares e, com isso, potencializa a determinação social, suprimindo as experiências formativas necessárias ao desenvolvimento da autonomia. Busca-se analisar o modo como esse processo psicossocial interfere na formação de pessoas simultaneamente refratárias à autoridade das instituições formativas tradicionais, como a família e a escola, e submissas ao autoritarismo de líderes forjados pela psicodinâmica de grupos e massas nos quais tanto a individualidade do eu quanto a auto-observância moral, frequentemente promovida pela instância superegóica, são encampadas por agências externas. A débil capacidade da família e da escola de exercerem mediação significativa na constituição da personalidade legitima a internalização de modelos de conduta estereotipados: a constituição do eu por meio da internalização de padrões heteronômicos é parte do violento processo da adaptação social que impulsiona para a barbárie. Ajustadas à sociedade administrada, as pessoas privadas de um eu minimamente diferençado se convertem simultaneamente em vítimas da violência social e algozes de seus semelhantes. Por não conseguirem se constituir como indivíduos autodeterminados, sucumbem à reificação e aderem sem resistências a ideologias irracionalistas e aos seus sucedâneos contemporâneos popularizados, percebidos como pontos de contato com suas necessidades psicológicas insatisfeitas. Com isso, a psicologia das massas sobrepõe-se à psicologia individual, de modo que a individualidade deformada se converte em individualismo brutal: incapazes de refletir sobre suas necessidades prementes, os homens tipificados encontram na psicodinâmica das massas as condições ideais para extravasar a destrutividade que desenvolveram como precondição para o ajustamento à barbárie socialmente disseminada.

Palavras-chave: violência, pseudoformação, indivíduo, personalidade, teoria crítica.


ABSTRACT

This main objective of this article is to discuss the relationship between pseudo formation and violence. It address, mainly, the deterioration of the existing mediation between subject and society, nowadays, characterized by a direct socialization. It argues that direct socialization has the role of pseudo formation mainstay, supporting the fixation of role models divulged by the cultural industry and many extra-familiar agencies, thus potentiating social determination and suppressing the formative experiences, which are necessary to the development of autonomy. It analyzes how this psychosocial process interferes with the formation of people that are, simultaneously, against the authority of traditional formative institutions, like family and school, and subservient to the authoritarism of leaders forged by the psycho-dynamics of mass and groups. In this process, external issues encompass both, the individuality of the self and the moral self-observance, which are frequently promoted by the superego instance. The low capacity of the family and the school to mediate significantly the personality constitution legitimates the internalization of stereotyped role models: the constitution of the self by the internalization of the heteronomical standards is but one part of the violent process of social adaptation, which leads to barbarism. Adjusted to this administrated society, people are deprived of a self minimally differentiated and they become, at the same time, victims of the social violence and tormentors of other people. Because they are not able to constitute themselves as self-determined individuals, they surrender to reification and adhere, with no resistance, to irrational ideologies and to its popular contemporaneous substitutes, which are perceived as contact points between themselves and their unsatisfied psychological needs. Therefore, mass psychology prevails over individual psychology, in such a way that the deformed individuality turns into brutal individualism: incapable of thinking about their pressing needs, these stereotyped men find in mass psycho-dynamics the ideal conditions to release the destructiveness which they have developed as a pre-condition to adjust to the barbarism socially disseminated.

Keywords: violence, pseudo-formation, individuals, personality, critical theory.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo reflexionar al respecto de la relación entre pseudoformación y violencia, enfocándose principalmente en la deterioración de las mediaciones existentes entre el individuo y la sociedad, actualmente caracterizada por la socialización directa. Se le argumenta que la socialización directa cumple la función de apoyo a la seudo formación pseudoformación, pues favorece a la fijación de modelos de conducta propagados por la industria cultural y otras agencias extra familiares y de esta forma, potencia la determinación social, suprimiendo a las experiencias formativas necesarias para el desarrollo de la autonomía. Se busca analizar la forma de cómo este proceso psicosocial interfiere en la formación de las personas simultáneamente refractarias a la autoridad de las instituciones formativas tradicionales, como es la familia y la escuela y sumisas al autoritarismo de falsos líderes forjados por la psicodinámica de grupos y masas en los cuales tanto a la individualidad del yo como la auto observación moral frecuentemente promovida por la instancia del superyó, son encampanadas por agencias externas. La débil capacidad de la familia y de la escuela de ejercer mediación significativa en la constitución de la personalidad legitima a la internalización de modelos estereotipados de conducta: la constitución del yo por medio de la internalización de padrones heterónomos es parte del violento proceso de adaptación social que impulsa para la barbarie. Ajustadas a la sociedad administrada, las personas privadas de un yo mínimamente diferenciado se convierten simultáneamente en victimas de la violencia social y verdugos de sus semejantes. Como no han conseguido constituirse como individuos autodeterminados sucumben a la cosificación y se adhieren sin resistencia a ideologías irracionales y a sus sucedáneos contemporáneos popularizados, percatados como punto de contacto con sus necesidades psicológicas insatisfechas. Con esto, la psicología de las masas se sobrepone a la psicología individual, de modo que la individualidad deformada se convierte en individualismo brutal: incapaces de reflexionar sobre sus necesidades primordiales, los hombres tipificados encuentran en la psicodinámica de masas las condiciones ideales para trasbordar a la destructividad que desarrollan como precondición para el ajustamiento a la barbarie socialmente sembrada.

Palabras-clave: violencia, pseudoformación, individuo, personalidad, teoría crítica.


RÉSUMÉ

Cet article a pour but de faire une réflexion sur le rapport existant entre la pseudoformation et la violence, en s'arretant surtout sur la détérioration des interventions existantes dans les rapports entre les individus et la société, caractériseée actuellement par la socialisation directe. On prétend que la socialisation directe remplit son rôle de support de la pseudoformation, car elle favorise la fixation des modèles de conduite propagés par l'industrie culturelle et d'autres agences extrafamiliales et, avec cela, elle potencialise la détermination sociale, en supprimant les expériences de formation nécessaires pour le développement de l'autonomie. On cherche à analyser de quelle façon ce processus psychosocial interfère sur la formation des personnes simultanément réfractaires à l'autorité des institutions de formation traditionnelles, comme la famille et l'école, et soumises à l'autoritarisme des leaders forgés par la psychodynamique des grupes et des masses dans lesquels aussi bien l'individualité du moi que l'auto-observance morale, fréquemment promue par l'instance superégoique, sont repris par des agences externes. La faible capacité qu'ont la famille et l'école d'exercer une intervention significative sur la constitution de la personnalité légitime l'internalisation des modèles de conduite stéréotypés: la constitution du moi à travers l'internalisation des standards hétéronomes fait partie du violent processus d'adaptation sociale qui mène à la barbarie. Ajustées à la société administrée, les personnes privées d'un moi minimement différencié se convertissent simultanément en victimes de la violence sociale et en bourreaux de leurs semblables. Comme ils ne peuvent se constituer en individus autodéterminés, ils succombent à l'abandon et se lient sans résistance à des idéologies irrationnalistes et aux succédanés contemporains popularisés, perçus comme des points de contact avec leurs besoins psychologiques non satisfaits. Avec cela, la psychologie des masses se superpose à la pychologie individuelle, de sorte que l'individualité déformée se convertit en individualisme brutal: incapable de réfléchir à leurs propres besoins pressants, les hommes typifiés trouvent dans la psychodynamique de masses les conditions pour extravaser la destructivité qu'ils ont développée comme pré-condition pour l'ajustement à la barbarie disséminée socialement.

Mots-clés: violence, pseudoformation, individu, personnalité, théorie critique.


 

 

Pseudoformação e violência: impactos da socialização direta na constituição da personalidade

Frente ao reducionismo com que o problema da violência tem sido tratado pela opinião pública brasileira1, o que resulta no consequente empobrecimento da percepção geral a respeito dos fatores que a favorece, torna-se importante compreender o modo como o tipo de formação atualmente disseminado, a pseudoformação (Adorno, 1959/1986), intervém no modo como os indivíduos reagem à barbárie, o que pode levá-los a sucumbir aos apelos dela. Além da influência das relações hierárquicas que permeiam os âmbitos da família e da escola e da socialização obtida por meio da inserção nos grupos sociais, em geral caracterizados por relações de massa, a constituição da personalidade também sofre a influência da indústria cultural. Essa se converte em um importante meio da pseudoformação, ao substituir experiências formativas relacionadas aos conflitos familiares por uma relação direta e não refletida com os padrões e as normas sociais típicas de uma sociedade opressiva.

Nesse sentido, ao analisar os elementos repressivos da civilização contemporânea, Marcuse (1955/1981) indicou que a organização repressiva dos impulsos instintuais se tornou coletiva, caracterizando uma nova forma de socialização:

A organização repressiva dos instintos parece ser coletiva, e o ego parece ser prematuramente socializado por todo um sistema de agentes e agências extrafamiliares. Ainda no nível pré-escolar, as turbas, o rádio e a televisão fixam os padrões para a conformidade e a rebelião; os desvios do padrão são punidos não tanto no seio da família, mas fora e contra a família. (Marcuse, 1955/1981, p. 97)

Dentre as agências extrafamiliares mencionadas por Marcuse, além das turbas, constam o rádio e a televisão, que são partes elementares da indústria cultural. Dotada de grande poder de mobilização de conteúdos psíquicos, ela se converte em um importante fator na constituição da personalidade. Conforme a análise de Adorno (1962/1986), a indústria cultural é um dos órgãos responsáveis por fazer a propaganda a favor do mundo administrado: "se transforma em public relations, a saber, a fabricação de um simples assentimento, sem relação com os produtores ou objetos de venda particulares" (p. 94). A partir dos conteúdos psíquicos mobilizados nos próprios consumidores, inclusive da necessidade de serem enganados, ela produz um impacto decisivo na formação de um juízo geral acerca da realidade, que a converte em algo semelhante às frequentes interpretações delirantes que, com isso, a tornam relativamente aceitável. Submersas no cotidiano, grande parte das pessoas formam sua compreensão do mundo a partir das referências oferecidas pela televisão e pelo rádio; os quais, por comporem um poderoso aparato da sociedade de massas, fazem com que as mensagens por eles transmitidas ressoem no cotidiano como um ruído onipresente, constituindo uma atmosfera claustrofóbica.

A fraca capacidade da família de exercer mediação significativa no processo de formação psíquica converte-se em condição favorável à ampliação do alcance da indústria cultural. Essa, ao retroalimentar a fragilidade da instituição - família - que ela mesma ajudou a debilitar, delineia um círculo perverso. Além da exacerbação do pensamento estereotipado, ela fixa padrões de comportamento aos quais as pessoas devem se esforçar para assemelharem-se. Dentre os elementos da realidade que lhe servem de matéria-prima para a produção sensacionalista de informações aparentemente confiáveis e definitivas a respeito dos acontecimentos incompreensíveis para os homens, a exposição hiper-realista da violência real, presente de maneira difusa no cotidiano, é fortemente explorada pelos programas de jornalismo policial e noticiários sensacionalistas, contribuindo para a intensificação do clima de horror: reproduzem a violência inerente à estrutura da sociedade capitalista - a violência do Capital - tanto no conteúdo de seus produtos quanto na forma como os veiculam, e, principalmente, produzem intervenções altamente violentas nas esferas do pensamento e das emoções, corroborando o enfraquecimento das disposições psíquicas necessárias para que indivíduos, sobretudo aqueles que estão em processo de formação, percebam e resistam à dominação.

A especulação efetuada por meio da indústria cultural tanto exerce influência sobre a consciência geral quanto contribui para a cristalização de valores e atitudes, principalmente de crianças e adolescentes. Na contramão das sugestões apresentadas por Adorno (1965/2000) para que Auschwitz não voltasse a se repetir, a esfera da cultura que mais tem progredido em seu potencial de influência - tornando-se uma poderosa fonte de referência, inclusive, para crianças pré-escolares - tem se consolidado como nítida expressão da barbárie. Não somente transmite de modo hiper-realista a violência concreta produzida a partir das relações sociais degradadas, mas deteriora a sensibilidade necessária para que se possa perceber a opressão difusa.

Dentre os grupos de pessoas em processo de formação que poderiam opor resistência a essa tendência nefasta, mas que infelizmente também estão se tornando cada vez mais integralmente neutralizados, os jovens representam um grupo especial, pois sua condição social marcada pela frustração do potencial subversivo constitui um importante elemento para a compreensão do poder da indústria cultural. A despeito dos conflitos de identidade e de adaptação que marcam essa fase da vida, boa parte dos produtos desse importante veículo de transmissão e de mercantilização da cultura para as massas é dirigida para eles. No que diz respeito ao universo da violência, nota-se que os jovens são simultaneamente convertidos em consumidores, protagonistas e vítimas. Inseridos em um contexto social caracterizado pela violência estrutural do sistema produtivo e pela violência arraigada na cultura, eles não apenas são as vítimas preferenciais da violência letal, mas também têm se convertido em seus principais protagonistas. A precocidade com que a violência simultaneamente difusa e onipresente se torna central em suas vidas, convertendo-se em um importante mediador do desenvolvimento psíquico, reforça a necessidade de que a psicologia dotada de potencial negativo, sobretudo uma psicologia que se atenha às determinações sociais, produza explicações consistentes acerca do modo como a violência socialmente produzida se instaura na personalidade dos indivíduos em desenvolvimento. A cooptação da juventude pelas forças regressivas e destrutivas da cultura remete à preocupação com o estágio atual da formação cultural

Movido pela intenção de contribuir para o esclarecimento desta questão, o presente artigo tem por objetivo analisar as vinculações tácitas entre o tipo de formação cultural que se tornou predominante na sociedade contemporânea, estruturada a partir de formas de controle dirigidas à dimensão dos impulsos, e a violência difusa na cultura, presente nas instituições sociais formativas e nas relações sociais cotidianas.

Para tanto, pretende-se iniciar com a apresentação de algumas considerações teóricas fundamentadas na obra de autores da primeira geração da Escola de Frankfurt - Theodor W. Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse - para, com o auxílio delas, avançar na delimitação de fenômenos empíricos recentes que expressam o modo como a violência social difusa medeia o desenvolvimento dos indivíduos, influindo, sobretudo, na configuração de sua personalidade. Identificada com a propagação de informações vazias de espírito e com a produção desenfreada de entretenimento a todo custo, a noção corrente de formação não diferencia adequadamente as instituições historicamente responsabilizadas pela educação - a escola e a família - e as demais agências sociais ligadas à propagação da cultura de massas. Além do impacto imediato que essa regressão do conceito imprime à experiência concreta daqueles que se deparam com o desafio da apropriação da cultura, a filtragem exercida pelos meios de comunicação de massa constitui um sistema explicativo a respeito da realidade imediata. No caso das inúmeras referências cotidianas ao problema da violência, torna-se importante analisar o modo como situações abomináveis, exposição de imagens e narrativas de ocorrências bárbaras, tomadas como fins em si mesmas, são repetidamente apresentadas como espetáculos convenientes à manutenção da audiência. Isso contribui tanto para a naturalização de formas de relações sociais marcadas pela frieza e pela hostilidade quanto para a intensificação da sensação de insegurança e o subsequente apelo por leis e intervenções punitivas mais severas.

A exposição de crianças e adolescentes a conteúdos da indústria cultural (Adorno, 1962/1986) e relatos proferidos espontaneamente por amigos e familiares nas relações sociais cotidianas - ambos caracterizados pelo teor altamente violento dos conteúdos exibidos e das formas de exibição -, bem como a participação cada vez mais precoce de adolescentes e jovens adultos na produção de diversas formas de violência observáveis, sublinha a importância de se investigar o mais cuidadosamente possível os limites e as contradições da formação cultural; e de se destacar aspectos da cultura que favorecem esse tipo de participação precoce em atividades criminosas.

Diante do fracasso das políticas públicas voltadas para a prevenção à violência, evidenciado pelo crescente número de jovens envolvidos em situações de transgressão às normas sociais e em agressões, a investigação científica comprometida com uma perspectiva crítica se depara com o desafio de contribuir para a constituição de uma práxis preventiva. Se superar a tendência tecnicista de reduzir a realidade a categorias rígidas do entendimento, o trabalho científico poderá contribuir para a constituição de um âmbito do pensamento e da ação capazes de opor resistência às tendências destrutivas dominantes, mas esse efeito depende da realização efetiva da crítica, sem a qual a constatação dos fatos da realidade cristalizada se converte em aceitação conformista da ordem existente. Contudo, a necessária realização da crítica não é um processo espontâneo atrelado à operacionalização dos procedimentos metódicos validados pela ciência contemporânea. Como Horkheimer (1937/1983) enunciou em sua análise da regressão da teoria a uma categoria coisificada, alheia a seu próprio objeto de investigação, a contraditória noção de teoria tradicional implica na transformação do pensamento em ideologia, o que impossibilita a crítica:

Na medida em que o conceito da teoria é independentizado, como que saindo da essência interna da gnose (Erkemntnis), ou possuindo uma fundamentação a-histórica, ele se transforma em uma categoria coisificada (verdinglichte) e, por isso, ideológica. (Horkheimer, 1937/1983, p. 121)

A crítica de Horkheimer à teoria tradicional atinge principalmente o emprego indiscriminado da lógica formal a problemas do conhecimento formulados a partir do interesse dominante, em geral, caracterizado pela reafirmação da necessidade de ajustamento à ordem social. Nesse processo, a investigação científica, estruturada de acordo com a divisão do trabalho, se afasta do objeto investigado, recaindo na aplicação esquemática de noções teóricas definidas a priori. A investigação científica inspirada na perspectiva crítica não ratifica a arbitrária divisão entre ciência e valor. Portanto, não se esquiva ao julgamento da realidade objetiva, empenha-se no confronto com as contradições que as condições materiais representam. Inclusive, no que concerne ao problema da violência, pode-se indicar que a investigação científica poderia resultar em uma importante contribuição para a compreensão do modo como os fatores que a favorecem se espraiam nas relações cotidianas, e ela, por fim, é explicada por meio da redução promovida pela indústria cultural. Por um lado, em razão de sua contribuição para o esclarecimento geral, a investigação científica é parte elementar da percepção objetiva da realidade e condição para a subsequente consciência a respeito dos fatores concretos que produzem a opressão e o sofrimento gerais; por outro, por seu caráter negativo, que compreende tanto a necessidade de se empreender todos os esforços possíveis para se frear o progresso da barbárie quanto a negação radical das condições de existência responsáveis pela proliferação dessas tendências destrutivas, favorece a transformação da consciência em práxis. Essa perspectiva crítica requer o rompimento com a suposta neutralidade científica, professada pela ciência positivista, e o posicionamento político claro a respeito das contradições fundamentais da sociedade capitalista contemporânea. Como concretizaram em sua análise da regressão cultural, que foi colocada em marcha inicialmente nas sociedades manifestamente totalitárias e, em seguida, também nas democracias formais, o tipo de análise e interpretação teóricas sugeridas pelos frankfurtianos é essencialmente crítica do objeto tratado, seja ele qual for. Segundo Horkheimer (1937/1983), essa particularidade certamente deveria ser um dos objetivos inerentes a toda teoria, mas, por não ser isso o que efetivamente ocorre nos diferentes domínios do saber técnico-científico, sobretudo mediante a generalização do modelo de ciência positivista, torna-se necessário afirmar a potencialidade intrínseca a essa noção de teoria, assim como o subsequente trabalho de elaboração teórica, como um dos principais fundamentos da teoria crítica da sociedade.

Tal entendimento, que tem implicações epistemológicas importantes para o estudo da relação entre teoria e investigação empírica - dentre os objetos de investigação escolhidos por essa tradição do pensamento crítico, destacam-se, principalmente, a sociedade e o indivíduo -, tem sua importância intensificada quando nos deparamos com questões tão urgentes para a vida prática como é a tarefa da contenção da barbárie. Portanto, mesmo reconhecendo os limites da práxis teórica frente aos complexos aspectos da existência concreta dos homens em sociedade, os quais, por vezes, somente podem ser pensados a partir de um alto grau de abstração, é com base nessa perspectiva imbuída do espírito da liberdade que o pensamento pode efetivamente cumprir sua função de crítica do objeto investigado; que verdadeiramente se torna capaz de lhe conceder primazia e confrontar sua dimensão empírica concreta. A título de exemplo, pode-se dizer que não foi casual o fato de os pensadores da Escola de Frankfurt terem preferido, na maior parte das vezes, elaborar estudos e análises de problemas circunstanciais, ligados às condições concretas da existência à qual também estavam subordinados. Suas críticas se voltaram para fenômenos dotados de importantes aspectos psicossociais, como: os determinantes objetivos e os fatores subjetivos que deram suporte ao nazifascismo; a relação entre a ideologia e a ciência tecnicista; as contradições presentes no âmbito da educação que prioriza a adaptação à realidade injusta em detrimento da constituição da consciência crítica; a regressão psíquica de inúmeras pessoas que, em razão da busca pela autoconservação, sacrificam os últimos resquícios da consciência, mutilando definitivamente o potencial de individuação que ainda possuíam.

Conforme se pode depreender das considerações de Adorno (1959/1986) a respeito da pseudocultura, a regressão da formação cultural não é um fenômeno redutível ao campo das artes e do pensamento filosófico, mas compreende também o âmbito da experiência psicológica. A incapacidade de os homens se apropriarem da cultura está relacionada ao empobrecimento das disposições subjetivas necessárias ao contato efetivo com a realidade. O desenvolvimento da individualidade é precondição para a aquisição das capacidades de formar conceitos e ter experiências. Quanto mais empobrecidas estão as instâncias psíquicas individuais, portanto, todo o mundo interno do sujeito, mais difícil se torna a relação da pessoa com a realidade, pois os aparelhos perceptivo e cognitivo não são independentes de aspectos concretos da personalidade. Portanto, além dos aspectos cognitivos, desenvolvidos principalmente por meio da formação escolar em instituições criadas para essa finalidade, a formação também compreende o desenvolvimento de aspectos afetivos ligados à constituição da personalidade. Fundamentais também à vida escolar, na qual interferem e são modificados a partir das experiências que essa instituição promove, tais aspectos se constituem principalmente em âmbitos informais como a família e os demais grupos com os quais as pessoas interagem ao longo de seu desenvolvimento físico e psíquico. Formação é simultaneamente formação escolar e formação do indivíduo. Se reduzida à esfera da apropriação da cultura por meio da escola ou outras instituições desse gênero, a noção de formação se torna ideológica, pois não permite analisar o papel do sujeito na apropriação da cultura, e faz parecer que o sujeito cognoscente é uma entidade abstrata, dissociada do corpo e suas emoções.

Com base no entendimento de que a pseudoformação consiste na proliferação de elementos opostos à própria formação, ultrapassando em muito o saber deficitário a respeito da realidade, é possível afirmar que sua relação com a violência é muito mais abrangente do que, em geral, estamos dispostos a admitir. Não se trata do grau de escolaridade daqueles que cometem crimes ou outras formas de agressão, mas do fato de a própria pseudoformação já ser um exemplo da violência cometida pela sociedade contra o indivíduo. Por isso, a análise da relação entre pseudoformação e violência requer o exame cuidadoso: de fatores que, de maneira repressiva, interferem no processo de formação do indivíduo; das formas de acesso e de exclusão à cultura; e dos modos de entrelaçamento dos elementos culturais regressivos com a estrutura de personalidade. Em uma sociedade caracterizada pela dominação do homem sobre o homem, na qual a exploração econômica representa uma das principais formas de violação dos direitos do outro, a violência se converte em um dos principais mediadores da formação psíquica. A constituição da própria individualidade ocorre no interior da família e sob a influência de uma série de outras agências sociais dotadas de grande poder de influência na definição dos padrões comportamentais e da estruturação da personalidade. O entendimento de que a formação cultural não se reduz a um processo meramente cognitivo, mas depende do desenvolvimento da personalidade, permite-nos considerar que o papel desempenhado pela escola é parcial. Os homens que desempenham as funções cognitivas necessárias à apropriação da cultura, somente as podem desempenhar na medida em que primeiramente desenvolveram as estruturas mentais essenciais para a percepção da realidade e para a execução do pensamento. Nesse caso, pode-se dizer que, realmente, falta a muitas pessoas a condição elementar para que possam desenvolver a consciência de si mesmas necessária ao pensamento crítico e, portanto, a condição a que foram compelidas guarda consonância com a constatação de Horkheimer (1946/2003) a ser retomada adiante, de que não basta ser um exemplar da espécie para ser um indivíduo.

A família, comumente reconhecida como agente responsável pela educação não formal, nesse caso, assume um papel de destaque que supera essa função, pois, realmente, não se limita a cumprir o papel de instituição social encarregada da socialização primária, mas sua implicação compreende um dos mais importantes aspectos da formação. Em seu núcleo psicodinâmico pode ocorrer a transmissão de valores e a fixação de padrões de conduta ajustados à ordem social; assim como, de modo contrário, o estabelecimento de uma dinâmica relativamente independente e, em muitos casos, oposta à ordem social, configurando condições favoráveis ao desenvolvimento de aspectos do caráter essenciais à realização da autodeterminação. Dentre os fatores que hoje interferem decisivamente na constituição do nível mais elementar da individualidade, a constituição de um eu minimamente diferenciado, pode-se dizer que a família ainda é um dos mais importantes, quer seja por exercer sua função formativa, quer seja por abdicar de seu poder mediativo, consentindo, e, por vezes, também legitimando os processos de socialização direta. Como Horkheimer e Adorno (1956/1978) bem fizeram notar, a socialização não configura um desafio tão complexo como muitos educadores querem fazer crer, mas sim, ao contrário, um processo quase automático, por meio do qual a totalidade social imprime nas pessoas um modo determinado de existência. Em geral, no processo da constituição do indivíduo, a socialização antecede a individuação; entra em curso antes mesmo que estejam presentes os elementos necessários à constituição do eu. Mesmo antes do nascimento da criança, os pais já possuem uma série de expectativas sobre como serão seus filhos, compondo uma versão idealizada de seus traços físicos e psíquicos. Por mais que a experiência concreta da convivência posterior supere essa idealização precoce, não se pode desconsiderar que tais experiências serão influenciadas por tais idealizações; em alguns casos, serão engendradas por elas. Isso significa que a identidade da pessoa tem início antes mesmo de sua existência concreta, compondo uma densa rede ante a qual a diferenciação somente ocorre mediante muito esforço.

O grande desafio para o sujeito em formação, portanto, é efetivar o processo de individuação; esse desafio demanda de cada um em particular um importante trabalho de diferenciação do eu para que chegue à autodeterminação. Horkheimer e Adorno (1956/1978) indicaram com precisão a importância da consumação desse processo para que, de fato, se possa denominar a pessoa por indivíduo:

O indivíduo surge, de certo modo, quando estabelece o seu eu e eleva o seu ser-para-si, a sua unicidade, à categoria de verdadeira determinação. Antes, a linguagem filosófica e a linguagem comum indicavam tudo isso mediante a palavra "autoconsciência". Só é indivíduo aquele que se diferencia a si mesmo dos interesses e pontos de vista dos outros, faz-se substância de si, estabelece como norma a autopreservação e o desenvolvimento próprio. (Horkheimer & Adorno, 1956/1978. p. 52.)

De acordo com essa definição, somente se torna indivíduo a pessoa que efetivamente conseguir desenvolver a autoconsciência. Tal condição, certamente, depende de importantes conquistas individuais e coletivas, não apenas no campo do espírito, mas principalmente no âmbito das relações materiais. Assim, segundo esse critério, fazer-se substância de si equivale a se reconhecer como sujeito da história e assumir as consequências dessa condição. Todavia, esse não é um processo automático, pois ser indivíduo no mundo administrado é uma condição amplamente negada pelas forças que mantêm a ordem estabelecida. Com isso, a individualidade somente se apresenta como processo, restando apenas algumas parcas possibilidades de posicionamento nessa direção. O critério fornecido pelos frankfurtianos para a definição da individualidade é ao mesmo tempo crítica das condições objetivas que a impedem.

De nossa parte, apesar de concordarmos com esse critério, pensamos que é importante ponderar acerca da importância dos estágios anteriores à conquista da autodeterminação, se não para a consolidação da individualidade, ao menos para o estabelecimento de formas de resistência à completa aniquilação dos homens. Desse ponto de vista, tais etapas não são menos importantes para a diferenciação, sobretudo se pensadas em um plano histórico.

Em relação ao indivíduo particular, esse processo de diferenciação ocorre inicialmente no campo psíquico, por meio da experiência propiciada pelos conflitos instalados ao longo do desenvolvimento da personalidade, sobretudo quando mediados ou propiciados pela família. A qualidade dos vínculos estabelecidos no interior dessa contraditória instituição social é um fator fundamental ao desenvolvimento das condições necessárias para que também os desafios posteriores possam ser enfrentados.

Ao questionarem a realização efetiva dessa condição elementar da vida humana, os frankfurtianos (Horkheimer & Adorno, 1956/1978; Horkheimer, 1937/1983; Marcuse, 1955/1981) nos forneceram elementos centrais para a clara percepção de que mesmo as formas de apropriação da cultura que se mostram eficazes à sobrevivência imediata, também reproduzem as limitações impostas à formação. Não somente a incapacidade de apropriação da cultura, mas também a redução do conhecimento a mero bem cultural constitui expressão da pseudoformação. A incapacidade de apropriação da cultura está relacionada ao fato de que muitas pessoas aceitam as informações superficiais divulgadas pelos meios de comunicação de massa como se fossem a expressão máxima do saber científico; que, desse modo, estaria sendo popularizado. A redução do conhecimento a bem cultural retira da cultura o que ela tem de principal, convertendo-a em mercadoria adequada a relações coisificadas.

Retomando e desenvolvendo o que foi apontado sucintamente em momento anterior, a pseudoformação é um processo psicossocial instalado nas estruturas de personalidade e funções cognitivas dos indivíduos em decorrência do progresso da regressão cultural objetivamente produzida pelo modo de organização social. Como foi destacado por Adorno (1959/1986), não se trata de uma apropriação mediana do saber, nesse caso, caracterizado como saber parcial, mas sim da existência de um elemento imanente contrário à realização daquilo que é essencial à própria noção de indivíduo: a autonomia. Esse processo conserva elementos autodestrutivos, pois, não somente limita, mas, principalmente, impede a apropriação adequada da cultura e sua subsequente experimentação, o que gera um forte impacto desagregador sobre os indivíduos que a reproduzem. Em um sentido ampliado, pode-se dizer que a violência exercida pela sociedade sobre os indivíduos, inclusive por meio da exploração econômica, encontra pontos de apoio nessa dimensão particular da cultura. Ao deteriorar o núcleo da própria individualidade, a pseudoformação ocorre como violência da sociedade contra o indivíduo. A enorme pressão a que é submetido o indivíduo na esfera da produção, materializada no ato brutal da exploração da sua força de trabalho, é aumentada pelo enfraquecimento sistemático dos seus recursos subjetivos na esfera da cultura, de modo que tanto o seu corpo quanto o seu espírito se tornam conjuntamente dominados pelas forças conservadoras do status quo hegemônico.

El seudoculto se dedica a la conservación de sí en sí mismo; no puede permitirse ya aquello en lo que, según toda teoría burguesa, se consumaba la subjetividad - la experiencia y el concepto - con lo que se socava subjetivamente la posibilidad de la formación cultural tanto como objetivamente está todo contra ella. (Adorno, 1959/1986, p. 194.)

A destruição dos dispositivos psíquicos responsáveis pela compreensão dos fatores materiais e culturais que determinam a existência concreta dos homens, sobretudo daquelas disposições mentais que tornam suportável a percepção nítida das contradições sociais, favorecem o desenvolvimento de atitudes críticas ante as limitações cotidianamente impostas, é um processo demasiado concreto. E sua objetividade tem implicações importantes para a formulação de um conceito objetivo de autonomia; que não pode ser reduzido à sua expressão abstrata. Como ideal ainda não plenamente realizado, a autonomia afirma-se como máxima abstração de possibilidades concretas de efetivação da liberdade e responsabilidade humanas; mas, em razão mesmo da materialidade das dimensões por meio das quais se realizaria, seu caráter abstrato logo se converte em força de negação das limitações impostas pela realidade heterônoma. Apesar de conter em si mesma um importante momento de abstração, decorrente da capacidade de livre reflexão do sujeito, ainda assim, não se pode falar de autonomia de maneira meramente abstrata. Ela é sempre uma dimensão concreta da vida social. Portanto, no que concerne ao âmbito da formação cultural, o fracasso individualmente experimentado quanto à sua conquista já é efeito da falência objetiva da cultura.

As propostas de formação para a autonomia que negligenciam as condições efetivas de participação consciente dos homens nas esferas da vida pública, diretamente responsáveis pela definição das condições de existência - a política, a economia e a cultura - se revelam, em razão de sua franca contradição com a realidade, absolutamente equivocadas. A independência financeira das classes abastadas não garante a elas mais do que a injusta vantagem de não precisarem se preocupar com a falta de liberdade geral, com o fato de a determinação social, que atinge a todos, não afetar as vantagens sociais e econômicas que possuem em relação às massas de não beneficiados. Na realidade, a autonomia do indivíduo é falsa se as condições que propiciam sua realização particular dependem, precisamente, da falta de autonomia do todo (Adorno, 1968/2004).

Para além das inúmeras manifestações da barbárie que imprimiram o horror e ainda assombram a história humana, há uma dimensão da violência que é inerente ao próprio processo da formação cultural, por vezes, caracterizado como formação para o ajustamento ou formação para a barbárie. Essa forma de violência tácita equivale à deterioração da cultura; manifesta-se em situações cotidianas comumente percebidas como naturais. Seu caráter difuso favorece o arraigamento da barbárie na estrutura da sociedade, o que gera uma cooperação maligna entre a infraestrutura social, a partir da qual a determinação social se efetua, e a cultura assimilada pelos indivíduos. Concretamente, trata-se de uma relação de forças desigual, a partir da qual o indivíduo em formação é forçado a se ajustar às exigências sociais: em geral, com o risco de contribuir para a sua própria aniquilação.

Na sociedade administrada, a aquisição da cultura implica um esforço descomunal de ajustamento à forma e às condições de um modo de existência social que não valoriza a individualidade e sim os modelos pré-definidos de conduta, consumo e vinculação com as tendências dominantes. A pseudoformação equivale à violência que a sociedade "naturalmente" impõe aos indivíduos obrigados a se submeter para assegurar sua autoconservação.

Parte expressiva das ocorrências históricas que constituíram ameaças à continuidade da humanidade promoveram, principalmente, o enfraquecimento do indivíduo: a regressão da instância do eu, responsável pela percepção da realidade e pelo pensamento racional, necessários para que possa haver compreensão da realidade circundante e a subsequente possibilidade de intervenção nas esferas decisórias. Essa noção de indivíduo revela o quanto, apesar da obsessão da grande maioria das pessoas em relação à sua própria autoconservação, não há, na maior parte dos casos, um eu a conservar. Conforme menção anterior, Horkheimer (1946/2003) argumentou que o indivíduo, considerado como uma entidade histórica diferenciada, não significa "simplesmente a existência sensível e espácio-temporal de um membro particular da espécie humana, mas além disso tudo, a compreensão da sua própria individualidade como um ser humano consiste, inclusive, o reconhecimento de sua própria identidade." (p. 131). Em acordo com essa qualificação da noção de indivíduo é possível avaliar criticamente o caráter não casual da aniquilação da individualidade promovida por todos os totalitarismos. A violência presente de maneira difusa na democracia formal mantém viva a ameaça de recaída no totalitarismo. Sua destrutividade pode voltar a se intensificar se as condições materiais que produziram os totalitarismos voltarem a se estabelecer. Tal como a velha destrutividade fascista, a violência inerente à sociedade administrada também tende a prescindir do indivíduo; e essa tendência se afirma como pré-condição para o estabelecimento de sistemas manifestamente irracionais. O nazifascismo foi a síntese da aniquilação física e espiritual do indivíduo; sua sombra ainda subsiste nos sistemas democráticos.

A forma atual de totalitarismo que continua existindo sob as contradições da democracia formal, mesmo não configurando modelos políticos e econômicos idênticos aos nazista e fascista, mantém alguma semelhança com aqueles modelos, estabelecida, sobretudo, pela condição de imensa opressão que se abate sobre tudo que tenta escapar à padronização. No capitalismo tardio2 impera o valor de troca e o culto à mercadoria. Nesse contexto histórico-cultural, os homens se desenvolvem como elementos de uma massa: não se constituem como entidades históricas suficientemente diferenciadas, capazes de estabelecer relações de identidade e de resistência frente aos modelos hegemônicos.

Sob o predomínio dessa versão desencantada do capitalismo, marcado, sobretudo, pelo fetichismo exacerbado que inverte por completo a relação entre os produtores e as mercadorias, as tendências totalitárias da cultura realizam-se na própria estrutura de personalidade. Os homens são socializados a partir de padrões de ajustamento que tolhem o desenvolvimento da autonomia. A socialização direta encarrega-se de imprimir os padrões e neutralizar os potenciais de autonomia que a diferenciação formativa poderia ativar. Nesse sentido, é a aniquilação do ser humano que se fortalece. Além da aniquilação física do corpo, produzida pelas condições de vida e de trabalho que o degradam e subordinam à produção irracional, ocorre também a aniquilação do espírito, que privado de sua capacidade de diferenciar-se, regride à animalidade que Marx (1844/2004), nos Manuscritos econômicos-filosóficos, denunciou como resultado do processo de produção capitalista; portanto, ocorre a aniquilação daquelas disposições mentais que os tornam capazes de superar sua herança primitiva, animal, e se constituírem como seres capazes de uma apropriação esclarecida da cultura, com recursos cognitivos e psíquicos suficientes à elaboração conceitual e à experiência. A cultura caracterizada pela dominação torna-se falsa, pois deixa de exprimir os potenciais humanos; converte-se em pseudocultura. A sustentação desse estado regressivo da cultura é um processo complexo que abrange tanto os modos concretos de administração das relações produtivas, as quais permanecem relações materiais de dominação capitalista, quanto o desenvolvimento de uma generalizada predisposição psíquica para a aceitação dessas tendências objetivas. O psíquico já se constitui em resposta às pressões culturais e traz incrustradas em si as marcas indeléveis da dominação que a cultura reproduz.

Com base no conceito de pseudoformação, é possível ponderar que até mesmo as características de personalidade aparentemente isentas de importância social, sobretudo por se relacionarem com aspectos muito particulares da pretensa vida intrapsíquica, são mediadas pela força determinante da socialização. Ao se mostrar fechada em si mesma, como realização plena da alienação social, a personalidade individual se revela - exatamente por meio desse seu traço característico: o individualismo egoísta extremo - consonante com as tendências centrais da cultura da dominação. Conforme explicitado tanto por Freud (1921/2011) quanto por Adorno (1955/1986), a personalidade individual traz em si mesma as marcas da sociedade na qual se constitui; sendo essa uma sociedade fundamentada na violência da totalidade coercitiva sobre a parte impedida de se diferenciar, é muito provável que também as disposições psíquicas individuais reproduzam sua forma.

Tal consideração, contudo, não é autoexplicativa, portanto, há a necessidade de se discutir como e em que grau esse processo ocorre. A tese formulada não só pelos autores mencionados (Adorno, 1959/1986; Horkheimer, 1946/2003), mas também Marcuse (1955/1981), aponta para a relação entre personalidade e ideologia. Segundo algumas dessas considerações, pode-se indicar que o desenvolvimento inadequado de alguns dos importantes aspectos da personalidade, em especial, a regressão das instâncias psíquicas que se encarregariam do confronto com a realidade opressiva, gera uma situação generalizada de suscetibilidade à sedução da barbárie. Inclusive, a barbárie nazifascista contou em larga medida com esse tipo de caráter regredido, comum aos membros das massas. As pessoas que sucumbiam sem resistência à sedução exercida pelos agitadores fascistas (Horkheimer & Adorno, 1978), recaindo na mais intensa massificação, já carregavam as marcas da tipificação social; em geral, a instância egóica apresentava-se nelas imensamente debilitada. Assim, exatamente por essa razão, tornavam-nas mais susceptíveis à ilusão propalada pelas ideologias nazifascistas que lhes oferecia um tipo de gratificação, artificialmente elaborado com fins de dominação, de suas necessidades reprimidas, sobretudo daquelas ligadas ao narcisismo e aos impulsos destrutivos, imediatamente correspondentes às necessidades mais frequentes de um eu debilitado.

O reconhecimento do caráter histórico das instâncias psíquicas que serviram de base para a elaboração da teoria freudiana, permite averiguar o quanto as funções outrora desempenhadas por essas instâncias pode mudar de acordo com as exigências de cada sociedade. Não seria exagero dizer que o tipo de totalitarismo que hoje prolifera no seio de nossas instituições pseudodemocráticas requer autômatos no lugar dos indivíduos. Conforme Adorno (1955/2004) indicou, em sua análise da relação entre psicologia e sociologia, o tipo de homem que se tornou adequado ao funcionamento social age mecanicamente em resposta aos estímulos externos que lhe são apresentados; reproduz o traço objetivo sem refletir. Segundo ele, esses tipos não apresentam um eu suficientemente desenvolvido, mas também não agem de maneira que se poderia denominar inconsciente: "Acordes con el tiempo son esos tipos que ni poseen un yo ni actúan propiamente de un modo inconsciente, sino que reproducen de forma refleja el rasgo objetivo" (Adorno, 1955/2004, p. 76).

Com base nas análises frankfurtianas é possível perceber o processo histórico implicado nas condutas antissociais de pessoas, sobretudo jovens, que simultaneamente rejeitam a autoridade das instituições formativas tradicionais, como a família e a escola, e se submetem à autoridade autoritária de líderes forjados pela psicodinâmica das massas nas quais tanto a individualidade do ego quanto a auto-observância moral, exercida pelo superego, são encampadas por agentes externos. O ego debilitado torna-se uma presa fácil da força de agentes externos que são frequentemente alçados à condição de líderes das massas. O papel das instituições formativas tradicionais, nesse caso, é usurpado por novos agentes formativos como os grupos de referência para fixação de padrões de comportamento e os ideais subjacentes nos variados canais de comunicação e entretenimento que compõem o sistema da Indústria Cultural.

Se, de fato, há continuidade entre a velha e a nova destrutividade, entre a barbárie atinente aos regimes totalitários e a violência não menos totalitária do mundo administrado, é na igualmente perversa deterioração da consciência das massas que ela se expressa. Modos de configuração da subjetividade instalados pelos totalitarismos da primeira metade do século XX se perpetuaram nas décadas seguintes e se mantêm como forças determinantes até o momento histórico atual. Por exemplo, as mudanças observadas na estrutura e na psicodinâmica da família pelos pesquisadores do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt em meados da década de 1930 se intensificaram com o progresso da Indústria Cultural. O equilíbrio já tênue entre a autoridade paterna decadente e o autoritarismo dos métodos disciplinares das famílias alemãs do período posterior à Primeira Guerra favoreceram a proliferação de traços de personalidade autoritários. A argumentação de Horkheimer e Adorno (1956/1978) a respeito das implicações do declínio da autoridade paterna para o processo de individuação pode ser complementada pela análise empírica minuciosa que Frenkel-Brunswik (1950/1965) fez, no contexto da pesquisa A Personalidade Autoritária, a respeito dos elementos que intermedeiam as relações entre os pais e as crianças, sobretudo daqueles que se relacionam com os modelos disciplinares adotados: severa imposição de regras versus assimilação de princípios.

A hipótese de que uma educação familiar autoritária estaria relacionada com o desenvolvimento de personalidades inclinadas ao fascismo, deve ser pensada à luz das considerações teóricas de Horkheimer e Adorno (1956/1978) acerca do declínio da autoridade paterna. Segundo estes autores, na Alemanha pré-nazista já se apresentava um importante enfraquecimento do pai, havendo, portanto, necessidade de se examinar com mais cuidado a afirmação, muitas vezes precipitada de que o excesso de autoridade teria sido um dos principais elementos psicológicos da formação de personalidades condizentes com o fascismo. Ao que tudo indica, ambos os aspectos são complementares; de modo que parece ser absolutamente coerente que haja declínio da autoridade e adoção de procedimentos disciplinares autoritários simultaneamente. Se a autoridade possui uma dimensão dialética que a torna um momento fundamental da formação do ego, os métodos educacionais autoritários, ao contrário, parecem ser apropriados, precisamente, àquelas situações comuns ao cotidiano das famílias e das escolas em que a atitude desafiadora da criança em desenvolvimento não aceita limites mesmo que pautados em princípios racionais. No primeiro caso, o conflito de autoridade reserva a ela o potencial de particularização de conflitos mais amplos, difusos na vida social e sintetizados na relação dos filhos com os pais; no segundo, o enfraquecimento das referências de autoridade impossibilita a experiência particularizada desses conflitos, de modo que a vitória sobre o pai acaba por significar quase que imediatamente a afirmação dos modelos externos à família, adotados sem reflexão e difíceis de questionar por não apresentarem pontos de vinculação particularizada. A identificação com o pai, permeada pela experimentação ambivalente dos sentimentos de amor e ódio, permitia que ele fosse aceito como um modelo formativo e que, nessa condição, também pudesse ser superado, criando oportunidade para que a criança afirmasse o seu eu em oposição ao modelo introjetado, com isso, diferenciando-se: tornando-se um indivíduo. De modo distinto, a identificação com os modelos padronizados impostos pelos meios de comunicação de massa são absorvidos de modo totalitário, pois representa sempre um nível inalcançável da autoridade, protegido pela idealização coletiva de alguns ideais que frequentemente representam. A rebeldia em relação às autoridades tradicionais, sobretudo em relação à debilitada autoridade paterna, confunde-se com a subserviência à autoridade irracional e autoritária de lideranças que favorecem a satisfação do narcisismo e a liberação dos impulsos destrutivos.

O autoritarismo já esta presente na forma como os modelos veiculados pela indústria cultural são apreendidos e reproduzidos sem reflexão. Fixados como um referencial sacro em relação ao qual não é possível estabelecer conflitos particularizados, não há experiência formativa como decorreria do confronto com a autoridade paterna. A internalização desses modelos estereotipados danifica o processo de individuação. Não obstante, o autoritarismo também está presente nas respostas desesperadas que comumente os pais desbancados em sua capacidade de interferir nas escolhas dos filhos acabam adotando como forma de disciplinamento. A imposição de normas injustificadas e sem a vinculação afetiva necessária acaba por gerar outro nível de conflitos, não mais ligados à elaboração de conteúdos inconscientes, mas explicitamente ligados ao controle do comportamento. O autoritarismo surge, nesses casos, como forma de alívio para os pais que insistem em exercer alguma influência sobre a criança e não podem mais contar com o elemento da autoridade do qual eles mesmos abriram mão. Além da apropriação precoce do interesse infantil, mobilizado em torno do consumo de mercadorias, inclusive pela sedução exercida por seu valor de troca, a indústria cultural também corrobora o enfraquecimento da família, respaldando-se na função do especialista. Com frequência, o discurso do especialista é convocado a legitimar a imposição da racionalidade tecnicista à vida privada. Dentre as expressões corriqueiras dessa forma de invasão da vida privada, o reality show SuperNanny é um bom exemplo de como o discurso pseudocientífico supre as lacunas deixadas pela débil capacidade da família se responsabilizar pela formação das crianças (Meurer, 2008)

No vácuo deixado pela frágil mediação exercida pela família em relação à autoridade, se fortalecem os mecanismos de socialização direta. Os diferentes âmbitos de referência para a criança em formação parecem gozar do mesmo elemento em comum: o fato de se estabelecerem como dimensões naturalizadas. Conteúdos externos são fixados nas relações interpessoais como modelos rígidos aos quais se deve adaptar para que, com isso, se garanta a inserção nos grupos de referência. Não somente a televisão, o rádio e as turbas, como mencionados por Marcuse (1955/1981), mas também a internet, com todas as suas inovadoras técnicas de comunicação tecnológicas, concretizadas no tipo de linguagem e na qualidade dos vínculos estabelecidos por meio das redes sociais, estabelecem um contexto no qual os padrões sociais e as tendências hegemônicas da moda e da moral alcançam os indivíduos de maneira direta, sem mediações. A indústria cultural modifica substancialmente as possibilidades de constituição de uma estrutura psíquica diferençada e o desenvolvimento de condições espirituais favoráveis à resistência ante as tendências sociais destrutivas. Com o empobrecimento da cultura em razão da organização social capitalista, o ajustamento ao modus operandi da sociedade industrial tornou-se parte das exigências impostas às pessoas em formação desde os primeiros anos de vida (Marcuse, 1963/1998). A mediação exercida pela família cumpriu, ao longo da história moderna, um papel importante na particularização dos conflitos sociais, espelhados no interior da família e de sua subsequente psicodinâmica, o que permitia aos jovens em desenvolvimento encontrarem nos pais modelos de comportamento com os quais se identificavam e experimentavam importantes conflitos formativos. Contudo, com o enfraquecimento dessa mediação da família, os modelos adotados passaram a ser extraídos do universo cultural que compõe o campo de socialização desses jovens. Quando faltam também outros modelos significativos e particularizados, os padrões produzidos pela indústria cultural tornam-se as principais referências, caracterizando uma forma de socialização direta (Marcuse, 1955/1981). Em processos de formação assim caracterizados, a autoridade das figuras parentais tende a se converter mais facilmente em expressão de debilidade ou em intervenções autoritárias, podendo haver clara correspondência entre as duas formas: a debilidade produz um tipo de desespero somente suportável por meio de ações que reproduzem a hierarquia social em contextos nos quais a humilhação possa ser vivida de modo não ameaçador, voltada para os mais fracos, como muito frequentemente são as crianças em desenvolvimento. Quer seja por meio da relação com grupos de referência no bairro, na escola, no clube etc. ou da tipificação geral reforçada pelos agentes da indústria cultural - o rádio, a televisão, a internet, as revistas - poderosos processos psíquicos são mobilizados em torno do ajustamento dos homens à vida social degradada. Por uma via diferente da trilhada por Adorno (1959/1986), que denunciou a regressão da formação cultural e sua subsequente substituição por um sucedâneo muito mais pernicioso, a pseudoformação, Marcuse (1963/1998) também analisou o modo por meio do qual a sociedade sustentada na falência da autoridade paterna propicia a formação psíquica na massa e por meio da massa:

Na sociedade como um todo, o progresso técnico e a coexistência global de sistemas sociais opostos entre si conduzem a uma obsolescência do papel e da autonomia do sujeito econômico e político. O resultado é a formação do ego no seio das massas e através das massas, que dependem da liderança (Führung) objetiva, reificada, da administração técnica e política. Esse processo é promovido na estrutura psíquica pela decadência da imagem do pai, pela separação entre ideal do ego e ego e pela transferência do ideal do ego para um ideal coletivo, assim como por um modo de dessublimação que intensifica o controle social da energia libidinal. (Marcuse, 1963/1998, p.108)

A fraca capacidade da família e da escola de exercerem mediação significativa na constituição da personalidade e a crescente imposição de modelos de consumo e de valorização de aspectos subjetivos com base nos valores estipulados pelo capitalismo tardio atestam o grau de reificação ao qual os homens estão reduzidos. Não podendo se constituir como indivíduos dotados de autonomia, reduzidos a coisas impossibilitadas de se reconhecerem no mundo que indiretamente produzem, os homens recolhem-se na alienação extrema e acabam por encontrar nas ideologias radicais os pontos de contato com suas necessidades psicológicas insatisfeitas. Com isso, destaca-se a força da reificação precoce que atinge os jovens em formação por meio da esfera do consumo de mercadorias materiais e culturais pouco significativas em termos de sua formação ou da supressão de necessidades básicas (Adorno, 1959/1986), mas são percebidos como imensamente importantes em termos da constituição de determinados modelos identitários. A imagem estereotipada do sucesso financeiro tem cumprido papel importante na formação de jovens vitimados pelo processo social. Não somente a privação do acesso a bens materiais a uma grande parcela da população, mas, principalmente, os danos causados pelo próprio processo formativo - decorrente da socialização direta - têm contribuído para que cada vez mais cedo as pessoas pressintam a debilidade objetiva como necessidade de compensações por meio do consumo desenfreado e da identificação com modelos identitários de força e poder, mesmo que criminosos ou antissociais.

A psicologia das massas sobrepõe-se à psicologia individual, de modo que a individualidade mal constituída em razão do empobrecido processo formativo se converte em individualismo brutal. O notório descontrole dos impulsos destrutivos revela a falta de referenciais morais internalizados. Os ideais intrapsíquicos que poderiam servir de parâmetros para a constituição de personalidades equilibradas, com adequado controle interno da agressividade, são buscados em figuras de autoridade externas, em geral portadoras de forte conteúdo narcisista com os quais os jovens rebeldes se identificam.

À opressão social objetiva acrescenta-se a falta de expectativas e o sentimento de impotência (Horkheimer, 1946/2003). Tomados pela claustrofóbica sensação de aprisionamento nas malhas sociais, os homens experimentam a internalização da impotência produzida nas relações objetivas sem que as tradicionais mediações, como a família e a formação escolar, representem oportunidades de elaboração ou de resistência às exigências de ajustamento. A possibilidade de encontrar refúgio na família sofreu o impacto das mudanças transcorridas na sociedade, sobretudo em decorrência das condições geradas pelas mudanças na esfera das forças produtivas, como o desenvolvimento tecnológico e a organização monopolista da produção material e cultural (Horkheimer & Adorno, 1956/1978), que acentuou ainda mais a disparidade de forças entre o indivíduo a totalidade social. Grande parte das pessoas não encontra referências familiares que julguem ser suficientemente fortes e modelos de sucesso. A impotência retirou dos homens o status de provedor da família e das mulheres o caráter amoroso, que durante séculos foi um dos únicos reservatórios da sensibilidade formativa (Horkheimer & Adorno, 1956/1978, Matos, 1989). O pai tornou-se facilmente substituível por modelos mais fortes e mais poderosos do que ele, muitos dos quais oferecidos pelo mundo da brutalidade e do crime. A mãe tornou-se similar ao pai; passou por um intenso processo de virilização por meio do qual adquiriu parte do caráter masculino (Horkheimer & Adorno, 1956/1978.

A sedução exercida pela barbárie sobre os homens que se encontram massificados é favorecida pela incapacidade neles predominante de refletirem sobre suas necessidades prementes. A frieza afetiva arraigada na cultura competitiva e o predomínio da racionalidade tecnológica sobre a capacidade de reflexão crítica, produzidas pela pseudoformação generalizada, formam o solo fértil para o desenvolvimento das tendências destrutivas presentes na personalidade contraditória que se constitui em resposta às exigências de adaptação extrema à realidade hierárquica.

Sem que seja possível, nas dimensões deste ensaio, avançar mais na exploração dos elementos teóricos identificados, é importante destacar que o estudo da socialização direta (Marcuse, 1955/1981) e de seu papel na introjeção de padrões de atitudes ajustados à sociedade hierárquica em que vivemos (Adorno, 1955/2006; Freud, 1921/2011) é essencial para que se possam compreender as razões da violência típica do mundo administrado. Se nele há valorização da força e de atitudes agressivas, é de se supor que, quanto mais direta for a socialização, mais essas características tenderão a ser internalizadas pelos jovens em formação e, dependendo do autocontrole que desenvolvem em relação a seus impulsos internos e às condições concretas nas quais vivem, podem encontrar na violação da lei uma das poucas formas de satisfazerem suas necessidades prementes, inclusive a de serem efetivamente um eu.

 

REFERÊNCIAS

Adorno, T. W. (1986). Teoría de la pseudocultura. In T.W. Adorno & M. Horkheimer (Orgs.), Sociológica (pp.175-199). Madrid, Taurus. (Originalmente publicado em 1959)        [ Links ]

Adorno, T. W. (1986). A indústria cultural. In G. Cohn (Org.), Theodor W. Adorno: Sociologia (pp. 92-99). São Paulo, Ática. (Originalmente publicado em 1962)        [ Links ]

Adorno, T. W. (2000). Educação após Auschwitz. In T. W. Adorno, Educação e emancipação (2a ed., pp. 119-138). São Paulo: Paz e Terra. (Originalmente publicado em 1965).         [ Links ]

Adorno, T. W. (2004). Sobre la relación entre sociología y psicología. In T. W. Adorno, Escritos sociológicos I (Vol.8, pp. 39-78, Coleção Obra Completa). Madrid: Akal. (Originalmente publicado em 1955).         [ Links ]

Adorno, T. W. (2004). Capitalismo tardio ou sociedade industrial? In T. W. Adorno, Escritos sociológicos I (Vol.8, pp. 330-344, Coleção Obra Completa). Madrid: Akal. (Originalmente publicado em 1968).         [ Links ]

Frenkel-Brunswik, E. (1965). Los padres y la niñez a través de las entrevistas. In T. W. Adorno, E. Frenkel-Brunswik, D. J. Levinson, & R. N. Sanford, La personalidad autoritaria (pp. 327-372). Buenos Aires: Proyección. (Originalmente publicado em 1950);         [ Links ]

Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do Eu. In P. C. Souza (Coord., Trad.), Psicologia das massas e análise do Eu e outros textos (1920-1923), Sigmund Freud - Obras Completas (Vol. 15, pp. 13-113). São Paulo: Companhia das Letras. (Originalmente publicado em 1921)        [ Links ]

Horkheimer, M. (1983). Teoria tradicional e teoria crítica. In Z. Loparie, & O. B. F. Arantes (Orgs.), Textos escolhidos: Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Jürguen Habermas (pp. 115-154). 2º ed. São Paulo, Abril Cultural. [Coleção Os Pensadores, v. 48]. (Originalmente publicado em 1937)        [ Links ]

Horkheimer, M. (2003). Eclipse da razão. São Paulo, Centauro. (Originalmente publicado em 1946)        [ Links ]

Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1978). Temas básicos da sociologia. São Paulo, Cultrix. (Originalmente publicado em 1956)        [ Links ]

Marcuse, H. (1981). Eros e civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 8a ed. Rio de Janeiro, Guanabara/Kogan. (Originalmente publicado em 1955)        [ Links ]

Marcuse, H. (1998). A Obsolescência da psicanálise. In H. Marcuse, Cultura e sociedade (Vol. 2,pp. 91-111). Rio de Janeiro: Paz e Terra. (Originalmente publicado em 1963).         [ Links ]

Marx, K. (2004). Manuscritos econômicos-filosóficos. São Paulo: Boitempo. (Originalmente publicado em 1844)        [ Links ]

Matos, O. C. F. (1989). Os arcanos do inteiramente outro: a Escola de Frankfurt, a melancolia e a revolução. São Paulo, Brasiliense.         [ Links ]

Meurer, F. R. (2008). TV e cuidado infantil: SuperNanny e as esquematização da ordem familiar. In Colóquio Internacional Televisão e Realidade, 21 a 24 de outubro, Universidade Federal da Bahia. Salvador, UFBA. Recuperado de http://www.tverealidade.facom.ufba.br/coloquio%20textos/Flavio%20Meurer.pdf        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Pedro Fernando da Silva
Av. Prof. Mello Moraes, 1721 (Bloco A). Cidade Universitária
São Paulo - SP - CEP 05508-030.
E-mail: pedrofernando.silva@usp.br

Gil Gonçalves Júnior
E-mail: gilgoncalves14@yahoo.com.br

Ednilton José Santa-Rosa
E-mail: ejsantarosa@hotmail.com

Recebido em: 29/02/2012
Revisado em: 05/09/2013
Aceito em: 30/01/2014

 

 

1 As motivações para a violência são, frequentemente, atribuídas ao indivíduo isolado, sem ponderações a respeito da ordem social que interfere na sua produção, na qual os homens estão objetivamente inseridos.
2 Ao discutir as mudanças sociais transcorridas no início do século XX, Adorno (1968/2004) chamou a atenção para as transformações ocorridas no âmbito das forças produtivas, no qual o progresso técnico sublinhou o caráter industrial; todavia, também ponderou que as relações de produção tipicamente capitalistas se mantiveram inalteradas, concedendo ao capitalismo que se sustenta no progresso técnico e na organização monopolista da produção características muito peculiares; essa configuração foi nomeada por ele como capitalismo tardio.

Creative Commons License