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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.14 no.1 Fortaleza abr. 2014

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Violência, humilhação social e a luta por reconhecimento: a experiência do MST

 

Violence, social humiliation and struggle for recognition: the experience of MST

 

Violencia, humillación social y la lucha por el reconocimiento: la experiencia del MST

 

Violence, humiliation sociale et la lutte pour la reconnaissance: l'expérience du MST

 

 

Eliane DominguesI; Miriam Debieux RosaII

IProfessora da Universidade Estadual de Maringá-PR, Mestre e Doutora em Psicologia Social pela PUC-SP
IIProfessora da Universidade de São Paulo na Graduação e na Pós-Graduação em Psicologia Clínica, Professora Titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo na Graduação e na Pós-Graduação de Psicologia Social

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo investigar como os militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) vivenciam e enfrentam a violência em seu cotidiano. Trata-se de um recorte de uma pesquisa de doutorado que teve como objetivo investigar as dificuldades enfrentadas pelos militantes no cotidiano da luta pela terra, as tensões e desafios que acompanhavam suas trajetórias no MST. Entre estas dificuldades enfrentadas, destaca-se a violência sob diversas formas: a violência física (as prisões, as torturas e o risco de morte), a violência psicológica (as ameaças, a criminalização dos que lutam pela terra, associando-os a vagabundos e bandidos), bem como a violência "naturalizada" (do acesso negado aos diretos básicos de saúde, educação e moradia). A pesquisa teve como base um trabalho de campo que denominamos de pesquisa-intervenção psicanalítica e que visou atender um duplo objetivo: a criação de um espaço de escuta para os militantes do MST participantes da pesquisa e ao mesmo tempo relatos que pudessem ser tematizados como objetos de estudo. Nos relatos dos militantes a humilhação social se destacou como a principal forma de violência sofrida por eles, fato que nos chamou atenção, pois geralmente passa despercebida aos nossos olhos. No entanto, embora os militantes tenham seus corpos marcados pela humilhação social, eles encontram no MST a possibilidade de elaboração e enfrentamento da experiência sofrida. O entorno social favorável possibilitado pelo MST contribui para formação de "homens informados" conscientes dos seus direitos e a luta coletiva tira o sujeito do lugar de rebaixamento passivamente tolerado e possibilita que a sua dor seja transformada em resistência.

Palavras-chave: humilhação social, MST, militante, psicanálise, violência.


ABSTRACT

The objective of this article is to investigate how the militants of the Rural Landless Workers Movement (MST) experience and confront the violence in their everyday lives. This is an excerpt from a doctoral research aimed to investigate the difficulties faced by militants in the daily struggle for land, the tensions and challenges that accompanied their trajectories in MST. Among these difficulties, violence is seen in various forms: physical (arrests, torture, and risk of death), psychological (threats, the criminalization of those who struggle for land, being regarded as bums and criminals), and "naturalized" (denied access to basic rights of health, education, and housing). The research was based on a field work named psychoanalytic intervention research and that aimed to serve a dual purpose: to create a space for listening to the MST militants participants of the research and, at the same time, make reports that could be themed as object of study. In militants' reports social humiliation was highlighted as the main form of violence experienced by them, fact that drew our attention because it usually goes unnoticed. However, although the militants have their bodies marked by social humiliation, they found in MST the possibility of elaboration and coping with this experience. The favorable social environment enabled by MST contributes to formation of "informed men" aware of their rights and that the collective struggle takes the subject of the humiliation passively tolerated and enables that their pain is transformed into resistance.

Keywords: social humiliation, MST, militant, psychoanalysis, violence.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo investigar cómo los militantes del Movimiento de los Trabajadores Rurales Sin Tierra (MST) viven y enfrentan la violencia en sus vidas diarias. Se trata de un recorte de una investigación doctoral que tuvo como objetivo investigar las dificultades enfrentadas por los militantes en el cotidiano de la lucha por la tierra, las tensiones y los desafíos que acompañan sus trayectorias en el MST. Entre estas dificultades enfrentadas, se señala la violencia bajo diversas maneras: la violencia física (las detenciones, las torturas y el riesgo de muerte), la violencia psicológica (las amenazas, la criminalización de los que luchan por la tierra, asociándolos con los vagos y criminales), la violencia "naturalizada" (del acceso negado a los derechos básicos de salud, educación y vivienda). La investigación se basó en un trabajo de campo que llamamos de investigación-intervención psicoanalítica y que pretendió atender a un doble propósito: la creación de un espacio de escucha a los militantes del MST participantes de la investigación y al mismo tiempo relatos que pudieran ser tematizados como objetos de estudio. En los relatos de los militantes la humillación social se ha destacado como la principal forma de violencia experimentada por ellos, lo que nos llamó la atención, ya que por lo general pasa desapercibido a nuestros ojos. Sin embargo, a pesar de que los militantes tengan sus cuerpos marcados por la humillación social, ellos encuentran en el MST la posibilidad de elaboración y enfrentamiento de la experiencia sufrida. El entorno social favorable posibilitado por el MST contribuye a la formación de "hombres informados" conscientes de sus derechos y la lucha colectiva saca al sujeto de la humillación pasivamente tolerada y permite que su dolor sea transformado en resistencia.

Palabras-clave: humillación social, MST, militante, psicoanálisis, violencia.


RÉSUMÉ

Cet article a pour but d'étudier la façon dont les militants du Mouvement des Travailleurs Ruraux Sans Terre (MST) vivent et affrontent la violence dans leur vie quotidienne. Il s'agit d'un extrait d'une thèse de doctorat qui avait pour objetif d' étudier les contraintes rencontrées par les militants dans la lutte quotidienne pour la terre, les conflits et les difficultés qui ont accompagné leurs trajectoires dans le MST. Parmi ces difficultés, se trouve la violence sous différents formes: la violence physique ( les arrestations, la torture et le risque de décès), celles psychologiques (les menaces, la criminalisassion de ceux qui luttent pour la terre, en les associant avec des vagabonds et bandits), la violence «naturalisée» (accès refusé à la santé, à l'éducation et au logement). La recherche a été basée sur le travail de terrain que nous appelons recherche intervention psychanalytique et qui a eu le but de servir un double objectif: créer un espace d'écoute aux militants du MST participants de la recherche et au même temps des récit qui pourraient être thématisée comme objets d'étude. Dans les récits des militants l'humiliation sociale s'est imposé comme la principale forme de violence vécue par eux, un fait qui a attiré notre attention parce que généralement nous ne la voyons pas. Cependant, même que les militants ont leurs corps marqués par l'humiliation sociale, ils trouvent dans le MST la possibilité d' elaboration et affrontement de l'expérience subis. L'environnement social favorable établi par le MST contribue à la formation des «hommes informés» conscients de leurs droits et la lutte collective éloigne le sujet de la condition de humiliation passivement tolérée et permet que la douleur se transforme en résistance.

Mots-clés: humiliation sociale, MST, militant, psychanalyse, violence.


 

 

Introdução

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) surge no final da década de 1970 como fruto da expulsão do campo e expropriação de inúmeros trabalhadores rurais. Somente no Estado do Paraná, estima-se que, em dez anos, 100 mil pequenos proprietários foram expulsos do campo, somando-se a eles parceiros, posseiros e arrendatários, que também já vinham sofrendo com a expulsão. Somente a construção da Hidrelétrica Binacional de Itaipu, entre 1975 e 1977, deixou aproximadamente 12.000 famílias sem terra e sem teto (Morissawa, 2001).

Somando-se à violência da expulsão e da expropriação que marca sua origem, o MST também enfrentou e enfrenta os assassinatos e a criminalização de seus integrantes. Em 1995 e 1996 os assassinatos de trabalhadores sem terra de Corumbiara - MT e de Eldorado dos Carajás - PA deixaram trinta mortos. Nos últimos dez anos, de 2001 a 2010, a Comissão Pastoral da Terra - CPT (2011) registrou o assassinato de 360 pessoas relacionado a conflitos pela terra. Se não bastasse os assassinatos de que são vítimas, os integrantes do MST são postos na condição de criminosos e são responsabilizados por sua condição. Suas manifestações e reivindicações são constantemente deslegitimadas pela mídia e eles são vistos como representantes de um passado arcaico do qual parte da sociedade brasileira quer se livrar.

Diante deste contexto, este artigo tem como objetivo investigar como os militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) vivenciam e enfrentam a violência em seu cotidiano. Trata-se de um recorte de nossa pesquisa de doutorado que teve como objetivo investigar as dificuldades enfrentadas pelos militantes no cotidiano da luta pela terra, as tensões e desafios que acompanhavam suas trajetórias no MST (Domingues, 2011).

Entendemos a violência, tal como definida por Chauí (1998), como "(...) toda prática e toda ideia que reduza a um sujeito à condição de coisa, que viola interna ou externamente o ser de alguém, que perpetua relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural (p.38, tradução nossa). A humilhação social pode ser entendida como uma de suas formas. Segundo Gonçalves Filho (1998):

A humilhação é uma modalidade de angústia que se dispara a partir do enigma da desigualdade de classes. Angústia que os pobres conhecem bem e que, entre eles, inscreve-se no núcleo de sua submissão. Os pobres sofrem frequentemente o impacto dos maus tratos. Psicologicamente, sofrem continuamente o impacto de uma mensagem estranha, misteriosa: 'vocês são inferiores'. E, o que é profundamente grave: a mensagem passa a ser esperada, mesmo nas circunstâncias em que, para nós outros, observadores externos, não pareceria razoável esperá-la. Para os pobres, a humilhação ou é uma realidade em ato ou é frequentemente sentida como uma realidade iminente sempre a espreitar-lhes, onde quer que estejam, com quem quer que estejam. (p.53)

O sentimento de humilhação social causado pela desigualdade de classe, de acordo com Gonçalves Filho (1998) é comum aos pobres da cidade e do campo. Este tipo de violência geralmente passa despercebida a nossos olhos e atingem os militantes do MST, embora no caso deles possamos dizer que se trata de uma humilhação superada. Segundo Ansart (2005) a humilhação é superada quando os humilhados reagem, revoltam-se e recusam a humilhação. Isto não significa que os militantes do MST deixem de sofrer ou ter seus corpos marcados pela humilhação, mas que esta vivencia pode ser ressignificada e elaborada no coletivo.

 

A pesquisa-intervenção e o método psicanalítico

A pesquisa-intervenção foi realizada em uma Escola Técnica de Agroecologia do MST, localizada no Estado do Paraná e por razões éticas será omitida o nome da mesma, assim como os nomes dos participantes da pesquisa serão fictícios. A realização da pesquisa foi aprovada pela escola e pelo Comitê de Ética. Todos os participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Os participantes foram, ao todo, 23. A grande maioria do sexo masculino, com idades que variavam entre 17 e 31 anos. Todos os participantes são filhos de assentados/acampados do MST, alguns deles são filhos de dirigentes do movimento.

Um encontro foi realizado com todo grupo para apresentação da pesquisa, levantamento e proposta de temas - relacionadas aos conflitos que eles vivenciavam em seu cotidiano - para os encontros. No primeiro encontro, os participantes foram divididos aleatoriamente em dois subgrupos para realização dos encontros seguintes. Os temas escolhidos pelos participantes foram: relação familiar; exigências internas e externas; gênero; tensão indivíduo/coletivo; autoestima; ideal/imagem/identidade; deslocamentos escola-comunidade; violência e luto e projetos para do futuro. Estes temas foram trabalhados em oito encontros com cada subgrupo e com duração aproximada de duas horas. Em cada encontro foi utilizada uma estratégia diferente para que emergisse as falas dos sujeitos. Os encontros abrangeram uma temática muito mais ampla do que a proposta deste artigo, uma vez que neste artigo será apresentado e discutido o encontro que teve como tema a violência e luto. Sobre esse tema, três questões foram propostas para os participantes "O que te deixa triste?"; "O que é violento?"; "Em quais situações sentiu violência contra você?.

A pesquisa-intervenção psicanalítica visou atender a um duplo objetivo: a criação de um espaço de escuta para os militantes do MST e ao mesmo tempo de um espaço que produzisse relatos que pudessem ser tematizados como objetos de pesquisa.

Segundo Moreira (2008) são características da pesquisa-intervenção: a realização em situações cotidianas, o desencadeamento pela demanda, a existência de interação entre pesquisador e pesquisado e a concepção de que conhecer e intervir não constituem momentos distintos. No caso desta pesquisa, a situação cotidiana foi a sala de aula dos estudantes e a pesquisa-intervenção foi inserida entre as atividades do curso chamadas oficinas e que compõem sua grade curricular. A demanda de um trabalho deste tipo veio da própria escola e do MST por ocasião do Seminário subjetividade e a questão da terra, realizado em 2004, e no qual os militantes do movimento levantaram a necessidade da criação de um espaço em que eles pudessem expressar seus sentimentos, e falar de suas próprias histórias e das "marcas" que a luta deixa. Até aqui, estamos falando do que caracterizaria a pesquisa-intervenção de uma forma geral. A partir de como é concebida a interação pesquisador-pesquisado e a concepção de que conhecer e intervir não constituem momentos distintos é que podemos entrar na especificidade do método psicanalítico.

A especificidade da pesquisa-intervenção psicanalítica, em relação à definição geral de pesquisa-intervenção, é sua dimensão clínica, sua ética e método. Na psicanálise, pesquisa e intervenção não estão situadas em campos distintos, ambas as situações demandam o mesmo método de acesso e/ou investigação do sujeito do inconsciente: a escuta e a transferência. Por sua vez, a escuta e a transferência são os postulados básicos de toda prática psicanalítica, seja ela a pesquisa ou o tratamento. Foi, portanto, desta forma que foram conduzidos os grupos de conversação. Não obstante, convém esclarecer que a denominação de psicanalítica para esta pesquisa-intervenção não significa que a pesquisa também tenha se configurado como uma terapia e nem conduzida em enquadre clássico do tratamento psicanalítico, pois o objetivo da intervenção, nessa pesquisa, não foi oferecer um espaço de tratamento. No grupo, como no enquadre clássico, a escuta é possível uma vez que o seu fundamento está na relação transferencial que se estabelece e não nas referências imaginárias a um enquadre específico. Para Elia (2000), toda pesquisa em psicanálise é clínica, independentemente do lugar em que seja realizada a pesquisa, pois clínica é a "forma de acesso ao sujeito do inconsciente" (p.23).

Neste sentido, nos grupos, buscamos acolher a fala dos sujeitos sem preenchê-la de sentido, abrindo espaço para a emergência daquilo que fora vivido, mas não pode ser formulado e compartilhado atribuindo novas articulações e elaborações para cada participante. A análise que se segue não se refere a indivíduos particulares. Pudemos recolher através deste método, os discursos produzidos nesta cena grupal para análise das condições que os promovem e dos seus efeitos subjetivos.

Antes da apresentação e análise dos relatos, convém discorrer sobre como se deu a escuta e a transferência no contexto desta pesquisa. No encontro com o tema violência e luto, com o primeiro subgrupo, das três questões previstas para o encontro apenas as duas primeiras foram feitas. A questão "Em quais situações sentiu violência contra você?" não foi proposta pela pesquisadora. Posteriormente, refletindo sobre esta situação, entendemos que foi a pesquisadora quem não suportou ouvir os relatos da violência sofrida por aqueles sujeitos e em suas anotações pessoais desapareceram os nomes dos autores dos relatos.

Levantamos a hipótese de que os entraves à escuta podem expressar a resistência da pesquisadora. A escuta, segundo Rosa (2006), ocorre na transferência que envolve tanto o sujeito como o psicanalista (pesquisadora); porém, nem sempre o sujeito fala e nem sempre o analista escuta. Freud chamou de resistência os obstáculos que o analisando opõe ao tratamento analítico. Lacan, por sua vez, diz que a resistência é sempre do analista, e que esta resistência se configura como uma resistência à escuta. Esta ideia de Lacan "converge com os testemunhos de pessoas que voltam de conflitos relacionadas à guerra e outras situações dramáticas, as quais afirmaram não poderem falar, pois não há quem se disponha a escutar"(Rosa & Gagliato, 2010, p.171).

A partir da ideia de Lacan sobre a resistência do analista à escuta, Rosa (2004, 2006) e Rosa e Gagliato (2010) desenvolvem a ideia de uma resistência do analista à escuta do que é da ordem do traumático e da exclusão social. Sobre a resistência do analista e a escuta clínica de jovens da periferia, Rosa (2006) diz:

A escuta do discurso desses sujeitos fica insuportável, não só pela situação em si ou pelos atos que cometeram, mas porque tomar esse outro como sujeito do desejo, atravessado pelo inconsciente e confrontado com situações de extremo desamparo, dor e humilhação, situações geradas pela ordem social da qual o psicanalista usufrui - é levantar o recalque que promove a distância social [grifo nosso] e permite-nos conviver, alegres, surdos, indiferentes ou paranoicos, com o outro miserável. (p.189)

Nestes casos, geralmente, psicanalista e jovens de periferia ocupam lugares diferentes na estrutura social: o primeiro desfruta os bens da cultura e os últimos recebem "o mais" de privação, e da escuta destes últimos o primeiro não "sai ileso - um posicionamento ético e político é necessário" (Rosa, 2006). As formas pelas quais o psicanalista pode evitar este "confronto" e resistir à escuta podem ser variadas. Algumas delas são: ficar demasiadamente preso à teoria, às suas hipóteses, e não atentar para a especificidade da fala do sujeito; deter-se exclusivamente sobre o peso da situação social ou desconsiderá-la, o que implica a responsabilização do sujeito por sua condição; ver o sujeito somente como vítima, negando sua condição de sujeito desejante (Rosa, 2006).

 

Violência e luto e a experiência da humilhação social

Na sequência apresentaremos os relatos na ordem em que foram feitos em cada subgrupo, seguindo as questões propostas: "O que te deixa triste?"; "O que é violento?"; "Em quais situações sentiu violência contra você?". Estas questões foram feitas pela pesquisadora, uma de cada vez (no primeiro subgrupo foram feitas somente as duas primeiras questões, conforme referido anteriormente). Os relatos foram anotados pela pesquisadora durante os encontros.

Nossa expectativa era de que emergissem relatos que enfocassem a violência física e psicológica. Tais relatos surgiram, porém, quando a questão proposta foi sobre a violência da qual se foi vítima. A maioria dos relatos foi sobre situações que consideramos de humilhação social, tal como tematizada posteriormente.

Passemos, então, aos relatos e discussão deste encontro que foi realizado com os dois subgrupos no mesmo dia.

No primeiro subgrupo as respostas à primeira questão "O que te deixa triste?" vieram após um momento de silêncio. Entendemos que houve dificuldades de construir respostas à primeira pergunta, pois esta convocou a evocação de situações vividas e subjetivas - o silêncio sinalizou um sofrimento não elaborado. Rosa e Poli (2009) indicam:

nas leituras de Benjamin e Agamben a fragilização do registro da experiência e sua incidência na lógica do poder/violência. Do ponto de vista da psicanálise, trata-se de auferir seus efeitos nos modos como o sujeito estabelece suas estratégias de resistência àquilo que se impõe como restrição ou constrição de seus modos de gozar. Tais estratégias não são, bem entendido, passíveis de serem reduzidas aos recursos egóicos de cada indivíduo. São antes modos coletivos e discursivos de organizar sua posição em relação a si mesmo, aos outros e ao Outro. (p.7)

As respostas para a segunda questão "O que é violento?" foram: "Roubar e matar"; "Esquartejar"; "Casos violentos vêm da crise social"; "Violência existe em todos os meios"; "Caso Isabela" (menina que foi atirada pela janela do apartamento do pai em 2009, em São Paulo, em que os condenados pelo crime foram o pai e a madrasta)"; "Violência pode ser verbal"; "Não dá para saber se um caso é mais violento que outro";"Violência contra os trabalhadores"; "Índio Galdino" (índio Pataxó que foi queimado por jovens enquanto dormia em um ponto de ônibus, em 1997, em Brasília); e o "Massacre de Eldorado dos Carajás" (19 sem-terra foram assassinados pelo polícia militar, em 1996, em Carajás - PA).

As primeiras respostas que aparecerem fazem referência à violência física que termina em morte, mas logo no início do encontro alguém lembrou que "a violência vem da crise social" e que ela pode ser "verbal", pois as palavras também ferem. Em seguida são lembrados o assassinato do índio Galdino, que foi morto no Dia do Índio, e o Massacre de Eldorado dos Carajás, este referente a trabalhadores sem terra. Depois deste distanciamento necessário, outro tipo de violência é mencionada na sequência do encontro, quando alguém diz que o que é violento é "a desigualdade, a humilhação pela classe social". A partir daí, a desigualdade e a humilhação vêm à tona em dizeres que remetem a uma diversidade de cenas: "Governo e a força policial que matam as pessoas na favela"; "Catadores de lixo"; "A agressão mais grave é a moral"; "a agressão moral é a humilhação, discriminação, a pessoa não ser ninguém"; "Violência do olhar"; "Povo pobre contra povo pobre, boias-frias que apontam os sem-terra na rua dizendo:'olha lá os sem-terra'".

Constatamos que as associações sobre violência remetem a cenas de humilhação social e a formas de distanciamento para romper com possíveis identificações e vitimizações. Em seu lugar procuram dar às vivências um contexto, um lugar elaborativo que aplaque a intensidade da angústia despertada. Segundo Rosa e Poli (2009),

o processo coletivo nos livra do domínio da intimidade que não permite o cultivo de uma distância necessária para os laços comunitários. A reabilitação do espaço público permite que a amizade produza a construção de projetos comuns, de utopias. Nessa direção está a consideração da função da fratria. A fratria possibilita que a experiência com os limites seja amparada pelo grupo, de modo que se possibilite tanto a diminuição da ameaça e da culpa que podem pairar sobre cada um, isoladamente, como a troca de impressões e reflexões sobre o vivido. A experiência compartilhada permite que se altere o campo simbólico, já que questiona verdades tidas como absolutas pela cultura, podendo, conforme a dimensão da crítica, gerar a desobediência civil coletiva e até mesmo fundar uma nova ordem social (p.10).

Constamos que estes jovens sentiram e sentem na pele a violência da humilhação social que pode atingi-los a qualquer momento e em qualquer lugar e deixa marcas profundas; depois, porque este sentimento não vem sozinho, vem acompanhado da percepção da existência de uma relação de desigualdade: "a humilhação pela classe social"; "governo e a força policial que matam as pessoas na favela". A polícia não vai para os bairros dos ricos matar seus habitantes, ela vai para as favelas, onde habitam aqueles que, por serem pobres, são vistos como criminosos, e aos quais são destinados os trabalhos subalternos, como o trabalho dos catadores de lixo. Os garis, ao se ocuparem do lixo, dos dejetos da sociedade humana, são vistos também como subalternos e têm rebaixada a sua condição humana. Os militantes do MST são sensíveis a esta situação e veem aqueles que para muitos são invisíveis se reconhecerem nos que são também humilhados.

A invisibilidade pública como forma de humilhação social foi o tema do livro de Costa (2004), que acompanhou durante 9 anos um grupo de garis, enquanto estes trabalhavam na Cidade Universitária de São Paulo. Costa não só acompanhou, mas também executou as tarefas dos garis e pôde sentir na pele também um pouco do que eles sentem: a invisibilidade pública, ou seja, não ser visto enquanto sujeito no desempenho de seu trabalho, ser ignorado, tornar-se invisível para outros humanos. Ao vestir o uniforme de gari, Costa não foi reconhecido no bloco de Psicologia onde estudava. Os que o conheciam sem o uniforme de gari não foram capazes de reconhecê-lo usando o uniforme. Ele sentiu angústia diante desta situação e se tornou, por um momento, igual àqueles que não são vistos. O uso do uniforme iguala todos os garis e contribui para o desparecimento de cada um enquanto sujeito diante dos olhos daqueles que não portam o mesmo uniforme e pertencem a outra classe social. Segundo Costa (2004):

A cegueira de gente que não vê gente é traumática, causa angústia. A cegueira de gente que não vê gente dispara humilhação. A humilhação pode ser determinada como cegueira pública, pode ser determinada segundo a experiência de não aparecer como gente estando no meio de gente (p.132).

A situação dos catadores de lixo pode ser vista como uma situação emblemática da humilhação social, pois aqueles que ocupam dos dejetos são também vistos como dejetos. Se eles são lembrados pelos jovens militantes do MST como sujeitos que sofrem com a violência, é porque estes militantes são sensíveis não somente à violência que diz respeito ao seu grupo, mas também à que atinge outros grupos oprimidos: a violência da humilhação social, da desigualdade, da exclusão, do olhar, que não aparece na televisão e nas manchetes dos jornais, embora estas também não sejam esquecidas. Eles se reconhecem nos outros oprimidos, os quais nem sempre se reconhecem neles, como os boias-frias, que apontam os sem-terra na rua, e entendem este não reconhecimento como uma forma de violência: "povo pobre contra povo pobre".

No segundo subgrupo as respostas à questão: "O que é violento?" foram: " Uma palavra, ser agredida verbalmente. O que é agressão para um não é para outro"; "É violento quanto o próprio MST retira uma família de um acampamento ou assentamento"; "Forma que se expressa, que só pensa em si, não pensa no outro"; "Experiências transgênicas, é uma violência contra a humanidade"; "Violência física e verbal"; "Violência sexual e doméstica."; "Prostituição"; "Machismo"; "Violência verbal"; "Crescer em cima do erro do outro"; "Acesso negado à saúde"; "Violência física vem a partir da verbal". Entre as diferentes formas de violência, a mais citada foi a violência verbal. Será que esta foi o tipo de violência que eles mais de perto sentiram? As respostas à terceira questão - "Em quais situações vocês sentiram violência contra vocês? indicam que sim. Transcrevo-as na sequência.

Ronaldo relata uma situação em que andava sem camisa pela praia e um homem o chamou de macaco; "Você entra no mercado, já entra aquele peso. Ficam vigiando"; Fábio fala sobre entrar em certos lugares com a camiseta o boné do MST. Relata uma situação em que entrou no banco e todo mundo ficou olhando, estava sujo e de chapéu de palha, porque estava trabalhando; Jeferson traz relatos da infância, na escola. Conta que os colegas tiravam saro dele e da prima, que eram os únicos sem-terra na naquela escola. Um colega ficava falando para os outros que se eles tivessem três palmos de terra que ele e a prima iriam invadir, e todos riam; Ana fala da biblioteca que não emprestava livros para eles (sem-terra) porque eles sujavam. Na praça, não se sentia à vontade; Ana conta que na cidade em que morava em os filhos de sem-terra ficavam em salas separadas. Relata lembranças de sua infância, da separação das salas de aula por nota: quem tinha as melhores notas ficava na sala A eram os ricos. Fábio conta que precisou abrir uma conta para receber uma bolsa de estudos do curso de agroecologia e que teve de responder a muitas questões no banco. Questões estas sem nenhuma relação com as informações necessárias para abrir uma conta bancária. Anderson conta que após 3 anos longe, foi visitar sua família. Chegou com as mesmas roupas que levou, porém os amigos estavam com roupas da moda, carro e moto. Relata que saiu com os amigos e que duas meninas o humilharam, porque ele voltou da mesma forma que saiu. Diz que chorou escondido.

Nos relatos, a violência verbal, às palavras que ferem vem se somar a violência do olhar. O pobre é visto como "potencialmente" criminoso, por isto é vigiado. Se está desempenhando uma função subalterna, como os garis, quando identificado com a função passa por invisível; mas não é invisível quando entra no mercado, no banco, quando passeia na praia ou na praça. O pobre não se sente à vontade nestes ambientes, pois, como diz Gonçalves Filho (1998), estes ambientes têm o poder de segregar e sempre atualizar a desigualdade de classe.

Ambiente que é segregador e também atualiza a desigualdade de classe é a escola. Na escola, a humilhação social começa bem cedo, na infância. O sentimento da desigualdade também. A escola emprestava livros para uns, mas para outros, não, para os sem-terra, não: "eles sujam". Classes separadas também são destinadas a eles. Uma escola que segrega serve de "exemplo" de conduta para aqueles que estão formando e não deve ver como problema o fato de crianças humilharem outras crianças por sua condição de sem-terra. Não é sem razão que o MST sempre buscou intervir diretamente na educação em todos os níveis, a começar pelas crianças. Segundo Gonçalves Filho (2004):

A humilhação marca a personalidade por imagens e palavras ligadas a mensagens de rebaixamento. São mensagens arremessadas em cena pública: a escola, o trabalho, a cidade. São gestos ou frases dos outros que penetram e não abandonam o corpo e a alma do rebaixado: o adulto e o idoso, já antes o jovem ou a criança, vão que diminuir, vão guardar a estranha e perturbadora lembrança de quem a eles se dirigiu como quem se tenha dirigido ao inferior. (p.26-27)

O corpo marcado pela humilhação é um corpo encolhido, silenciado. A experiência da humilhação finca-se na carne do sujeito "(...) como uma espécie de queimadura: arde, marca-lhe o corpo como cicatriz, rouba-lhe sensibilidade" (Costa, 2004, p.211). A mensagem enigmática de rebaixamento fere a autoestima, a percepção de si; o sujeito não se reconhece nos olhos dos outros que o humilham, nem consegue entender porque ele é destinatário desta mensagem. Tal mensagem "desarruma" e "interpela" o sujeito em sua percepção e fantasia, em sua memória e linguagem, em seu sono e sonho; demanda elaboração psíquica e também social e política (Gonçalves Filho, 2004).

Sofrimentos políticos não são enfrentados apenas psicologicamente, uma vez que são políticos. Mas não é bastante que sofrimentos políticos sejam politicamente enfrentados, uma vez que são sofrimentos. Digamos melhor: enfrentá-los politicamente inclui também enfrentá-los psicologicamente. A cura da humilhação social pede remédio por dois lados. Exige a participação no governo do trabalho e da cidade. Exige um trabalho interior, uma espécie de digestão, um trabalho que não é apenas pensar e não é solitário; é pensar sentindo-se em companhia de alguém que aceite pensarmos juntos (Gonçalves Filho, 2004, p.27).

 

Humilhação: da Etimologia à Psicanálise

Humilhação é a palavra que se destaca para descrever as situações de violência relatadas nos grupos realizados com os estudantes. Podemos avançar na análise destes discursos tematizando este termo.

Sobre a etimologia da palavra humilhação, encontramos em Cancelli (2005) a origem latina do termo e em Azevedo (2005) a grega. Cancelli explora o sentido da palavra humilde que possui o mesmo radical que humilhação. Ser humilde implica o reconhecimento das próprias limitações e fraquezas; já ser humilhado significa rebaixar-se, sujeitar-se, deixar-se submeter a alguém. O radical é comum, mas enquanto a humildade representa uma virtude, a humilhação tem uma conotação pejorativa, e tanto uma como a outra se definem em relação ao outro. O aspecto relacional da humilhação também compõe o sentido grego do termo, apresentado por Azevedo (2005):

Pela via do grego, a ação de humilhar, a humilh-ação se bifurca entre práxis (prática) e páthos (sofrer). Essa bifurcação é iluminadora. Se por um lado, a humilhação é uma conjugação entre práxis e páthos, por outro vemos que o foco semântico recai sobre a instância do que sofre, sobre o páthos e o patológico. Com o termo humilhação temos em mente aquele que sofre, temos a dimensão do páthos.(p.50)

Ainda seguindo a etimologia da palavra, segundo Azevedo (2005), a humilhação também significa "rebaixamento" e "queda", sentidos que também podemos atribuir à humilhação pensada a partir da Psicanálise. Tendo-se como referência o pensamento lacaniano, é possível dizer que "na humilhação (...) um outro se reveste de Outro e anuncia um saber absoluto sobre o humilhado" (Azevedo, 2005, p.51), de que ele não é nada, rebaixa o sujeito à condição de "objeto-dejeto".

Já em Freud, (citado por Rouanet, 2006), encontramos em seus Estudos sobre a histeria, que a humilhação (Kräkung, em alemão) é uma variante do trauma psíquico. Seguindo esta mesma direção, em Interpretação dos sonhos, Freud (1900/2001) afirma que "uma humilhação experimentada há 30 anos antes atua exatamente como uma nova humilhação ao longo desses trinta anos, assim que obtém acesso as fontes inconscientes de afeto" (p.554). Isto quer dizer que a humilhação se inscreve de tal forma no psiquismo do sujeito e não importa o tempo que passe, uma nova situação pode remeter a ela e trazer à tona o sofrimento uma vez experimentado.

No texto O mal-estar na civilização, encontramos novamente em Freud (1930/2011) referencia a humilhação, ao abordar as três fontes de sofrimento humano: o nosso próprio corpo, o mundo exterior e as relações humanas, sendo o último o mais implacável e doloroso.

(...) o ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor, que no máximo pode se defender, quando atacado, mas sim que ele deve incluir, entre seus dotes instintuais, também um forte quinhão de agressividade. Em consequência disso para ele o próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para dele se utilizar sexualmente contra sua vontade, para usurpar seu patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-lo (Freud, 1930/2011, p.76-77).

Assim, com Lacan podemos pensar a humilhação como rebaixamento e com Freud como situação traumática. No entanto, quando nos referimos a humilhação social, não podemos nos esquecer que ela acontece sempre em uma situação de desigualdade, em que um primeiro rebaixa, deprecia, desrespeita, fere a autoestima do segundo e o trata como subalterno; em que um sujeito "revestido de Outro" agride alguém sem que haja reciprocidade. A ausência de reciprocidade é fundamental para caracterizar a situação de humilhação social (Ansart, 2005), assim como o sofrimento daquele que é vítima - um sofrimento que atinge o íntimo do sujeito, afeta o seu autoconceito, a sua autoestima e a sua dignidade humana e que não é digerido nem compreendido pelo humilhado, por isto pode ser considerado traumático.

Um mesmo acontecimento pode ser traumático para um sujeito e não o ser para outro, o que significa que o trauma está relacionado ao estado de impotência de determinado sujeito em lidar com uma situação; porém existem catástrofes e acontecimentos sociais - como, por exemplo, as guerras - que, devido à sua intensidade, afetam a todos. Todos que vivem uma guerra se sentem, em alguma medida, impotentes para lidar com ela, pois as repercussões de uma situação traumática de tal intensidade podem até mesmo atingir as futuras gerações (Kaufmann, 1996).

Para Gonçalves Filho (2004), a humilhação social pode ser considerado um acontecimento desta natureza que atinge de tal forma determinados grupos e classes que pode ser vivenciado como trauma. O autor resgata a história do Brasil e lembra a humilhação sofrida pelos escravos. Juntamente com o golpe físico, o escravo recebia o golpe moral, uma mensagem de rebaixamento, de negação da sua dignidade humana. Se a libertação dos escravos pode ter posto fim ao golpe físico, o mesmo não pode ser dito sobre o golpe moral, que passou a ter como alvo os descendentes dos escravos e também aqueles que executavam e/ou executam trabalhos subalternos em geral, antes atribuídos aos escravos.

A humilhação social não marca apenas este ou aquele sujeito mais susceptível, mas atinge, de alguma forma, todos os integrantes de determinados grupos ou classes que vivem a realidade da dominação e recebem cotidianamente uma mensagem enigmática de rebaixamento moral que eles não conseguem traduzir. Tal mensagem pode vir a qualquer tempo e de qualquer um, por isto o sujeito que sofre humilhação fica em um estado de expectativa, na angústia de esperar pelo "golpe", mesmo em situações que supostamente não deveriam produzir tal afeto (Gonçalves Filho, 2004).

Rebaixamento, situação traumática que gera sofrimento e angústia, negação da própria condição de sujeito - assim é que o sujeito humilhado vivencia a situação de humilhação social. O humilhado sofre e sua dor, não é uma dor que emana do corpo e das relações entre os corpos, é uma dor que vem da injustiça social e que Sawaia (2007) denomina sofrimento ético-político.

 

O enfrentamento da humilhação social

Neste contexto, pergunta-se: qual será o caminho para o enfrentamento psicológico e político da humilhação? Por onde começar? Segundo Honneth (2009), "(...) a tensão afetiva em que o sofrimento de humilhações força o indivíduo a entrar só pode ser dissolvida por ele na medida em que reencontra a possibilidade de ação ativa" (p.224). Se a humilhação é social e política demanda uma ação coletiva. Por sua vez, a ação coletiva implica o reconhecimento no e pelo outro que também sofre com a humilhação, por aqueles com os quais podemos agir e pensar juntos, abrindo o caminho para a elaboração psíquica.

A recusa da humilhação é fundamental neste processo de enfrentamento. O sujeito precisa dizer "não" à humilhação, como nos diz Camus (1951/2010) em seu livro O homem revoltado: "O escravo, no instante em que ele diz não, ele rejeita a ordem humilhante de seu superior e rejeita ao mesmo tempo o próprio estado de escravidão" (p.29). Ao rejeitar a humilhação, ao revoltar-se contra uma ordem intolerável, o sujeito impõe um limite a uma ordem opressiva e se impõe como um sujeito de direitos.

A revolta é própria do homem informado, consciente dos seus direitos. Ela permite que o revoltado tome consciência do seu próprio valor e do quanto dizer não contribui para a afirmação de si mesmo. Mas, apesar da revolta ser oriunda de uma decisão individual, ela transcende o indivíduo e revela a existência de outras pessoas. Dignidade e fraternidade aparecem como valores nascidos na ação e na experiência do homem revoltado. Na acepção de Camus, o homem revoltado busca conservar sua dignidade e recusa a humilhação sem exigi-la para os outros (Lopreato, 2005, p.251).

A revolta implica a recusa da humilhação, mas não a negação da dor que ela causa (Camus, 1951/2010). A dor continua lá, mas pela revolta, o sofrimento de alguma forma se transforma. Segundo Narita (2000), "transformar o sofrimento em luta é transformar aquilo que faz mal - o transtorno, a dor - em algo produtivo, construtivo, em resistência. É uma elaboração psíquica, transformando o problema em solução, o drama em criação" (p.862). A transformação do sofrimento da humilhação social em revolta, em resistência política, depende do "entorno político e cultural dos sujeitos atingidos," somente por meio da articulação de um movimento social que o sofrimento pode ser transformado em resistência política (Honneth, 2009).

Segundo Decca (2005), as revoltas, desde a Revolução Francesa, sempre tiveram em sua origem o sentimento de humilhação. Ansart-Dourlen (2005) destaca o potencial combativo gerado pelas reações contra a humilhação, mas adverte que é um erro acreditar que toda humilhação pode gerar uma reação, pois há situações em que a humilhação destrói completamente o sujeito. Situações em que, juntamente com a humilhação moral, o sujeito também é vítima de maus-tratos físicos, tortura, violações do seu corpo, são destruidoras - não somente pela dor e pelos danos físicos que elas causam, mas também pelo sentimento de estar totalmente à mercê do outro, que, por seu autoritarismo, arroga para si a posição de Outro, impondo um discurso sem abertura para a posição do outro fora da sua determinação.

O sentimento de estar totalmente à mercê do outro que viola seu corpo sem consentimento abala profundamente a confiança do sujeito em si e no mundo, confiança que foi estabelecida a partir das primeiras relações afetivas e que é para o sujeito uma primeira forma de reconhecimento. A integridade de todo ser humano depende que ele seja reconhecido. A recusa de reconhecimento é nociva ao sujeito não somente porque é injusta e lhe causa danos, mas também porque interfere na compreensão positiva que o sujeito tem de si mesmo e que precisa ser constantemente confirmada na relação com os outros (Honneth, 2009).

Segundo Honneth (2009), são três os padrões de reconhecimento: o reconhecimento pelo amor, o reconhecimento jurídico e o reconhecimento social. A cada padrão de reconhecimento corresponde um padrão de desrespeito, que ocorre quando o sujeito tem seu reconhecimento recusado. Os maus-tratos físicos são um padrão de desrespeito que corresponde a uma recusa do reconhecimento pelo amor. O não acesso aos direitos de participação política e de bem-estar corresponde a uma recusa do reconhecimento jurídico. O reconhecimento jurídico significa para o sujeito que ele tem o mesmo valor que os outros na sociedade. Por outro lado, se o sujeito precisa ser "igual" aos outros, ele também precisa ser reconhecido em sua particularidade, o que em outros tempos se chamava honra e hoje pode ser chamado de reputação, prestígio social. A negação do reconhecimento do indivíduo por seu valor individual corresponde à recusa do reconhecimento social. Estas duas últimas formas de reconhecimento e sua denegação estão profundamente interligadas.

Convém lembrar que os direitos de participação política e bem-estar foram e são conquistados a partir da luta dos que não tinham e não têm acesso a eles. Sem acesso a direitos o sujeito não pode construir o autorrespeito, que é "(...) a possibilidade de se referir positivamente a si mesmo (...)"(Honneth, 2009, p.197). Os direitos só se tornam uma questão para o sujeito de maneira negativa quando estes faltam. Por sua vez, a relação entre a ausência de direitos e a constituição do autorrespeito não é evidente, pois uma coisa é sentir a privação de que se é vítima, outra é perceber e compreender sua amplitude e suas consequências psíquicas; no entanto, a percepção desta relação pode ser facilitada quando os grupos atingidos pela privação de direitos discutem esta questão.

No que diz respeito à estima social o reconhecimento do sujeito por seu valor individual, por suas características particulares , é importante destacar que o que é valorizado em uma determinada época e lugar é definido pela sociedade e está indiretamente relacionado à distribuição de renda, por isto " (...) os confrontos econômicos pertencem constitutivamente a esta forma de luta por reconhecimento" (Honneth, 2009, p. 208). A este padrão de reconhecimento e à sua recusa está ligado o sentimento de ter mais ou menos valor na sociedade enquanto sujeito particular; ou seja, a desvalorização ou valorização social traz consequências para a diminuição ou o aumento da autoestima.

Para Honneth (2009), a luta social é o caminho para o restabelecimento dos padrões de reconhecimento negados. Para Camus (1951/2010), quando o sujeito revolta-se e diz "não" à humilhação, está dizendo "sim" a si mesmo, e ao recusar a humilhação, recusa o lugar de humilhado. Ambos estão plenamente de acordo em que a revolta e a luta social se faz com homens informados, cientes de seus direitos. Enquanto Honneth destaca a dimensão coletiva da luta por reconhecimento, Camus destaca a decisão aparentemente individual de revoltar-se, que no ato da revolta se faz social. Afirma Camus (1951/2010):

A revolta, contrariamente a opinião atual, e mesmo que ela nasça no homem no que ele tem de mais estritamente individual, coloca em questão a noção de indivíduo. Se o indivíduo aceita morrer, e morre na ocasião, no movimento de sua revolta, ele mostra com isto que ele se sacrifica em benefício de um bem que ele estima que está além de seu próprio destino. Se ele prefere a possibilidade da morte à negação do direito que ele defende, é porque ele coloca o último em um lugar acima dele mesmo. Ele age em nome de um valor, mesmo que confuso, mas o qual ele sente, ao menos, como comum com todos os homens (p.30).

A luta social, o engajamento em ações coletivas, tira os sujeitos "da situação paralisante do rebaixamento passivamente tolerado" e possibilita "uma autocorrelação nova e positiva" (Honneth, 2009, p. 259). Em meio aos semelhantes que também sofreram e sofrem com a humilhação social, mas que também disseram "não" e partiram para a ação, é possível ver o reflexo de uma nova e positiva imagem de si, que vem corrigir a imagem negativa cruelmente imposta. A nova imagem refletida não pode ser de um sujeito perfeito, sem falhas, o que levaria para outro extremo igualmente nocivo, mas de um sujeito "humilde" no sentido daquele que reconhece suas fraquezas e a necessidade do outro com valores e qualidades. O MST constitui este entorno favorável que:

"(...) faz florescer uma força política importante e uma possibilidade de exercício de práticas sociais em seu modo libertário: a criação e a experimentação de modos de vida que não se envenenam no individualismo e no narcisismo que ameaçam o tecido social da paisagem contemporânea" (Leite & Dimenstein, 2011, p. 29).

O MST, ao engajar os sujeitos na ação coletiva, constitui-se como um entorno político e cultural favorável que possibilita que o sofrimento seja transformada em luta. A luta cura, como nos mostra o artigo de Fernandes (2011), que, a partir do seu trabalho como militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), nos diz: "Acima de tudo, uma ação massiva de protesto proporciona a elevação da nossa autoestima, pois nos sentimos parte de um coletivo poderoso, que se mostra capaz de desafiar a polícia e os governos para fazer valer nossos direitos" (p.11).

Quando Fernandes (2011) diz que a luta cura, está se referindo diretamente aos efeitos terapêuticos da luta. Ele traz relatos de sujeitos que melhoraram de suas depressões e deixaram de tomar antidepressivos quando participavam de acampamentos e de ações coletivas; porém ele lembra que a experiência de viver na precariedade de um acampamento tem que ser provisória, se não produz o efeito contrário, e as conquistas são necessárias para que movimento continue. Necessária também é a existência de um projeto de futuro, pois "sem projeto de futuro, nós simplesmente adoecemos." (Fernandes, 2011, p.17).

 

Considerações finais

Investigar como os militantes do MST vivenciam e enfrentaram a violência em seu cotidiano foi o objetivo que buscamos desenvolver neste artigo. Os discursos proferidos sobre violência nos surpreenderam ao destacar a humilhação social como a forma de violência que mais apareceu nos relatos dos participantes da pesquisa, pois este tipo de violência geralmente aparece como invisível aos nossos olhos.

Constatamos também que os militantes do MST, embora sofram com a violência em seus múltiplos formas, não aceitaram e não aceitam o lugar de vítimas passivas, buscando sua afirmação como sujeitos desejantes. Isto não significa que a humilhação social deixou de marcar seus corpos, pois ela continua marcando. No entanto, no MST existe a possibilidade de elaboração e enfrentamento da humilhação social.

Esta elaboração e enfrentamento da humilhação é possibilitada pela ação, pela luta política. A luta coletiva exerce um papel fundamental não somente na conquista de direitos sociais, mas também na elaboração psíquica de cada sujeito, ao construir um entorno social favorável que contribui para formação de "homens informados" conscientes dos seus direitos, ao retirar o sujeito do lugar de rebaixamento passivamente tolerado e possibilitar que a dor seja transformada em resistência.

 

Agradecimentos

Aos órgãos pelo financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

 

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Endereço para correspondência:
Eliane Domingues
Endereço: Rua Rui Barbosa, 456, apto 704, Zona 07
Maringá-PR, CEP: 87020090.
E-mail: edomingues@uem.br Artigo Original

Recebido em: 06/02/2013
Revisado em: 24/04/2014
Aceito em: 01/06/2014

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